Capítulo Dezasseis
As semanas foram passando até que, finalmente, um inspector da Polícia apareceu para falar com Mrs. Burrows sobre o desaparecimento do marido. Vestia uma gabardina azul escura por cima de um fato cinzento claro e falou com muita correcção, ainda que um pouco bruscamente, quando se apresentou a Will e Rebecca pedindo para falar com a mãe deles. Levaram-no até à sala onde ela estava sentada à espera.
Ao entrarem atrás do polícia, contiveram a respiração, pensando que, por qualquer razão, tinham entrado na sala errada. A televisão, aquela chama eterna que brilhava no canto, estava sem som nem imagem e — o que era igualmente espantoso — a sala estava limpa e arrumada. Durante o tempo que Mrs. Burrows levara a sua existência de eremita e nem Will nem Rebecca tinham posto um pé lá dentro, ambos tinham partido do princípio de que a sala tinha degenerado numa tremenda porcaria e imaginavam-na cheia de comida meio consumida, embalagens vazias e pratos e chávenas sujos. Mas não podiam ter estado mais enganados. Agora estava impecável — mas o que era ainda mais assombroso era a própria mãe. Em vez da indumentária desmazelada para ver televisão, um roupão e chinelos, envergava um dos seus melhores vestidos de Verão, tinha arranjado o cabelo e até posto um bocadinho de maquilhagem.
Will ficou a olhar para ela totalmente incrédulo, perguntando para consigo que raio poderia ter provocado esta transformação abrupta. A única coisa que conseguia pensar era que ela estava a imaginar que estava a representar um papel numa das séries de assassínios misteriosos que tanto adorava, mas isso não tornava mais clara a cena que se estava a desenrolar à frente dele.
— Mamã, este é… este é… — balbuciou ele.
— O Inspector Chefe Beatty — ajudou a irmã.
— Faça o favor de entrar — disse Mrs. Burrows, levantando-se da cadeira e sorrindo cortesmente.
— Obrigado, Mrs. Burrows… sei que é uma altura difícil.
— Não, não, de maneira nenhuma — disse Mrs. Burrows com um sorriso resplandecente. — Rebecca, fazes o favor de pôr a chaleira ao lume e fazer uma chávena de chá para todos?
— É muito simpático da sua parte, muito obrigado, minha senhora — disse o DCI13 Beatty, com um ar atrapalhado de pé no meio da sala.
— Faça favor — disse Mrs. Burrows, apontando para o sofá. — Sente-se.
— Will, podes vir ajudar-me — disse Rebecca, agarrando o irmão pelo cotovelo enquanto o tentava levar para a porta.
Ele não se mexeu, ainda pregado ao chão pela visão da mãe que, ao que parecia, era outra vez a mulher que já não era havia anos.
— Ah… sim… Oh, claro… — conseguiu articular.
— Toma açúcar? — perguntou Rebecca ao DCI, ainda a puxar pelo braço do irmão.
— Não, com leite e sem açúcar, obrigado — replicou ele.
— Certo, leite e sem açúcar… e, Mamã, só os dois adoçantes?
A mãe sorriu-lhe e assentiu com a cabeça e depois, voltando-se para Will como se estivesse divertida com o espanto dele:
— E que tal umas bolachas de custarda, Will?
Will despertou do seu transe, deu meia volta e acompanhou Rebecca até à cozinha, onde ficou parado, de boca aberta, a abanar a cabeça incredulamente.
Enquanto Will e Rebecca não estavam na sala, o DCI falou com Mrs. Burrows num tom baixo e sério. Explicou-lhe que tinham andado a fazer tudo o que era possível para localizarem o Dr. Burrows mas, uma vez que não havia nenhuma notícia do seu paradeiro, decidiram alargar a investigação. Isso ira implicar ampliar a divulgação da fotografia do Dr. Burrows e fazer-lhe uma «entrevista mais detalhada», nas palavras do DCI, na esquadra. Também queriam falar com todas as outras pessoas que tivessem tido contacto com o Dr. Burrows no período que antecedera o seu desaparecimento.
— Se não se importasse, gostaria de lhe fazer umas perguntas. Vamos começar pelo emprego do seu marido — disse o DCI, olhando para a porta a interrogar-se sobre quando apareceria o seu chá. — Ele referia-se a alguém do museu em particular?
— Não — respondeu Mrs. Burrows.
— Quero dizer, há lá alguém a quem ele pudesse fazer confidências?
— Sabe para onde foi? — disse Mrs. Burrows, completando-lhe a frase e depois rindo-se friamente. — Não vai ter nenhuma satisfação com essa linha de investigação, lamento dizer-lhe. É um beco sem saída.
