Diários de 1949

 

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Apesar de Jack Kerouac ter identificado estes como seus “Diários de 1949”, na verdade este semidiário de 122 páginas vai de abril de 1949 a abril de 1950. Ele descreve a vida cotidiana de Kerouac, sua reação à publicação de The Town and the City e seu progresso em On the Road, Doctor Sax e outras histórias, assim como algumas viagens que, mais tarde, seriam descritas na versão publicada de On the Road. Algumas das entradas incluídas aqui foram tiradas do diário “Filologias Particulares”, de Kerouac, e inseridas para se encai­xarem na cronologia.

No período de pouco mais de quatro meses entre o fim do diário dos “Salmos” e o início deste, Kerouac fez sua primeira viagem pelas estradas com Neal Cassady – que é descrita na Parte II de On the Road e que teve alguns trechos cobertos no diário “Chuvas e Rios”. Ele voltou a Ozone Park em meados de fevereiro e retomou as aulas na New School. Em março, logo depois que o professor Mark Van Doren recomendou The Town and the City para Robert Giroux, editor da Harcourt, Brace, ele foi aceito.

Uma parte das notas aqui reunidas detalha o período que Kerouac passou em Westwood, no Colorado, no início do verão de 1949. Ele viajou para lá sozinho de ônibus, em maio, e convenceu sua mãe e sua irmã (com a família dela) a se mudarem definitivamente para lá. Elas foram, mas no início de julho todos tinham ido embora, menos Jack. A mãe dele voltou para Nova York e mudou-se para o segundo andar de uma casinha no número 94-21 da 134th Street em Richmond Hills, no Queens – a menos de cinco quilômetros de Ozone Park, para onde Kerouac voltou mais tarde naquele ano. O quarteirão deles era barulhento devido ao tráfego de automóveis que entravam e saíam de Manhattan e ao clangor dos trens da Long Island Railroad, que também passava perto.

O diário em si é um caderno espiral que mede cerca de 16x23cm. Na capa há a palavra “CAIXA” impressa, e as páginas têm linhas verticais para registros contábeis. Kerouac escreveu “Diários de 1949” na capa.

 

ABRIL DE 1949

DIÁRIO DE VIAGEM

QUARTA 27 – Comecei On the Road com parcas 500 plvrs. em um período de 2, 3 horas de duração, nas horas curtas da manhã. Acho que estou “mais quente” que nunca – apesar de, com um exame posterior mais profundo, acreditar que posso estar apenas satisfeito demais com palavras, e ainda não estruturalmente sólido (depois de um longo descanso do trabalho). Meu interesse no trabalho está no nível mais alto. Meu objetivo é terminar grande parte de Road, se não ele inteiro, na época em que T&C for publicado, no próximo inverno. Hoje larguei a escola, então posso ficar apenas escrevendo. – Agora quero expandir as 500 palavras originais que, no calor do trabalho, “descobriram” uma importante unidade de abertura.

QUIN. 28 – Fiquei em casa brincando com o bebê, comendo, escrevendo cartas, caminhando, cinema à noite. Problemas familiares, nada sério – em relação a dívidas. Escrevi a noite inteira. Parece que tenho aprendido nos últimos 8 meses de trabalho em Sax, e de poesia. Minha prosa está diferente, mais rica em texturas. O que preciso fazer é manter o fluxo, o velho fluxo, ainda assim in­tacto. Acho que uma das melhores regras para escrever prosa hoje em dia é escrever da forma mais diferente possível da prosa contemporânea – é uma regra útil em si mesma... verdade. – Escrevi 500 palavras – (mais, na verdade, mas compensando o erro de conta de ontem). Calculo, por enquanto, que o romance inteiro terá 225.000 palavras. Um caminho longo, não?

SEX. 29 – Fui a N.Y. pegar um novo paletó esporte vinho com calças pérola – um traje de US$ 40. Vi Allen. Há algo errado com minha alma que me recuso a sentir e lamentar neste caderno monetário – mas Allen está triste. Vi Holmes, Stringham & Tom também. Me senti mesmo um pouco hostil & desgostoso com as pessoas. Há algo errado com minha alma, mas isso não significa que não estou feliz estes dias. Falei com Lou ao telefone. Fiquei olhando para as águas fora de Battery e senti que estava dando adeus a Nova York em minha... (alma?). Algo está realmente mudando em mim: em vez de sentir tanto quanto antes (“A tensão acabou”, disse Allen), tenho remoído alguns sentimentos sobre o fato de que parei de “sentir”. Não me sinto mais ansioso e incontrolável. Acho que isso é ruim. Mas por outro lado, como eu digo, estou dando “adeus a N.Y.” como o Red Moultrie de meu romance.109 Ah, bem – Tudo está bem. Até Allen vai ficar bem. Hoje tudo parece contra a lei, também – o que é algo condenável. Também estava consciente da grande quantidade de maldade no mundo, como a natureza agreste que o homem precisa controlar, ou morrer. Ruminei mais tarde em casa.

E às 4 da manhã escrevi 500 palavras de novo, com a admoestação de “seguir em frente”. Graças a Deus pelo trabalho!

SEX. 29 – À tarde, escrevi aos rapazes [Ed White e Hal Chase] em Paris e à noite fui a N.Y. com Nin e Paul comprar uma cama – também para me informar sobre jipes. À noite, um adorável jantar, bem tarde. Então me instalei na cozinha depois que todos foram para a cama e li e escrevi. Escrevi 1.200 palavras; palavras fluidas, e talvez o romance esteja finalmente andando. Sen­­ti-me bem por isso. Fui deitar ao amanhecer. (Também escrevi em meu ma­ravilhoso caderno “Chuva e Rios”.)

SÁB. 30 – Fui a Jamaica [Queens] com US$ 40 e comprei algumas camisas boas, calças, gravatas e um bom par de sapatos. Meu guarda-roupa está completo, exceto por abotoaduras e meias. Sem dúvida é um pecado se arrumar desse jeito – (o que o Cordeiro iria pensar?) – mas a vida é assim: um pecado em si mesma, quase. À noite cochilei em casa e então saí para caminhar na noite de sábado de Ozone Park. Abandonei a pena piegas. Escrevi minha biografia de 250 palavras para a Harcourt, Brace; e escrevi 1.000 palavras no romance. A ideia é não parar de construí-lo. Engraçado, também, como agora estou escrevendo sem sofrimento. Talvez essa seja a maior Graça que tenha caído sobre minha cabeça nos últimos tempos. Às vezes fico mistificado por essa boa sorte. Deus é bom para mim – Ele não precisa ser. Não sou o Cordeiro, não sou o Cordeiro.

MAIO

Maio, o maio fresco e tranquilo...

DOM. 1o – Fui deitar às dez horas da manhã de hoje, porque queria a­proveitar a manhã de domingo. Levantei às 5h, saí para caminhar, li um pouco, escrevi um pouco e fui para a cama cedo. Apenas um dia de contemplação. “Rabisquei” um pouco – ou seja, escrevi um esboço em prosa, que sempre pode achar lugar no meu romance mais tarde. Li Faerie Queenie110.

SEG. 2 – Eu & Nin tiramos fotos no meu quarto à tarde, para usar na divulgação da H-B. Esses dias têm sido todos sossegados, divertidos, informais; seguidos pela noite contemplativa... muito mais fácil para os nervos que meus velhos dias & noites sombrios e de um suor terrível de T&C. É porque agora tenho uma família, e meu talento é reconhecido. – E sobre as pessoas pobres em toda parte? Quem vai dar uma cama para uma casa onde as crianças dormem em esteiras no chão, seis em cada quarto? Quem vai comprar as pílulas de vitaminas para as crianças doentes e subnutridas? Quem vai confortá-las na escuridão? (pois quando você é pobre, a escuridão é menos rica: será mesmo?) O que o milionário Al Capp faz com seu tempo & seu dinheiro & seus apetites? – ele não é o milionário gordo que satiriza? Será que existe um milionário honesto? – um que pudesse jogar seu dinheiro fora, & voltar para sua vida an­terior, seus hábitos de pobreza e esperança? Existe Jesus na terra?

Precisamos de um Jesus? – a hora está chegando? E esse Cordeiro irá revelar? Deve revelar os segredos da felicidade na terra, e dos sudários? Por tudo, isso é confuso e difícil demais para mim, e já antevejo, já antevejo... Antevejo Desperdício em minha própria casa, e luxúria embotada, e pre­guiça, e pecado emaranhado. Estou pensando. Acredito que se ganhar muito dinheiro, depois uma boa propriedade rural & terras, & ferramentas, há algo que farei... algo como o velho Tolstói, e só porque estou falando sério sobre isso tudo, isto é, minha vida, e a sua, e o sentimento por Deus. E porque temo a corrupção mais que qualquer outra coisa no mundo. Não vou aprender com riquezas, não sou Salomão; sou aquele que vigia o Cordeiro; sou aquele que adotou os pesares; sou ele, John L. Kerouac, o sério, o severo, o teimoso, o implacável; o que é perseguido pelo Viajante Amortalhado; o que quer olhos; o que espera; o que não é agradável, e tem silêncios; o que caminha; o que vigia, e tem pensamentos escondidos; o que tritura a rocha e mesmo os rostos – com olhos.

O que não está satisfeito.

O que odeia a satisfação.

O que ama o vale branco do Cordeiro.

O que foge, e espera, e vigia, e dorme, e desperta em antecipação ao Cordeiro, o Cordeiro tão dócil na montanha.

2 de maio

Paciência desenvolvi, e cachoeiras... Para o vale branco do Cordeiro; e o anjo branco dos sudários, e a terra dos arco-íris e águias, não estão longe. Cuidado, meus olhos são pedras de amolar! ... mas minha alma não é água: é leite, é leite. Pois eu vi o anjo amortalhado em pé na árvore encapuzada, e firmamentos dourados lá no Alto, e ouro, e ouro. E a rosa do crepúsculo que brilha na chuva dourada, e chuva, e chuva.

Escrevi 1.000 palavras-boas à noite (sobre onde “repousam bonecas maltrapilhas e restos mortais”). A novela segue devagar, mas firme.

TER. 3 – Fui buscar minhas roupas. Vi um jogo à noite no Polo Grounds – um grande espetáculo delicioso, e um bom jogo. Dormi na casa de Holmes – conversamos, bebemos cerveja.

QUAR. 4 – Fui procurar Hal Chase, mas ele não estava. Cheguei em casa cansado: joguei bola com Paul depois de um cochilo. À noite, todos saímos no conversível para tomar sorvete. O dia inteiro passei atacado pela tristeza de maio... Vi uma garota tão bonita no jogo. Ah, mas a tristeza de maio – e mesmo que maio seja para todos, não é para mim – como mostram as fotos tiradas de mim, na segunda-feira. São estudos de um louco. Ah, mas a tristeza de maio: que noite perfumada, que olhos doces penetram furtivamente nos meus, que lamentos tristes do outro lado da sebe de lilases, que lua! E eu com meus olhos loucos. Breve, breve, devo casar-me com a rainha de maio.

À noite escrevi cerca de 1.000 palavras.

QUIN. 5 – Eis o que penso sobre De Quincey – ele tem consciência de sua reputação como De Quincey, e é tão tomado por isso que seu trabalho é inútil, isto é, nada revela; além do mais ele não sabe esconder a consciência de ser ele mesmo De Quincey, o que é um pouco burro e vago; e também a consciência de todas as suas virtudes – todas elas – portanto, ele é vítima dessa única grande ausência de virtude. Hoje escrevi várias cartas e resolvi uns probleminhas, incluindo com Adele [Morales]. E levei a doce criança, o pequeno Paul [Blake, Jr.] para uma viagem a Catai111... no carrinho de bebê: em máquinas gigantes, grandes muralhas, cães estranhos, crianças grandes, plantas imensas, rios, lagos (eram poças), e lugares onde os pássaros malaios esvoaçavam sobre lagoas âmbar. Ele também viu um cavalo de Brobdinagian, e muitas flores estranhas. Ou ele se sentiu como Marco Polo (em uma caminhada de três quilômetros) ou eu mesmo sou a criança. Totalmente absorto no frescor do sonho... essa paternidade. Eu estava muito feliz. Ele segurava sua folha de bordo tremulando como uma bandeira, e entrou em Catai de pé como um auriga. Cheguei a explicar coisas para ele, & parei diante de plantas monstruosas para que ele compreendesse. Voltamos por outro continente. À noite, li De Quincey, e Blake, Blake...

Nicholas Grimald112 também não é um mau poeta. “Um diabrete de Vênus...”, diz ele. Nem se pode negar [Robert] Herrick, de jeito nenhum, não senhor, não Herrick.113

Escrevi 700 palavras inúteis que serão todas riscadas. Meu primeiro impasse em Road.

SEX. 6 – Calculei que a mudança para Colorado custaria uns US$ 300. Estou com muita vontade de fazer isso. Todo mundo está, menos Paul, que está preocupado em se mudar para muito longe de seus parentes na Caro­lina. Eu gostaria de conseguir, para começar, um emprego de repórter esportivo em Denver – depois uma plantação de trigo.

QUA. 11 – Depois do fim de semana em Poughkeepsie na casa de Jack Fitzgerald, resolvi, agora, ir imediatamente para Denver e procurar uma casa. Vou sozinho, de carona, pela noite vermelha, vermelha. Harrisburg, Pittsburg, Columbus, Indianápolis, Hannibal Montana, St. Joe, Last Chance, & Denver.114

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DOMINGO 22 DE MAIO – Fiz uma caminhada até Morrison Rd. para comprar este caderno e tomei uma cerveja em uma grande tarde de domingo num bar de beira de estrada. Como as tardes de domingo são menos tristes no Oeste. Sentei-me perto da porta dos fundos e escutei música do coração dos Estados Unidos e contemplei os campos verdes dourados e as grandes mon­tanhas. Caminhando pelos campos com meus cadernos eu poderia ter sido Rubens, e este lugar, minha Holanda. Voltei para casa, comi e fiz anotações preliminares à noite. Comecei On the Road lá em Ozone, e aqui está difícil. Passei um ano inteiro escrevendo antes de começar T&C (1946) – mas isso não deve acontecer outra vez. Escrever, agora, é meu trabalho, tanto no mundo quanto nas minhas “charnecas interiores” – então preciso me a­diantar. Planejei um início anterior às 8.000 palavras já escritas nas duas primeiras semanas de maio em N.Y. Fui para a cama depois da meia-noite e li um romance barato de faroeste.

 

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SEGUNDA-FEIRA 23 DE MAIO – Levantei renovado às 9h, andei até o mercado, voltei e tomei café da manhã. É um pecado ficar tão feliz vivendo sozinho como um eremita. Enviei algumas cartas, escritas ontem. Bebi café nos degraus dos fundos, onde o vento do Oeste nos ares reluzentes da tarde agita-se pela grama. (Por que eu leio romances baratos de faroeste? – pelas descrições belas e autênticas de mesetas, o calor do deserto, cavalos, estrelas da noite, e por aí vai; a caracterização dos personagens, é claro, não é autêntica.) – Trabalhei à tarde, e até 11h da noite produzi 1.500 palavras mais ou menos. Às vezes me pergunto se On the Road será bom, apesar de provavel­mente se tornar popular. Nada tem a ver com T&C. Acho que isso é permi­tido – (mas triste) – agora.

Kerouac ———

6100 W Center

Westwood, Colorado

Maio – 1949

On the Road

TERÇA-FEIRA 24 DE MAIO – Acordei às 9h30 pela primeira vez na semana com a “mente preocupada”, desde que cheguei aqui. Acho que é só um caso de pesar exagerado – e depois algumas preocupações com dinheiro até o próximo adiantamento dos editores. É um tipo de preocupação financeira melhor que antes de T&C ser comprado, porque na época eu nada tinha, absolutamente nada. O que eles chamam de “pindaíba notória”, na época era para mim um misticismo louco. Hal e Ed White devem estar sentindo hoje o que eu costumava sentir – uma existência sem amor em um mundo ganancioso por dinheiro. Ainda me sinto desse jeito, mesmo sabendo que ganharei algum dinheiro escrevendo por toda a minha vida, e nunca passarei fome ou terei de me isolar em um desfiladeiro, comendo plantas como Huescher, ou lavar pratos nas espeluncas das cidades grandes. Um dia talvez eu olhe para trás para esses dias (antes de vender o livro) com o mesmo tipo de admiração com que agora olhamos para os pioneiros que viviam em lugares selvagens e remotos apenas com inteligência e persistência – um dia, quando alguma forma de seguro social for efetiva para todos os seres mortais. Porque a maioria dos empregos hoje em dia com os quais se ganha apenas o suficiente para viver são insuportáveis para os homens imaginativos... como Hal, Ed, Allen, Bill B. e vários outros. É tão complicado para esse tipo de homem bater o cartão de ponto e fazer as mesmas coisas estúpidas o dia inteiro quanto para um homem sem imaginação passar fome – porque isso também é “passar fome”. Hoje em dia ando surpreso que um Progresso real siga em frente apesar de tudo. Esse progresso devia visar o trabalho significativo e a segurança social e maiores facilidades para o mínimo conforto de todos – para que as energias sejam liberadas para as grandes coisas que surgirão na Era da Energia Atômica. Nesse dia, então, chegará a oportunidade de alcançar as questões finais da vida... quaisquer que sejam elas, na verdade. Sinto que estou trabalhando na periferia dessas coisas finais, todos os poetas sempre fizeram... e mesmo Einstein em suas investigações profundas. “Solucionar problemas”, como insiste Dan Burmeister, agora é essencial (e pode ou não ser uma tendência na ansiedade recente da civilização) – mas depois disso, há a questão do reconhecível, que agora é chamado de “irreconhecível”. Sinto que os fatos mais importantes na vida humana são de uma natureza moral: – comunicação entre almas (ou mentes), reconhecimento do que significa o Cordeiro, ter a vaidade como destrutiva e nada prática (como indica a psicanálise), e o consolo do enigma mortal por meio de um reconhecimento do Estado de Graça que outrora foi chamado de Temor a Deus. E muitas outras coisas ainda desconhecidas.

Mas essas são reflexões do ensolarado Colorado e podem não se aplicar no Corredor Sombrio onde algo muito mais estranho está germinando (estou falando de Allen). Talvez Allen seja deliberadamente insano para justificar sua mãe, ou que ele realmente viu a Derradeira Verdade dos Risonhos Lings. Mesmo que fosse assim, eu, como Ling, não poderia usá-lo. (Tudo se re­fere à fábula “O sofrimento de Ling”) Então outra vez, já que todos somos realmente o mesmo homem, ele pode, ou eu agora posso apenas estar brincando.

Ao fim pelo menos reconheci isso como uma absorção da vida-mente... o que pode ser a única coisa que temos, como as flores que não têm nada além de pétalas que crescem. Tudo é provável. “Isso era vida”, como escrevi ontem em Road. O desenvolvimento pleno é tudo.

Há uma filosofia dinâmica por trás do Progresso do Século 20, mas também precisamos alcançar as profundezas de uma Aceitação Estática Metafísica – um Manifesto de Confissões – também, ou as dinâmicas explodirão sem controle como a máquina penal de Kafka. Talvez deva acontecer algo como isso: depois dos cinco anos de idade, todo ser humano devia transformar-se em um shmoo115 e alimentar os menores; shmoos com asas como anjos da guarda.

Não devia haver grandes shmoos para chutar o bom e velho Gus para o outro lado do vale. Isso não é o Cordeiro, não é paz. Mesmo o bom e velho Gus, em suas profundezas, está sozinho em pé chorando na busca simples pela confirmação de suas lágrimas; e a vaidade é o seu mal. Dostoiévski sabia isso mesmo sobre o Pai Karamazov.

Trabalhei o dia inteiro, escrevi 2.000 palavras. Não muito satisfeito, mas o suficiente. Fui deitar à noite com os jornais & romances baratos de faroeste. Ansioso pela chegada da família, especialmente mamãe: que alegria isso será para ela! Heh heh heh – (um estalido de satisfação da minha parte, como você vê).

QUARTA-FEIRA 25 DE MAIO – Fui à Denver University e à casa dos Whites. O campus de Denver é bonito e interessante. Caminhei pelo prédio estranho da associação dos estudantes enquanto uma jukebox berrava Charley Ven­tura... primeiro bop em semanas. Meu cabelo se arrepiou. Viajei. Percebi que a música de uma geração, seja o swing, jazz ou bop – (essa lei aplica-se pelo menos aos Estados Unidos do século 20) – é um ponto-chave do estado de ânimo, uma identificação, e uma busca. Enfim, procurei por Dan, bebi milk-shakes, sentei-me na grama, olhei para as garotas, visitei os prédios etc., e final­mente peguei uma carona para o campo naquela tarde quente e fui para a casa dos Whites. Essa casa foi construída por eles mesmos, Ed e [Frank] Jeffries e Burt trabalharam o inverno inteiro. Frank White estava lá. Eu fiquei um pouco impressionado com ele. Ele parece mais com Ed do que as pessoas ima­ginam... a mesma compreensão rápida de todas as afirmações; na verdade, o mesmo conhecimento prévio do rumo daquilo que alguém está para falar. Seu único inconveniente é a loquacidade impossível de ser acompanhada por causa de sua voz enrolada e enorme preocupação com os detalhes. Então o resto da família chegou para o jantar. A sra. White fez com que me sentisse quase em casa (como Frank). Claro que eu não era esperado e não devia ter aparecido assim sem avisar. Jeanne parecia estar pensando em outra coisa. Depois do jantar, Frank e eu voltamos de carro para o campus da D.U., onde ele fez uma palestra sobre alguma espécie de pesquisa com raios cósmicos, para uma turma de física. Eles aplaudiram admirados suas palavras; eu mesmo não consegui acompanhar a linguagem científica. O outro conferencista, que falou sobre geofísica, era Wally Mureray, um amigo de Frank de quem eu gostava. Ele era nascido & criado em Leadville [Colorado] e, como seu pai & seu avô, tinha a mineração no sangue. Também é um tipo autenticamente mineiro, embora seja cientista – uma combinação notável. Encontramos Dan Burmeister em seu seminário de ciências sociais e isso resultou em uma discussão infindável entre os cientistas físicos e o cientista social, com muitas re­ferências à relatividade, Oppenheim, pesquisa atômica etc. Acabei anunciando (em uma grande onda) que tudo era um “continuum de ambiguidade”. Certo? – porque a relatividade é só a ideia, e um ponto de referência é tão bom quanto qualquer outro. Nos acalmamos com cerveja; fomos para casa. Frank me levou de carro para casa.

QUINTA-FEIRA 26 DE MAIO – Então hoje (enquanto prosseguia em minha domesticidade de ermitão na casa vazia... na verdade, tentei consertar a bomba d’água quando ela pareceu consertar-se sozinha) o menino aqui da rua, Jerry, me pediu que fosse com ele ao parque de diversões, Lake Side, à noite. A mãe dele, chamada de Johnny, nos deu uma carona até o parque (o marido dela desapareceu em algum lugar). Mais uma vez o Parque Triste. Andei em alguns brinquedos com Jerry (que parece estar procurando por algum tipo de pai). Mas uma garçonete não acreditou que eu tivesse 21 e pediu uma identidade antes de me servir uma cerveja. Jerry (14) bebeu rootbeer. Demos uma volta num laguinho triste em um trenzinho de brinquedo; na grande roda-gigante etc. e comemos cachorro-quente e tomamos sorvete. Ainda assim, foi uma noite “sinistra”... de aparência sinistra... e fiquei deprimido – por dois dias. Um segurança do parque ameaçou prender Jerry porque ele estava brin­cando com o peixe manso no cais das lanchas. Então fomos para casa em um caminhão velho depois de um filme de Roy Rogers, e um carro quase bateu na nossa traseira. Foi estranho. Em primeiro lugar, não consegui entender coisa alguma. Eu duvido que o motorista do caminhão velho soubesse que estávamos lá atrás. O filhinho dele estava sentado entre nós, misteriosamente enrolado em um cobertor. Ninguém percebeu o fato de que quase fomos abalroados pelo carro... ou seja, eles não davam a mínima. Então, na noite escura e si­nistra do campo, quando Jerry e eu andávamos para casa, um carro de bêbados quase nos jogou para fora da estrada. Tudo estava sinistro... como para Joe Christmas116.

