Capítulo Quinze
–Vai! — disse Will num sussurro urgente, enquanto se agachava nas sombras da sebe que delimitavam o parque público ao fundo do jardim.
Chester grunhiu com o esforço enquanto punha em movimento o carrinho de mão sobrecarregado e depois serpenteava periclitantemente por entre as árvores e os arbustos. Ao chegar a campo aberto, virou para as valas que estavam a utilizar para despejar o entulho. Dos montes de terra fresca e dos montículos de rocha que já lá estavam depositados, era evidente para Will que o pai tinha utilizado essas valas para a mesma finalidade.
Will manteve-se vigilante, não fosse aparecer qualquer transeunte enquanto Chester despejava rapidamente o carrinho para dentro da vala. Fê-lo dar meia volta com destreza para a viagem de regresso, deixando Will para trás a fim de empurrar lá para dentro quaisquer pedaços grandes de rocha ou torrões de terra e argila.
Mal terminou, Will juntou-se a Chester. Quando estavam a percorrer o já muito batido caminho de volta ao jardim, a roda do velho carrinho começou a guinchar penetrantemente como se estivesse a protestar pelas inúmeras viagens que fora forçado a fazer. O barulho cortou a calma da balsâmica noite de Verão.
Os dois rapazes estacaram abruptamente, olhando em redor para verem se tinham atraído a atenção de alguém nas casas vizinhas.
Tentando recuperar o fôlego, Chester dobrou-se para a frente com as mãos apoiadas nos joelhos enquanto Will se agachava para examinar a roda.
— Vamos ter de olear esta porcaria outra vez.
— Pfu! Achas mesmo que sim? — perguntou Chester num tom sarcástico.
— Acho que tens de carregar com ele — replicou Will, friamente, enquanto se endireitava.
— Tenho mesmo de fazer isso? — gemeu Chester.
— Vá lá, eu ajudo-te — disse Will, agarrando na parte da frente do carrinho.
Carregaram com ele o resto do caminho, resmungando e praguejando entredentes, mas mantendo-se num silêncio absoluto enquanto atravessavam o jardim das traseiras. Avançaram em bicos de pés pela pequena rampa que levava à porta da cave.
— Bom, acho que agora é a minha vez de escavar — gemeu Will quando se deixaram cair exaustos no chão de cimento. Chester não lhe respondeu.
— Sentes-te bem? — perguntou Will.
Chester assentiu, entontecido, e depois olhou para o relógio.
— Acho que são horas de ir para casa.
— Suponho que sim — disse Will enquanto Chester se levantava devagarinho e começava a agarrar nas suas coisas.
Will não o disse, mas estava aliviado por Chester ter resolvido dar o dia por terminado. Estavam os dois mortos de cansaço, ao ponto de conseguir perceber que Chester já estava a cambalear um pouco da fadiga.
— Então, amanhã à mesma hora — disse Will, flexionando os dedos e distendendo os ombros na tentativa de lhes reduzir a rigidez.
— Sim — respondeu Chester numa voz baixa e rouca, sem olhar sequer para Will ao sair da cave, a arrastar os pés, pela porta do jardim.
Todas as tardes, depois da escola, cumpriam este ritual. Will abria cautelosamente a porta do jardim, sem fazer um único som, para Chester entrar. Mudavam de roupa e começavam imediatamente a trabalhar durante duas a três horas seguidas. A escavação era particularmente lenta e tortuosa, não só por causa do espaço no túnel ser limitado e por não poderem deixar que ninguém por cima deles os ouvisse, mas também por só poderem deitar o material escavado no parque a coberto da noite. Ao fim de cada noite, depois de Chester ter ido para casa, Will certificava-se de que o corpo da estante voltava a ser posto e preso no seu lugar e de que o chão era varrido.
Desta vez, tinha uma tarefa adicional; enquanto encharcava o eixo da roda barulhenta do carrinho de mão, interrogava-se sobre quanto ainda faltaria para chegarem ao final do túnel e, já não pela primeira vez, se haveria lá alguma coisa. Estava preocupado com a possibilidade de ficarem sem equipamento; sem a ajuda do pai com os materiais, tinha sido obrigado a recuperar o máximo da madeira de Forty Pits que conseguiu, de forma que, à medida que o túnel por baixo da casa progredia, o outro ia ficando cada vez mais precário.
Mais tarde, quando estava sentado dobrado sobre a mesa da cozinha a comer mais um jantar que já estava completamente gelado, Rebecca apareceu à porta como se tivesse caído do céu. Will sobressaltou-se e engoliu ruidosamente.
— Olha só para o estado em que estás! O teu uniforme está nojento… estás à espera que eu lave tudo outra vez? — perguntou ela, cruzando os braços agressivamente.
— Não, não, a sério que não — respondeu ele, evitando os olhos dela.
— Will, o que é que andas a tramar exactamente? — inquiriu ela.
— Não sei a que é que te estás a referir — respondeu, empurrando para baixo mais outra grande quantidade de comida.
— Tens andado a esgueirar-te para qualquer sítio depois da escola, não tens?
Will encolheu os ombros, fingindo que estava a observar uma pequena fatia seca e encaracolada de carne de vaca que tinha na ponta do garfo.
— Sei muito bem que andas a tramar alguma porque tenho visto aquele boi enorme a cirandar pelo jardim.
— Quem?
— Oh, deixa-te disso, tu e o Chester andam a escavar um túnel num sítio qualquer, não andam?