O DCI endireitou-se na cadeira, um bocado confuso com a resposta de Mrs. Burrows.
Ela continuou:
— Ele dirige aquilo sozinho; não há mais pessoal. Pode querer interrogar os velhos excêntricos que se dão com ele, mas não fique surpreendido se as memórias deles já não forem o que eram.
— Não? — disse o DCI, com um pequeno sorriso a aparecer-lhe nos cantos da boca enquanto escrevia no bloco de notas.
— Não, a maior parte deles anda pelos 80 anos. E porque é que, se posso perguntar, quer interrogar-me a mim e aos meus filhos? Já disse à agente fardada tudo o que sabia. Não deviam estar a emitir um APB14?
— Um APB? — o DCI sorriu abertamente. — Nós cá não usamos esse termo. Difundimos as emergências pela rádio,…
— E o meu marido não é uma emergência, suponho?
Nesse momento, Will e Rebecca apareceram com o chá e a sala ficou silenciosa enquanto Rebecca pousava o tabuleiro na mesa do café e distribuía as canecas. Will, agarrando um prato de bolachas, também tinha aparecido e, como o DCI não pareceu ter qualquer objecção a que quer ele quer Rebecca ficassem na sala, sentaram-se os dois. O silêncio tornou-se desconfortável. Mrs. Burrows estava a olhar fixa e furiosamente para o polícia, que estava a olhar para o seu chá.
— Acho que estamos a pôr o carro à frente dos bois, Mrs. Burrows. Podemos focar-nos outra vez apenas no seu marido? — disse ele.
— Penso que irá descobrir que nós estamos todos muito focados nele. É com vocês que estou preocupada — disse Mrs. Burrows, abruptamente.
— Mrs. Burrows, a senhora tem de compreender que algumas pessoas não… — começou o DCI — não querem ser encontradas. Querem desaparecer porque, se calhar, a vida e as suas tensões se tornaram demasiadamente difíceis de enfrentar.
— Demasiado difíceis de enfrentar? — ecoou Mrs. Burrows, furiosamente.
— Sim, temos de considerar essa possibilidade.
— O meu marido não conseguia aguentar a tensão? Que tensão, exactamente? O problema é que ele nunca teve tensão arterial, ou iniciativa, já agora.
— Mrs. B… — o DCI tentou interrompê-la, olhando impotentemente para Will e Rebecca, que estavam ambos a olhar dele para a mãe e da mãe para ele, como se fossem espectadores de uma partida de ténis particularmente violenta.
— Não pense que eu não sei que a maior parte dos assassínios são cometidos por membros da família — proclamou a mãe deles.
— Mrs. B…
— É por isso que nos querem interrogar na esquadra, não é? Para descobrirem se fomos nós que o fizemos.
— Mrs. Burrows — recomeçou o DCI calmamente, — ninguém está a sugerir que foi cometido qualquer homicídio. Acha que podemos recomeçar e ver se, desta vez, começamos com o pé direito? — propôs ele destemidamente, tentando recuperar o controlo da situação.
— Desculpe, sei que está apenas a fazer o seu trabalho — disse Mrs. Burrows numa voz mais calma e depois bebeu um gole de chá.
O DCI assentiu com a cabeça, grato por ela ter parado com a sua tirada, e inspirou fundo enquanto olhava para o bloco de notas.
— Sei que é uma coisa em que é difícil pensar — disse ele, — mas o seu marido tinha alguns inimigos? Talvez dos seus negócios?
Ao ouvir isto, para grande surpresa de Will, Mrs. Burrows atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada sonora. O DCI murmurou qualquer coisa sobre considerar aquilo como um «não» enquanto escrevinhava no bloco de notas preto. Parecia ter recuperado parte da sua compostura.
— Tenho de fazer estas perguntas — disse o DCI, olhando directamente para Mrs. Burrows. — Sabe se ele alguma vez bebeu excessivamente ou tomou drogas?
Mrs. Burrows soltou mais outra enorme gargalhada.
— Ele? — disse ela. — Deve estar a brincar!
— Certo. Então o que é que ele costumava fazer no seu tempo livre? — perguntou o DCI num tom calmo, fazendo tudo o que podia para acabar com o interrogatório o mais depressa possível. — Tinha alguns passatempos?
Rebecca deitou imediatamente uma olhadela a Will.
— Ele costumava fazer escavações… escavações arqueológicas — respondeu Mrs. Burrows.