SEXTA-FEIRA 27 DE MAIO – Deprimido o dia inteiro. Cheio de meus fantasmas e dores particulares. Jerry trouxe um gatinho para mim... ele tem olhos tristes. Precisa de carne. Fica andando ao meu redor miando por carinho. É como aquele menino perdido, incompreensivelmente solitário. Alimento o gato e faço o que posso para conseguir conversar com Jerry – e com a mãe incompreensível dele, que me pediu que montasse em um rodeio amanhã. Quer dizer, domingo. Minha depressão não vê a luz dessas coisas. O que fiz o dia inteiro? – Não me lembro mais. Parte de minha tristeza nasce do fato que minha família está perdendo tempo para chegar até aqui. Por quê? Também me odiei o dia inteiro... sofrendo e assombrado pelo so­frimento.

SÁBADO 28 DE MAIO – Depois de um dia triste, eu me animei e fui aos bares na estrada beber cerveja. Nossa, quantas garçonetes lindas. Eu gostei mesmo da música de cowboy... comi batatas fritas no bar etc. Há muita gente boa por aqui, como eu imaginara. Voltei para casa e dormi, para estar pronto para o Rodeio Assombrado.

DOMINGO 29 DE MAIO – Então montei em um rodeio... uma espécie de rodeio. Johnny me apanhou de carro e fomos até uma fazenda, e arrumamos quatro cavalos. Uma mulher impressionante chamada Doodie administra o lugar e domina cavalos imensos, entre eles um grande cavalo árabe branco de 1,70m de altura, com um amor impetuoso e insolente... em outras palavras, uma verdadeira mulher dos cavalos. O filho dela, Art, é uma criança feliz e tranquila que cresce entre os cavalos. Montamos os quatro animais e partimos para Golden, 20 quilômetros a oeste. Não montava por uma distân­cia tão longa desde 1934, por isso logo a sela começou a me machucar... mas mesmo assim me diverti. Meu cavalo, Toppy, um potro ruão, tinha uma boca delicada, por isso não podia forçar seus arreios. Juntamo-nos a outras duas mulheres, uma vaca nojenta em um puro-sangue árabe e a outra uma mulher maravilhosa com cabelos ruivos flamejantes e sem papas na língua. Ela disse: “Odeio mulheres que não falam merda quando estão com a boca cheia dela”. Galopamos e andamos e trotamos até Golden. Tomei uma cerveja no bar; então montamos outra vez e, sem que percebêssemos, um grande grupo de cavaleiros juntou-se a nós, e sem que percebêssemos, em uma estrada de terra, algo aconteceu em nível psicológico. Eu gritei “Wohee!” e alguns de nós saímos esporeando estrada abaixo em uma corrida. Meu ruão adorava correr, e “corria”. Em um prado no alto de uma mon­tanha corremos enquanto, como combinado, um fotógrafo nos filmou com uma câmera de cinema em tecnicólor... Ainda não sei sob que auspícios. Cavalgamos em círculos como índios, fizemos oitos, e galopamos en masse por um vale, e nos divertimos. Bebemos cerveja montados nas selas. Na volta para Golden, corremos enfurecidos por aquele terreno, descemos o leito de um riacho e saímos dele voando e sentamos o couro nos campos passando em cima de buracos de esquilos ou outro bicho. De qualquer jeito, nunca tive medo de cair do cavalo. Depois de outra cerveja, começamos a voltar... e o garoto e eu apostamos uma corrida. Ele ia pela estrada e eu seguia ao lado pelo campo, e acabamos empatados. Então ele me derrotou na estrada... mas é um cavaleiro leve, e usava a rédea nos dois lados do animal, algo que não me incomodei em fazer. – Finalmente voltamos, exaustos após um dia de 50 quilômetros. Fui direto para a cama... Com dores musculares e uma bolha feia.

SEGUNDA-FEIRA 30 DE MAIO – E hoje eu devia montar no rodeio em Table Top (montar um cavalo chucro por alguma razão que não consigo explicar), mas claro que estava dolorido demais. Fiquei chateado de perder a oportunidade. En­quanto isso al­guns vizinhos por aqui estão fazendo fofoca sobre Johnny (a mãe de Jerry) e eu.... uma bruxa velha do outro lado da rua. Esse tipo de coisa acontece até aqui. O melhor a fazer é nada fazer. Mesmo porque, o que importa? – Não há qualquer mal que seja um verdadeiro mal (como a cadeia etc.). Descansei o dia inteiro. Escrevi à noite. Ainda assim, acho horrível ter uma velha como essa xeretando o dia inteiro por trás das persianas, tentando descobrir o que você está fazendo por trás das suas, e inventando histórias escandalosas sobre você. Nossa! É engraçado, mas de um jeito horrível. (Francis Martin.)

Mas como eu amo cavalos!

Ano que vem: rancho na montanha.

E hoje reexaminei minha vida literária e estou um pouco preocupado em perder o contato com ela nessa atmosfera de vida natural. Afinal de contas, a grande arte floresce apenas em uma escola... mesmo que essa escola seja apenas amizade com poetas como Allen, Lucien, Bill, Hunkey & Neal e Holmes... e Van Doren & [Elbert] Lenrow também, é claro.

: – JUNHO – :

NO COLORADO, 1949

TERÇA-FEIRA 1o DE JUNHO – 117 Estou pensando em fazer de On the Road uma história longa das pessoas que conheço, assim como um es­tudo de chuvas e rios. Allen expressa enfado com minha atual preocupação com “Chuva-&-Rios”, mas acho que é só porque não expliquei de forma clara o que significam: como fiz no caderno “Registros” em páginas que cobriam “Nova Orleans a Tucson”. Isso está claro em minha cabeça.

Não há verdadeira descoberta do ouro, ou “avanço da ciência”, só uma revelação no coração em um dia qualquer, sujeita a mudanças horríveis e revelações adicionais. “Revelação é Revolução”, como diz Holmes, até agora, claro, enquanto muda, miseravelmente, a cada dia.

Não existe paraíso ou recompensa, e tampouco qualquer julgamento (Allen diz que seus advogados “serão julgados”): – não: – há apenas uma continuação do Mistério da Morte. A morte ser um mistério faz com que ela seja aceita; porque o mistério nunca termina, mas permanece.

– Ainda esperando a família.

QUARTA-FEIRA 1o DE JUNHO – Consertei a bomba d’água do poço às nove horas desta manhã. Tirei sujeira da válvula e apertei um cilindro solto em volta do cano, e levei a pressão até 50. Fiquei ali enraivecido por um tempo porque achei que tinha assinado um contrato de aluguel por um ano de uma casa com um poço seco. Acho que está tudo bem – 40 metros de pro­fundi­dade. Além disso, hoje choveu. A chuva não é apenas poética no Oeste, mas necessária. Então digo “Chove, desgraçado!” – e chove. Passei esses dois dias me divertindo, só escutando rádio, brincando com o gato, jogando paciência, e pensando mais em On the Road. Preciso de minha máquina de escrever. Sem móveis, sem família, nada. Não posso entender todo esse atraso. Levei 60 horas para chegar aqui, e outras 48 horas para encontrar uma casa. Eles já estão demorando três semanas... e tudo o que faço é esperar, esperar, esperar. Na verdade, não acho que Paul queira deixar o Leste... ele está perdendo tempo na Carolina do Norte. A mãe dele tem um marido que a sustenta, e um neto, e dois outros filhos no Leste – portanto a mudança de Paul para o Oeste não é uma tragédia, mesmo porque ele também pode visitá-la. Por isso não entendo esse atraso. Eles chegaram na Carolina do Norte na última terça-feira, e agora estão nove dias atrasados – e a viagem de 2.500 quilômetros demora uns 3 ½ dias e eles estão lá há uma semana inteira, e eu aqui pagando o aluguel de uma casa vazia. Não gosto disso... Um desperdício de tempo e dinheiro, e o desperdício de uma coisa boa, e boba. Recebi uma carta de Beverly Burford Pierceall hoje... agora ela está casada e mora em Colorado Springs, cujo pico Pikes posso ver da janela da cozinha. Escrevi a resposta à noite.

QUINTA-FEIRA 2 DE JUNHO – A família finalmente chega esta noite; re­cebi um telegrama de manhã. Estou reduzido à minha última moeda (1 centavo), descontando a nota de US$ 20 que guardei para o gramado (parte do acordo nesse aluguel é que eu plante um gramado). Então agora as coisas vão começar a andar e vamos tocar a nossa casa. Só uma coisa: onde está o ca­minhão de mudança? Hal Chase já deveria ter chegado em casa. E logo terei notícias de Giroux para decidir sobre o dia 15 de junho, e um emprego, e meu cronograma de produção (meses) para Road. – A noite passada fui deitar lendo o Novo Testamento. Vou escrever em breve minha própria in­terpretação de Cristo; em essência, a mesma, que ele foi o primeiro, talvez o último, a reconhecer que o confronto de um homem com o enigma final da vida é a única atividade importante na Terra. Apesar de os tempos serem outros, e o “Cristianismo” agora ser cristão no método (socialismo), ainda assim, a hora de um “acerto de contas” final está para chegar, um mundo verdadeiramente ins­pirado em Cristo. O Rei que chega em um jumento, resignado. “O verdadeiro progresso deve estar no coração dos homens.” Está me ou­vindo, Hunkey das Chamas? – Planejei, também, escrever nos próximos anos uma “Biografia literária de um jovem escritor”, de preferência em Paris. Estou cheio de ideias, se não de trabalho de verdade. Fico dizendo que preciso de minha máquina de escrever, e minha escrivaninha, meus livros, papéis também. Quem dera eu tivesse a força de vontade e a energia de dez escritores (como eu tinha em 1947). O trabalho de T&C de 1948 foi uma dádiva de Deus, pois há muito tempo tinha me ajoelhado como Haendel antes de seu Messias, e a recebi.

Mas graças a Deus por tudo. Vi isso outra noite.

SEGUNDA-FEIRA 13 DE JUNHO (Colorado)

Estou tentando me estabelecer no Colorado, emprego e por aí vai. Logo vou começar outro diário.

Datilografei umas 10.000 palavras de On the Road e as organizei – agora, o verdadeiro começo.

O editor [Bob] Giroux viaja em 15 de julho.

Tenho visto muito Justin Brierly.

Aluguei uma casinha nos arredores de W. Denver, onde as planícies escorrem das montanhas. Este verão lindo é meu. A família chegou. Problemas financeiros. A chuva deixou tudo enlameado; e o poço está seco.

28 DE JUNHO – Você não está realmente escrevendo um livro até começar a tomar liberdades com ele. Agora comecei a fazer isso com On the Road.

Também acho que, ao escrever sobre fogo, chego tão perto dele que posso me queimar. Agora que preciso de “Levinsky e os anjos da Times Square”118, percebo que está com Vicki; e como ela está sendo indiciada, agora provavelmente a polícia tem o manuscrito. Mas eu o quero de volta.

Todo mundo nos Estados Unidos está sentado no cinema, olhando com avidez a tela cinzenta louca-séria – pelo que ela tem a mostrar. É tão melhor explorar coisas como essas que questões imaginárias tolas como “Com que idade as meninas devem se casar?” – melhor e mais inteligente, ao contrário dos “cientistas sociais”.

The

Skeleton’s

Rejection

Roll your own bones,

go moan alone –

Go, go, roll your own bones,

alone.

Bother me no more.119

 

 

JULHO

COLORADO

4 DE JULHO

Minha mãe hoje voltou para seu emprego em N.Y. Ela vai alugar um apartamento em Long Island. No ano que vem vou comprar uma casa para ela lá. Ela partiu à uma no trem de Rock Island. Pobre viúva errante! Em um mês, depois de Giroux, vou para o México e então para N.Y. – talvez passe por Detroit no caminho. A grande noite americana continua a fechar-se, mais vermelha e escura o tempo todo. Não existe lar.

Comecei a escrever “The Rose of the Rainy Night” ontem, por diversão.

Uma melancolia pesada, quase como um prazer, agora me oprime.

On the Road faz progressos de maneira estranha.

Pobre Red Moultrie.

Tudo o que fazemos é gemer sozinhos.

Mas cada vez mais, à medida que envelheço, vejo o belo sonho da vida expandir-se até se tornar muito mais importante que a própria vida sem graça – um sonho escuro e vermelho da cor da cacatua. A noite, como um bálsamo, mitiga as feridas silenciosas do incômodo dia-escuro & noite chuvosa!

Agora estou ficando mais místico do que nunca.

______________

Hoje foi um dos dias mais tristes que já vi. Esta noite meus olhos ficaram mortiços por isso. – De manhã acompanhamos minha mãe à estação, levando com a gente o bebezinho de fraldas. Um dia quente. Ruas tristes e vazias de feriado no centro de Denver, e sem fogos de artifício. Na estação, empurramos o bebê pelo chão de mármore. Os gritinhos dele misturaram-se ao “troar do tempo” lá em cima na cúpula. Despachei a mala da minha mãe antecipando alguma voltinha de despedida, ir a um bar, algo assim, mas acabamos ficando ali sentados, tristes. O coitado do Paul leu uma revista de mecânica. Então o trem chegou. Enquanto escrevo isso à meia-noite ela deve estar em algum lugar perto de Omaha...

À tarde Paul & Nin & o bebê e eu tentamos nos animar com um piqueni­que no lago Berkeley. Mas ficamos lá sentados, tristes, e comemos os sanduíches insípidos sob o céu cinzento e fomos embora. A criança ainda estava de fraldinhas... agora tinha esfriado um pouco, então fomos para casa. Fizemos uma espécie de churrasco no quintal dos fundos, & assamos marshmallows até escurecer. Isso foi legal.

Mas nos fogos de artifício no Denver U. Stadium havia grandes multidões esperando desde o crepúsculo, crianças sonolentas e tudo; assim que os fogos começaram, porém, essas pessoas infelizes começaram a ir embora, antes do fim do espetáculo, como se estivessem infelizes demais para ver aquilo por que tinham esperado.

Um copo de cerveja, porém, me alegra.

Como Jack Fitzgerald, vou começar a ser um anjo bêbado.

______________

É tão verdadeiro – as crianças sabem mais que nós. Agora tenho cer­teza. Eis por quê: – Eis por quê: O Gigante Egoísta.

Cena: Quando Red volta para Denver depois de uma ausência de dez anos, a cena no escritório da imobiliária onde ele vai perguntar sobre seu pai. O jo­vem corretor, que, ele percebeu, o estava desprezando, decodificava um do­cumento legal complicado para seu próprio pai; os cowboys rudes che­gando para pagar uma comissão aos golfistas imobiliários (o homem alto, de rosto vermelho, flácido com um chapéu-panamá). O deserto branco da 17th St. & Stout. Tudo isso deixa Red muito triste por sua velha Denver. Então os ensaios para a formatura do irmão mais novo de Holmes no au­ditório, o orador da turma com a voz séria; então o almoço dos professores e do diretor. Tudo é otimismo para os garotos do secundário, mas Red conhece muitos, entre eles Vern, que não vai à escola e não engole coisa alguma relacionada a ela... uma cons­piração otimista contra o sofrimento; de pais, professores & crianças: uma conspiração feita na segurança do poder social estabelecido.

E todos esses garotos beat? Os chamados “delinquentes” e mesmo os garotos P.D.? Bem, há garotos P.D. bem aqui nos Estados Unidos –

...pobres despossuídos...

(e todos os pacificadores despossuídos na vida).

VIAGEM DE DENVER A FRISCO E DE VOLTA A N.Y.

AGOSTO 1949 – 8.000 quilômetros na estrada.

Fechei a casa em Denver, fui para Frisco em um Ford 1940 por US$ 11, passei três dias lá, voltei para Denver com Neal em um Plymouth 1948; ficamos alguns dias em Denver; seguimos para Chicago em uma limusine Cadillac 1947, aproveitei uma noite em Chicago com Neal; ônibus para Detroit; três dias em Detroit tentando entender Edie; segui para N.Y. com Neal em um Chrysler 1949 por US$ 5 cada.

Essa viagem memorável será descrita em algum lugar. (No livro “Chuvas & rios”.)

Agora moro em Richmond Hill. Prossigo com o trabalho esfarrapado em On the Road. Giroux e eu estamos preparando Town & City para a im­pressão, em 27 de setembro. Recebo outro adiantamento de US$ 250,00, para durar até o Natal.

Muito, muito ennuyee... (no sentido franco-canadense, que significa infeliz & enjoado). Mas “o trabalho tudo salva?” “Os detalhes são sua vida?”

Vou para Paris no início de 1950 e vou terminar Road e aproveitar as garotas francesas e as ruas de Paris. Também vou começar “Mito da noite chu­vosa”, que será o terceiro romance.

 

AGOSTO DE 49

Richmond Hill, N.Y.

 

PROSSEGUIMENTO DA LAMENTAÇÃO

TER. 29 – Retomando o verdadeiro trabalho sério vejo que fiquei preguiçoso por dentro. Não que não queira escrevinhar e rabiscar como antes, mas apenas não quero pensar até o fundo das coisas – não mais o pescador das pro­fundezas. E por que é assim – uma coisa, falando de maneira indireta, porque não posso ainda entender, por exemplo, porque meu pai está morto... sem sentido, tudo é incompleto e não é o que aparenta. Parece até que ele não está morto. Ainda não reconheço que ele está morto. Parece que não consigo mais ser sério porque... porque... Tudo e todos ao meu redor são tão am­bíguos. Nem mesmo com Allen consigo concordar em um sério contrato de compreensão. Ele se vê como “um espírito pobre, alquebrado em um hospital”, e não sabe o quanto está louco por não se importar em re­conhecer que isso é fruto de res­sentimento. E daí se ele sofreu? – E Edie: não liga, não dá a mínima nesse mundo. Nunca olhou sequer uma vez para mim com algo que se aproximasse da seriedade. Ela estava cansada e queria dormir, e foi para casa e eu tive de caminhar por 6 quilômetros e – sem muito ressentimento, só cansada. Neal – chegamos a grandes compreensões que ele esquece, já que, de qualquer forma, ele só conseguiu chegar a elas por pura técnica e grande experiência em lidar com almas que parecem ser como a minha? Acima de tudo precisei carregar muitos fardos de pessoas bobas que não conhecem suas próprias mentes. Estou can­sado dessas ambiguidades e ignorâncias e indiferenças. Quero ser sério.

E porque estou cercado de pessoas assim quase parece tolo para mim tentar pescar nas profundezas em meu trabalho... Eles não ligam mesmo. Eles não sabem. Estou me dirigindo a mim mesmo, como a mulher que ri na porta da casa maluca do parque de diversões, que todo mundo olha de boca aberta.

Não há connoisseurs?

Nenhum amante do amor?

É assim que o mundo vai acabar – na indiferença? Onde estão as chamas verdadeiras, sérias, consequentes, irrefutáveis? Onde estão os velhos profe­tas e escribas das Escrituras? Onde está o Cordeiro? Onde estão as crianci­nhas? O que aconteceu com a parábola? – com o mundo? – até com as histórias simples e a seriedade?

O que é toda essa ciência frívola?

Por que as pessoas circulam por aí sem muita seriedade e se esquecem mesmo disso?

Onde está a criança séria?

Na verdade, a morte de meu pai não foi séria de jeito algum. Você nem morre mais hoje, só passa pelo último poste de luz como fazem as pessoas de Céline. Não é nem mesmo uma zombaria de alguma coisa. Um acidente.

Quem se importa com o naturalismo?

Por isso agora não posso pescar nas profundezas. Ah, venha para mim, amor, corra pelo amor de Cristo – a Musa não basta, e não há coroa de louros.

Quero uma alma.

Quero uma alma.

Quero uma alma.

Quero minha garotinha.

Insisto que a vida é sagrada, e que devemos sempre reverenciar um ao outro. Esta é a única verdade: já foi dito, bilhões de vezes.

______________

E tão fácil ser olímpico. Dr. Sax será fácil. Vou rir, do alto de meu promontório, dos vários tipos de homem – o indiferente, o desamparado, o queixoso. Mas em Road tenho de apostar minhas fichas no meu número. Façam o jogo, por favor!

Apresse-se, por favor, está na hora!

Jogo feito! – Então a roda gira e o que sai? Ganhar ou perder, algo vai surgir, naturalmente.

Muito de minhas meditações sobre Road, portanto, foram sobre problemas da alma, não simples linguagem e mistério como em Sax.

Então é isso, o que estou fazendo esta noite.

QUA. 30 – Ontem, também. Rascunhei umas mil palavras de material preparatório. Todas as questões que eu tinha resolvido enquanto escrevia “T&C” agora estão sendo revistas, entretanto, com grande estupidez. Hoje lidei com a questão adolescente de “por que os homens continuam vivendo”. Então há muito tempo eu disse – “Não há porquê”. Hoje observei os operários de uma grande construção nos fundos de casa e me perguntei por quê. É suficiente.

Sinto que sou a única pessoa no mundo que não conhece o sentimento de irreverência tranquila – portanto, o único louco no mundo –, o único peixe fora d’água. Todos os outros estão conectados perfeitamente com a vida pura. Eu não estou. Quero uma compreensão pura, e então vida pura. O que aquela mulher está pensando nos degraus de sua casa do outro lado da rua? Ela quer um marido. Para compreender o amor e a consciência do amor com ele? – para fazerem, juntos, uma conspiração com relação à eternidade?

Não – para transar na cama com fome e sem pensar; criar crianças sem pensar; e morrer sem pensar; e jazer em uma tumba que não pensa – e deixar que Deus se preocupe com o resto.

Não para mim.

Vou decidir isso por mim mesmo, nem que tenha de me queimar tentando.

Enquanto isso, sigo sempre espantado porque as pessoas na verdade não amam umas às outras. Como podem fazer isso?

(Então agora estou finalmente psicótico.)

Será possível que toda essa gente siga em frente todos os dias simplesmente porque isso permite a elas uma oportunidade de adular a si mesmas? – as mulheres com laços & paqueras, e os homens com ostentação, e as crianças com seus triunfos infantis, e os velhos com suas memórias vingativas?

Se for assim, se o mundo é assim, por quanto tempo sobreviverei nes­­­se ar?

Eles são apenas animais?

Não importa o que alguém possa dizer sobre vida e alegria pura, não acredito que seja suficiente. Não acredito em coisa alguma disso... a despreo­cupação.

Então por que esses trabalhadores estavam cavando buracos enormes? – qual a utilidade dos velhos canais de Fausto quando ninguém se importa com as luzes mais distantes e a tristeza ao fim do canal.

Está claro que preciso me apressar e morrer. Não há lugar para mim em um mundo desses.

Ninguém ama, ninguém ama. Esses são os abrigos do amor.

E não aguento o desespero assim como não consigo respirar quando não há ar. Agora preciso mudar ou morrer...

Como devo mudar? Simplesmente não sei como mudar... como uma tartaruga das Galápagos, também, que encontra uma rocha em seu caminho e fica um ano ali empurrando. Melville diz, “Por qual espírito encantado?”.

Então, quem está me enfeitiçando?

A Igreja de Roma tem uma resposta duas vezes mais absurda que a minha... seja lá qual for a minha. Você acha que o Diabo seria tão ativo para se importar em enfeitiçar suas melhores vítimas? Se o diabo existisse! Nada assim pode existir em um mundo sem graça, sensual e distraído, e as pessoas ririam dele.