— Tens razão — confessou Will. Acabou de comer o que tinha na boca e, respirando fundo, tentou mentir o mais convincentemente de que foi capaz. — Lá em cima, ao pé da lixeira da cidade.
— Eu sabia! — anunciou Rebecca, triunfantemente. — Como é que podes sequer pensar em escavar mais um dos teus buracos que não servem para nada numa altura destas?
— Eu também tenho saudades do Papá, sabes? — disse ele, dando uma dentada numa batata assada gelada, — mas não nos vai servir de nada andarmos a choramingar por aí, a sentir pena de nós próprios… como a Mamã.
Rebecca olhou fixa e desconfiadamente para ele, os olhos a chisparem de fúria, e depois deu meia volta e foi-se embora.
Will acabou de comer a refeição gelada, a olhar para o espaço enquanto mastigava vagarosamente cada bocado que enfiava na boca, a ruminar nos acontecimentos do último mês.
Depois, no quarto, agarrou num mapa geológico de Highfield, marcando os pontos onde achava que a casa estava assente e a direcção que calculava que o túnel do pai estava a levar e, já que estava com a mão na massa, a Martineau Square e a casa de Mrs. Tantrumi. Will olhou atentamente e durante muito tempo para o mapa, como se ele fosse um puzzle que fosse capaz de resolver, antes de o pôr de lado e se enfiar na cama. Ao fim de poucos minutos, tinha caído num sono inquieto e intermitente em que sonhou com as pessoas sinistras que o pai descrevera no diário.
No sonho, estava com o uniforme da escola, mas este estava coberto de lama e rasgado nos cotovelos e nos joelhos. Tinha perdido as meias e os sapatos e estava a andar descalço por uma rua comprida e deserta que lhe parecia familiar, embora não conseguisse localizar de onde a conhecia. Enquanto olhava para o céu baixo, que estava cinzento amarelado e parecia não ter forma, remexia ansiosamente no tecido esfarrapado das mangas. Não sabia se estava atrasado para a escola ou para o jantar, mas tinha a certeza de que devia estar num sítio qualquer, ou a fazer qualquer coisa — qualquer coisa vitalmente importante.
Mantinha-se no centro da rua, atento às casas de ambos os lados. Elas erguiam-se agourentas e escuras; não brilhava qualquer luz por trás das janelas cobertas de pó, nem saía fumo de nenhum dos canos pretos, periclitantemente altos e torcidos das chaminés.
Estava a sentir-se profundamente só e perdido quando, muito ao longe, viu uma pessoa a atravessar a rua. Soube instantaneamente que era o pai e o seu coração saltou de alegria. Começou a acenar, mas depois parou ao sentir que os edifícios o estavam a observar. Havia neles uma malevolência misteriosa e assustadora, como se abrigassem uma força maléfica, como uma mola muito enrolada, a conter a respiração e à espera dele.
O medo de Will cresceu até se tornar insuportável e ele começou a correr em direcção ao pai. Tentou chamá-lo, mas a voz era fina e fraca, como se o próprio ar estivesse a engolir-lhe as palavras mal elas saíam dos lábios.
Agora estava a correr a toda a velocidade e, a cada passada, a rua ia-se tornando mais estreita de forma que as casas de ambos os lados se estavam a fechar sobre ele. Conseguia ver claramente que havia figuras ameaçadoramente escondidas nas portas às escuras e que começavam a sair para a rua à medida que ele ia passando por elas.
Louco de medo, tropeçava e deslizava nas pedras escorregadias enquanto as figuras se amontoavam atrás dele em tal número que eram indiscerníveis umas das outras, formando um vasto e único manto de escuridão. Os dedos estendiam-se como farrapos de fumo preto animado, agarrando-o enquanto ele tentava desesperadamente fugir-lhes. Mas as figuras sombrias tinham-no agarrado; estavam a puxá-lo para trás com as gavinhas escuras até ser forçado a ficar completamente imóvel. Ao ver o último vislumbre do pai ao longe, Will soltou um grito silencioso. O manto preto como breu dobrou-se sobre ele; sentiu-se imediatamente leve como uma pena e a cair num poço. Bateu no fundo com um impacto tal que ficou sem respiração e, arquejando para respirar, rolou para ficar de costas, vendo pela primeira vez as caras dos seus perseguidores que se debruçavam sobre ele.
Abriu a boca mas, antes de perceber o que estava a acontecer, esta ficou cheia de terra — conseguia sentir o seu sabor enquanto lhe cobria a língua e as pedras lhe batiam contra os dentes. Estava a ser enterrado vivo — não conseguia respirar.
Sufocado e cheio de vómitos, Will acordou, a boca seca e o corpo a pingar suor frio quando se sentou na cama. Em pânico, procurou atabalhoadamente o interruptor do candeeiro na mesa-de-cabeceira. Com um clique, a tranquilizante luz amarela inundou o quarto com uma normalidade reconfortante enquanto ele via as horas no despertador. Ainda estava a meio da noite. Deixou-se cair outra vez na almofada, com os olhos fixos no tecto, a respirar pesadamente, o corpo ainda a tremer. A recordação da terra a obstruir-lhe a garganta estava tão fresca e viva na sua mente como se tivesse de facto acontecido. E enquanto estava ali deitado, a tentar recuperar a respiração, foi dominado por uma sensação renovada e ainda mais intensa da perda do pai. Por muito que tentasse, não conseguia sacudir aquele vazio esmagador e, por fim, desistiu de tentar fingir que dormia, ficando a olhar para o vazio enquanto a luz fria da madrugada começava a infiltrar-se à volta das margens das cortinas e finalmente entrava no quarto.