— Oh, sim. — O DCI voltou-se para Will. — Segundo sei, tu costumavas ajudá-lo, não é assim, filho? — Will assentiu com a cabeça. — E onde é que faziam essas escavações todas?
Will aclarou a garganta e olhou para a mãe e depois para o DCI que estava à espera, segurando expectantemente na caneta, de uma resposta.
— Bem, em todo o lado, na verdade — disse Will.— Nos arredores da terra, nas lixeiras e sítios desses.
— Oh, eu julgava que eram coisas a sério — disse o DCI.
— Eram escavações a sério — replicou Will com firmeza. — Uma vez encontrámos o local de uma vila romana, mas do que andávamos realmente à procura era de coisas dos séculos XVIII e XIX.
— E qual era a extensão… quero dizer, qual era a profundidade dos buracos que faziam?
— Oh, não eram mais do que umas covas — replicou Will evasivamente, não querendo que ele continuasse com aquela linha de interrogatório.
— E estavam envolvidos numa dessas actividades por ocasião do seu desaparecimento?
— Não, não estávamos — respondeu Will, completamente ciente dos olhos de Rebecca a fulminarem-no.
— Tens a certeza de que ele não andava a trabalhar em qualquer coisa, se calhar sem tu saberes?
— Não, não creio que estivesse.
— Muito bem — disse o DCI, guardando o bloco de notas. — É tudo por agora.
No dia seguinte, Will e Chester não ficaram muito tempo ao pé da escola depois de as aulas acabarem. Viram Speed e um dos seus fiéis capangas, Bloggsy, a mandriarem a uma curta distância do outro lado dos portões. Speed estava a olhar para eles, encostado às grades com as mãos enfiadas nas algibeiras, enquanto Bloggsy, um especimenzinho desagradável com cabelo ruivo frisado, que lhe dava à cabeça o aspecto de uma almofada rebentada, estava a divertir-se imenso a atirar pedras pequeninas, que tirava dos bolsos da parka, a todas as raparigas que calhavam passar ao seu alcance. Isto dava origem a guinchos e a pragas indignadas, o que fazia com que Bloggsy se risse ruidosamente de prazer demoníaco.
— Acho que ele está à procura de uma desforra — disse Will, olhando de relance para Speed que se pôs a olhar fixamente para ele até Chester lhe atrair o olhar.
Nessa altura, Speed voltou-lhes as costas com desprezo, murmurando qualquer coisa para Bloggsy, que se limitou a sorrir escarninhamente na direcção deles e a soltar uma gargalhada desagradável e zombateira.
— Dois imbecis — resmungou Chester quando ele e Will se foram embora, decidindo atalhar caminho até casa.
Deixando para trás a escola, um edifício moderno, baixo e amplo, de tijolo amarelo e vidro, atravessaram a estrada descontraidamente e entraram no bairro social adjacente. Construído nos anos 70, o bairro era conhecido localmente por Roach City15, por razões óbvias, e os edifícios infestados que faziam parte do bairro estavam em permanente mau estado, com muitos dos andares desocupados ou ardidos. Isto, por si só, não causava qualquer apreensão aos dois rapazes, mas o problema com aquele caminho era que os levava a atravessar o território dos Click, que faziam com que Speed e o seu bando parecessem umas meninas escuteiras.
Enquanto atravessavam o bairro, lado a lado, com os raios fracos do Sol a cintilar nos vidros partidos no macadame e nas sarjetas, Will afrouxou o passo quase imperceptivelmente, mas o suficiente para Chester se dar conta.
— O que é que se passa?
— Não sei — disse Will, olhando para um lado e para o outro da rua e espreitando apreensivamente para uma rua lateral ao passar.
— Vá lá, diz-me — insistiu Chester, olhando rapidamente em volta. — Não me apetece nada ser assaltado aqui.
— É só uma sensação, não é nada — insistiu Will.
— O Speed pôs-te paranóico, não pôs? — replicou Chester com um sorriso mas, mesmo assim, apressou o passo, forçando Will a fazer o mesmo.
Quando deixaram o bairro para trás, voltaram a um passo mais descontraído. Depressa chegaram ao princípio da High Street, que era demarcada pelo museu. Tal como fazia todos os fins de tarde, Will olhou para lá com a esperança vã de as luzes estarem acesas, as portas abertas e o pai outra vez de serviço. Will só queria que tudo voltasse ao normal — fosse lá isso o que fosse — mas, mais uma vez, o museu estava fechado, as janelas às escuras e com um ar pouco amigável. As autoridades locais tinham evidentemente resolvido que era mais barato mantê-lo simplesmente fechado do que procurar um substituto temporário para o Dr. Burrows.