E tudo o que nos resta são os detalhes – pfui! É por isso que digo que não ligo para o naturalismo, quero dizer, por que devo escrever. Não há coisa alguma sobre a qual escrever. O único homem que parecia se importar, George Martin, está morto e enterrado. Não lembro se Leo Kerouac era mesmo in­teiramente assim.

Estava tudo em minha cabeça.

Não fale comigo sobre vida pura – é pura bobagem.

 

ENNUI

A vida não é suficiente.

Então o que quero?

Quero um propósito na eternidade, algo que me faça decidir e do qual nunca irei me desviar agora, em qualquer existência sombria ou outros seguimentos. E qual é esta decisão?

Uma espécie de febre de compreensão, uma visão, um amor, que una e transcenda dessa vida para as outras, uma visão do universo séria, definitiva, imutável. Isso é o que quero dizer com “quero olhos”. (Olhos mortos veem. – A. G.)120

Por que eu deveria querer isso? – Porque não há o suficiente aqui na Terra para se querer, ou seja, aqui não há uma coisa sequer que eu queira.

Por que não quero vida na terra? Por que não é suficiente?

Porque não enche minha alma e deixa minha mente febril e me faz gritar por felicidade.

Por que você quer sentir?

Pela razão e o corpo dos fatos, ciência e verdade não me fazem sentir, e não levam à eternidade, e na verdade me sufocam como ar abafado, mofado.

 

ennui

Você já disse isso tudo

claro que eu disse isso tudo.

O que você quer?

Quero estar em chamas.

Por quê?

Porque sou inflamável. Eu

sou sério.

Você já disse isso tudo —

Claro que já disse isso tudo.

Você não sabe o que quer,

E diz que a vida não é suficiente.

Então o que é suficiente?

Sentir – ou eu morro.

O que irá sentir?

Chamas.

Então vá em frente e queime.

Mas a vida não está em chamas.

Então morra.

Corporeamente?

Sim121 <— Petulância

 

Meu livro será um grande sucesso. Todos vão dizer “Qual o problema com esses escritores?” Lembro do suicídio recente do autor de Raintree County.122

Então agora você se importa com o que as pessoas vão dizer.

Isso significa que tenho de admitir que eu e o corpo da hu­manidade somos um só?

É isso que preocupa você? Que agora fala de autoelogios.

Deixe-me em paz. Oh, infortúnio.

Oh, agora isso se deteriora em simples caso clínico? Por um momento pensei que você fosse uma chama verdadeira.

Então começa outra vez o tom de falta de seriedade e fatos sem graça. Oh, infortúnio.

Homens têm vivido de acordo com esse tom há muito tempo. Por que diabos devo me importar? Oh infortúnio.

Pensei que se importasse.

Eu me importo com o cuidado, não com a falta de cuidado.

Vá morrer em algum lugar. Oh.

Tente, faça-me. Oh, infortúnio.

Isso é tudo o que você quer fazer – lutar? Que tipo de eternidade é essa? Oh.

Uma vez acreditei no funcionamento, e criava ilusões conscientes para manter-me funcionando, o que fiz. Oh, infortúnio.

E agora até as ilusões enganam você?

Claro. Oh, infortúnio.

Está vendo, é um enigma de verdade, não só a palavra “enigma”.

Sim

Lá. Oh.

AGO. 30 ennui

Seriedade

Para continuar: eis uma citação do incrível Balzac: –

“...Todo fenômeno elétrico (é) errático e inexplicável em suas manifestações... Homens de ciência reconhecerão o grande papel da eletricidade no poder do pensamento humano.”

Quando não posso mais entender minha penosa compreensão do mundo, quando minha mente para de trabalhar, quando meu coração para morto e minha alma é eliminada, quando estou à beira do suicídio (como hoje), talvez seja apenas algo semelhante a uma queda de energia, porque eu perdi o contato com o todo do Universo? Por que eu perco contato? E por que, depois de anos de depressões e estados de ânimo como este, ainda não encontrei a resposta para isso?

A vida não é suficiente se você perde o contato com o outro mundo, que é simplesmente a perspectiva que nunca vimos, mas que nos informa sobre a intenção do universo como um todo – que é contato eventual entre todas as coisas, a união elétrica da verdadeira eternidade. O outro mundo – mencionado primeiro como a Palavra de Deus nas Escrituras, e designado pelo grande São Tomás de Aquino como além da razão e necessária ao homem. A perspectiva desse outro mundo, essa outra compreensão que nós não vimos, está além de toda a minha compreensão atual, mas suspeito que seja muito estranho e acho que quando nós finalmente o enxergarmos, vamos todos dizer, “Claro, claro, sim, sim!”.

Quando digo que quero queimar e quero sentir e quero uma ponte desta vida para outras, isto é o que quero dizer: ir para o outro mundo, ou seja, manter contato com ele até eu chegar lá.

Será que agora estou muito sério por dentro? Acho que sim. Esta lacrimae rerum; minha felicidade depende do reconhecimento do outro mundo enquanto ainda estou neste, ou não posso aguentar este aqui. Preciso estar em contato com o máximo deste mundo (por meio de variedade de sensualidade, i.e., experiência de amores de todos os tipos) e eu preciso estar em contato com os Furacões Sagrados que reúnem as formas esfarrapadas em uma Forma Inteira.

ennui

É por isso que a vida é sagrada: porque não é um acidente solitário. Portanto, de novo, devemos amar e ser reverentes uns com os outros, até o dia em que sejamos todos anjos olhando para trás.

Os que não são reverentes agora podem ser os mais reverentes então (em sua outra forma elétrica, espiritual).

Haverá um Dia do Juízo Final?

Não é preciso julgar os vivos e os mortos; só os felizes e os infelizes com lágrimas de piedade.

(Mas ainda não sou inteligente o suficiente para ir muito além com essas conjecturas e adivinhações.)

Como devo seguir vivendo?

Devo manter contato com tudo o que cruzar meu caminho, e confiar em tudo o que não cruza meu caminho, e esforçar-me muito mais por visões mais e mais extensas do outro mundo, e rezar (se puder) em meu trabalho, e amar, e tentar controlar minhas vaidades solitárias para fazer um maior contato com todas as coisas (e tipos de pessoas), e acredito que minha consciência da vida e da eternidade não é um erro, ou uma solidão, ou uma tolice – mas um amor terno e caro de nossos pobres apuros que pela graça de Deus Misterioso serão resolvidos e esclarecidos para todos nós no final, talvez só então.

De outra forma não posso viver.

E se isso é apenas uma ilusão, por isso é expelida, e ainda assim deve acontecer de alguma maneira estranha, irreal e provável.

De qualquer forma é impossível contar com o “conjunto dos fatos” nesse ponto da vida quando começo a ver a impossibilidade da mortalidade grosseira. Devo começar a usar meus outros sentidos para descobrir o que preciso.

Além do mais, seja como for, recentemente tive visões estranhas dos furacões em torno das cabeças comuns das pessoas. Não há como confundir um sinal tão grande como esse.

Mas mesmo assim o quebra-cabeças não está claro.

Exceto que minha “queda de energia” terminou e todas as luzes estão acesas de novo. Se por acaso forem apenas as eletricidades de um mundo animal, puro, grosseiro, que empurra, força e fervilha – sou uma delas, apesar da relutância — nenhum de nós é espírito, mas apenas carne de camponês suarenta, e comida para vermes –, mesmo então não irei acreditar.

É muito estranho, nesse momento crítico, ser confrontado por um homem rico, charmoso e inteligente, um lorde inglês ou algo assim, ou algum ator americano muito sofisticado, que me diz “Olha, meu velho, você se preo­cupa demais”.

O que esse tipo de homem quer dizer? É outra vez a mulher calma e irreverente diante da porta de casa? Aposto que é, mesmo, velho.

– Eu digo, Jack, você aceita um chá? – ou ler o Times ou algo. Verdade, pobre amigo, você vai ficar maluco. Afinal de contas, você sabe.

– Afinal de contas o quê?

– Ah – só afinal de contas...

– E aí? – e sobre o “afinal de contas”? Afinal de contas é isso o que vai acontecer com nossas almas? Hein?

– Na verdade, seu maluco, estou bem satisfeito com minha mulher. Eu não me preocuparia com eternidade e esse tipo de coisa se fosse você.

A empregada entra. O homem charmoso tem a audácia de escolher vários bolos e tortas sem conseguir se decidir no limite de tempo.

– Por Deus, Roger – grito –, como você pode ficar tão tranquilo em relação a isso.

– Na verdade, Jack, no fim das contas... é hora de comer. (Ele ousa comer um pêssego.)123

Ele suspira.

– Posso dizer uma coisa? Uma época, como você, lutei contra esses problemas até, claro, quase enlouquecer. Vi a inutilidade de tentar compreender o que é claramente um mau negócio e não é nem mesmo um mistério apro­priado. Oh – eu simplesmente decidi viver... e deixar viver, se eu puder. Li Eliot. Acho que é o suficiente sobre o assunto. Entre os romances prefiro Trollope. Mas além disso, pobre Jack, por favor, por favor! Não é o tipo de coisa a fazer.

– Mas em que estará pensando na hora de sua morte? – grito, pulando e derrubando as coisas de chá.

Ele para e começa a recolher as coisas com uma humildade estranha que me comove.

– Quando chegar a hora, meu caro, eu obviamente estarei pensando em uma coisa qualquer. Mas a hora ainda não chegou, espero. Suponho que quando chegar estarei apavorado com suas turbulências e quando você se der conta estarei morto. Bem morto.

– Isso devia responder a minha pergunta?

– Seja gentil, Jack, e faça seu fim de semana ser agradável para todos nós. Amanhã vamos de carro para Cannes para ver o mar, se você quiser.

– À noite?!!

– À noite. Qualquer coisa para agradar você, – velho. Você deveria mesmo conversar com Gwendolyn. Ela é louca pelo assunto. Ai, ai, você derramou quase todo o chá no tapete.

Ou se eu fosse a um velho funcionário da estrada de ferro em busca de uma resposta para meu apelo, ele diria:

– Alguns não valem nada, outros valem. É só isso.

– Mas e sobre a morte?

– Bem – todos nós morremos.

– Naturalmente.

– Sim. Naturalmente.

Ou a um cantor negro.

– Ei, meu chapa, o que vai acontecer quando a gente morrer? Para que serve a vida? Por que não nos amamos todos uns aos outros? Qual o pro­blema? O que tudo isso significa?

– Cara – diz ele –, não vem me encher com essas suas perguntas. Quero só diversão e quando não puder mais me divertir, então vou estar morto. Certo, meu chapa? – E dá um sorriso.

Enquanto isso caminho pela rua à noite, em total escuridão, e ninguém vai me ajudar a não ser meu próprio eu enlouquecido.

Agora está chovendo lá fora.

(Ah! – Só não quero ficar reduzido ao tipo de literatura que deixa a fatalidade implícita sem jamais mencionar isso de forma aberta.)

Estou falando sério sobre isso. Quero conversar sobre isso. Quero me comunicar com Dostoiévski no Céu, e perguntar ao velho Melville se ele ainda está abatido, e a Wolfe por que ele se deixou morrer aos 38.

Não quero desistir.

Prometo que nunca vou desistir, e que morrerei gritando e rindo. E que até lá vou correr por este mundo que eu insisto ser sagrado e vou puxar todo mundo pela lapela e fazê-los confessar para mim e para todos.

Assim vou realmente descobrir algo a tempo.

– Agora é hora de escrever, eu acho.

Mas melhor que tudo nessa filosofia pobre foi a noite em Denver no jogo de softball, onde, em uma febre de compreensão triste, vi além dos simples “porquês” e questionamentos como esses que ocuparam as últimas de­zoi­­to páginas.

Mesmo os detalhes aqui são caros:

LE COEUR ET L’ARBRE

Eu acabara de botar Bob Giroux no avião para N.Y. e caminhei & pedi carona para voltar do aeroporto pela gigantesca penumbra das planícies, eu, um ponto na superfície de terra vermelha e triste. Na noite lilás, cheguei no meio das luzes da esquina da 27th & Welton, o bairro negro de Denver.

Com Giroux em uma Central City bem vazia, eu tinha visto que me tornar um autor publicado seria apenas uma coisa triste – não que ele quisesse me mostrar isso. Apenas vi como ele era triste e, portanto, como o melhor e máximo que o “mundo” tinha a oferecer na verdade era vazio, sem alma; porque, afinal de contas, ele era, e é, um grande nova-iorquino, um homem importante, um sucesso aos 35 anos, um jovem editor famoso. Foi por isso que disse a ele que não havia “coroas de louro”, i.e., o poeta não encontrou êxtases no sucesso e na fama mundanos, nem mesmo na fortuna & meios, em nada como elogios ou respeito, nada. Ele me disse de um jeito bem sensato que a coroa de louros só é usada no momento do ato de escrever. Claro.

Mas naquela noite meu sonho de glória tornou-se um fato triste, e andei pela Welton Street desejando ser um “crioulo”; porque vi que o melhor que o “mundo branco” tinha a oferecer não era êxtase suficiente para mim, nem vida suficiente, alegrias, diversões, escuridão, música, não era noite su­ficiente.

Eu me lembro: parei em uma barraquinha onde um homem vendia chili quente e vermelho em embalagens de papel. Comprei um pouco e comi circulando pelas ruas escuras e misteriosas. Também desejei ser um mexicano de Denver, ou mesmo um japa, Toshio Mori! Qualquer coisa menos um “homem branco” desiludido com o melhor de seu próprio “mundo de brancos”. (E toda a minha vida eu tive ambições brancas!)

Enquanto caminhava, passei pelas entradas es­curas das casas dos negros & mexicanos. Ali havia vozes suaves, e às vezes nas sombras uma perna de alguma garota misteriosa e sensual, e homens escuros que as possuíam; e criancinhas que estavam crescendo com a mesma ideia – a ideia de viver como se quer. Na verdade um grupo de negras se aproximou e uma das mais jovens afastou-se das anciãs com cara de mãe, veio até a mim e disse – “Olá, Eddy”.

Como disse a Allen em uma carta, sabia que, na verdade, eu era Eddy. Mas isso não é verdade. Eu sabia muito bem que não tinha a sorte de ser Eddy – algum rapaz branco que curtia aquelas garotas negras. Eu era apenas eu mesmo.

Eu estava tão triste – na escuridão lilás, caminhando – desejava poder trocar de mundo com os negros alegres, honestos, extáticos negros dos Es­tados Unidos. Mais ainda, tudo isso me lembrava de Neal e Louanne, que conheciam este lugar tão bem e tinham crescido ali e nas redondezas. Como eu desejava poder encontrá-los! – Olhei pela rua de cima a baixo! – Como eu tinha sido enganado e alijado da vida verdadeira! – Como eu ansiava por me transformar subitamente em um Eddy, um Neal, um músico de jazz, um crioulo, qualquer coisa da área, um pedreiro, um arremessador de softball, qualquer coisa nessas ruas escuras, misteriosas e agitadas da noite de Denver – qualquer coisa menos eu mesmo tão pálido & infeliz, tão “branco de classe”, tão apagado.

Então lá na esquina da 23rd & Welton estava acontecendo um grande jogo de softball sob a luz dos holofotes que também iluminavam par­cialmente o posto de gasolina. Que toque cruel! – agora era a nostalgia dos garotos fren­tistas. E uma grande multidão ansiosa gritava a cada jogada. Os jovens heróis estranhos, de todos os tipos, brancos, de cor, mexicanos, índios, estavam no campo jogando com uma seriedade enorme. O pior de tudo: – Eles eram apenas moleques da favela uniformizados, enquanto eu, com minhas “ambições brancas”, tinha de ir e me tornar um atleta modelo profissional da espécie mais alta, nos meus dias de faculdade.

Eu me odiava ao pensar nisso. Nunca em toda a minha vida fui ino­cente o suficiente para jogar bola desse jeito diante de todas as famílias & garotas da vizinhança, à noite sob as luzes, perto do posto de gasolina, todos os moleques sabem – não, tive de ir e ser um vagabundo de faculdade, jo­gando diante de vagabundos de faculdade e universitárias em estádios, e entrar para fraternidades, e vestir agasalhos esportivos em vez de Levi’s e suéteres.

Algumas pessoas simplesmente são feitas para desejarem ser o que não são, só assim podem desejar e desejar e desejar. Essa é a minha estrela.

Oh, a tristeza das luzes naquela noite! Sentei nas arquibancadas des­cobertas e assisti ao jogo. O arremessador se parecia muito com Neal. Uma loura entre o público se parecia muito com Louanne. Era a noite de Denver aqui nas ruas da verdadeira Denver, e tudo o que fiz foi morrer. Onde eu tinha ido e o que fizera com minha vida, fechando todas as portas para a alegria real, infantil e humana como essa, o que tinha me atormentado para me fazer lutar para ser “diferente” disso tudo.

Agora era tarde demais.

Um senhor negro estava sentado perto de mim e parecia que assistia a jogos todas as noites. Ao lado dele havia um senhor branco, em seguida uma família mexicana, depois umas garotas, uns rapazes – toda a humanidade, o conjunto. Do outro lado da rua famílias negras sentavam-se nas soleiras de suas casas e conversavam e olhavam para a noite estrelada através das ár­vores, apenas sentados na maciez, e às vezes viam o jogo. Muitos carros pas­saram pela rua enquanto isso, e paravam na esquina quando o sinal ficava vermelho.

Havia excitação e o ar estava repleto da vibração de uma vida verdadeiramente alegre que não conhece o desapontamento e os pesares “brancos”, e tudo o mais.

O senhor negro tinha uma lata de cerveja no bolso do paletó, que ele abriu, e o outro senhor olhou invejoso para a lata e tateou em seus bolsos para ver se também podia comprar uma lata.

Como eu morri!

Lá em Denver, tudo o que fiz, em todo caso, foi morrer – nunca vi coisa alguma como isso.

Saí de lá e andei para as ruas burras do centro de Denver para pegar o bonde na esquina de Colfax & Broadway; onde fica o edifício idiota do Capitólio com seu domo iluminado e seu gramado marrom. Mais tarde caminhei pelas estradas negras como piche em Alameda e cheguei à casa onde gastara meus US$ 1.000 por nada, onde minha irmã e cunhado estavam sentados preocupados com dinheiro e trabalho e seguro e previdência e tudo isso... na cozinha de ladrilhos brancos.

__________________

Parece que tenho uma capacidade infinita de ser infeliz. Como posso ser tão burro para desperdiçar minha vida inteira sendo infeliz assim! O que vou fazer? Quando vou perceber que tenho uma grande vida só minha?

Bem, ainda há tempo antes que seja tarde demais...

(E eu não entendo isso.)

:———:

[De 30 de ago. a 5 de set. eu entrei num longo período de bebidas, música & pessoas em N.Y.C.. Conheci Lee Nevels, uma negra; fiquei no apartamento de Bob.]

O MISTÉRIO CONTINUA

Diário oficial de The Hip Generation

SETEMBRO DE 49 Richmond Hill

(On the Road)

TER. 6 – Tentei continuar com The Hip Generation ontem à noite, mas na verdade foi uma grande vadiagem ritual. Este é o novo título para On the Road, e também muda algumas ideias em relação a ele. Uma Saga de Cidades, Ruas & as Noites de Bebop. Não trabalho de verdade desde maio de 1948. Será que esqueci como se trabalha? Melhor ir em frente. Tenho o outono e o inverno, sete meses, e se fizer uma média de 25.000 por mês como costumava fazer, terei meu romance de 200.000 palavras em abril, quando quero ir para a França e a Itália e fazer o Myth of the Rainy Night ou Doctor Sax.

Mas não tenho mais coração para essas coisas. Não sofro... o... o...

Agora enquanto escrevo estou muito feliz e não tenho sequer um pensa­mento na cabeça. Arte é infelicidade (?) Ócio, ócio. – Estou lendo La Vita Nuova.124

QUA. 7 – Vamos ver se consigo escrever um romance, como eles dizem que posso.

: – CHUVA DE SETEMBRO –:

Hoje fiz 700 palavras (novas), e escrevi uma página divina sobre Beatitude; e revisei o que tinha feito ontem; e meditei; e comi; e caminhei, e falei, e planejei muito contente outras páginas.

QUIN. 8 – Trabalhei com Giroux na cidade. Semana que vem também vou trabalhar no escritório. Etc. Vamos deixar o mundano fora disso. Pensei em uma frase – A morte & as crises nervosas são sempre a mesma coisa, mas os materiais nunca são os mesmos. Será que as estações acham que eu não sei disso? Etc. Apenas sublime!

SEX. 9 – O que devo fazer esta noite? – esta crua noite outonal. Onde devo ir? Sinto-me tão bem esses dias (& meses) que não preciso fazer coisa alguma. Mas vou encontrar a turma – o nobre e audaz Neal, o louco Allen, o assombrado Lucien, o doce Seymour [Wyse], ou a sombria e querida Lee (a da noite de bebop). E onde está Clem das Chamas? Old Bull? Também vou escrever cartas. Também resolvi novas construções de trama para Hip Generation. Sigo em frente feliz.

Fiquei em casa e escrevi 1.300 excelentes palavras. São 3.000 em quatro dias, o ritmo que quero. Quando chegar às palavras já escritas (e nu­mera­das na primeira parte deste diário em maio último), o ritmo vai se acelerar de uma maneira não natural. Quero uma média de pelo menos 20.000 por mês – ou cerca de 150.000 até março, praticamente todo o romance. Encontro no trabalho em si os desdobramentos do romance, e na verdade de nenhuma outra forma, e isso é uma regra para as tramas – meu texto está bom. Também estou cuidadoso com as estruturas, e a Estrutura. Então estou no ca­minho.

Ei? Que Tom Malone?

J’ai lit la vie nouvelle, j’ai vue la vie nouveau. Veja os sons disso em inglês: –

JAYLEE-LAVEE-NOOVELL

JAYVUE-LAVEE-NUOVO... um cântico.

SAB. 9 – Fim de semana com Holmes, Seymour e Neal – música e conversa. Agora sinto conhecimentos maravilhosos crescerem dentro de mim o tempo todo. Alô?

SEG. 11 – Trabalhei no manuscrito no escritório da Harcourt-B. Com Bob. Escrevi 1.500 palavras para inserir em Town & City, o que foi um bom trabalho.

TER. 12 – Trabalhei no escritório. Outro texto de 700 palavras para inserir... escrito no estilo “T&C” , e rapidamente e sem dor. Bob e eu comemos refeições pródigas, vamos a filmes franceses, tomamos boas bebidas em lugares como o bar do Plaza. Ele é ótimo.

QUA. 13 – Trabalhei no escritório. Estou trabalhando na sala de Alfred Harcourt. Lucien foi lá me visitar com Sarah... – Comi uma bela lagosta no jantar porque me sinto muito bem-sucedido ao gastar toda a minha grana, esta noite chuvosa.

QUI. 14 – Trabalhei no escritório. Vários trechos de 300 palavras para incluir durante toda a semana. Vi Neal no estacionamento.

SEX. 15 – Trabalhei no escritório – quase nunca em casa. Dormi umas vezes na casa de Seymour. Tenho dores de estômago repentinas... por vários dias.

SÁB. 16 – Trabalhei no escritório. À noite, festa na casa de John... todo mundo lá, inclusive Lee. Foi uma festa sórdida e sarcástica. As Belas Crianças aos poucos mostram seu olho tristonho. Dormi na casa de Seymour.

DOM. 17 – Trabalhei no escritório (quase terminado). Bob me deu um livro de Ouspensky. Fui para casa em Richmond Hill, vi mamãe e comi. Em casa escrevi trechos para inserir. Assim.

SEG. 18 – Hoje no escritório recebi um telegrama de Lucien: – “Sem disci­pli­na Kerouac será pequeno. Erga-se, homem, não definhe nessas enervantes roseiras vagabundas”.

