Capítulo Vinte

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Aporta abriu-se com um discreto gemido metálico. Will e Chester pararam por uns instantes, a adrenalina a correr-lhes pelas veias enquanto apontavam as luzes para o espaço escuro à sua frente. Estavam ambos preparados para darem meia volta e fugirem num instante, mas, não vendo nem ouvindo nada, passaram cuidadosamente por cima do rebordo de metal na base da moldura da porta, contendo a respiração e com os corações a bater muito alto nos ouvidos.

Os raios das lanternas vacilaram pelo interior. Estavam numa câmara quase cilíndrica, que não tinha mais de dez metros de comprimento, com sulcos pronunciados ao longo do comprimento. À frente estava outra porta, idêntica àquela por onde eles tinham entrado, exceptuando um pequeno painel de vidro enevoado dentro de uma moldura presa com rebites, que lembrava uma vigia.

— Parece uma espécie de câmara de compressão — observou Will, enquanto avançava mais para dentro da câmara, as botas a ressoar no pavimento de ferro ranhurado.

— Despacha-te — disse desnecessariamente a Chester, que o tinha seguido e, sem que lhe fosse pedido, estava a fechar a porta atrás deles, girando os manípulos para que ficassem novamente fechados.

— É melhor deixarmos tudo como encontrámos — disse Chester. — Não vá o diabo tecê-las.

Depois de ter tentado espreitar sem sucesso através da vigia opaca, Will abriu os três manípulos e empurrou a porta para fora. Houve um pequeno silvo, como o do ar a sair da válvula de um pneu. Chester lançou um olhar interrogativo a Will, que ele ignorou enquanto se aventurava a entrar no compartimento curto. Com cerca de três metros quadrados, tinha paredes como a quilha de um barco, uma velha manta de retalhos de placas de metal ferrugento presas umas às outras com soldaduras toscas.

— Há aqui um número — observou Chester ao olhar para os manípulos da segunda porta.

Um grande 5, amarelado e a descascar-se, estava pintado na porta por baixo da vigia suja.

Quando avançaram cautelosamente, as luzes das lanternas iluminaram os primeiros detalhes de qualquer coisa que estava à frente deles. Era uma estrutura de barras metálicas entrelaçadas, que ia do chão ao tecto, bloqueando completamente o caminho. A luz de Will projectou sombras trémulas nas superfícies por trás dela, enquanto ele empurrava a estrutura com a mão. Era sólida e fixa. Guardou a lanterna e, agarrando no metal húmido, aproximou-se o mais que conseguiu.

— Vejo as paredes e acho que consigo ver o tecto, mas… — disse ele, girando a cabeça de um lado para o outro — mas o chão está…

— Lá muito em baixo — interrompeu Chester, a pala do capacete duro a arranhar a estrutura enquanto tentava ver melhor.

— Posso afirmar que não há nada remotamente parecido com isto nos planos da cidade. Achas que eu teria deixado passar uma coisa como esta? — disse Will, como se quisesse dissipar qualquer dúvida pessoal de poder ter de facto deixado escapar algo tão notável nos mapas.

— Não, espera, Will! Olha para os cabos! — disse Chester muito alto enquanto observava os cabos grossos e pesados entrelaçados na estrutura. — É o poço de um elevador! — acrescentou entusiasticamente, sentindo-se repentinamente muito animado pela ideia de que, longe de ser qualquer coisa inexplicável e ameaçadora, aquilo que tinham encontrado era reconhecível e familiar. Era o poço de um elevador. Pela primeira vez desde que tinham abandonado a relativa normalidade da cave dos Burrows, sentiu-se seguro, imaginando que o poço devia descer até algo tão vulgar como um túnel de caminho de ferro. Até se atreveu a permitir-se pensar que isto podia significar o fim daquela expedição maluca.

Olhou para baixo, para a direita, localizou uma pega e, puxando por ela, fez deslizar o painel horizontalmente. Guinchou horrivelmente nas calhas. Will deu um passo para trás, surpreendido: na sua pressa, não tinha reparado que a barreira era de facto uma grade deslizante e agora observou atentamente enquanto ela se abria à frente deles. Quando Chester a puxou toda para o lado, ficaram com uma visão desobstruída do poço escuro. As lanternas dos capacetes saltitavam nos cabos grossos e untados que desciam do meio do poço para a escuridão por baixo deles, para o abismo.