Will olhou para o céu; estavam a começar a juntar-se nuvens pesadas que tapavam o Sol.
— Esta noite deve correr bem — disse ele, sentindo-se mais animado. — Está a ficar escuro mais cedo, por isso não vamos ter de esperar para começar a despejar.
Chester tinha começado a discursar sobre como os procedimentos se poderiam tornar muito mais rápidos se pudessem dispensar todos aqueles subterfúgios de capa e espada, quando Will resmungou qualquer coisa entredentes.
— Não percebi essa, Will.
— Disse: não olhes agora, mas acho que vem alguém a seguir-nos.
— Tu quê? — replicou Chester e, incapaz de se conter, voltou-se imediatamente para olhar para trás.
— Chester, grande burro! — refilou Will.
E, de facto, uns 20 metros atrás deles, estava um homem baixo e robusto, com um chapéu de feltro, óculos escuros e um sobretudo tipo tenda que lhe chegava quase até aos tornozelos. Tinha a cabeça virada na direcção deles, embora fosse difícil dizer se estava realmente a olhar para eles.
— Merda! — murmurou Chester. — Acho que tens razão. É igual àqueles que o teu pai descreveu no diário.
Apesar de Will lhe ter dito para não olhar para o homem, Chester não conseguiu deixar de espreitar para trás para o ver outra vez.
— Um «homem de boné»? — disse Will, com um misto de espanto e apreensão.
— Mas ele não anda atrás de nós, pois não? — perguntou Chester. — Porque é que havia de andar?
— Vamos abrandar um bocadinho e ver o que ele faz — sugeriu Will.
Quando reduziram a velocidade, o homem misterioso fez o mesmo.
— Certo — disse Will, — e se atravessássemos a rua?
Mais uma vez, o homem imitou-os e quando eles voltaram a acelerar o passo, aumentou a velocidade para manter a distância entre eles.
— Está mesmo a seguir-nos — disse Chester, o pânico audível na sua voz pela primeira vez. — Mas porquê? O que é que ele quer? Não estou a gostar disto… acho que devíamos virar na primeira esquina e pisgar-nos a toda a mecha.
— Não sei — disse Will, muito concentrado nos seus pensamentos. — Acho que devíamos confrontá-lo.
— Deves estar a brincar! O teu pai desapareceu da face da Terra pouco depois de ter visto estas pessoas e, tanto quanto sabemos, este homem pode ter sido o responsável. Pode fazer parte do bando, ou qualquer coisa assim. Eu digo que devemos fugir daqui e chamar a polícia. Ou arranjar ajuda de alguém.
Ficaram calados durante uns instantes enquanto olhavam em redor.
— Não, tenho uma ideia melhor. E se virássemos o feitiço contra o feiticeiro? Se o encurralássemos? — disse Will. — Separamo-nos, ele só pode seguir um de nós e, quando o fizer, o outro vem por trás dele e…
— E o quê?
— Como o movimento de uma pinça: aproximamo-nos sorrateiramente por trás e prendemo-lo.
Will estava a acelerar o passo agora que o plano de acção se estava a definir na sua cabeça.
— Ele pode ser perigoso, completamente tarado, não sabemos. E com o que é que o vamos agarrar? Com as mochilas da escola?
— Ora, nós somos dois e ele é só um — disse Will quando as lojas de High Street começaram a aparecer mais à frente. — Eu distraio-o enquanto tu lhe fazes uma placagem à râguebi. És capaz de fazer isso, não és?
— Oh, bestial, obrigado — disse Chester, abanando a cabeça. — Ele é enorme, gaita… vai fazer-me em picado!
Will olhou para os olhos de Chester e sorriu maliciosamente.
— Está bem, está bem — concordou Chester, soltando um suspiro. — As coisas que eu faço — continuou, enquanto olhava rapidamente para trás, preparando-se para atravessar a rua.
— Oaah! Esquece! — disse Will. — Acho que eles foram mais rápidos do que nós!
— Eles? — arquejou Chester, voltando para junto do amigo. — O que é que queres dizer com essa do eles? — perguntou, seguindo o olhar de Will até a um ponto mais à frente da rua.
Ali, à frente deles, uns 20 passos adiante, estava outro dos homens. Era quase idêntico ao primeiro, excepto por trazer um boné puxado para a testa de modo que os óculos escuros estavam por baixo da pala. Também trazia um casaco volumoso que se agitava suavemente com o vento enquanto ele se deixava estar parado no meio do passeio.