O que é isso? – eu sei bem – Lucien está novamente certo. Ele está falando primeiro de meu trabalho, influenciado em demasia por ideias poéticas afetadas, e da sua falta de disciplina. Segundo, sobre minha existência... sobre o fato de eu “relaxar” na alma e ficar preguiçoso; de não disciplinar minha alma em nome da decência e da forma, um retorno à sua ideia antiga de minha “péssima reputação”. Sordidez. Etc. Em qualquer caso, é estranho que ele pense em mim, apesar de eu não ter certeza do que ele realmente quer dizer. Quem tem?

Trabalhei na casa de Bob, escrevi um trecho de ligação para Kenny Wood, voltei para casa às 3h da madrugada.

TER. 20 – Oh ser o que todos querem que eu seja, ao mesmo tempo – assim não haveria qualquer estardalhaço exagerado em todo o meu redor. O que devo fazer para expiar meus pecados? – Eu me sinto triste, só isso. Esta tarde, fui à bela e ensolarada Jamaica e fiz algumas tarefas.

O amor, que cura a barriga e a doença atrasa.

QUA. 21 – Depois de trabalhar um pouco no escritório, Bob e eu vestimos nossos smokings e fomos ver o balé russo no Met. É a arte mais exótica – e pode-se morrer um pouco após ver o balé pela primeira vez (apesar de eu não ter morrido). Fica apenas entendido. Observando dos bastidores, as garotas todas sob as luzes azuis são como uma visão; todas parecem orientais e russas, também. Bob e eu fomos visitar no camarim aquele que hoje é o melhor de todos eles, Leon Danellian. Em meio a aficionados por balé estranhos, [Alexandra] Danilova estava sentada em uma cadeira. Havia telegramas presos à parede, e o velho empresário funesto da companhia de balé que parecia um velho Joe Kingsland. Gore Vidal estava lá com a mãe. Todo mundo vive dizendo “Gosto mais dela que de Gore”. É a moda entre eles. Nosso grupo con­sistia de John Kelly (um milionário das artes & Wall Street, eu acho), Gore Vidal e a sra. Vidal, Danellian e a irmã, um certo Don Gaynor, que parece um intelectual sinistro em festas nos filmes britânicos, e depois (após as dispersões) John La Touche125 e Burgess Meredith (que é engraçado). La Touche tam­bém é engraçado, e muito adorável, ele ficou de ponta-cabeça para a gente. Conhece todo mundo, até [Greta] Garbo. Ele acabou de chegar do Congo. É como um cara de Lowell em um saloon da Mood Street. O dr. Shrappe de Columbia também estava com a gente, espirituoso, e solitário.

Gastamos US$ 55 no Blue Angel só com bebidas e um jantar. Passei uma cantada na francesinha da chapelaria e marquei um encontro com ela. Chama-se Berthy – que lindo. Mas esta noite aprendi que preciso mudar agora – como estou tendo muita “demanda” social é simplesmente impossível aceitar todos os convites para almoçar, e igualmente impossível tentar me comunicar com todo mundo, mesmo concordar com todos como sempre fiz apenas por diversão. Agora terei de começar a selecionar. Não é horrível? Mas é um fato que terei de encarar.

Parece que sou ingênuo demais. “Sim, sim!”, digo para todos. “Claro, encontro você lá!” “Oh sim, eu telefono para você.” “Legal, eu apareço por lá.” E além disso paquero toda garota bonita que vejo (em meu smoking) marcando encon­tros que acabam entrando em estranho conflito com todo o resto... uma grande confusão. Finalmente, apenas vou para casa e durmo o dia in­teiro. Não está terminado.

Ninguém me compreende. Eles acham que sou louco. Tudo o que quero é ser agradável e educado, e então seguir meu caminho como sempre. Não está acabado.

A visão de Neal é algo assim. E a de Tchelitchev126. De qualquer forma, muito engraçadas. Pensar nas centenas de pessoas que já conheço, e nas centenas mais que virão, e eu tentando vê-las todas e concordar com as teses de suas almas – e tudo praticamente ao mesmo tempo, porque há tão pouco tempo.

É melhor estar preparado... se eu puder.

Berthy é uma parisiensezinha muito animada. Pelo menos vamos nos encontrar em Paris, já que agora ela está casada com um nova-iorquino, e em breve irá divorciar-se dele, e tem escrúpulos com lindos olhinhos escuros que quero devorá-los inteiros.

Cheguei em casa com uma dor de dente. Não fui aos coquetéis com Kelly e Vidal, como combinado, porque tenho de começar agora mesmo a retirar-me de uma cena agitada demais que iria apenas consumir meu tempo e talvez no final minha alegria. Estou falando sobre turbilhões – centenas de turbilhões dão início a isso.

Onde está aquele que caminhava sob as estrelas, à procura, sozinho?

Bem aqui, que Deus o ajude.

Uma coisa de cada vez.

SET. 22-28 – Nesse espaço de tempo, completamos a revisão do manuscrito e o entregamos à gráfica; e arranquei meu dente ruim. Fiquei dois dias doente; encontrei Ed no píer; vi Lee, vi Tristano; e acompanhei corridas excelentes. Hoje, dia 28, escrevi seis cartas. Estou pronto para retomar On the Road.

QUIN. 29 – Tenho de admitir que estou pasmo com On the Road. Pela primeira vez em anos NÃO SEI O QUE FAZER, NÃO TENHO A MENOR IDEia DO QUE FAZER.

OUTUBRO chegou outra vez,

1949 outra vez,

outra...

O que vou fazer? Não consigo mais escrever.

SEG. 3 – Mas isso foi resolvido com facilidade. Uma rápida reflexão sobre o assunto. Concluí que não sou um dos hipsters, portanto sou livre e penso sobre eles com objetividade para escrever sua história. Tampouco sou Red Moultrie, então posso me afastar para examiná-lo. Não sou sequer Smitty, nenhum deles.127 Estou apenas descrevendo um fenômeno evidente apenas em nome de minha salvação pessoal nos trabalhos, e a salvação e valorização da vida hu­mana segundo minhas próprias intenções. O que mais pode existir de verdade?

Todo o resto na vida, com quem vou me casar, como será minha saúde, onde irei morar, quem amarei, é desconhecido e tem muito pouca im­portância para mim, já que pertenço a Deus e estou trabalhando cegamente sob seus desígnios reluzentes, segundo Suas intenções, que se manifes­tam ao meu redor, que são menores mas não menos destinadas e ordenadas.

Ademais, nesta vida não preciso de coisa ou, até agora, pessoa alguma, no que concerne à minha vida predestinada, que é a vida do trabalho simples e mais cedo ou mais tarde finalmente, a que segue pelo Caminho Iluminado do Adivinho Flamejante.

Isso não pressupõe que não morrerei de alegria. “O corpo chama isso de morte, o remorso do coração.” De minha parte, chamarei isso de alegria, e como a alma está morta, posso apenas esperar.

Quando a graça baixar sobre mim, saberei reconhecê-la como tal, e conhe­cerei a Beatitude, mas não posso ir além disso, não posso me agarrar a mim mesmo para desembaraçar as samambaias emaranhadas do vale, e as vinhas, que são o resultado das Intenções Divinas que têm como objetivo mistificar e purificar nossos desejos corruptos na terra. Vejo que Deus não deseja que o homem agarre a si mesmo, só quer pisar obediente no caminho confuso que leva à Sua Luz Fulgurante, quando será compreendido que todas as coisas são o que são, o que são, e o que são, na perfeição do Desejo Incorruptível.

Qual a intenção de Deus? Que obedeçamos as torvelinho de Suas Ordens até que Ele proclame o descanso para todos.

Por que isso?

Apenas, acho, em preparação para um fim dessa natureza inquieta, que Ele fez para demonstrar o significado da Luz Contemplativa Absoluta, que Ele deseja guardar para sempre em seu peito. Um fim para isso – uma preparação para o que nunca termina.

Na verdade, o mundo não importa, mas Deus o fez assim, então importa em Deus. E ele tem seus objetivos, que não podemos entender sem a compreensão da obediência.

Não há nada a fazer além de louvar,

Esta é minha ética da “arte”, e é assim mesmo.

TER. 4 – Fiz quase mil palavras, mas não estão datilografadas e “terminadas”. Matriculei-me na New School, para ganhar a grana dos ex-pracinhas, em cursos às quintas e sextas. Vi Marian & John Holmes, Seymour, Lucien, Sarah Yokley, liguei para Bob, paguei contas e vi Tristano à noite; e voltei para casa pelas samambaias dos vales, sem roseiras.

QUA. 5 – Ouvi pelo rádio a grande disputa de arremessadores entre [Don] Newcombe e [Allie] Reynolds no primeiro jogo da final.128 Escrevi cartas; notas. Sentimentos de autossuficiência continuam. Lembrei que há dois anos, a essa hora, estava andando pelos trilhos do trem em Selma, Califórnia, e também era uma final Dodgers x Yankees. Que desde então eu terminei Town & City e o vendi; viajei para a Califórnia duas outras vezes, comecei On the Road; fui para a escola; iniciei Doctor Sax, morei um verão em Denver, resolvi as coisas com minha mulher, Edie; fiz o bem, e procedi de maneira correta em contradição com meus trôpegos anos anteriores como 1945 e 1946.

Será que estarei satisfeito em outubro de 1951?

Então terei escrito On the Road, a imbecilidade de Natal e talvez todo Doctor Sax; e contos; e terei ganhado uma bolsa do Guggenheim, e viajado por toda Europa; deverei ter comprado uma casa, talvez um carro; talvez esteja ca­sado; sem dúvida terei amado muitas mulheres bonitas em roupas desgrenhadas; deverei ter feito muitos novos amigos, e conhecido os grandes do mundo; terei decidido sobre livros futuros e melhores, e poemas; terei morrido mais além; estarei ainda mais perto de Deus, terei sobrevivido a doenças, trabalho e bebedeiras, e terei perdido cabelo, e ganhado rugas.

E terei sido atingido por mistérios.

E terei ficado sozinho.

E terei enlouquecido.

E terei sido pomposo.

E terei sido resignado.

E terei sido tolo.

E terei sido cruel, descrente e obtuso; e terei me excitado, e terei estado como rochas, frias, secas, trincadas, rachadas e terei sido engraçado, e estúpido; e terei me maravilhado, e me enfurecido, enraivecido, zangado, espremido, apertado, encolhido, tremido, amassado; e terei sido um osso, e terei sido uma moita: terei dormido, terei acordado, terei chorado, terei ficado zangado, terei sido chutado, refletido, rastejado; implorado, ansiado, contorcido, sorrido com afetação, tagarelado, ficado pasmo, erguido o pescoço, vou ter-me enchido – você sabe, tudo que eu faço e você faz e nada disso faz alguém ser mais tolo ou mais divino, apenas mais velho e, eu diria, engraçado, por causa de Deus.

Então acho que então vou ter me tornado um comediante.

Oh santos! Oh arlequins! Oh poetas! Oh monges! ! Oh dançarinos! Oh tolos!, Oh infortúnio, Oh-ho, Oh gemido, oh, oh, oh, oh, eu, oh-yo, oh, oh, vou, dou, Joe, cresça assim, Moe, não, vá, ôa, Beau, io-iô, vá brincar com seu próprio Yo Yo. Oh Moe!

(É preciso talento para ser um comediante. Então agora vou frequentar a Escola de Comediantes, o arquivista é cômico e os cursos são loucos, e os alunos gemem.)

QUIN. 6 A DOM. 9 – Fui à escola e assisti a palestras. Ephraim Fischoff me fascinou e me fez pensar em uma escola como a nova Escola de Comediantes. Pense só numa escola dessas:

QUA. 6h30-8h00 W. M. BURROUGHS, “COMO FALAR

GROSSERIAS”.

QUA. 4h20-6h00 H. HUNCKE, “O QUE FAZER QUANDO

VOCÊ É BEAT”.

QUA. 8h30-10h00 JOAN ADAMS, “A DOENÇA ATÔMICA E

SUAS MANIFESTAÇÕES”.

QUIN. 4h20-6h00 N. CASSADY, “COMO CURTIR AS RUAS”.

QUIN. 6h30-8h00 A. GINSBERG, “POLÍTICA HÚNGARA”.

QUIN. 8h30-10h00 L. CARR, “O BELO E O FEIO EM NOSSO

MUNDO”.

SEX. 4h20-6h00 J. KEROUAC, “ROSAS E ENIGMAS”.

SEX. 6h30-8h00 W. BURROUGHS, “CONFUSÃO SEMÂN-

TICA”.

SEX. 8h30-10h00 A. GINSBERG, “OS TIPOS E SIGNIFICADOS

DAS VISÕES”.

SEG. 4h20-6h00 N. CASSADY, “AMOR, SEXO E A ALMA”.

SEG. 6h30-8h00 H. HUNCKE, “DROGAS MODERNAS”.

SEG. 8h30-10h00 JOAN ADAMS, “O SIGNIFICADO DO VÉU”.

TER. 4h20-6h00 L. CARR, “A VALORIZAÇÃO DO VALE”.

TER. 6h30-8h00 A. GINSBERG, “SEMINÁRIO: POESIA,

PINTURA, TIROS FATAIS E O DESCONHE-

CIDO”.

TER. 8h30-10h00 W. BURROUGHS, “O BARDO IMORTAL”.

TER. 8h30-10h00 N. CASSADY, “NOVA PSICOLOGIA, NOVA

FILOSOFIA, NOVA MORAL”.

QUA. 4h20-6h00 J. KEROUAC, “O MITO DA NOITE CHU-

VOSA”.

 

A matrícula se encerra nos próximos dias. Corra!!! O período da primavera na nova Escola de Comediantes será ainda mais louco!

H. HUNCKE, “MANIFESTAÇÕES DO FENÔMENO ELÉTRICO NO TEXAS E NO CARIBE”.

W. BURROUGHS, “ELEMENTOS SOBRENATURAIS NA GROSSERIA”.

A . GINSBERG, “OS DOMÍNIOS DOS DÓLMENS”.

N. CASSADY, “VISÕES DA ERVA”.

L. CARR, “BONECAS E GIRINOS”.

J KEROUAC, “AS SAGRADAS TORMENTAS FINAIS”.

JOAN ADAMS, “DICAS”.

 

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E um seminário e um coral, regido por Adolphus Asher Ghoulens, todas as sextas-feiras à meia-noite na Gruta da Lua, entrada apenas com inscrições com Monsieur H. Hex129, Hoax Street130, Grampion Hills. Taxa: – Presentes, incluindo marionetes, baratas, rosas, chuva, meias, cebolas, dedais, rosbife, confissões e rãs.

Exigências: sessenta pontos em percepção básica, generosidade, ruína, pesar e amor mais verdadeiro.

______________

Esta é a escola, com o corpo docente e os cursos. Será que alguém poderia aprender nesse lugar? Você acha que alguém poderia realmente aprender? Aprender algo que nunca aprendeu na escola?

______________

Oh, Arkansaw!——

Seja como for, esta noite, eu sinto, será a minha noite de compreensão. Esta noite – 9 de outubro de 1949 – acho que estou finalmente alcançando um conhecimento puro. Não quero perdê-lo. Isso é conhecimento baseado em fato.

O que é preciso saber sobre os fatos é que eles são muitos, e de muitos tipos, e que ao lidar com eles uma pessoa não deve impor a timidez e suas disputas banais sobre a qualidade imutável e universal dos fatos... Essa qualidade é a qualidade da verdade. Fatos são verdade. São feitos para serem re­conhecidos como verdade. Há fatos naturais e há fatos sobrenaturais.

Na literatura, portanto, não é apropriado enfrentar os fatos ou aferrar-se a eles pela sensação incômoda de ser “deixado de fora” ou algo assim. Junte-se aos fatos! É como juntar-se à humanidade.

Sobre alguém tão notável quanto Lucien ou Burroughs, ou Dos­toiévski ou Cézanne, diz-se sempre, “Claro que não há outro como ele” – mas isso sempre é dito de personagens como esse; por isso agora vamos por fim perceber que não faz sentido continuar a dizer isso devido à sua própria burrice. Quando, por fim, você disser de si mesmo “Não há outro como eu, mas isso é o que sempre se diz de personagens como eu”, então você se une à humanidade e reconhece algo sobre si mesmo... algo que, afinal de contas, não é tão indispensável, algo que só pode unir-se à humanidade e unir-se aos fatos. (Claro que isso é difícil de explicar, como é difícil de tornar agradável o fato de a ponta de meu lápis agora ter brilhado na página.)

É pureza.

Cézanne é Cézanne, mas sou eu também, e não sou mais do que os outros me deram e ensinaram. Não sou mais levado por aí pela mão, por esse enfeitiçado mistério da vida, do que conduzo outros pela mão. Todos sabemos o que estamos fazendo. Pare de negar! Pare a máquina! Junte-se à hu­manidade, que somos todos nós igualmente. Todos têm olhos e todos sabem ver, até as crianças. (É por isso que, apesar de tão trágico, o assassino Howard Unruh131 disse que atirou “em alguém na janela” quando todo o tempo não passava de uma criança de dois anos naquela janela, olhando para ele; ou talvez só olhando pela janela; mas sem dúvida sabendo para onde dão as janelas, e para que servem as janelas, e o que são os olhos e a vida. “Trágico”, digo, porque a criança está morta e o assassino, louco.)

Todos os loucos estão apenas sendo tímidos. Um dos maiores problemas em nossa vida é o problema do recato, ou da lascívia. Lascívia são todos os nossos absurdos mais solenes, como propaganda, guerra, chauvinismo, precariedade e afins.

A lascívia é a mais profunda das mentiras.

O conhecimento puro de todos os fatos, e eles são tantos, e de tantos tipos, agora é meu objetivo e minha seriedade. Devo parar de mentir até para mim mesmo, parar aquela máquina. Esses conhecimentos também são mantidos por milhares de anos de conhecimento, que culminam resumidos em nossos dias como antropologia, psicologia, teologia, sociologia da religião, psicanálise, semântica, e um apanhado geral do conhecimento só como podemos conhecê-lo. Portanto sinto que ainda pode ser possível para os homens saberem mais, e melhor, do que jamais souberam; e em meu campo, o romance, estão para ser escritas as maiores obras, de todos os tempos. Mesmo o Novo Testamento pode ser superado em todos os níveis – artístico, psico­lógico e espiritual, e com sabedoria popular – por um passo adiante definitivo, ou um passo abaixo, devido a visões e à aplicação de conhecimentos de nosso século e dos séculos vindouros.

Os homens ainda não começaram. Estão longe da decadência como um todo ou em suas culturas. Há algo que ainda não fizemos.

Também há um certo conhecimento da morte ainda insondado, que devo abordar em minha próxima palestra. Não acredito que qualquer pessoa tenha realmente morrido, ou que os não nascidos não estejam realmente entre nós.

Simplesmente não há conexão entre os homens e o tempo. Os homens estão apenas envoltos no espaço e no tempo. Meu pai, por exemplo, não está mais longe de mim agora do que New Hampshire, primeiro; e o progresso de sua corrosão, segundo; e seu lugar entre os turbilhões, por último. Re­conheço que sua existência me assombra. Ele não pode estar morto. Nem Sebastian [Sampas]. Acredito que estou me comunicando com eles sem realmente sa­bê-lo, e também me comunicando com meus próprios eus anteriores ao nascimento e talvez à preexistência.

[É] por isso que nós, ao contrário dos animais, sabemos o que estamos fazendo quando piscamos o olho. Animais sabem rir, talvez (apesar de eu não acreditar muito) até piscar.

Quando alguém pisca para mim eu considero talvez uma invocação séria da memória de algum fato que nós dois experimentamos, e ainda o fazemos, por viver; e não há limites para o viver. Portanto a piscadela pode ser uma dica de séculos de idade entre nós, ou mais velha, com a intenção de me comunicar algo que esqueci devido à pura lascívia e à incapacidade de compreender ou me comportar.

(Por que meu lápis está brilhando tanto? A ponta, a ponta... e isso só acontece de vez em quando.)

Ainda recordo a velha vida simples, os fatos frios da existência comum; não estou tentando exagerar. Não acredito, porém, que deva explicar isso.

Tudo é verdadeiro, sério e simplório.

O conhecimento puro é importante para mim, mas também quero aplicá-lo em meu trabalho, onde é o lugar dele, em um sentido formal, portanto trabalharei agora em meu livro. Acho que talvez exista na natureza do naturalismo puro uma lascívia estranha, enganadora e profunda que eu não tinha notado antes... “enganadora” porque a face do naturalismo é muito séria, portanto mentirosa.

Há tantas coisas grandes sobre as quais gostaria de falar. Espero que esta noite não seja apenas um amadurecimento passageiro, mas a descoberta verdadeira do conhecimento puro que talvez nunca parta após ser conquistado com tanta dificuldade. Estou cansado da minha máquina, é claro.

É bom lembrar que os fatos são verdadeiros, mas isso não impede que eles também sejam misteriosos. Não tema o mistério.

Meu Smitty em On the Road tem um método simples, quase infantil, de alcançar o conhecimento puro do mundo. Ele fica de pé em algum lugar, em casa, numa esquina ou no metrô, e fecha os olhos. Ele encara a escuridão em seus olhos, então os abre bem abertos, olha, e diz “Por quê?”. Tudo isso é uma coisa complicada. O efeito é fazer o mundo mostrar seu mistério, seus limites, como eram em um momento estranho e embaraçoso. O feitiço do mistério mostra sua presença. Lá está sua esquina, seus parentes vagando como fantasmas, suas luzes, escuridão, calçamentos... o que é tudo isso? Quem é isso? – ou quem é a fraude, qual o feitiço. Por que estão fazendo isso? Por que a realidade é assim e não de outra forma? O infantil Smitty exige uma explicação; ele está admirado diante do muro do mundo; quer que Deus desça. Arque­tipicamente está apenas “invocando os deuses”, apesar de sua razão talvez não servir para objetivos práticos como a colheita ou o sucesso na batalha. Só para razões de conhecimento puro e a essência do conhecimento. As essências nesse crânio não estão lá sem motivo; os turbilhões de sua alma errante e de sua cabeça não estão lá sem motivo. Ele não está exigindo poder, apenas amor, o que é o conhecimento puro do desconhecido.

Por que amamos? – porque o ser amado é desconhecido para todos menos para nós. Não é essa a sensação do amor? O que, se em nenhuma outra coisa, pensamos sempre que vemos o rosto adorado e sem precedentes de nosso amado, se não é “Por quê?” Esse é o Porquê mais profundo, o Porquê que não se queixa. O Porquê dos Porquês. Isso também acontece quando encaramos a face de Deus, sua “realidade” de uma esquina ou uma árvore, ou qualquer coisa.

Allen Ginsberg diz que o que ele quer dizer com “Olhos mortos veem” é apenas essa “face do universo” com o conhecimento do Porquê. “É quando, finalmente, enxergamos”, insiste ele, “com nossos olhos mortos; ou enterrados”. – “O pedaço de cristal perdido” é esse olho morto; quase como um olho que não nos é permitido, de uma certa forma. “Vencemos os domínios dos dólmens”. Então eu disse a ele que uma noite em 1946 eu vi, no céu, à noite, grandes máquinas esqueléticas de algum tipo, como equipamento de radar, em uma enorme massa que avançava lentamente por entre as nuvens com um zumbido distante como aviões em formação muito longe. Quase ninguém os teria percebido comigo, naquele sonho, eles eram tão naturais ali, e invisíveis. Também fiquei apavorado. Allen diz que esses são os domínios dos dólmens da eternidade, mas quando eu notei que máquinas são uma invenção recente, ele me instruiu que na eternidade as máquinas bem podem existir em qualquer momento, também todas as coisas anteriores ou posteriores, e as duas, e tudo.