— É uma descida e peras — disse Chester, estremecendo e agarrando com força a grade do velho elevador enquanto o seu olhar era engolido pela profundidade vertiginosa.

Will desviou a atenção do poço e começou a olhar em volta da câmara de ferro atrás deles. E, presa à parede ao lado dele, descobriu uma caixa pequena de madeira escura com um botão de latão coberto de verdete a sair do centro.

— Sim! — gritou triunfantemente e, sem dizer uma palavra a Chester, carregou no botão, que lhe pareceu gorduroso por baixo do dedo.

Não aconteceu nada.

Voltou a experimentar.

E, mais uma vez, nada.

— Chester, fecha a grade, fecha-a! — gritou, incapaz de conter a excitação.

Chester fechou-a ruidosamente e Will voltou a carregar no botão. Houve uma vibração distante e um estrépito que reverberou do fundo do poço. E então os cabos estremeceram, ganhando vida, e começaram a mover-se, com o poço a encher-se com um gemido alto e lamuriento da maquinaria, que não devia estar muito longe. Ficaram a ouvir os ruídos do elevador que se aproximava.

— Aposto que é o caminho para uma estação do metro — disse Chester, voltando-se para Will com uma expressão expectante na cara.

Will franziu o sobrolho, aborrecido.

— Nem pensar. Já te disse que não há nada aqui. Isto é uma coisa completamente diferente.

O optimismo de Chester evaporou-se e a cara ensombrou-se enquanto se aproximavam outra vez da grade do elevador, encostando as cabeças nela para que a luz das lâmpadas dos capacetes incidissem no poço escuro.

— Bem, se não sabemos o que é… — disse Chester — ainda temos tempo de voltar para trás.

— Ora, deixa-te disso. Não podemos desistir agora. Agora não.

Ficaram os dois em silêncio à espera do elevador durante uns minutos até que Chester voltou a falar.

— E se vier alguém lá dentro? — disse ele, afastando-se da grade e voltando a entrar em pânico.

Mas Will não conseguia afastar-se.

— Espera, ainda não consigo… está muito escuro… Espera! Já estou a vê-lo, já estou a vê-lo! É parecido com a gaiola dos elevadores dos mineiros!

Olhando atentamente enquanto o elevador se aproximava pesadamente deles, Will descobriu que conseguia ver através da grelha que formava o tecto. Virou-se para Chester.

— Acalma-te, sim? Não há ninguém lá dentro.

— Não estava à espera de que houvesse — respondeu Chester, na defensiva.

— Oh, claro, meu grande maricas.

Certificando-se de que estava vazio, Chester abanou a cabeça e suspirou de alívio quando o elevador chegou ao nível deles. Estremeceu quando parou ruidosamente e Will não perdeu tempo a abrir a grade e a dar uns passos para dentro. Depois voltou-se para Chester que estava parado à entrada, com ar de quem estava decididamente pouco à vontade.

— Não sei, Will, parece muito pouco seguro — disse, os olhos a percorrer o interior do elevador.

Os lados tinham grades como as de uma gaiola e o chão era uma placa de aço muito riscada, e tudo aquilo estava coberto com o que parecia serem anos de pó e porcaria gordurosa.

— Anda, Chester, este é o grande momento!

Will nem parou um segundo para pensar se havia outro caminho sem ser descer. Se tinha ficado inebriado com a descoberta da gruta, isto ultrapassava as suas expectativas mais loucas.

— Vamos ser famosos — disse ele, soltando uma gargalhada.

— Oh, claro, já estou a ver… Dois mortos em acidente com elevador! — retorquiu Chester sombriamente, estendendo as mãos à frente dele como se estivesse a ler o cabeçalho de um jornal. — É só que não me parece seguro… provavelmente não é vistoriado há séculos.

Sem um instante de hesitação, Will saltou um par de vezes, as botas a ressoar ruidosamente no chão de metal. Chester ficou com uma expressão aterrorizada quando a gaiola do elevador chocalhou.