Agora não havia a menor dúvida na cabeça de Will de que aqueles dois homens andavam no encalço deles.
Quando ele e Chester se aproximaram das primeiras lojas, pararam e olharam em redor. No passeio do outro lado, duas senhoras velhas conversavam uma com a outra enquanto se deslocavam rapidamente, empurrando os seus carrinhos com cestos de verga, cujas rodas guinchavam no pavimento. Uma delas arrastava atrás de si um recalcitrante terrier escocês, enfiado num casaco de cão aos quadrados. À parte isso, só se viam umas pessoas ao longe.
Tinham as cabeças num turbilhão, cheias de ideias como a de gritarem por socorro ou de mandarem parar um carro se calhasse algum passar por ali, quando o homem da frente começou a andar na direcção deles. Ao verem os dois homens a aproximarem-se, perceberam que estavam a ficar sem opções muito rapidamente.
— Isto é demasiado esquisito, estamos completamente lixados… mas que diabo, quem são estes gajos? — perguntou Chester, as palavras a misturarem-se umas com as outras, a olhar por cima do ombro para o homem com o chapéu de feltro.
À medida que o homem avançava na direcção deles, a batida forte das botas no passeio parecia a de um bate-estacas.
— Algumas ideias brilhantes? — perguntou Chester, desesperado.
— Sim, ouve, atravessamos a rua a correr, em direcção ao do boné, fazemos uma finta para a direita, depois cortamos para a esquerda e enfiamo-nos no Clarke’s. Percebeste? — perguntou Will, ofegante, enquanto o homem do boné à frente deles se ia aproximando cada vez mais.
Chester não tinha a mais pequena ideia do que ele estava a propor mas, naquelas circunstâncias, estava disposto a concordar com tudo.
Clarke Bros era a mercearia mais importante da High Street. Gerida por dois irmãos conhecidos localmente por «Junior» e «Middling», a loja tinha um toldo de riscas vivas e umas bancas, imaculadamente arranjadas, de fruta e vegetais dos dois lados da porta. Agora que a luz se começava a desvanecer, o clarão que brotava das montras da loja atraía-os convidativamente, como um farol. O homem do boné foi apanhado pelo seu brilho, a sua forma ampla e musculosa a bloquear quase toda a largura do passeio.
— Agora! — gritou Will, e os dois precipitaram-se para a rua.
Os dois homens correram para interceptar os rapazes, que corriam pelo macadame como duas lebres, com as mochilas a saltar loucamente nas costas. Os homens estavam a deslocar-se mais depressa do que quer Will quer Chester tinham previsto e o plano depressa deu para o torto, tornando-se num jogo da apanhada caótico enquanto os dois rapazes se esquivavam e corriam por entre os homens desajeitados que os tentavam agarrar com as enormes mãos estendidas.
Will guinchou quando um dos homens o agarrou pela parte de trás do pescoço. Nessa altura, mais por acidente do que propositadamente, Chester chocou em cheio contra o homem. O impacto fez saltar os óculos escuros do homem, revelando umas pupilas brilhantes que cintilavam diabolicamente como duas pérolas negras por baixo da aba do chapéu. Quando ele se voltou, surpreendido, Will aproveitou a oportunidade para fugir, empurrando o peito do homem com as duas mãos. A gola do casaco de Will soltou-se com um rasgão violento quando ele o fez.
O homem, momentaneamente distraído pelo choque com Chester, rosnou e virou-se novamente para Will. Deitando fora a gola solta, atirou-se para a frente num esforço renovado para o agarrar.
Num pânico cego, Chester, com a cabeça baixa e os ombros contraídos, e Will, meio a cair e meio a girar como um dervixe descontrolado, conseguiram chegar à porta do Clarke´s no preciso momento em que o homem com o chapéu de feltro se lançava para a frente, esticava o braço numa última tentativa para os agarrar e falhava.
O ímpeto de Will e Chester fê-los passar a porta, colados um ao outro entre os umbrais, enquanto a campainha por cima da porta soava como um dançarino de morris16 enlouquecido. Acabaram no chão da loja, num monte confuso, e Chester, caindo em si, virou-se de imediato e fechou a porta com um pontapé, ficando a segurá-la com os dois pés.
— Rapazes, rapazes, rapazes! — disse Mr. Clarke Junior, baloiçando perigosamente num escadote enquanto compunha uma exposição de bonecos de milho numa prateleira. — Que pandemónio é este? Um repentino e desesperado desejo pela minha fruta exótica?