Acho que vejo... como se sempre me estivesse prometido. É preciso aprender História e o estudo estúpido de causa e efeito, para entrar em uma compreensão da e­ternidade tão profunda quanto conheçamos. Causa-e-efeito também é uma lascívia da mente e da alma, porque exige respostas simples e superficiais para temas profundos, apesar de não caber a mim negar o direito do homem de construir pontes sobre vazios.

Mas por que caminhar sobre tal ponte; um elefante pode fazer isso; só um homem pode encarar o vazio e saber. Só um homem se importa, não os elefantes e os burros.

Deus espera por nós na eternidade árida.

Afinal de contas, sem dúvida em todo esse “misticismo” também não existe necessidade de brincar com números mágicos. Estou me defendendo. Gurdjieff faz muito dos números 3, 7, 4, e Dante, do 9. Há quatro estações, mas elas se misturam e fluem uma por entre a outra. Existem sete mares, mas na verdade eles são a mesma água parcialmente desconectada pelos continentes. Há três unidades na genitália, mas é apenas um órgão. Ou três almas no homem – Pai, Filho, Espírito Santo – tudo também misturado. Há sete níveis de conhecimento, diz G., mas também pode haver 17, e eles se superpõem. Dante, que é um homem maior, escolheu o 9 apenas por causa do amor, afinal de contas... as eras de Beatrice.

Não ofereço palavrório matemático. É tudo a mesma coisa de sempre.

_ _ _ _ _ _ _

Lembrar para On the Road: Se você não consegue uma

garota na primavera

Você não consegue

garota alguma.

_ _

Durante esse longo fim de semana vi todo mundo outra vez, mas valorizo a noite de sábado em especial quando Neal, Lucien, Allen e eu circulamos juntos... primeiro uma espécie de festa no St. Moritz132 onde estavam umas pessoas “estranhas” de Denver, depois no apartamento de Lenrow, bebidas e música, conversa; então para a casa de Sarah para um rosbife às 4h da manhã. Eu estava admirado com esses meus quatro camaradas mais queridos, todos me surpreendendo ao mesmo tempo. (Eu sou um dos quatro quando estou com eles.) Dou graças a Deus por conhecer Lou, Neal e Allen. Eu olho para eles em busca de todo o conhecimento de que agora preciso. Sempre irei amá-los, cada um & todos juntos.

Só espero ter deles admiração e respeito. Confio neles. Não são maus porque conhecem o mal tão bem. São meus irmãos. Não teria vivido se não os conhecesse. Eu gosto demais deles, vou guardá-los para sempre como um tesouro, acredito neles. Fico admirado quando eles se viram e veem que estou ali e pedem que eu fale. Quando eu falo, acho estranho que eles tentem compreender o que digo e prestem tanta atenção à minha alma. – Com o tempo ficaremos todos velhos, e casados, e por isso mais ou menos separados, mas sei que sempre continuaremos, para além dos turbilhões. Digo tudo isso só porque nunca fiz uma declaração formal do que sinto por Cassady, Carr e Ginsberg; e Carr, Ginsberg e Cassady; e Ginsberg, Cassady e Carr.

 

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SEG. 10 – QUIN. 13 – Escrevi mais fundo nos obstinados domínios do trabalho. – Oh, busca e dor particulares, vergonha e escândalo de minha estrela, que é a censura das bestas, humildade doída – pesares de um ar importunado por barro. Dia lúgubre, lúgubre; pavor de anjos. Busca sem rumo entre as bestas, “nós, tolos da natureza” – porcos. Oh, espírito! – ou ornamento! Este ar, portanto, estremece, e não pode penetrar em sua própria ação resignada, alma morta, ar, estapeado por patas e comoção. Oh, bestas soturnas, secretas, de pálpebras vermelhas, vão embora. Tenho meus motivos desespe­rados. “O que é necessário é desencorajar os outros a se importarem com você. O resto é somente corrupto.” (Céline). Especificamente, o mundo está repleto de bestas e eu não sou uma besta. Lembra de uma delas? Escuta.

Estou morto, Horácio.”133

SEX. 14 – DOM. 16 – Fim de semana longo na cidade. Vi Giroux, Meyer, Shapiro, Holmes, Seymour; Lucien, Neal; Muriel Jacobs. Jazz na 52nd Street e no Brooklyn; filmes de W.C. Fields; aulas na New School. Festas aqui e ali. Comida, bebida. Os trabalhos. Cheguei em casa arrasado ao meio-dia de domingo e dormi a tarde inteira.

Cheio de pensamentos.

Como admiro W.C. Fields! Era um grande sujeito das antigas. Não há outro como ele. Vou escrever algo sobre ele em breve, minhas ideias pessoais. “Você não tem um olho injetado?” “Você não era uma das velhas coristas?” “Eu o deixei numa sinuca de bico.” “Esses Montes Grampianos.” “Café Moca.” “O empreendimento em que estou prestes a embarcar está repleto de perigo iminente, e não é apropriado para uma jovem senhora nos seus anos mais tenros.” “Você não quer usar um vestido diáfano? E ter o suficiente para comer?” Com seu chapéu de paleta, os passinhos curtos, a barriga, o rosto maravilhoso escondido atrás de um monte bulboso de carne desgastada, a boca torta, o conhecimento da vida americana, das mulheres, crianças, companheiros de bar, e de morte (“o amigo no belo traje de noite”). A suprema falta de amor no mundo. Esbarrando cegamente em tudo. Fazendo todos rirem. A frase que ele mesmo escreveu, endereçada a ele: “Você é tão engra­çado quanto um pedido de socorro”. O jeito de soprar a espuma da cerveja, um velho Mad Murphy do tempo; como fica solitário entre pessoas tolas que não enxergam sua alma.

Shakespeare nunca foi mais triste.

Um velho maníaco depravado, um palhaço, um bêbado da e­ternidade, e “Homem”.

SEG. 17 – Na noite passada escrevi centenas de palavras de excelente qualidade. Ainda não dá para dizer que Road tenha realmente começado. Há 25.000 pa­lavras fechadas, é certo, mas esse é o caso desde maio, desde a época em que eu estava escrevendo, mas também cortando e vadiando. E para falar a verdade, comecei mesmo On the Road em outubro de 1948, um ano inteiro atrás. Não tenho muita coisa para mostrar depois desse ano, mas o primeiro ano sempre é lento. Que tipo de trabalho cansativo e desnecessário é esse? Se o resultado for tão bom quanto T&C, terá valido a pena. Quero terminar até a próxima primavera, para ficar livre na Europa para só estudar e fazer anotações para Dr. Sax (enquanto, talvez, escreva a peça Natal Imbecil.) Quem sabe? E além disso, não ligo muito para a Europa. Agora estou mais interessado na 3rd Avenue. – Estou lendo a confissão de Thomas Merton. Também retornei à tese de Joyce sobre Shakespeare em Ulisses134 e estou lendo Hamlet fala por fala (também pensando em como eu as representaria). Também os sonetos de Donne, e os discursos magníficos de Ahab em Moby Dick. Muitos interesses. O romance também está prestes a começar a andar. Eu sinto. Red & Smitty agora estão totalmente desenvolvidos, prontos para surgir.

– Uma vez, quando minha mãe era uma menininha, ela ia obturar dois dentes e seu pai resolveu que as obturações deviam ser de ouro. Como ela via com alegria seu futuro com os dentes de ouro; “ouro nunca cai”. Mas quando o filhinho dela [Gerard] morreu em 1926135, todos os dentes dela tiveram de ser arrancados por causa de uma doença, com ouro e tudo, e nunca devolveram o ouro a ela. Oh morte! morte! morte! (É isto que quero escrever, não lixo estilístico.)

QUA. 19 – Nada sei além de que partes fazem um todo. E apesar de o mundo ser povoado por bestas e ignorantes, ainda há, por aí, algumas pessoas por quem vale a pena viver. Porque partes fazem um todo, não posso mais ser jogado para um lado ou para o outro por qualquer parte, pessoa, acontecimento, ideia ou estação. É isso o que eles chamam de “paz”, mas é apenas uma parte do todo, e tudo o que realmente sei é o que não há. O que há—???

O amor é o que há, pobre amor.

Amor! Bobagem! —

Eu digo, seja razoável. É bom ter modos.

QUIN. 20 – DOM. 23 – Fui para a escola na cidade e assinei presença sem assistir às aulas. Na noite de quinta, Holmes e Seymour e eu fizemos umas gravações de voz e música assustadoramente “proféticas” que soam como “Intuition” de Tristano. Fiz uns monólogos tristes e juvenis de Hamlet. No dia seguinte fui ao dentista, vi Allen, Muriel; e Cannastra, Hornsbein em San Remo. Voltei para casa e fiquei conversando com Allen até o amanhecer sobre meus cadernos e vários textos; mas de manhã minha mãe ficou ansiosa por ter um “marginal” em casa. Não posso nem vou tentar endireitar mais qualquer absurdo em lugar algum. O que representa Hécuba para mim?

Sábado à noite eu me permiti ler. Uma noite escura, profunda, plena – especialmente ao ruminar sobre os bárbaros saxões dos sonhos-gigantes e desolação sangrenta que repentinamente levaram ao doce e gentil Caedmon, o advento da Cruz136. Os poemas de Lorca sobre a Guarda Civil na Espanha também me lançaram em pensamentos pavorosos; e li sobre assassinos de tiras e sua eletrocução em Chicago.

Também li Taine sobre Shakespeare137; bastante coisa de Merton; e terminei a longa noite de leitura no Walpurgis de Ulisses. Tive, prin­cipalmente, visões adicionais de Doctor Sax. A “serpente mundana” está nos eddas138, e escapou da destruição na enchente; reaparecerá em Snake Hill. Os magos medie­vais e assistentes de vampiros são todos que não compreendem o verdadeiro mal, pois Doctor Sax vai mais longe que a feitiçaria herética, volta aos abismos sangrentos de dragões e às grandes orgias de morte dos francos, de volta à fúria poderosa dos deuses da neve e do fogo em luta pela destruição de todas as coisas antes de Cristo. Doctor Sax será o maior livro que já escrevi. Posso fazê-lo antes dos trinta, ou passar minha vida inteira nele; ou os dois, em duas versões, jovem e idoso. Esses são os frutos da lei­tura... Eu devia ler mais. Digo que me permito um “prazer”. Domingo fiz uma longa caminhada e pensei sobre a fome. Imaginei-me um vagabundo recém-chegado de Montana, faminto – essas coisas. Domingo à noite retomei o-tra­balho-do-momento: On the Road. – E que contemplação longa, longa, eu tenho... Minha vida é como um rio de meditações. Fico sentado imóvel por uma hora inteira, vagando por minha mente como alguém que colhe frutas silvestres e as guarda em caixas apropriadas, tudo para algum tipo de “consumo poste­rior”, ou as espreme nos tonéis de vinho de pensamento mais formal como o que acompanha o trabalho artístico! Pfffff!

E tudo isso por quê? O que é conhecimento? – O que é conhecimento?

Van Doren disse uma vez, “Conhecer algo é mais divertido do que qualquer outra coisa”. As pessoas conhecem tão raramente.

SEG. 24 – QUA. 26 – Um período de “depressão” que procuro evitar indo para a cidade encontrar-me com os amigos. Vi Giroux, os Holmes; tive uma mulher; vi Neal e Dianne. Voltei para casa na noite chuvosa... tive compreensões bem definidas de quanto tempo eu gasto em “reflexões” por aí enquanto a vida se move em toda a minha volta. Li com atenção uma história do cinema americano que me mostrou como eram jovens e grandiosas pessoas como Va­len­tino, Barthelmess, Mary Pickford, Chaplin, Gloria Swanson, Garbo, Leslie Howard, Gable, até W.S. Hart, Wallace Reid, Doug Fairbanks Jr. nos pri­mór­dios (claro); mostrou-me como estou desperdiçando minha juventude; longa conversa com Holmes sobre essa tristeza; leitura cuidadosa dos grandes provérbios (do Inferno) despreocupados de Wm. Blake que mostravam como se devia viver, especialmente um poeta, um adivinho, um profeta; uma mera fotografia ruim de Harry Truman mostrava como um presidente tem pouco tempo para ficar triste ou aborrecido e atormentar seus dias ruminando pesares; uma conversa com Neal, vendo como ele está excitado em relação à vida... Tudo isso, e a noite chuvosa, conspirou para me lançar em decisões sobre minha paralisia introspectiva – para sair dela, e entrar no mundo ensola­rado. Parar de perder tempo! – Escrever e escrever! – Sair com mais mulheres! – Conhecer mais gente! – Caminhar à noite pelas ruas! – Comer... ver... sonhar... cometer excessos... não ligar para as restrições tristes e sem graça. – Algumas pessoas acham que seus dias são uma sucessão de eventos do coração, do corpo, da alma... a minha, já por muito tempo, tem sido uma sucessão de infor­túnios meditativos. (Cheguei, assim, a algumas conclusões sobre Moultry em On the Road; imagine um Hamlet caroneiro, místico e sem um tostão.) Vou parar, parar, parar de chorar muito em breve! Já foi longe demais. Até Neal está preocupado. Eu devia estar delirando de alegria; vendi meu livro. Fui salvo. É uma morbidez insistente dez vezes pior que a de Francis Martin em T&C. Um desânimo com o mundo e de todos os mundos. É a queda de uma exuberância antiga, caindo mais fundo por estar mais pesado, quebrando com mais facilidade por estar mais frágil, acorrentado por sua própria desilusão o tempo inteiro.

De vez em quando, nesses dias sombrios, agradeço a Deus por visões repentinas de alegria.

Vou retornar aos meus velhos modos.

DIA SEGUINTE – Onde se localiza a alma? Em alguma parte da moldura de carne, e se manifesta pelo uso de dispositivos carnais pobres... a aparência do olho, a curva dos lábios, o balanço dos quadris e da cabeça sobre o pescoço. A alma faz tudo isso. Ela usa o que tem, e o que ela tem somado ao que pretende é a imagem do abismo que estou tentando pintar. Pois apesar de a alma ser morta de maneira que é apenas um receptáculo de graça, por conseguinte, é também viva no momento de receber & se contorcer. Mas o Espírito dos espíritos está longe da morte, e longe destas palavras, palavras, palavras.

TAMBÉM: – Duas Regras

1) Nunca se importar com o feitiço e o mistério que

enchem seus dias com prodígios dolorosos.

2) Nunca se importar com as preocupações perten-

centes às estruturas interiores e aos planos subs-

tanciais interiores para seu trabalho. Regozijo nas

coisas.

I.E., Pro inferno com isso; não se preocupe; apenas faça.

QUINTA 27 – A única coisa interessante é a ação de um homem que sabe tudo sobre inércia e infortúnio. (Nesse nível.)

SEX. 28 – Fui à escola ontem e hoje; assisti a palestras interessantes de Wm. Troy, Shapiro etc.; conversei com Holmes, Allen, e com Geo. Bowman na casa dele no Brooklyn; umas cervejas na antiga zona portuária do Brooklyn, putas espanholas etc.; vi Ruth Sloane; peguei Muriel e fiquei atracado com ela por dois dias, uma garota doce; festa na casa de Neal e Dianne; encontrei Joe Killian lá; Neal e eu ficamos doidões, curtimos nossas garotas; almas; dia seguinte troquei novos livros feitos para os soldados por vários outros usados ótimos (O vigarista, 17th Century Lyrics; Sobre o amor, de Stendhal, Os pos­suídos, alguns Proust, Tchékhov, As 1001 noites, Turguêniev, Oxford English Prose, e guardei meus Hopkins e Yates). Minha biblioteca sempre será pe­quena, selecionada e útil.

Os últimos três dias foram deliciosos.

Além do mais, no sábado à noite tive o maior sonho, visão e transe desde maio passado, em casa em Richmond Hill, e o descrevi em um resumo de 2.000 palavras. “Uma estrutura do conhecimento da substância pura se transformando em espírito verdadeiro por meio de pequenos detalhes; por isso graças etéreas comungarão no Paraíso.”

Sério e importante. Escreverei mais depois neste livro.

DOM. 30 de OUT. – O deleite na coisa em si, em tudo relativo à vida “pesarosa” na Terra, como todo artista que ama a sensação de seu pintar, ou o matemático que vê alma nos números, e também no caso do homem espiritual no próprio espírito... O verdadeiro espírito e os ornamentos da intercompreensão carnal... é aí que se deve chegar. Por que este deve ser meu livro de lamentos? O Livro Negro dos Lamentos.

Entre outras coisas, agora quero começar uma apreciação de como todos percebem a impossibilidade do contato e como indicam isso leve­mente. – Descansando e comendo. Assisti a um filme. Ainda não sinto que comecei On the Road. Entretanto, vou encontrar meu rumo no próprio trabalho. Enquanto sigo em frente (e especialmente durante o trabalho definitivo desta noite), acho que quero uma estrutura diferente assim como um estilo di­fe­rente neste trabalho, em contraste com T&C... Cada capítulo um verso que compõe o poema épico, em vez de cada capítulo como uma declaração ampla e fluente em prosa no conjunto do romance épico. É por isso que quero usar capítulos curtos, todos com um cabeçalho em verso, e muitos capítulos assim; desenrolando lenta, profunda e animadamente a história melancólica e sua viagem longa para dentro de um espaço estranho. E criar um ritmo para esses capítulos curtos até que fiquem como um colar de pérolas. Não um romance como um rio; mas um romance como poesia, ou talvez um poema narrativo, uma epopeia em mosaico, uma espécie de preocupação meticu­losa... livre para afastar-se das leis do “romance” estabelecidas por Austens & Fieldings e entrar em uma área de maior vigor espiritual (que não pode ser alcançada sem esse recurso técnico, pelo menos por mim) onde habi­tam os Wm. Blakes & Melvilles e mesmo o Céline de capítulos curtos salpica­dos. Quero dizer coisas que apenas Melville permitiu-se dizer em “O romance”. E Joyce.

Não estou interessado n’O Romance, mas naquilo sobre o que quero escrever. Quero, como em 1947, livrar-me da narrativa europeia e penetrar nos capítulos que estabelecem a disposição e o estado de ânimo de uma “expan­são” poética americana – se você pode chamar capítulos cuidados e prosa cuidada de uma expansão. Se isso não agradar ao público, o que posso dizer? Como um arquiteto, ainda assim verei que tudo nele é sólido. Veremos.

É terrível contemplar o fato de que editores como Giroux, com sua gran­de experiência de leitura são capazes de selecionar os aspectos do romance de melhor leitura, e portanto sentem sua consciência livre para retirar o que para o autor, em meio ao turbilhão das provações de sua imaginação, parece mais vigoroso, mas retardaria o lei­tor em seu de­sejo sô­frego de “querer saber o que vai acontecer”.

Chegará o dia em que a excitação da narrativa será relacionada com seu parente e primo mais próximos, pornografia, e os autores de imaginação meticulosa estarão livres, como Joyce sentiu-se livre, lançando sudários melancóli­cos sobre o enigma da história que está sendo contada.

Não existe razão neste mundo para que eu não seja livre para fazer isso eu mesmo, mesmo agora.

Estou preparado para todas as necessidades ascéticas e a ruína do sucesso mundano se for tão tristemente necessário. Está me ouvindo, Bob? (Pfff!)

“Mortalhas

&

hesitações”

Cada capítulo uma finalidade esclarecedora, como um sonho; e com essa continuidade estranha de propósito que têm todos os nossos sonhos e todos os nossos dias, na vida processional. Cada capítulo uma estrela recém-per­cebida ao sereno... nos céus que ainda formam um Todo enevoado e leitoso. Tal romance... tal “trabalho do estado de ânimo”, como já o chamei, ou trabalho da alma – ou história amortalhada ————— E que pena que todos aqueles que depositam suas esperanças na juventude, na humanidade do sucesso (como agora) se foram... Margaret (com quem, no verão, discuti o futuro sob a macieira), Edie – esposa de minha juventude; meu pai; e Sebastian. As mulheres têm sua própria maneira de morrer na vida de um homem. Agora, aqueles que me conhecem apenas em lúgubre humanidade reflexiva, acham que sou um estranho do vazio. Minha mãe foi a primeira e única pessoa que me conheceu inteiro. Quanto a Mary, Mary, muito pelo contrário, ela veste o traje enfeitiçado sobre meus olhos & acaba comigo direitinho... agora uma vadia obscena da noite da Rua da Melancolia, ouvi dizer. Além disso só pode existir uma repetição pálida, e o desabrochar do nutriente esquecido, como a pétala é só a fruta da terra abandonada.

Ainda assim não há fim para a alegria da doce, doce vida. A chuva de mel está caindo...

Há uma árvore neste peito. Sinto-a espalhar-se o tempo inteiro. É o início da primavera. Vou contar a vocês quando as folhas vão começar a cair. Elas nunca irão começar a cair.

Neste peito há uma árvore que nunca para de crescer.

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SEG. 31 de OUT. – Um passeio de Halloween à noite; trabalhei.

NOVEMBRO

TER. 1o de NOV. – Trabalhei muito ontem à noite. Sentimentos de impotência inominável ao escrever. Entretanto, as provas de T&C agora começam a chegar no escritório, e amanhã vamos iniciar o trabalho final. O adiamento da criação de On the Road estraga o prazer da publicação de Town & City. Assim é minha natureza soturna. Posso fazer tudo bem, menos trabalhar, parece, agora. Costumava ser do outro jeito.

Mas ao ler as trabalhosas 10.000 palavras de outubro, vejo que este é mesmo um romance melhor que T&C! – a partir do que decido que terei de me acostumar à ideia de escrever mais devagar que antes... duas vezes mais devagar. On the Road é brilhante e caminha com brilho, com bastante profun­didade em cada linha. Moultrie é um personagem magnífico que já mexe com os sentimentos como um verdadeiro George Martin. Também, a esfera do romance é um mundo em si mesmo, e não só isso, mas um mundo inevitável. Estou “fazendo isso de novo”, é óbvio. Devo resignar-me ao ritmo lento do verdadeiro operário da prosa. Tudo bem.

Até abril, então, devo ter umas 100.000 palavras escritas e resolvidas – o que é o cerne do trabalho. Podem ser, também, 150.000, ou quase a coisa toda.

Então escrever fica mais difícil, mas melhor. Tudo bem.

Chuva à noite, chuva fria de novembro.

2 DE NOV. A 6 DE NOV. – Trabalhando no escritório da Harcourt nas provas do livro. Bob fez um trabalho de revisão esplêndido. Talvez no caso de uma história como T&C a trama seja mais importante que a poesia.

Como posso saber?

— EU DESISTO —

Tudo o que sei é que, à medida que envelheço, fico mais e mais esque­cido das coisas que acontecem entra dia, sai dia. Na terça-feira esqueço do desgaste da segunda – totalmente – e, junto com ele, também dos anjos estranhos e da teoria etérea do domingo. Eu desisto.

Agora, desisti.

Tudo depende do Anjo...

Fatos? Detalhes? – festas este fim de semana, uma de Jay Landesman, cujo Neurotica foi proibido e todos os intelectuais estavam exalando a­legria.139 Briguei com Muriel e a vi mostrar os dentes quando viu minha profunda infide­lidade do coração. Vi Allen, Neal, Seymour – Diane – visitei o Metropolitan Museum – vi Zorita no filme de terror com serpentes na Times Square.140 O f­otógrafo Elliott Elwitt, um garoto de uns dezenove anos, fotografou-me para a capa do livro.

Não sabia o que estava acontecendo em lugar algum.

Não sabia quem eu era.

Vi as obras de Deus. Ouvi o apelo por eternidade nas ruas. Ouvi a chegada de Deus. Vi o sinal de fogo no céu.

E desisti.

Meu novo epitáfio é o seguinte:

— ENGRANDECIDO PELA MORTE —

7 – 13 DE NOV. – Uma semana de muito trabalho nas provas do livro, e cor­rendo por N.Y. para a escola, o escritório, o dentista, compromissos, bebidas etc. Jack Fitzgerald me visitou. O incidente com a polícia do Brooklyn.