— Tão seguro como uma casa — disse Will, sorrindo travessamente e, pousando a mão na alavanca de latão no interior do elevador, olhou para os olhos de Chester. — Então, vens… ou voltas para trás para lutar com as ratazanas?

Foi quanto bastou a Chester que entrou imediatamente no elevador. Will fechou a grade atrás dele e, com ele a empurrar e a manter a alavanca para baixo, o elevador estremeceu e começou a descer. Através das grades, regularmente interrompidas pelas bocas escuras de outros níveis, viram passar devagarinho a face da rocha em sombras suaves de castanhos e pretos e cinzentos, ocres e amarelos.

Uma brisa húmida soprava à volta deles e, a dada altura, Chester fez passar a luz da lanterna através da grelha por cima deles, para o poço e para os cabos, que pareciam um par de raios laser a desaparecer no espaço profundo.

— Até que profundidade achas que isto vai? — perguntou a Will.

— Como é que queres que saiba? — respondeu Will, bruscamente.

Na realidade, foram precisos quase cinco minutos até, finalmente, o elevador parar com um solavanco abrupto que lhes sacudiu os ossos e os atirou contra os lados da gaiola.

— Se calhar devia ter largado a alavanca um bocadinho mais cedo — comentou Will, envergonhadamente.

Chester olhou para o amigo sem qualquer expressão, como se nada lhe importasse já, e depois deixaram-se ficar ali parados, as luzes da lanternas a lançar do interior do elevador gigantescas silhuetas em forma de diamante nas paredes exteriores.

— Cá vamos nós outra vez — disse Chester, com um suspiro enquanto abria a grade e Will passava impacientemente à frente dele para entrar noutra divisão de placas metálicas, correndo através dela em direcção a outra porta na parede mais afastada.

— Esta é exactamente igual à lá de cima — observou Will, enquanto se ocupava dos três manípulos no lado da porta. Esta tinha um grande 0 pintado.

Deram uns passos cautelosos na sala cilíndrica, as botas a ressoar no chão de chapa de metal ondulada e os raios das lanternas a iluminar mais uma outra porta ainda à frente deles.

— Parece que só temos um caminho a seguir — disse Will, avançando em direcção à porta.

— Estas coisas parecem tiradas de um submarino — murmurou Chester, baixinho. — Tipo câmaras-de-ar.

Pondo-se em bicos dos pés, Will espreitou pela pequena vigia de vidro, mas não conseguiu ver nada do outro lado. E quando tentou iluminá-la com a lanterna, a gordura e os riscos no vidro antigo só reflectiram o feixe de luz, tornando-o ainda mais opaco.

— Inútil — resmungou para consigo.

Entregando a lanterna a Chester, girou os três manípulos e depois empurrou a porta.

— Está presa! — protestou. Voltou a tentar sem êxito. — Dás-me uma ajuda, se não te importas?

Chester juntou-se a ele e, encostando os ombros à porta, empurraram com todas as suas forças. De repente, ela abriu-se com um silvo alto e uma enorme corrente de ar e eles entraram atabalhoadamente no desconhecido.

As botas estavam agora a pisar pedras arredondadas enquanto eles recuperavam o equilíbrio e se endireitavam. À frente deles estava uma cena que ambos souberam imediatamente que, por muitos anos que vivessem, nunca iriam esquecer.

Era uma rua.

Encontravam-se num espaço enorme, quase tão largo como uma auto-estrada, que desaparecia numa curva ao longe, tanto para a direita como para a esquerda deles. E, olhando para o outro lado, viram que estava iluminada por candeeiros de rua muito altos.

Mas o que estava para lá desses candeeiros, na extremidade da caverna, foi o que lhes cortou a respiração. Estendendo-se até onde a vista alcançava, nas duas direcções, havia casas.

Will e Chester avançaram, como se estivessem em transe, na direcção desta aparição. Quando o fizeram, a porta fechou-se atrás deles, batendo com tanta força que eles deram meia volta.

— Uma brisa? — perguntou Chester ao amigo, com uma expressão de perplexidade estampada na cara.