— Ah… não propriamente — respondeu Will, tentando recuperar o fôlego enquanto se levantava do chão e fazia uma tentativa para agir naturalmente, apesar de Chester estar agora de pé, algo deselegantemente com o ombro a empurrar a porta atrás de si.
Nesse momento, Mr. Clarke Middling levantou-se de detrás do balcão como um periscópio humano.
— O que foi esse estardalhaço horrível? — perguntou, agarrando papéis e recibos com as duas mãos.
— Nada com que tenhas de te preocupar, meu caro — disse Mr. Clarke Junior, sorrindo-lhe. — Não te distraias da tua papelada por nossa causa. É apenas um par de rufias à procura de uma fruta muito especial, aposto.
— Bem, espero que não queiram kumquats17, já esgotámos os kumquats — disse Mr. Clarke Middling num tom inflexível, enquanto voltava a agachar-se devagarinho debaixo do balcão.
— Então deixa os kumquats em paz — disse Mr. Clarke Junior a rir numa voz cadenciada, fazendo com que Mr. Clarke Middling soltasse um gemido atrás do balcão.
— Não liguem ao Middling; ele fica sempre enervado quando está a tratar da contabilidade. Papel, papel por todo o lado e nem uma gota de tinta — declamou Mr. Clarke Junior, adoptando uma pose teatral perante um púbico imaginário.
Os irmãos Clarke eram uma instituição local. Herdaram o negócio do pai, tal como ele o tinha herdado do pai. Tanto quanto se sabia, provavelmente já havia um Clarke neste ramo de negócio aquando da invasão romana, que vendia nabos ou quaisquer outros vegetais que estivessem na moda naquela época. Mr. Clarke
Junior andava na casa dos 40, uma personagem espalhafatosa com uma queda por horrorosos blazers enfeitados, que mandava fazer a um alfaiate da terra. Riscas estonteantes em tons de amarelo -limão, cor-de-rosa arroxeado e azul-bebé dançavam por entre as mesas de tomates sensatamente vermelhos e os verdes sóbrios e honestos das couves. Com a sua boa disposição contagiante e o seu aparentemente infindável repertório de ditos espirituosos e trocadilhos, era muitíssimo apreciado pelas senhoras do burgo, tanto novas como velhas, e, no entanto, por muito estranho que fosse, tinha permanecido solteiro.
Por outro lado, Mr. Clarke Middling, o irmão mais velho, não podia ser mais diferente. Um tradicionalista ferrenho, desaprovava a exuberância do irmão, tanto na aparência como nos modos, insistindo no código de vestuário consagrado pelo tempo: o velho guarda-pó que os seus antepassados tinham usado. Era penosamente asseado e meticuloso; a roupa poderia ter sido engomada enquanto ele a tinha vestida, tal era a frescura do guarda-pó castanho-cogumelo, da camisa branca e da gravata preta. Os sapatos estavam tão impecavelmente engraxados e o cabelo, curto na nuca e nos lados ao estilo de um recruta recente, estava tão alisado com óleo e com um brilho tão intenso que, por trás, era difícil dizer qual era o lado que ele tinha para cima.
Os dois irmãos, no interior verde sombrio da loja, pareciam uma lagarta e uma borboleta presas num casulo. E, com as suas brigas constantes, o brincalhão frívolo e o empertigado do irmão pareciam um número de variedades num ensaio permanente para uma representação que nunca iria ter lugar.
— Com medo de uma grande corrida às minhas lindas groselhas, não é verdade? — perguntou Mr. Clarke Junior, com uma pronúncia galesa fingida, e sorriu descaradamente para Chester, que, ainda encostado à porta, não fez nenhum esforço para responder, como se tivesse ficado sem palavras com aquela situação toda.
— Ah, o tipo forte e silencioso — ceceou Mr. Clarke Junior enquanto descia do escadote a dançar e rodopiava num floreado para ficar cara a cara com Will.
— É o jovem Master Burrows, não é? — perguntou ele, com uma expressão subitamente séria. — Lamento imenso o que ouvi sobre o seu pai. Tem estado nos nossos pensamentos e nas nossas orações — continuou, pousando suavemente a mão no peito. — Como é que a sua mãe se está a aguentar? E aquela sua deliciosa irmã…
— Bem, bem, estão as duas bem — respondeu Will, distraidamente.
— Ela é uma freguesa regular, sabe, uma freguesa muito apreciada.
— Sim — disse Will um bocado depressa demais, enquanto tentava prestar atenção a Mr. Clarke Junior ao mesmo tempo que mantinha debaixo de olho a porta onde Chester se mantinha firmemente encostado como se a sua vida dependesse disso.