Resolvi mais coisas de On the Road – minha “nova ideia” está germi­nando... uma forma a meio caminho entre uma peça e um romance. Minha irmã e o bebê Paul estão com a gente. Delícia.

A verdade é que a vida são infortúnios demais e todos se sentem pés­simos. Mas podem aguentar.

14 – 17 de NOV. – Pensamentos estranhos sobre arte nos últimos dias. Pensar que eu iria “começar tudo de novo” em meu campo. Será que ainda não dominei o romance narrativo? – (apesar de meu Livro dos pesares (o manuscrito original de The Town and the City, com 1.095 pág) ter sido editado agora em uma “boa obra de ficção”.) O domínio é a arte de evocar as massas pelas massas. Agora quero evocar algo mais. A ação provará. E a lógica refutará, que combinar a intensidade de uma peça com o alcance do romance é pos­sível. Qual é minha tradição? Na forma, o Melville de O vigarista & partes de Moby Dick; os últimos trabalhos de Joyce; poesia em monólogos & peças de Eliot. Na substância: tudo do que os olhos precisam, do início ao fim, de cabo a rabo. A substância sempre está lá, é o Caldeirão da História que muda, & o homem deve se ajustar a ele.

Talvez agora eu consiga amealhar uma fortuna humilde com meu Town & City (os sinais são favoráveis), como se Deus não quisesse que eu me preocupasse nunca com o pão, primeiro pela força da família e mais tarde pela ajuda de uma mãe viúva, e agora pelo Patrocínio da Conta Bancária, a quem devo dedicar obras futuras como Spenser fez com seu Senhor.

Uma mortalha de silêncio está baixando. Ou isso, ou estou enganado.

*

Mortalhas são necessárias

Epifania, advento primeiro.

Bloom: (Mete seu rosto corado na axila e dá um sorriso afetado com o dedo indicador na boca.) ‘Oh, eu sei o que você está insinuando agora’.”141

A versificação de fala comum em rimas “simples” de linguagem pura.

O que T.E. Hulme diz de “dizer qualquer coisa é dizer nada”.

A brevidade é a alma da perspicácia, a epifania pode ser não apenas do personagem, mas da trama, da cena, de cada virada.

Tudo bem.

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O LIVRO DOS SUDÁRIOS

Trabalhando em “Levins­ky e os doidos” para uma revista sofisticada – na verdade, não estou trabalhando, mas editando o capítulo original. Só pela “diversão”. As mulheres que leem a Vogue vão se divertir com o doce Levinsky.

Incomodado outra vez pelo problema na minha perna (flebite).

Lendo O Cordeiro – Blake. Li Aspects of the Novel – histórias de Joyce – estou mesmo lendo muito. Passei dois dias deitado.

Espremo On the Road para extrair elixires.

Pensei em minha vida – o que escreverei e como viverei.

Passei outros cinco dias deitado. Li um absurdo.

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30 DE NOV.

Estava lendo O vigarista, de Melville, quando de repente Mort à Crédit, de Céline, o tirou completamente de minha cabeça. Só agora lembrei que estava no meio de O vigarista há alguns dias. Não preciso de mais provas para saber que no sentido mais verdadeiro Céline supera Melville. Céline não é o artista, o poeta que é Melville – mas ele o afoga sob o grande peso da fúria trágica. Não há como evitar isso, de jeito nenhum. Cada frase bonita em The Encantadas não é mais que uma pérola pálida encharcada nas tempestades de Céline, de Shakespeare, Beethoven, Homero também.

Não são as palavras que contam, mas o ímpeto do que é dito.

As pessoas não leem Spenser, não leem Melville, não leem Hopkins, não leem E.M. Forster, não leem James Joyce, não leem Stendhal, não leem Ouspensky, T.S. Eliot ou Proust – elas leem Swift, Tolstói e Twain, leem Cervantes, Rabelais & Balzac.

 

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Elas não leem Donne, leem Dickens; não leem Gide, leem Céline, não leem Turguêniev, leem Pushkin & Dostoiévski & veem Tchékhov; veem Shakespeare. Não veem Congreve,142 não veem –

O que é arte? O artístico?

Não. Um meio fraco de evocar o que deve ser evocado, de exprimir a verdade.

Em minhas absorções recentes acerca de Road, enrolei-me em um sudário de palavras e projetos de pretensão artística. Isso não é vida – não como alguém se sente de verdade. Não é paixão!

Lá vai On the Road outra vez.

Grande Deus, quantas piruetas ainda terei de dar para voltar a mim? Pfui!

A experiência da vida é uma série regular de desvios que acabam resultando em um círculo de desespero.

Esses círculos também existem em pequenas doses diárias.

É um círculo; é mesmo desespero. Entretanto, a linha reta apenas le­varia você direto para a morte. (Censurando meu otimismo frouxo e apolo­gético.)

2 de DEZ. –

Mais uma vez de cama por causa da flebite. Estou tomando penicilina. Tudo sob controle.

Já que todo círculo tem um centro, o “círculo de desespero”, formado por uma série de desvios a partir de tênues objetivos esquecidos, circunda mesmo assim uma coisa [*] sombria e assombrosa.

A coisa é...???

Para mim, “essa coisa é aquele Estranho Amortalhado com o qual sonhei uma vez. Está sempre presente e sempre na perseguição. Uma pessoa pode girar cada vez mais perto daquele sudário, e talvez só possa ser nosso sentido assombrado da coisa, que sempre é inominável e na verdade é nossa principal queixa... e como a queixa, também pode ser uma canção. Ecclesiasticus.

A coisa é central à nossa existência, e sozinha é nossa companheira eterna depois que pais e esposas e filhos e amigos vão desaparecendo. A “Irmã Solidão” de Wolfe, o “inescrutável” de Melville, os “portões da ira” de Blake, o “terceiro evento” de Emily Dickinson, a “natureza” de Shakespeare? – Deus?

É quase possível apontar com o dedo. Também é o “mistério” e o ser mais interior de todo homem. – Eu também encontro isso principalmente nas visões climáticas de L.-F. Céline enquanto ele desenvolve para Leon Robinson e de Pereires... O que resta depois que tudo o mais entra em colapso.

 

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Na verdade é o “destino” de uma pessoa. Pois o destino nunca é o desejo de um homem tanto quanto o centro do seu “círculo” de vida... Esse maldito e inevitável foco de sua sorte.

Também “falcão” & “falcoeiro” de Yeats.

“O falcoeiro amortalhado”

Disparates e rosas.

O Céu & a Terra

– Tudo é sereno aqui no vale dos Ares, mas lá embaixo no vale de Gargalhadas parece muito mais divertido. Podemos descer? Está tudo bem se descermos?

– Não; é perigoso; você nunca vai voltar.

– Mesmo assim, este vale é sem graça – apesar de seguro. Qual o perigo do vale lá em baixo?

– A vida e a morte da terra, meu amigo.

– Quem dera pudéssemos estar seguros lá embaixo.

– Não.

UM ROMANCE

Meu nome, apesar de poder soar muito estranho para você porque sou um homem de cor, sempre foi Whitey White.143 Esse é meu nome segundo a lei, e em minha certidão de nascimento e em todos os lugares que vou.

A primeira coisa de que me lembro é a noite de inverno no Brooklyn quando houve muito barulho lá embaixo na rua – carros de bombeiros, radiopatrulhas, uma multidão e meu tio sangrando algemado a um policial – e o choro de minha tia Lucy no quarto ao lado do meu, e todo mundo pulando no andar de cima. “Boca fechada!” disse minha mãe quando comecei a gritar.

† – Esse romance seria em um dos poucos dialetos no discurso americano, o Negro Urbano, ou harlenês, com elementos da história que o acompanham. Muito louco!!

“Ele estava lá em cima no palco tocando e tocando até o suor escorrer! Ele me diz ‘Hey!’ e logo começa a pular e a pular lá em cima com aquele trompete velho e remendado.”

Ritmo, também. “Ei agora, cara!”

* * *

† NÃO SÁO AS PALAVRAS QUE CONTAM, MAS O FLUXO DE VERDADE QUE USA PALAVRAS PARA ALCANÇAR SEUS PROPÓSITOS; assim como um virtuose que ao tocar seu instrumento pode usar qualquer combinação de notas em um beat (a palavra) mas é a melodia do compasso que conta. Não o projeto, mas o retrato; não a curva, mas a forma. E assim por diante em comparações sem sentido...

Um artista não pode traduzir a intensidade apaixonada da vida sem trabalhar ele mesmo com paixão. O estudioso estuda, o crítico critica, mas o artista queima e bate e sopra e pula e corre. É tudo uma questão de virtude, isto é, virtuosidade. Que diabos! Merda não é cor-de-rosa.

Mais notas depois.

Essas coisas têm uma verossimilhança que depende do quanto parecem com o ritmo da vida.

OUTRA NOTA: –

As pessoas não estão interessadas nos fatos, mas em ejaculações.

– É por isso que o naturalismo radical falha em explicar a vida.

Uma arte como a de Balzac é uma ducha gloriosa de ejaculações fantásticas – uma fonte de vida, uma fonte que jorra, um jato incrível. Quem quer o velho “olhar fotográfico” de Dos Passos? – ou as sutilezas de Proust? Todo mundo quer IR!

Então o autor deve fazer isso, ignorar os pequenos detalhes, no calor de sua alma cansada, zangada desvelada e impetuosa, e IR!

Quanto mais fantástico, melhor, mais triste, mais verdadeiro em relação à vida.

Os romancistas devem escrever sobre pessoas racionais? – o Middle of the Journey, de Trilling? – escrever sobre intelectuais? A única vez em que vi Trilling ele vestiu a máscara mais absurda e irracional que tive a honra de observar: depois que Ginsberg foi expulso da faculdade, e eu me enrolei com o problema e acabei barrado do campus de Columbia, Trilling fingiu não me reconhecer na rua do jeito mais falso que já vi, porque foi tão solene, como se eu de repente tivesse pego lepra e fosse sua obrigação racio­nal como um Iluminador Liberal de Intelectuais respeitar uma distância segura da área dos corrimentos purulentos de minhas feridas... Do outro lado da rua acenei animado para ele... Ele se apressou como se estivesse absorto em pensamentos. Finalmente ele me encontrou cara a cara no balcão de uma drugstore atrás do qual eu estava implacavelmente preso lavando pratos. Ele nada podia fazer; forçou um sorriso amarelo – eu o cumprimentei. Depois de pagar por seu café, ele o bebeu apressado; e foi embora o mais rápido que pôde. Mas as pessoas estavam obstruindo a saída, e não conseguiu sair rápido o suficiente... Ele escapou da drugstore, respirou ali­viado; correu para suas tarefas racionais.

Isso foi o que eu o vi fazer. Não vou aturar coisa alguma de um cara desses sobre meu trabalho, especialmente quando não estou mais barrado naquele imaginário clube do campus deles.

Será que essa ideia fixa de racionalidade é apenas um outro truque para privar de privilégios todos os pobres piadistas do mundo que não têm uma oportunidade de se importar?

Sem educação, só ejaculação.

______________

DOMINGO, 11 DE DEZ. – Merde. Agora eles me dizem que outros jovens artistas são “incorruptíveis”; uma antiga namorada minha quer me acertar na cabeça com um martelo; um rascunhador indigente me acusa de ser complacente com meu sucesso; eles pedem que eu colabore com revistas liberais; ficam fofocando, dizendo que eu me vendi; todos me olham de lado. Isso é o que se ganha por anunciar seu amor para o mundo.

De agora em diante, nada além de sudários.

Nem mesmo vou escrever um diário. Minha vida está em perigo. Tornei-me um rabugento. Meus amigos mais íntimos me acusam de alienar minhas lealdades. Muita gente insinua seus problemas...

O único amigo de verdade que tenho é Bob Giroux (em atividade). Meu irmão.

Apesar de não ser um tolo, você pode achar que eu era, por causa de toda essa bobagem.

Uma noite Neal, até Neal, de repente arrancou o lápis de minha mão para escrever um pensamento abrasador, como se o Lápis do Mestre não fizesse diferença para ele, O Potencial. Como eles esperam que eu fique cego? Não me importa nem um pouco as suas bobagens.

Pelo menos eu faço as minhas bobagens em particular.

Tchau, babacas.

O romancista nunca deve dar os fatos crus, mas transformá-los com uma razão que é inseparável do estado de ânimo do trabalho como um todo. Do contrário, é jornalismo.

13 DE DEZ – Esta noite sonhei que vagava pelos campos dos E.U.A. e cheguei em uma casa que era a minha, até que, lá dentro, percebi que já não era mais. Eu percebi pelo “projeto no quintal dos fundos”, que não era meu tipo de projeto: – uma coisa grande, cheia de escapamentos, negra, como alguma espécie de chaminé-fornalha. E lá estava eu, no que tinha sido meu quarto, mexendo com nervosismo em algumas ferramentas que achei serem minhas. Fiquei com medo. Naquele instante o homem da casa chegou. Era meu pai. Escondi-me na copa, recuei até o quartinho dos fundos. A mulher chegou. A criança estava no quintal. Assustado, saí pela janela, e quando fui descober­to, corri enlouquecido pelo gramado, driblando a mulher grande quando ela tentou barrar meu caminho a gritar: “Peguem ele” – e corri de volta atra­­vés de um Estados Unidos pequeno até minha “lavra” em um vale tranquilo.

14 DE DEZ. – Vi um show ótimo no Bop City. A banda agressiva de Lionel Hampton; e George Shearing ao piano. Estava com Neal, que tem um quarti­nho nos cortiços da East 76th St. e está escrevendo seu romance na máquina de escrever que peguei na Harcourt. Contei a Neal que eu tinha mu­dado muito no mês anterior. Fiquei surpreso porque, quando você muda, os outros também parecem mudar (!). Discutimos isso perto do fogareiro no barraco no esta­cionamento.

Hoje também comi um bife com o vendedor da Harcourt no almoço; uma bebida com Bob no Waldorf; um papo com Holmes na casa de Bickford. Escrevi tudo isso pela satisfação & pela amplitude deste dia, e mais tarde vou gostar de relembrar seus detalhes.

Enquanto isso, On the Road está na estrada, andando.

______________

Quando você diz: “Vou mudar”, e está falando sério, no início parece que não está mudando nem um pouco, mas em poucos meses, sem perceber, a mudança aconteceu. A vida é lenta e melancólica... e prossegue com sinceridade e convicção.

19 DE DEZ. – Se eu agora estivesse mantendo um diário de produção, diria: “Esta noite escrevi o equivalente a 3.000 palavras em uma página de 300 palavras”.

* * * * *

Tudo no mundo pode ser racionalizado. Não é verdade? A razão é falsa? – a razão não é falsa? Não importa.

A vida é estranha, é estranha, é estranha.

“Criminosos ou crianças – assim é o homem.” Mas há o mal inocente, e o bem experiente.

20 DE DEZ. ao amanhecer – Trabalho lento e difícil em Road. A lucidez deveria ser fluente.

*

A noite não é uma hora romântica para se escrever, como dizem os críticos-vespertinos, mas quando, incubado no sono inocente do mundo, o transe chega, com visões das possibilidades do coração, e no silêncio, altares a isso são decorados com cuidado e cinzelados com perfeição.

Para mim também é a noite bebop, quando correm os trens de carga; e eu totalmente imperturbável no sonho de minhas criações que vendem ao meio-dia (!), ao contrário da criação desses tais críticos... (Se eles querem falar de “romantismo”.)

– * –

Coisas que todos sabem, mas que nunca falam

1) Dean aponta para o cartaz de uma atriz de cinema e diz “Olhe para aquela barriga!”. Se fosse sugerido que ele realmente se encontrasse com essa mulher, como o jovem iria calar a boca aterrado com os terrores do mundo. E diria “Pense em tudo o que poderia rolar entre essa dona e eu! Milhares de pessoas, agentes, clubes, produtores, dinheiro, os contatos certos! Mas ainda assim eu a amaria, cada pedacinho dela! – como nenhum homem já ousou fazer! As pessoas nunca falam das coisas, do tempo e da noite e da gran­deza que os separam. “Eu a amo mais que qualquer outro. Nunca irei vê-la. Tudo é confuso & horrível”.

: – :

A vida não é estranha, não é estranha, não é estranha.

Ou se eu tão rude fosse –

Que quando a vida me negasse

Eu, da ira na pior digressão,

Faria da inocência opressão.144

19 DE MAIO DE 1950 – Cinco meses depois.

Todo o tempo que passei em Richmond Hill desde o último agosto, quando cheguei da Califórnia via Denver e tive a depressão terrível descrita nas páginas 23 a 46, parece uma massa amorfa de tempo... “nada aconteceu” – a depressão está mais viva em minha memória nesta manhã de maio que a publicação de Town & City – e eu me pergunto por que isso está acontecendo, quase como se não houvesse tempo na vida de Nova York. Mas mesmo assim aconteceram muitas coisas importantes, de todos os jeitos, dinheiro e mulheres, e viagens (a Boston, Poughkeepsie e New Hope, Pennsylvania) e amigos, eventos, shows, refeições, sonhos, cerca de 75.000 palavras de escritos variados, e por aí vai. Talvez minha vida não esteja mais dentro dos diários. Parece estranho. De qualquer jeito esta é a manhã de minha nova partida para o Oeste e a Cidade do México, até setembro de 1950.

A noite passada foi fria, triste e chuvosa. Minha mãe passou minhas roupas; fizemos um lanche e conversamos. Às vezes, olhávamos um para o outro em uma tristeza furtiva. Talvez eu esteja escrevendo tudo isso para alertar todos os viajantes – a noite anterior à partida é como a véspera da morte. Eu me sentia assim. Onde vou, e por que motivo? Por que sempre preciso viajar de um lado para outro, como se importasse o local onde alguém está?

Por que sou um fracasso no amor? Porque se meu caso de amor com Sara tivesse sido bem-sucedido, “aqui” ou “ali” não importaria mais nem um pouco, mas do jeito que estão as coisas, não posso ficar em Nova York e “per­der o prestígio” com os amigos dela, que aqui são muitos. Na verdade, viajo porque não tenho amor. Vou para uma outra vida, ao morrer assim.

Mas não estou triste. A verdade é que ainda preciso conhecer a verdadeira mulher da minha vida, e vou encontrá-la em algum lugar. Viajar é um sinal disso. Que disparates sem graça as pessoas dizem ao falar do coração mortificado? Sem poesia.

Mas ela era insolente demais para alguém como eu.

Nada sobrou nessa minha alma experiente exceto a repetição – logo o homem sábio & humilde em mim vai tornar-se um mestre do compromisso – e então eu estarei velho e comum. Nenhum problema nisso.

Deixe que eu me alongue mais, em francês traduzido para o inglês –

“Parto porque sou louco. É preciso trabalhar, não brincar. Você não sabe mais como trabalhar, é um idiota. Dê um jeito em sua vida e cale a boca. Você sabe muito bem que não vai trabalhar no México – em Denver não terá tempo. Está gastando seu dinheiro, e só. Pobre idiota. Um dia desses você não será mais capaz de fazer coisa alguma, e então será tarde demais. Se você não conseguir arranjar um meio de vida hoje, não vai encontrar amanhã. Pare de esperar e comece.”

– Será que devo fazer essa viagem? – Tenho de ir, está tudo arranjado.

– Sim, vá. Vá embora. Faça o que quiser. Vá brincar, seja tolo. Quando voltar, estará mais velho, só isso.

– O que farei quando voltar?

– Vai trabalhar e ganhar sua vida. Encontrar uma mulher e casar. Ter filhos e calar a boca. Ser um homem, não uma criança.

– Onde vou morar?

– Onde quiser! Não faz diferença, seu tolo! Vá morar no campo, vá morar no depósito de lixo, tanto faz.

– Você não tem um conselho que não recrimine o que estou prestes a fazer?

Um silêncio triste... então:

– Conselho é o cacete. Você não precisa de conselho. Você sabe o que está fazendo. Nas circunstâncias de sua viagem, se algo acontecer, pare. Pare de correr como um camundongo pela face da terra. A vida não é longa e você não é jovem.

Essas são as palavras de meu “irmão mais velho franco-canadense”, que apareceu para mim, quase encarnado, durante uma viagem de maconha há duas semanas, e tem estado comigo desde então. Suas palavras são fortes & certeiras.

Eu o escuto com medo & respeito. Ele me contou que era “un ambassadeur du Bon Dieu” na manhã em que apareceu em meu quarto, em pé no canto com uma expressão desdenhosa, com um olhar suspeito para a droga tola na cama. Naquela primeira manhã ele respondeu várias coisas que perguntei a ele – como, por exemplo, se Ginsberg & Meyer Shapiro & Kazin eram grandes homens porque não estavam tentando deixar de ser judeus & portanto eu não devia tentar deixar de ser francês. Simples assim. Ele me contou que Carr era um babaca; que Neal era legal mesmo não sendo “nada excitante”; ele me disse para dar um tranco na mulher que amo para convencê-la, e coisas assim, todas simples, diretas e verdadeiras. Ele chegou a me dizer para ir à igreja e calar a boca. Sugeriu que eu fosse para Lowell, ou o Canadá ou a França, e me tornasse um francês outra vez, e escrevesse em francês, e calasse a boca. Ele fica me mandando calar a boca. Quando não consigo dormir porque minha mente está ribombando com pensamentos & frases em inglês, ele diz “Pense en Français”, sabendo que assim me acalmarei e dormirei na simplicidade.

Vou levar este irmão comigo na viagem para o México e verei o que vai acontecer.

Ele diz várias vezes, “Coma!”, e eu levanto e como.

Acho que ele é meu eu original de volta depois de todos os anos desde que eu era um menino tentando me tornar “un anglais” em Lowell, com vergonha de ser um canadense; nunca tinha percebido que passara pelos mesmos sentimentos que qualquer judeu, grego, negro ou italiano têm nos Estados Unidos, pois eu os havia escondido bem, até de mim mesmo, com tanta inteligência, e um talento triste e seguro, para uma criança. Escrevi um romance aos onze, “Peter”(!) Ele me recordou que meu pai tinha tentado o mesmo negócio a vida inteira, ao misturar-se com “les anglais”, o que na verdade significa não fran­cês. Essas são verdades inequívocas. Logo vou solucionar isso anglicizando minha francesisse ou afrancesando meu inglês, o que for melhor. Há ciladas que terei de examinar, como voltar ao relacionamento simples com minha irmã, como quando éramos crianças. Isso tudo pode ser só material interessante, ou loucura, ou, como espero, um retorno definitivo às raízes de meu eu verdadeiro.

De qualquer forma, sete meses em Nova York, e parece que nada aconteceu e lá vou eu de novo. Estou levando o manuscrito de Road comigo.

Não há coisa alguma a dizer. Um dia todos estaremos mortos, e será que alguma coisa terá sido resolvida? – alguma coisa feita?

Vou me esforçar para isso, mon frère.

______________

PARIS

Joyce comia no Fouquet e passava noites no bistrô de Madame Lapeyre na esquina da Rue de Grenelle & Rue de Borgognne.

O Rainey de Céline... e a Rue St. Denis era sua “rua-doentia”.

Kerouac ia toda noite ao San Juan de Letran, e às vezes comia no La Cucaracha.

: – Sublimidades – :

SUBLIMIDADES A APRENDER145

Os grandes poemas de [Giovanni] Boccaccio IL FILOSTRATO; LA TESEIDE.