Will encolheu os ombros em resposta — não havia dúvida de que sentia uma leve corrente de ar na cara. Inclinou a cabeça para trás e cheirou, sentindo o mofo rançoso no ar. Chester estava a apontar as luz da lanterna para a porta e depois começou a deslocá-la pela parede por cima dela, iluminando os enormes blocos de pedra que a formavam. Foi subindo o círculo de luz cada vez mais para cima e os olhos de ambos sentiram-se obrigados a subir pela parede até às sombras por cima, onde ela se encontrava com a parede oposta num arco suave, como o tecto em abóbada de uma catedral imensa.

— O que é isto, Will? Que lugar é este? — perguntou Chester, agarrando o braço do amigo.

— Não sei… Nunca tinha ouvido falar de nada deste género — respondeu Will, a olhar de olhos arregalados para a rua enorme. — É realmente espantoso.

— E agora o que é que fazemos?

— Acho que… devíamos dar uma olhadela por aí, não achas? Isto é incrível!

Will estava maravilhado. Esforçou-se por organizar os pensamentos, inundado pela excitação inebriante da descoberta, e consumido pelo impulso irresistível de explorar e descobrir mais.

— Tenho de registar isto — murmurou ele, tirando a máquina fotográfica da mochila e começando a tirar fotografias.

— Will, não! O flash!

— Uups! Desculpa. — Pendurou a máquina ao pescoço. — Deixei-me levar pelo entusiasmo.

Repentinamente, sem dizer uma palavra a Chester, começou a andar por cima das pedras da calçada em direcção às casas. Chester seguiu atrás do seu companheiro explorador, meio agachado e a resmungar baixinho enquanto percorria a rua com os olhos à procura de qualquer sinal de vida.

Os edifícios pareciam esculpidos nas próprias paredes, como fósseis arquitecturais meio escavados. Os telhados fundiam-se com as paredes que se arqueavam suavemente atrás deles e onde se poderia esperar haver chaminés, havia uma rede intrincada de condutas em tijolo que brotavam do cimo dos telhados e que subiam pelas paredes e desapareciam lá em cima, como plumas de fumo petrificadas. Quando chegaram ao passeio, o único som, com a excepção do dos seus passos, era um zumbido baixinho, que parecia vir do próprio chão. Fizeram uma breve pausa para examinar um dos candeeiros da rua.

— É como a…

— Sim — interrompeu Will, tocando inconscientemente no bolso onde estava a orbe translúcida do pai, cuidadosamente embrulhada num lenço.

A esfera de vidro do candeeiro era uma versão muito maior desta, quase do tamanho de uma bola de futebol, e estava segura por uma garra de quatro dedos no cimo de um poste de ferro forjado. Um par de borboletas, brancas como a neve, circulavam erraticamente à volta dela, como luas epilépticas, as asas a esvoaçar e a bater de encontro à superfície de vidro.

De repente, Will entireiçou-se e, inclinando a cabeça para trás, começou a cheirar o ar — ficando bastante parecido com o rato sem olhos na roda dentada.

— O que se passa? — perguntou Chester, ansiosamente. — Mais sarilhos?

— Não, só me pareceu… cheirei qualquer coisa. Era mais ou menos parecido com… amoníaco… qualquer coisa muito intensa. Não deste por isso?

— Não — respondeu Chester, fungando várias vezes. — Só espero que não seja venenoso.

— Bem, já desapareceu, fosse lá o que fosse. E estamos bem, não estamos?

— Acho que sim. Mas julgas que há mesmo gente a viver aqui? — retorquiu Chester, enquanto olhava para as janelas dos edifícios.

Concentraram a atenção na casa mais próxima, silenciosa e ominosa, como se os estivesse a desafiar a aproximarem-se.

— Não sei.

— Bem, então o que é que está isto tudo a fazer aqui?

— Só há uma maneira de saber — respondeu Will, enquanto se aproximavam cautelosamente da casa.

Era simples e elegante, feita de arenito, quase georgiana no estilo. Só conseguiam distinguir as cortinas muito ornamentadas por trás das janelas de 12 vidraças de cada um dos lados da porta, que estava pintada de um verde brilhante e espesso como melaço e tinha um puxador e um botão de campainha de latão muito lustrosos.