— Uma freguesa muitíssimo estimada — ecoou o invisível Mr. Clarke Middling atrás do balcão, acompanhado pelo ruge-ruge dos papéis.
Mr. Clarke Junior assentiu com a cabeça e sorriu.
— De facto, de faaacto. Agora instalem-se ali enquanto vou buscar uma coisinha para levar para casa para a sua mãe e para a sua irmã.
Antes que Will pudesse pronunciar uma palavra, já tinha rodado graciosamente nos calcanhares e entrado, praticamente a fazer um sapateado, no armazém nas traseiras da loja. Will aproveitou a oportunidade para se dirigir à janela para ver onde paravam os seus perseguidores e recuou, surpreendido.
— Ainda ali estão!! — exclamou.
Os dois homens estavam parados no passeio, cada um em frente da sua montra, a espreitar para dentro por cima das bancas de fruta e vegetais. Lá fora já estava muito escuro e as duas caras brilhavam como fantasmagóricos balões brancos sob a luz do interior do estabelecimento. Os dois continuavam com os impenetráveis óculos escuros e Will conseguia distinguir os chapéus bizarros e o brilho ceroso dos casacos compridos com as invulgares capas nos ombros. Os rostos angulosos de traços vincados e as bocas contraídas pareciam inflexíveis e brutais.
Chester disse em voz baixa e tensa:
— Pede-lhes para chamarem a Polícia.
Apontou com a cabeça para o balcão onde conseguiam ouvir Mr. Clarke Middling a resmungar enquanto batia com tanta força num agrafador que parecia que estava a usar um martelo pneumático.
Nesse preciso momento, Mr. Clarke Junior regressou muito alvoroçado, carregando um cesto cheio até cima com uma impressionante colecção de fruta, e um grande laço cor-de-rosa atado na pega. Ofereceu-o a Will com as duas mãos estendidas, como se estivesse prestes a iniciar uma ária.
— Para a sua mãe e irmã e, claro, para si, meu velho. Uma coisinha da minha parte e ali do velho maluco, como prova da nossa simpatia pela vossa difícil situação.
— É melhor ser um velho maluco do que um presunçoso — disse a voz abafada de Mr. Clarke Middling.
Apontando para a janela, Will abriu a boca para explicar o que se passava com os homens misteriosos.
— A costa está livre — disse Chester em voz alta.
— O que é que se passa, querido rapaz? — perguntou Mr. Clarke Junior, olhando de Will para Chester, que estava agora à frente de uma das montras a espreitar para um lado e para o outro da rua.
— Que é isso de a costa estar livre? — perguntou Mr. Clarke Middling, saltando como um boneco de molas enlouquecido.
— Papéis! — ordenou Mr. Clarke Junior na voz de uma mestre-escola zangada, mas o irmão continuou levantado atrás do balcão.
— Aah… são só uns miúdos — mentiu Will. — Estávamos a ser perseguidos.
— Os rapazes serão sempre rapazes — disse Mr. Clarke Junior, soltando uma risadinha. — Agora faça o favor de dar os meus cumprimentos à sua querida irmã, Miss Rebecca. Sabe, ela tem realmente olho para os bons produtos. Uma jovem talentosa.
— Não me esquecerei — assentiu Will, forçando um sorriso. — E muito obrigado por isto, Mr. Clarke.
— Oh, não tem importância — respondeu ele.
— Esperamos sinceramente que o seu pai volte para casa depressa — disse Mr. Clarke Middling num tom pesaroso. — Não se devem preocupar; estas coisas acontecem de vez em quando.
— Bem… é como aquele rapaz Gregson… uma coisa terrível essa — disse Mr. Clarke Junior com olhar entendido e um suspiro. — E depois houve a família Watkins no ano passado.
Will e Chester observaram-no enquanto parecia focar-se num ponto algures entre as filas de curgetes e de pepinos.
— Também eram umas pessoas tão simpáticas. Nunca mais ninguém os viu desde que…
— Não é nada a mesma coisa, não é mesmo nada parecido — Mr. Clarke Middling interrompeu o irmão abruptamente, e depois tossicou pouco à vontade. — Não me parece que seja a altura ou o lugar para falarmos desse assunto, Junior. Um bocadinho insensível, não te parece, dada a situação?
Mas Junior não estava a ouvir; estava completamente lançado e não podia ser parado. Com os braços cruzados e a cabeça inclinada para um lado, assumiu a aura de uma das velhas queridas com quem costumava andar na má língua.