TROILUS AND CRYSEYDE, de Chaucer

THE RED BOOK OF HERGEST

THE BOOK OF BALLYMOTE

THE SPECKLED BOOK

SPOILS OF ANNWN, de Taliesin

The MABINOGION

THE PANEGYRIC OF LLUDD THE GREAT

THE BOOK OF THE DUN COW

The BOOK OF LEINSTER

The BOOK OF LECAIN

The YELLOW BOOK OF LECAIN

ANNALS OF THE FOUR MASTERS, do sr. O’Donovan

THE BLACK BOOK OF CHERMARTHEN

The MYRVIAN ARCHAEOLOGY

Os SONETOS, de Petrarca

OXIONENSE, de Duns Scotus

CIDADE DE DEUS; TRINDADE, de Sto. Agostinho

Poemas de Prudentius

LIFE OF LOYOLA, de Thompson

Expressões

O sorriso em seu trabalho...

O que fazer com a eternidade?

O belo estilo de sua arte afetuosa.

Você não sabe o que é um vale. A abelha do crepúsculo.

A última configuração do mundo.

Qual é o feitiço? Quem é a farsa?

Estou ficando mais estranho. Minha aparência desmorona.

Morte impassível. Olhe em minha chama.

As influências são fortes – (uma chave).

“Louco pelo vazio.” – (ALLEN)

“O grande mundo gelatinoso.” – (LUCIEN)

O páthos dos inimigos. A grandeza dos outros.

Emaranhado de engrenagens. Fale e namore também!

Natureza aborrecida. – Contemplar a calmaria dos meios-dias.

Vergonha e escândalo de minha estrela.

Uma frase é pôr um pensamento a serviço de alguém.

Pendure o chapéu num barraco de puta.

A mente de Ginsberg – uma mente sombria. A de Neal – uma mente reluzente.

Esqueleto comum. Nem olhar mais profundo.

Vale das Gargalhadas. Vale dos Ares.

Tudo caiu empilhado em meio aos ossos estilhaçados.

Água benta radioativa... use-a enquanto está quente.

Amanhecer de outubro: – orvalho sobre as folhas mortas.

Não vague por aí com seus portantos.

A calmaria do meio-dia & um cochilo doce, depois o alvoroço e o barulho.

J. Fitzgerald – “Esta escuridão fria e solitária.”

O abismo vazio.

Peidar através da seda e cagar cor-de-rosa.

Os ricos peidam através da seda, os pobres cagam através da aniagem.

NOTAS DE FEVEREIRO DE 1950

On the Road é meu veículo com o qual, como um poeta lírico, como um profeta leigo, e como possuidor de uma responsabilidade com minha própria personalidade (o que quer que ela esteja louca para fazer), desejo evocar essa música triste indescritível da noite nos Estados Unidos – por razões que nunca são mais profundas que a música. É o verdadeiro som interior de um país.

Há santos, e há estudiosos; e a diferença está sempre presente. Absorta e ou evasiva.

No verão passado em Denver tudo o que fiz foi passar três meses con­tem­plando as planícies, por motivos, motivos.

Há um ruído que escuto no vazio; há uma visão do vazio; um lamento no abismo – um grito no ar triste: o domínio é assombrado. O homem assombra a terra. O homem está na saliência de um rochedo falando muito de sua vida. O poço da noite autêntica. Deus paira no alto em seus sudários. Cuidado!

Mais que uma pedra em minha barriga, tenho uma cachoeira no cérebro; uma rosa em meu olho, um belo olho; e no meu coração não há nada mais que uma encosta de montanha, e o que está em meu crânio: uma luz. E em minha garganta, um pássaro. E eu tenho em minha alma, em meu braço, em minha mente, em meu sangue, em meu rim uma pedra de lamentos que tritura rocha na água, e a água é aquecida por chamas, e adoçada por elixires, e tor­na-se o lago de contemplações dos valores da vida. Choro em minha mente. Em meu coração, penso. Em meu olho, eu amo. Em meu peito, vejo. Em minha alma me transformo. Em meu sudário morrerei. Em meu túmulo mudarei.

Mas chega de poesia. A arte é secundária.

As lamentações são tudo.

(Em meu sono referi-me a mim mesmo, em francês, não como um “es­critor”, mas arrangeur – aquele que arranja assuntos; ao mesmo tempo, as­sociei esta fração com comer um jantar (manger). Acordei para lembrar-me disso.)

RICHMOND HILL

1o DE FEV. – Uma noite na ópera com Bob & Kelly. Um banquete para 300 milionários. Gene Tunney estava lá. Depois no Birdland com Neal; champanhe no bar do Yale Club. O mês de janeiro foi uma loucura.... começando na noite de ano novo com aquela festa fantástica que, para mim, acabou em Princeton, N.J., e com os Lyndons. Mil coisas em torvelinho, todas não ditas.

7 DE FEV. – Esta noite trabalhei & refleti ao mesmo tempo sobre quatro projetos importantes... Road, Sax, Simpleton e um romance juvenil sobre futebol americano (este último talvez seja importante apenas em termos de $). (Apesar de os garotos de Lowell terem-no lido com avidez quando eu o escrevi aos 17 anos.) Ocupado dia & noite. Agora percebo que, se quiser, a qualquer momento posso começar a refletir e resolver ficar entediado & deprimido, só para variar. E isso é o que é, ou qualquer coisa. Esta noite escrevi o poema da “serpente do mal”... “Todos os três suspiraram o suspiro da vida, e a serpente avançou.” Desnecessário dizer que também enchi ainda mais meu caderno de viagem “Chuva & Rios”. Com isso são cinco projetos no total... No belo percurso de hoje. Um desses dias em que se vê ao longe, quando você é seu próprio grande estadista da história pessoal, e enxerga tudo como um protocolo profético... dentro da tristeza que parece um sonho.

10 DE FEV. – The Mysterious Stranger, de Mark Twain, é indiscutivelmente uma obra-prima. De algumas maneiras, é mais profundamente abrangente que o último trabalho de Melville (assim como THE STRANGER é de Twain) – Billy Budd. “A vida é um sonho”, diz o belo Satanás de Twain, mas isso é dito em um contexto mais terrível do que qualquer outra pessoa experimentou antes. “Você não passa de um andarilho pensativo que perambula por eternidades sem limites.” – e – “Todas as marcas de sonhos estão lá.”

Ontem à noite – festa na casa de Varda, onde levei Adele [Morales]: mais tarde, festa nos Holmes, de onde saí e não vou voltar. Adele e eu pas­samos horas maravilhosas e quentes juntos. Na outra noite, na festa de aniversário de Neal, também tive vontade de não voltar. Mês que vem parto com meu mapa novo; não sei para onde.

18 DE FEV. – Em 12 dias meu T&C será publicado e as críticas vão surgir. Ficarei rico ou pobre? Serei famoso ou esquecido? Estou preparado para isso com minha “filosofia da simplicidade” (algo que una uma filosofia da po­breza com alegria interior, como estava em 1947 e 1948).

INÍCIO DE 1950

Caderno

Impor título em nome de modesta referência futura. O ano, na his­tória pessoal e universal, também é um marco, por motivos óbvios.

SÁB. 18 DE FEV. – “You oughta be out in the forest like a big old grizzly bear.” “Hou come you ain’t out there?” “I’m a lady” “They got lady-bears out there.” “Aw baby...146 Isso é Double Crossing Blues, que está tocando neste momento no rádio. A menina só tem treze anos. De repente a floresta assoma-se à noite ao seu redor. A grande arte simples sempre é repentinamente inexplicável e para sempre entendida; assoma-se, como a floresta.

Agora começo a trabalhar em meu Chad Gavin147... Fiquei em casa à noite, sábado à noite, sempre uma boa noite para trabalhar, e comecei lendo 50 páginas de Os possuídos. Então rascunhei o esboço do capítulo de abertura de Chad Gavin – andei seis quilômetros às 5h da manhã. Li 40 páginas de Cesar Birotteau [também conhecido como Balzac]. Há anos tenho remoído e remoído em minha mente a ideia de On the Road, mas quando Balzac alerta “não confunda as fermentações de uma cabeça vazia com a germinação de uma ideia”, sinto que ele está se referindo a alguém como eu. Mas estou dando o meu melhor. Perdido em tal pensamento, não produzi palavras esta noite. Mas a trama de Road é rica por causa dos “anos” – não há outro motivo.

J. Kerouac

94-21 134th St.

Richmond Hill, N.Y.

DOM. 19 DE FEV. – Acordei às 4h30, li os jornais, comi, andei. Para, portanto, “começar do começo” – Uma noite esplêndida de trabalho de organização. Pre­parei 3.000 palavras para serem datilografadas, o capítulo de abertura-mis­terioso-explicativo-musical, que levei meses para desenvolver. Agora sigo para o capítulo Dois, a história do velho Wade. Não vou contar palavras até estarem datilografadas. Cem ideias me assaltaram à noite. Laura faz um biquinho de menininha quando Chad a beija, apesar de, normalmente, ela ser sonsa & estranha & distraída. Em um momento – no clímax – ela brinca com ele: “Não sou desse tipo de mulher”. De repente responde: “Possua-me pela primeira vez! Possua-me pela primeira vez!”. Mas tudo isso aparecerá nas pági­nas do manuscrito... bem mais tarde.

No início da noite estava passando mal do estômago e atormentado. Ainda assim o trabalho fluiu, & o trabalho salvou tudo como outrora. Ah que alegria ser capaz de fazê-lo outra vez. A determinação é a chave; levar a cabo apesar da relutância. É um desejo solitário e imbatível, contra o silêncio & a escuridão que não tem justificativa. Pelo modo como eu e meu material estamos organizados agora, posso ter mais de 50.000 palavras para mostrar a Bob quando ele voltar da Itália em 1o de abril – palavras publicáveis.

Devo adiar a viagem ao Oeste & fazer isso primeiro? (Humm!) Veremos. Devo acrescentar algo todo dia de agora em diante – isso vai funcionar como nenhuma outra coisa. A alegria é a certeza de desejar – o pesar é a incerteza de... outra coisa. Enquanto escrevo isso um assobio lúgubre, insistente e aflito sopra com o vento da noite lá fora. Ah máquina! Nada pode vos salvar! E os ventos fazem tremer de medo as vidraças. Mas aqui dentro de mim, estou bem. Isso não é mais que a habilidade da alma em sua astuta oficina.

SEG. 20 DE FEV. – Fui à escola num frio congelante para assinar presença; depois na casa de Adele para um papo, & andei até Times Square (2km), então fui para a casa de metrô com jornais. Uma reportagem sobre meu livro no Lowell Sunday Sun. Eu penso e penso com maldosa satisfação que posso ficar rico & famoso em breve, mas ainda assim continuo a circular no inverno com meu casaco e boné de caçador surrados – uma espécie de “jovem estudante” no metrô lendo Os possuídos; contando moedas & meditando se devo ir ao cinema à noite ou não... quando o mundo é meu. Não há sentimento maior e mais verdadeiro. O mesmo quando viajo de ônibus pelo país (em vez de pedir carona) e durmo em hotéis velhos como aqueles à beira do rio em St. Louis... os hotéis interessantes, e ônibus nos quais os passageiros são interessantes em vez de estereótipos da Time & Life. Isso explica de maneira apropriada por que meu jeito desleixado não é pose, mas uma forma verdadeira de me divertir & aprender. Como posso aprender e ver se fizer de mim um asinino viajante de avião & hóspede de hotel de convenções (“convenção” dos Grão-Alces)... e me lançar diante dos olhos do público.

T.S. Eliot, poeta e prêmio Nobel, viaja como “Tom Eliot” em navios velhos; por isso é o velho Tirésias... e eu, agora, devo ser o jovem Orestes148. Cheguei em casa à uma hora, comi ovos com bacon, e resolvi trabalhar um pouco. Mais cedo ou mais tarde todo mundo em Dostoiévski diz, “Humm” o tempo inteiro, no interior.... esta é a chave para sua visão do homem – “Humm” (que mistérios?) (O que ele quer dizer com isso?) – Eu me pergunto se meu próprio som em T&C não foi “Hah”? A chave para minha visão – “Hah”? Como se para dizer, “Sei exatamente o que está acontecendo, mas vou fingir que nem escutei”. Ao que Dusty responde, “Humm”. – Qual o som de Balzac? Mais tarde vou tentar adivinhar. Talvez seja “Hup! Hup!” – todo mundo passando correndo por paixões e fortunas, loucamente. Em Céline é um juramento; em Melville, um silvo. Em Twain é a palavra “satisfeito”. Em Céline é Wah! Wah!” – ou “Hoik! Hoik!”

TER. 21 DE FEV. – Escrevi umas cem palavras, e resolvi descansar um pouco; e fui para N.Y. escutar bop. Em uma cafeteria na esquina de 50th com 8th Avenue fiz anotações sobre a “geração hipster” que é tão parecida com a geração niilista de Dusty, os possuídos, de certa forma; e de outra, tão diferente. Os hipsters não têm sociedades secretas, só as noites secretas de bebop. Mas é o espetáculo do abandono formal de uma geração da ideia de pessoas da geração dos pais. ... portanto vejo um paralelo no incômodo do velho Stepan com o guincho na voz de seu filho Pyotr Verhovensky, e o meu incômodo com o risinho de Levinsky e agora o “Vai!” de Dean Pomeray (especialmente sua ligação com o sentimento de Genet nos círculos hipster-criminais franceses, quando por exemplo ele vê uma foto de guerrilheiros atirando em pessoas nas Filipinas e grita: “Eles não dão mole lá fora!!”) fez isso, em uma lavanderia automática na 3rd Avenue. Em Denver, eu perguntei também a Neal meio envergonhado se ele um dia poderia reconciliar o Cristo com o C-—to preto do qual ele sempre fala e nega aos gritos. Meses depois, inesperadamente (em Nova York, em uma gravação), ele zombou de mim por perguntar isso. O “C–––to de N149, deve-se ter em conta, é principalmente uma imagem sádica; à la Rimbaud, se quiser, mas já tive a minha cota de Rimbauds de Phillip Tourian. O “C–––––to” de N. não é o amor de Geo. Bouman pelas noites selvagens de Havana, mas violência, se necessário. Como você pode recon­ciliar “o rei que vem em um jumento, humilde”, com a ralé (trocadilho inten­cional)150. Riam! Riam! – Acredito em minha própria seriedade estúpida, e não sou alheio ao que é charmoso, afinal de contas.

Ouvi Dizzy Gillespie no Bop City e atravessei a rua até o Birdland para ouvir Tristano, Miles Davis, Goetz etc. e tal. Lá, também, tive uma ideia: quando Tristano tocou sua versão abstrata, sem beat, tipo Bartok, de Intuition, um homem de cor na plateia gritou para ele, “Toque música de verdade!” – o negro da onda examinando com desdém o velho negro da pe­sada fora de moda. Mas concordo com o velho. Toque alguma música. Uma arte que expressa a mente da mente, e não a mente da vida (a ideia de vida mortal sobre a Terra), é uma arte morta. Uma arte que não se manifesta para “todos” é uma arte morta. Uma arte morre quando ela se descreve em vez de descrever a vida – quando vai da expressão do sentimento humano no vazio e torna-se uma simples descrição do vazio. Do teatro a linhas abstratas, uma arte pode expirar. Shakespeare, Homero, Rembrandt, Tolstói, Céline, Mark Twain são conhecidos por todos... em suas melhores obras. O Beethoven das sinfonias é maior que o Beethoven da música para um quarteto. As me­lhores óperas de Puccini em seu sentimento simples valem mil trabalhos abstra­tos de estudos musicais como os de Schoenberg etc. – 4h da manhã. Comi no Ham’n Eggs Heaven um grande desjejum. Voltei para casa.

Às nove da manhã recebi um telegrama.

“Caro Jack: Tom morreu em um acidente. (assinado) Benedict A. Livornese.” Tio de Tom?

Como eu podia saber que era uma brincadeira – enviada inocentemente pelo próprio Tom? O relato completo desse incidente fantástico – como eu chorei o dia inteiro, como abandonei tudo por um pesar imenso, como saí para Lyngbrook na noite congelante (caí duas vezes no chão) e paguei uma missa em sua memória em uma igreja católica, como fui até o funeral levar meus respeitos e como ouvi bebop vindo lá de dentro e vi Tom correr para abrir a porta – tudo será revelado em uma história que escreverei para revistas. Tem algo do estado de ânimo triste de Mark Twain. E eu nunca fiquei mais feliz e em êxtase ao ver que Tom estava vivo. Quase não dormi desde então – mais sobre isso depois, na história. Agora é demais... é mesmo.

QUIN. 23 DE FEV. – Jack Fitzgerald conta que Edie ligou para ele de Detroit dizendo que quer vir para o Leste, mas Kerouac não quer deixar. Que outra história fantástica! A vida é cheia de tramas. Tantas que quase nem tenho tempo de escrever Road. Acordei às quatro da manhã de sexta-feira para trabalhar – tudo virado de cabeça para baixo, por tudo... e estou tão feliz por nin­guém ter morrido, & feliz por tudo.

Sempre farei aquilo que amo.

SEX. 24 DE FEV. – Trabalhei a manhã inteira na preparação do meu capítulo do incidente de abertura, apesar de estar exausto pelo sono agitado... a mente muito afiada. Estou orgulhoso do resultado, especialmente de Chad e Laura. Este capítulo revela a alma de todos – estou aprendendo a escrever! Aprendi um grande segredo esta manhã mesmo, isto é, você estabelece relações entre as almas de todos os envolvidos, em todos os lados, e então usa o material naturalista com o objetivo de colocar as mencionadas relações em sua posição terrena. Porque a relação é “eterna”. Como Kazin diz, é o “diamante sobre o qual repousa a existência”. Um grande aprendizado para mim... como fazer, o segredo técnico. Por exemplo: primeiro estabeleço a relação de Laura com Chad, que é “si­lêncio calculado”, e então uso o material naturalis­ta (nesse caso os cavalos) para pôr em movimento e dramatizar o fato eterno de seu silêncio calculado, de forma que ela segue ao lado dele sem uma palavra. Até aqui.

Recebi um artigo maravilhoso de Alan Temko sobre mim na edição de 11 de fevereiro do Rocky Mountain Herald. Estou absolu­tamente maravi­lhado. E onde estará ele agora? Ele não escreveu uma palavra. Homem estranho, raivoso, radiante, triste. O artigo foi enviado por Justin Brierly, que também não diz uma palavra. Tramas por todos os lados! Estou tão feliz que vou me elevar com a fumaça. Bah!

À noite, a festa na casa de Tom onde – um cavaleiro triste – perdi minha bela Grace para ele (charmoso como um astro do cinema... “piano e co­quetéis”). Fiquei bem triste... e fui embora. Mas essas coisas já me aconteceram antes... a posse de uma mulher não é a questão mais importante do dia. Qual a questão mais importante do dia? – a fertilização da dita mulher, e alguma decisão “eu-sei-como-viver” quanto ao rebento. Fitz foi à festa. Os Holmes & os Bowmans também estavam lá... vinho rosé, bifes, lutas na TV. No dia seguinte, Fitz veio à minha casa. Fomos a Poughkeepsie. Seguiram-se 30 horas de conversa.

SÁB. 25 DE FEV. – O fato triste sobre a cidade pequena americana moderna como Poughkeepsie é que não tem a força das metrópoles, mas tem sua banali­dade. Fitzgerald é um mártir da noite culpada de Poughkeepsie, onde homens banais vagam se perguntando o que deu errado com suas almas. Fitz diz apenas “Eles estão mortos”. Que ruas desoladoras... que vidas desoladoras... que falta de futuro & destino infeliz. Milhares de bêbados nos bares. Mas dessa ruína ergue-se um Cleo – um verdadeiro Cleophus – o “Neal Negro” que conheci ali este fim de semana – na verdade, é em essência um “Allen Negro”. Ele diz que Cristo está nos ombros de cada um de nós, e tudo está bem. Pega um copo d’água e me ensina a provar a qualidade da água pela “primeira vez” – (claro que fiz isso como um menino me imaginando no deserto). O futuro dos Estados Unidos está na espiritualidade e na força de um Negro como Cleo... Agora eu sei... e em todos aqueles que o compreen­derem e receberem. Os operários que moram em Larchmont e vão todos os dias para seus trabalhos já são coisa do passado. É simplicidade e força bruta, erguendo-se do solo americano, que irão nos salvar. Seremos salvos. Apenas os trabalhadores de Larchmont e os enjeitados de Poughkeepsie (“O que vocês estão tirando da vida? Ainda não têm um aparelho de TV?”) estão desaparecendo em um beco sem saída Time & Life & Fortune... pobres tolos imitadores de uma sombra que reluz. Há muitos povos não descobertos nos Estados Unidos... como na Rússia. O garoto sem nome morto pelos tiras em uma rua do Brooklyn não desperta sentimentos públicos – porque ele é um “marginal” – mas em seguida ele ressuscita como o herdeiro de uma família rica, e essa família é a futura família da terra; haverá grande agitação. (Carl Sandburg: “Exclusivo é a palavra mais feia que existe”. As nossas leis de classe vão desmoronar... do contrário os Estados Unidos desmoronarão... e os Estados Unidos não desmoronarão. Você sente isso nas ruas cheias, especialmente nos bares White Rose ao meio-dia quando trabalhadores estão comendo sanduíche de presunto no pão de centeio e tomando uma cerveja; o cigarro & a conversa; o ritmo das coisas; o som das coisas acontecendo; subindo... Allen G. escreveu: “Estamos acostumados a pensar de nós mesmos pensamentos poderosos de Life & Fortune, mas, na verdade, talvez estejamos inchados pelo orgulho desprezível e a História vai passar por nós (mesmo por mim e por você) no próximo meio século”. A palavra-chave é ORGULHO. Allen se esquece que ele, e Cleo, são os descobridores de uma humildade que irá transformar os nossos dias –

Quanto aos Liberais – os “intelectuais” que escrevem sobre “criminosos” mas não querem Neals em suas casas –, Fitz diz: “Eles querem aceitar os intocáveis tocáveis”. É o velho papo dos Liberais... Sempre Sr. & Sra. Em-Cima-do-Muro, sempre as reservas “respeitáveis”. Não o medo fora de moda do “escândalo”, mas um medo Liberal das “consequências”. Os Estados Unidos vão desmoronar como Allen diz se a gente não escarnecer – encarar as merdas – expô-las – nada temer – seguir com os conhecimentos, os otimismos verdadeiros de Twain e Whitman (respectivamente) na direção de uma grande maldição bíblica fora de moda na Terra... um tratamento de choque... uma olhada temerária dentro do abismo... uma oração como um gemido... uma visão de nós mesmos... um pouquinho mais de coragem e menos esperteza cerebral. Juro por Deus que o grande símbolo da desintegração dos Estados Unidos é o programa de TV de Dave Garroway, de Chicago!151 – que espe­táculo sofisticado, tortuoso, caprichado, agradável, meio bicha, meio tolo ele apresenta... com todas as insinuações por trás. A palavra-chave é insinuação, não sei por quê... Saberei depois.

Se uma bomba H caísse em Nova York e eu tivesse uma pílula letal no bolso, e estivesse preso em um túnel em meio a mortais gritando, ainda acho que não engoliria a pílula.

Isso é a insinuação? Também subentendida na cortês psicanálise vienense.

“Inchado com o orgulho desprezível...” Vamos, vamos ceder. “Es­tados Unidos da América! – apressem-se e cedam; pois hoje a salvação chegou à sua casa.” As palavras de Jesus... trocando Estados Unidos por Zacarias. Vai chegar um dia em que a noite será a hora de dormir porque não precisaremos mais da noite para absorver nossas culpas.

SEG. 27 DE FEV. – Cheguei em casa num frio gelado num trem da N.Y. Central, sentado sobre bolsas de lona, trem quatro horas atrasado. Dormi à tarde. Escrevi à noite no frio, casa fria... Logo, porém, será primavera, e eu irei para o Oeste – sempre o Oeste. Este verão acho que vou arranjar um emprego em um jornal e um apartamento ou uma casinha em Frisco... também em breve, quero me casar. Quero minha própria casa para que ela represente o que eu represento.

Hoje cartas de Kelly, Ed White & Allen.

TER. 28 DE FEV. – Meus novos planos para março: – assim que pegar meu dinheiro, vou entrar para a academia na YMCA e fazer exercícios quase todos os dias. Além disso, café preto, sem creme ou açúcar; fazer barras na porta (que não tem lugar apropriado para segurar por isso só consigo fazer umas 10 ou 11 ou 12.); e dormir menos. Estou ficando gordo e preguiçoso. Hora de ação, hora de uma vida nova, para minha vida real. Farei 28 anos em duas semanas... uma idade apreciável. Duas refeições por dia em vez de três. Muitas viagens. Sem estagnação. Sem pesares formais! Sem mais temor meta­físico! Ação... velocidade de produção... graça... transformam o mundo em um antigo conto de Saroyan, com propósitos & reflexões maduras. Vá! E uma escrita delirante a partir de pensamentos em vez de requentar os velhos... de ideias preexistentes. Também vou expressar mais e registrar menos em On the Road – vou apontar direções em vez de descrever caminhos. – Hoje vi uma foto de Bob Giroux em Portugal no Daily Mirror com os romeiros católicos que iam para Roma. Uau!— “Eles conclamam todos a seguirem em peregrinações.”152 Bob está em uma romaria na igreja do mundo, a jesuíta. A minha é uma romaria na igreja do Paraíso. Ela não tem nome. Da mesma forma nós buscamos juntos, e somos irmãos no espírito. “Que os elogios façam justiça a essa estrela Vênus.” Alô! Alô! – Zuum! Não venha me falar do Estado Soviético... esses malucos estão mortos.

Não há vilões em Dostoiévski. Por isso ele é “o mais verdadeiro entre os verdadeiros”. Ele vê tudo ao mesmo tempo; e comanda sua própria mente. – Você precisa acreditar na vida, viver a vida, antes de conseguir realizar qualquer coisa a seu favor. É por isso que os austeros diplomatas do De­partamento de Estado, estilo Goethe, estudiosos, de almas racionais e horários regulares, nada fizeram pela humanidade. É preciso um Benjamin Franklin para tra­balhos assim. (“Nem todo mundo é um Franklin?” Por que viver se não pela exce­lência? Que tipo de era é essa que lisonjeia sua própria fraqueza de­cadente em nome de conversa vazia de coquetel – e zomba da excelência.)

O que o velho chinês depois da esquina pensa? Acabei de passar a pé pela sua lavanderia, ao amanhecer, e ele já está de pé. Um homem de seis milênios de idade – nem odeia nem ama o mundo – trabalha para manter suas mãos ocupadas – olha para o homem com um olhar sem expressão – Mora sozinho, em esquinas – tem um enorme pesar e o pesar de sua raça antiga – está esperando que o mundo pegue fogo. Lá está ele ao amanhecer, rabugento, aquecendo chá num quartinho dos fundos miserável, preparando-se para outro dia de trabalho no calor. O que ele pensa do destino do homem? Tudo o que ele sabe é que seus ancestrais como ele eram pacientes, viviam longas vidas de silêncio, e observavam.

Tenho medo do oriental, do que consigo deduzir dele. Meu Billy Ling em Road será como esse Wong Lee da Tinturaria Lee, em Richmond Hill. – Descendo a rua, uma visão ainda mais estranha. Ao caminhar na penumbra antes do amanhecer eu pensava que Hemingway & Fitzgerald tinham construído suas vidas em torno de caçadas e animais mitológicos, e eram somente muito espirituosos153, vi um grupo de motoristas de caminhão da Krug que têm mulheres & filhos & casas com que se preocupar ao formarem um piquete diante da garagem. Com seriedade conciliadora, eles resolveram bloquear a entrada e convencer os outros motoristas a se juntarem à greve. Talvez mais tarde a violência irrompa. Krug é uma fábrica de pão. Resolvi naquele momento que eu preciso ser um Fundamentalista; mas nunca meto meu nariz onde não sou chamado, e segui em frente... presunçoso.

Hoje mais cedo fui a N.Y. e resolvi algumas tarefas domésticas. Agora estou exausto. Vou dormir. Amanhã serei outro homem. Todo dia é diferente. (“Hmm.”)

: – NOTAS ESTRANHAS – :

MARÇO DE 1950

A noite expia os pecados do dia – nos Estados Unidos. Por isso eles querem “o fim da noite” – purgação total das ocupações decadentes e desleixadas do meio-dia. Só o operário da construção dorme à noite – o garoto propaganda da TV se embebeda. Chegou a hora de se ocupar do dia de maneira honesta.

* *

Acho que a grandeza de Dostoiévski está em seu reconhecimento do amor humano. O próprio Shakespeare não penetrou tão fundo sob seu or­gu­lho, que são todos os nossos orgulhos. Dostoiévski é na verdade um em­baixa­dor de Cristo, e para mim, o moderno Evangelho. Seu fervor religioso vê atra­vés dos meros fatos e detalhes de nossa vida cotidiana, por isso ele não precisa concentrar sua atenção nas flores e pássaros, como San Francisco, ou em finan­ças, como Balzac, mas em qualquer coisa... as coisas mais comuns. Só aí está a verdade. Para um homem como Spengler, reconhecer que Dostoiévski é um santo é sua glória coroada.

A visão de Dostoiévski é a visão de Cristo traduzida em termos mo­dernos. O fato de ele ser proibido na Rússia soviética indica a fraqueza do Estado. A visão de Dostoiévski é a de que todos nos sonhamos à noite, e sentimos de dia, e é a Verdade... meramente que amamos uns aos outros, gostemos disso ou não, isto é, nós reconhecemos a existência do outro - - - - e o Cristo em nós é o primeiro a provocar esse reconhecimento. Cristo está em nossos ombros, e é “nossa consciência na universalidade de Deus”, como diz Cleo... ele é aquele em nós que reconhece. Sua “ideia” é.

O motivo pelo qual o garoto propaganda da TV se embebeda à noite, como acima, é só porque a natureza de suas buscas o afasta do amor dócil do homem, que é o que todos queremos. D. H. Lawrence é mera masturbação do eu.

1o de mar. de 50

Refletir: esta noite fui à casa de Lou, com aparência séria e cortês em meu terno, e “confessei” a ele meus novos planos. Ainda assim eu estava nervo­so, e não consegui deixar de perceber sua melancolia pálida, mesmo quando sua mãe riu e conversou com a gente. Tudo o que contei a ele, tudo o que aconteceu – foi eclipsado pelo fato de que eu sofri diante desse homem (futuro-famoso-jovem-escritor sem se opor a ficar rico), além de um profeta-da-força-americana, sem opor resistência) e isso porque eu reconheci sua existência com amor e medo, e não pude aguentar a mortificação de meus pró­prios sentidos que recebiam a graça de seu ser. Lou é só a intensificação desse sentimento que tenho por todo mundo; é um exemplo teatral da humani­­dade. Ainda assim não aguento vê-lo todo dia, por medo do tédio, ou pelo medo do tédio – talvez medo de perder o medo & tremendo, o que é uma dra­ma­ti­zação de minha existência. Quando fui embora, suspirei... “É sempre a mesma coisa... minha posição com alguém assim nunca vai mudar... Um relacionamento se estabelece para a eternidade... este mundo em que caminhamos é apenas o cenário, cenário temporal, de realidades eternas; esta calçada só existe para que as almas caminhem por ela”.

Mais que uma “dramatização de minha existência” é que tal reconhecimento do amor e do medo – amor e medo em si mesmos – simplesmente o amor – é nossa existência, e minha também, e a sua, e tentamos evitá-la mais que qualquer outra coisa no mundo. Por isso, esta noite, lendo meus novos livros, descubro que Kafka o evita em um sonho de si mesmo; Lawrence o evita masturbando-se (a mesma coisa); e Scott Fitzgerald, apesar de mais próximo do reconhecimento do amor, apenas escreveu sua história para ganhar dinheiro e omitiu certas coisas (em Crazy Sunday). Então li Dusty e estava tudo ali. Não há verdade como a verdade do profeta terreno.

Quero tornar-me, e rezo para conseguir, um profeta terreno.

QUAR. 1o DE MAR. – À noite encontrei Frank Morley no bar do Hotel Chatham. Ele estava bêbado. Eu fiquei bêbado com ele. Terminamos tendo uma longa conversa com Artie Shaw e sua namorada Anne... na casa de Artie. Que noite! À meia-noite Lucien leu para mim, pelo telefone, a ótima resenha de Charles Poore sobre meu livro, então Tony Mannocchio repetiu tudo para Shaw.

Morley é um grande homem de muitas maneiras. Mais depois – devo encontrá-lo outra vez em alguns dias. (Eu me pergunto se devo prosseguir com este diário; há muito a contar, e talvez a maior parte disso seja insignificante. Para quem estou contando isto?) O surgimento de meu livro no mercado me abala muito... lançado em meio a milhares de outros livros bons e ruins. Um grão de areia em uma grande algazarra americana. Entretanto, uma palavra sobre Letters from Editor to Author, de Maxwell Perkins154 (Bem, e eu falo algo com uma intenção séria, mas eles transformam isso em algo sem consequência. Bah! – Essa é a maldição das civilizações muito avançadas. O que está acontecendo nos Estados Unidos?) – De qualquer forma, Perkins alcança um tom de sinceridade pura, e uma consciência de sua própria inteligência responsável, em suas cartas aos seus autores. Isso também não passa de um grão de areia. Não há padrões, mas isso porque a cena cultural está mudando de enfoque. Esses enfoques não passam de moda passageira, cada vez mais. Por que eu devo me preocupar com eles?

Porque por quatro anos abandonei as alegrias da vida normal da juventude para fazer uma contribuição séria à literatura americana, e o resultado é tratado como um primeiro romance barato – o que sem dúvida ele não é – (apesar de meu “sucesso” aparente) – que meu Town & City, fraco como é em alguns pontos, mas acima de tudo totalmente sério, não frívolo – devia ser elogiado por críticos frívolos que fazem a mesma coisa dia após dia sobre incontáveis romances de todos os tipos... Estou tão confuso que não me importo em terminar a frase. Parece que nada é “significativo” exceto um retrato deles mesmos enquanto resenhistas de classe média do subúrbio. Meu Levinsky é recebido como um louco inútil; assim como Alexander Panos; meu pai trabalhador, uma mediocridade “morte-do-caixeiro-viajante-de-lamen­tos-la­crimejantes”. Mesmo Jack Fitzgerald considera meu pai insignificante porque não está em posição de grandeza mundana... Deve haver algo corrupto nos Estados Unidos para que isso aconteça. John Brooks, de certa maneira, fez a resenha mais compreensiva – e eu, ao contrário, enganei-me e em vez disso escrevi o oposto (para Justin em Denver) sobre essa resenha de 5 de março no Times. Ele vê os personagens como representações, pelo menos, dos tempos modernos... (e compreende como).

Como um rapaz caroneiro vagabundo vai significar alguma coisa (em On the Road) para Howard Mumford Jones, que quer que todos sejam como ele (intelectual de classe média “responsável”) antes que os aceite? Será que Dostoiévski faria suas figuras Raskolniks do lumpemproletariado para um cara desses nos dias de hoje? – para tal classe literária? – como nada mais que um vagabundo.

O grande conflito, não somente de classes, mas de grupos, e tipos, nos Estados Unidos é melhor que a uniformidade imposta por Estados policiais; ainda assim também há violência desnecessária no conflito. Não! – Deixe-os entrar em conflito! Eu posso lutar tão bem quanto qualquer um. De qualquer maneira, T&C está repleto de divisões conflituosas. É todo verdade. Vou parar de ser criança e aceitar o mundo competitivo, o mundo louco.

E o que é um livro?

Preciso escrever um melhor. O Amor Universal, de todo modo, é um monte de lavagem... no “mundo do dia”, claro.

Em todo caso, comemorei. Uma rodada de bourbon em uma livraria (com Goldman) serviu como minha primeira festa de lançamento. Vi os Lyndons, Stringham e George nos Holmes; bebemos cerveja, tocamos bop na tarde escura e sombria de uma sala escondida do sol; não patinamos como os Scott Fitzgeralds dos “decadentes” anos 20.

Mas principalmente estive com a linda Sara, e praticamente me apaixonei pela primeira vez em anos tristes e abatidos. Uma mulher... uma mulher... de beleza incomparável.

Que enigma é uma mulher!

Como eu as amo!

Quem não ama?

Por que escrevo este diário?

Agora leio Sobre o amor, de Stendhal... e também Perkins.

SEG. 6 DE MAR. – Melhor voltar aos detalhes em vez de ficar gemendo por aí, ganindo exuberâncias falsas. No dia em que o livro saiu fui almoçar com Ed Hodge, Tom Humason & Bob Hill ao meio-dia; treze horas mais tarde, Tom fechou o que ele chama de “o trem dos bêbados”. Durante a tarde ficamos bêbados e visitamos algumas livrarias. À noite fomos ao Alexandra’s, um bar cínico do mercado editorial; onde Treviston (sujeito muito en­graçado, vendedor da Scribner) me deu o livro de Perkins. Fiquei triste pelo meu dia de publicação sem muita graça, mas fui bem consolado pela presença desses bons amigos. No dia seguinte, sexta [3 de março], fiz uma noite de autógrafos na escola e depois jantei com Sara Yokley, da United Press, uma garota linda e adorável. Ela está preocupada com sua separação de Lou, que voltou para B. Hale. – No dia seguinte, caminhei à beira do rio, vi um velho com seu ca­chorro sentado nos degraus dos fundos de sua casa flutuante. De lá andei até o centro da cidade e as livrarias chiques, olhando para meu livro, que não é notado por pessoa alguma, e por que iriam notá-lo mais que outros mil romances? À noite voltei para Sara com um pouco de cognac. Domingo de manhã voltei para casa e fiquei enrolando. Segunda-feira de manhã acordei às 6h30 e fiz planos para um grande dia e os cumpri quase à perfeição: incluin­do o depósito de meu adiantamento de US$ 750 no banco. À tarde comi uma refeição chinesa com Holmes. À noite enchi a cara de cerveja com a linda Grace. Mas acho que sou fiel a Sara porque eu nada fiz – na verdade nós dois es­tá­va­mos tristes. Cheguei em casa às sete da manhã e passei o dia de terça-feira inteiro respondendo inúmeras cartas.

Todo esse turbilhão interrompeu o trabalho que eu estava fazendo em Road. Mas estou aprendendo tanto com o lançamento de meu livro que ainda estou revisando algumas das suas ideias principais. Aprende-se tanto ao ser publicado – sobre a cena cultural e as pessoas do mundo preocupadas com ela. Creio que minha visão precisa se ampliar, como a “janela do leito de morte” de Tom Wolfe, talvez a visão aérea definitiva de mundo e de tempo. Que é como a de Mark Twain em The Mysterious Stranger e como algo mais que aos poucos estou formulando em minha mente.

QUA. 8 DE MAR. – Escrevi um pouco de manhã. Minha mãe ficou em casa com uma gripe forte. Preocupei-me o dia inteiro com problemas de dinheiro... não por mim, mas por ela: ela não pode trabalhar para sempre. Fui ao ginásio da YMCA à tarde e joguei basquete. Voltei para casa. Não consigo escrever. Vou tentar ler. Talvez exercício físico, do tipo pesado como esta tarde, seja inimigo do exercício mental?

Uma crítica muito elogiosa na Newsweek. Evidente que é de Robt. Cantwell? Sinto-me melhor.155

Resolvo usar Tony Smith em Road – o que completa a sua concepção.

“O diamante sobre o qual repousa a existência” é um diamante selvagem e fibroso – e em vez de indicar, agora posso dizer quais são as partes que o compõem, todas. Um aspecto, o mais importante, é que a maneira como uma pessoa fala de outra depende de para quem ela esteja falando, e é totalmente diferente em todos os infinitos casos – então “fibroso” é a palavra precisa para descrever este mundo, com seu toque de unidade orgânica.

Quero a verdade, mas não nas mulheres... (um ditado meu). Quero S., não E. Mais depois. Na verdade, a Mulher baseia-se na falsidade, de outra forma não haveria a maternidade; a raça se extinguiria.

O “diamante fibroso”: pergunto a X o que ele acha de Z. Ele dirá uma coisa a você, outra a Y, e outra ainda para si mesmo, e ainda outra para uma multidão, e outra para A, outra para B, para C, D, E, F e assim ao infinito. Este é o segredo de Dostoiévski e também da existência humana em suas maiores e mais básicas relações formais, o que Dusty às vezes chama de “posição”.

Estou escrevendo uma história de 3.000 palavras para Jay Landesman, “Hipster, Blow Your Top.”, por US$ 30. Vou fazê-la muito louca.

Quero a verdade, mas não nas mulheres.

SEX. 10 DE MAR. – Vou fechar o diário por alguns dias – talvez por estar muito feliz com Sarah? Quanto ao mais, recepção fraca do livro, pfui!! Seg., 13 de mar., vou a Boston & Lowell. Mais depois... Neste mundo caolho. Em 11 e 12 de mar. escrevi meu “Flower That Blows in the Night”, que é isso.

11-20 DE MAR. – Fui a Boston & Lowell; vi o sempre grande John MacDonald; fiz uma sessão de autógrafos em Lowell; vi Jim O’Day, Louis Eno, Salvey, os Georges. Roger Shattuck e eu ficamos logo amigos.

3 DE ABR. – O LIVRO NÃO ESTÁ VENDENDO MUITO.

Não nasci para ser rico.

Agora estou tentando fazer o que parece impossível.

 

 


109 Red Moultrie era o personagem central na concepção original de Kerouac de On the Road.

110 Do escritor inglês Edmund Spenser (1552-1599). (N.T.)

111 Uma alusão à famosa viagem do jovem Marco Polo de Veneza a Catai (China) com seu pai e seu tio.

112 Nicholas Grimald (1519-1562) poeta da Renascença, escreveu Um amor verdadeiro.

113 Robert Herrick (1591-1674), ministro episcopal e poeta inglês; seu Hespérides (1648) incluía 1.200 poemas, entre eles o muito citado “To a Virgin, to Make Much of Time”.

114 Kerouac acabou viajando de ônibus. Partes dessa viagem são descritas no diário “Chuva e Rios”. A maior parte das notas seguintes – em Westwood, Colorado – foram retiradas do diário “Filologias particulares”, de Kerouac, que, de outra forma, não seria incluído neste volume.

115 Personagem criado por Al Capp, na tira Ferdinando. Eram pequenos animais muito comestíveis, que matavam a fome de todos. (N.T.)

116 Personagem do romance Luzes de agosto, de William Faulkner. Joe Christmas alude à figura de Jesus Cristo. (N.E.)

117 Como no original. (N.T.)

118 Uma alusão a Leon Levinsky, personagem de The Town and the City inspirado em Allen Ginsberg.

119 “A rejeição do esqueleto/ Mexa seus ossos, vá gemer sozinho – / Vá, vá, mexa seus ossos,/ sozinho./ Não me incomode mais.” (N.T.)

120 De “Stanzas: Written at Night in Radio City”(1949), de Allen Ginsberg. A citação completa é: As so the saints beyond/ cry to men their dead eyes see (Então os santos no além/ gritam para os homens seus olhos mortos veem).

121 You’ve said all that/ of course I’ve said all that./ What do you want?/ I want to be on fire./ Why?/ Because I am inflammable. I/ am serious./ You’ve said all that —/ Of course I’ve said all that./ You don’t know what you want,/ And you say life is not enough./ Life is not enough./ Then what is enough?/ To feel – or I die./ What will you feel?/ Fires./ Then go ahead and burn./ But life is not on fire./ Then die./ Corporeally?/ ———/ Yes. Flippancy

122 Ross Lockridge Jr., autor do romance de sucesso Raintree County, cometeu suicídio por inalação de monóxido de carbono em 1948, aos 33 anos de idade.

123 De “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, de T. S. Eliot: Do I dare to eat a peach? (Será que eu ousaria comer um pêssego?).

124 La Vita Nuova (c. 1292), um poema menos conhecido de Dante.

125 John La Touche (1917-1956), letrista de filmes e musicais da Broadway.

126 Pavel Tchelichev (1898-1957), artista e pintor figurativo russo.

127 Ray “Smitty” foi companheiro de viagem de Red Moultrie no conceito original de On the Road. Anos mais tarde, Kerouac transformou “Ray Smith” em seu alter ego em The Dharma Bums (1958).

128 O primeiro ponto dessa final famosa entre os Brooklyn Dodgers e o New York Yankees só foi marcado no final da nona entrada, quando Tommy Heinrich venceu a partida para os Yankees com um Home Run.

129 Hex, feitiço. (N.T.)

130 Hoax, fraude. (N.T.)

131 Em 6 de setembro de 1949, o veterano da Segunda Guerra Mundial de 28 anos, Howard Unruh, atirou em 26 pessoas de sua vizinhança em Camden, New Jersey, e matou treze delas.

132 St. Moritz, um hotel elegante no Central Park South.

133 Hamlet para Horácio no ato V, cena 2, de Hamlet, de Shakespeare, após a morte de Gertrude, Claudius e Laerte – pouco antes da morte de Hamlet.

134 Uma referência ao capítulo “Telêmaco” de Ulisses, de James Joyce, no qual Stephen Dédalos expõe suas teorias sobre a hereditariedade de Hamlet.

135 Gerard Kerouac era o irmão mais velho de Jack. Ele morreu aos nove anos em 1926.

136 São Caedmon viveu no século 17 e escreveu poemas bíblicos conhecidos como Caedmonian verse.

137 Hippolyte-Adolphe Taine (1828-1893), crítico e historiador francês.

138 Poemas nórdicos do século 12. (N.T.)

139 Jay Landesman (1919-2011), fundador do Neurotica, jornal de poesia feito “por neuróticos, para neuróticos”.

140 I Married a Savage (1949), estrelando a dançarina burlesca Zorita (1915-2001), que fazia um número de dança com uma jiboia, sua marca registrada.

141 Do capítulo “Circe” de Ulisses, de James Joyce.

142 William Congreve (1670-1729), dramaturgo inglês; autor, principalmente, de comédias.

143 Algo semelhante a “branquelo branco”. (N.T.)

144 No original: Or ever that crude I’d be – / That, when life denys of me/ I, in ire’s worst digressing,/ Should of innocence make oppressing. (N.T.)

145 Segue-se uma lista de obras da literatura medieval e da Renascença. Provavelmente Kerouac interessou-se por elas por meio de Epitome of Ancient, Mediaeval, and Modern History (1905), de Carl Ploetz, que estava lendo na época.

146 Tradução livre: “Você devia estar na floresta como um urso velho./ Por que você não está lá?/ Sou uma mulher./ Lá também há ursas./ Ah, garota...” (N.T.)

147 Chad Gavin era um conceito original de personagem para On the Road.

148 Tirésias e Orestes são personagens da mitologia grega: Tirésias é o adivinho cego, e Orestes, o filho de Agamemnon e jovem vingador de seu assassino.

149 Um diálogo similar, gravado e transcrito entre Kerouac e Cassady, está incluído em Visions of Cody (1972).

150 No original, That King e that kind. (N.T.)

151 Dave Garroway (1913-1982) apresentou o programa de variedades produzido em Chicago Dave Garroway at Large antes de tornar-se o primeiro apresentador do Today Show, da NBC, em 1952.

152 Do Prólogo de The Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer: “So priketh hem nature in hir corages/ Thanne longen folke to goon pilgrimages”. Ou, em inglês atual: “So Nature pricks them on to romp and range/ Then do jock go on pilgrimage”.

153 Nunca mais vou dizer algo como isso! (5 DE MAR. DE 50) (N.A.)

154 Cartas do editor ao autor. (N.T)

155 Em sua resenha de The Town and the City, a Newsweek chamou Kerouac de “o melhor e mais promissor dos romancistas cujos primeiros trabalhos foram lançados recentemente”.