— Foi tal e qual como naquela história do Marie Celeste18, quando a polícia lá chegou. Camas vazias, os uniformes dos rapazes preparados para a escola no dia seguinte, mas não os conseguiram encontrar em lado nenhum, a nenhum deles. Mrs. W. tinha comprado meio quilo do nosso feijão verde nesse dia, se bem me lembro, e dois melões. Seja como for, não havia sinais deles em lado nenhum.
— O quê… dos melões? — perguntou Mr. Clarke, num tom muito sério.
— Não, a família, sua salsicha estúpida — respondeu Mr. Clarke Junior, revirando os olhos.
No silêncio que se seguiu, Will desviou o olhar de Mr. Clarke Junior para Mr. Clarke Middling, que deitava olhares assassinos ao melancólico irmão. Estava a começar a sentir-se como Alice se devia ter sentido quando passou para o outro lado do espelho.
— Oh, hum, agora é melhor irem-se embora — proclamou Mr. Clarke Junior e, com um último olhar de simpatia para Will, voltou a subir o escadote aos saltinhos e a cantar: Beterraba para mim, mon petit chou…
Mr. Clarke Middling tinha voltado a desaparecer e o barulho dos papéis recomeçou, acompanhado pelo zumbido de uma máquina de calcular antiquada. Cautelosamente, Will e Chester abriram uma nesga da porta e espreitaram nervosamente para a rua.
— Alguma coisa? — perguntou Chester.
Will saiu para o passeio à frente da loja.
— Nada — replicou. — Não há sinal deles.
— Devíamos ter chamado a Polícia, como sabes.
— E dizíamos-lhes o quê? — perguntou Will. — Que fomos perseguidos por dois loucos com óculos escuros e chapéus idiotas e que eles se limitaram a desaparecer?
— Sim, exactamente isso — respondeu Chester, irritado. — Quem sabe o que é que eles queriam? — De repente, levantou a cabeça quando lhe ocorreu uma ideia. — E se eles eram do gang que levou o teu pai?
— Esquece — não sabemos isso.
— Mas a Polícia… — insistiu Chester.
— Queres mesmo passar por essa trabalheira toda quando temos tanto que fazer? — interrompeu Will abruptamente, varrendo a High Street com os olhos e sentindo-se mais à vontade agora que já havia mais gente. — Provavelmente, a Polícia ia pensar que não passávamos de dois miúdos no gozo. Não temos testemunhas.
— Talvez — concordou Chester, de má vontade, enquanto se começavam a dirigir para a casa dos Burrows.
— O que não faltam é taradinhos por aqui — disse ele, olhando para trás, para a loja dos Clarkes. — Disso não restam dúvidas.
— De qualquer das maneiras, agora estamos a salvo. Eles foram-se embora e, se voltarem, estaremos preparados — disse Will, cheio de confiança.
Por estranho que fosse, o incidente não o tinha feito mudar de ideias. Na opinião dele, tinha tido o efeito contrário; era a confirmação de que o pai andava metido em alguma coisa e agora ele estava no caminho certo. Embora não mencionasse nada disto a Chester, a sua decisão de continuar com o túnel e as investigações estava ainda mais firme.
Will tinha começado a depenicar as uvas no cesto garrido, e o laço cor-de-rosa, agora desfeito, ondulava atrás dele com a brisa. Chester parecia ter ultrapassado as suas dúvidas e estava a olhar esperançosamente para o cesto, a mão estendida para se servir.
— Então, queres dar o fora ou vais continuar a ajudar-me? — perguntou-lhe Will num tom trocista, afastando o cesto para longe dele.
— Oh, está bem. Anda, dá-me uma banana — replicou o amigo com um sorriso.
13 Detective Chief Inspector. (N. da T.)
14 All Points Bulletin – Termo americano para o boletim informativo difundido por todas as agências policiais sobre um suspeito, ou qualquer pessoa que a Polícia pretenda contactar. No Reino Unido há um sistema semelhante, designado por All Ports Warning (Aviso a todos os portos e aeroportos). (N. da T.)
15 Roach – termo informal para barata. (N. da T.)
16 Morris dancing – dança tradicional inglesa, típica da zona de Cotswold, normalmente interpretada por homens com trajes brancos ornamentados com pequenos sinos. Esta dança muito antiga já se espalhou para várias partes do mundo. (N. da T.)
17 17 Fruto exótico parecido com uma laranja muito pequenina. (N. da T.)
18 Bergantim do século XIX, encontrado à deriva perto da costa de Portugal, em 1872. Não havia ninguém a bordo e ainda hoje se procura uma explicação para este desaparecimento. É considerado um dos navios-fantasma mais famosos. (N. da T.)