— «167» — disse Will, espantado, ao ver os algarismos por cima do puxador.

— Que lugar é este? — estava Chester a perguntar num murmúrio quando Will se apercebeu de um leve bruxulear de luz numa fresta entre as cortinas. Tremeluzia como se proviesse de uma lareira.

— Chiu! — disse ele, enquanto se aproximava e se agachava por baixo da janela para depois se levantar acima do peitoril e espreitar através da pequena brecha. A boca abriu-se-lhe de admiração. Conseguia ver uma fogueira a arder numa lareira. Por cima desta, havia uma prateleira escura onde estavam vários ornamentos de vidro. E como a luz da lareira dançava em redor da sala, só conseguia ver umas cadeiras, um sofá e as paredes, que estavam cobertas de quadros emoldurados de tamanhos variados.

— Anda lá, o que há aí? — perguntou Chester, nervosamente, continuando a olhar para trás, para a rua vazia, enquanto Will esborrachava a cara na vidraça suja da janela.

— Não vais acreditar nisto! — replicou Will, afastando-se para o lado para que o amigo visse por si próprio.

Chester encostou avidamente o nariz à janela.

— Uau! É uma sala muito chique! — disse, voltando-se para olhar para Will e descobrindo que este já estava em movimento, avançando ao longo da parte da frente da casa.

Will parou quando chegou à esquina do edifício.

— Ei! Espera por mim — pediu Chester, aterrorizado com a ideia de ser deixado para trás.

Entre este edifício e o seguinte da fila, uma curta viela estendia-se até à parede do túnel. Will espreitou pela esquina e, quando teve a certeza de que estava vazia, fez sinal a Chester indicando que deviam seguir para a casa seguinte.

— Esta tem o número 166 — disse Will, enquanto examinava a porta da frente, que era quase idêntica à da primeira casa.

Aproximou-se em bicos de pés da janela, mas não conseguiu ver nada através dos vidros escuros.

— O que há aí? — perguntou Chester.

Will levou um dedo aos lábios e depois voltou para a porta. Enquanto a examinava atentamente, ocorreu-lhe uma ideia e franziu os olhos. Reconhecendo aquele olhar, Chester estendeu o braço para o conter, dizendo muito depressa:

— Will, não!

Mas era tarde de mais. Will mal tocara na porta e ela já se estava a abrir. Trocaram um olhar e depois entraram os dois muito devagarinho, sentindo-se percorridos por um formigueiro que era simultaneamente de excitação e de medo.

A entrada era espaçosa e quente e ambos sentiram um pot-pourri de cheiros: comida, fumo da chaminé e habitantes humanos. A sua disposição era igual à de qualquer outra casa; a meio da entrada havia uma escada ampla, com travões de carpete em latão na base de cada degrau. Painéis de madeira encerada subiam até ao corrimão, por cima do qual havia papel de parede de riscas verdes claras e verdes escuras. Nas paredes, havia quadros em molduras ornamentadas de um tom dourado baço que mostravam pessoas de aspecto robusto com ombros largos e caras pálidas. Chester estava a olhar para um quando lhe ocorreu um pensamento horrível.

— São exactamente iguais aos homens que nos perseguiram — disse. — Oh, bestial, estamos numa casa que pertence a um daqueles malucos, não estamos? Isto é a maldita terra dos doidos! — acrescentou, quando aquela ideia pavorosa lhe ocorreu.

— Ouve! — ordenou Will num sussurro.

Chester ficou pregado ao chão enquanto Will espetava uma orelha na direcção das escadas, mas não havia nada, apenas um silêncio opressivo.

— Pensei que ouvi… não… — disse ele, e dirigiu-se para a porta aberta à esquerda deles, enfiando cautelosamente a cabeça para espreitar lá para dentro. — Isto é um espanto!

Não conseguiu controlar-se: tinha de entrar. E agora, Chester também estava a ser arrastado pela necessidade de ficar a saber mais.

Uma fogueira alegre ardia na lareira. Nas paredes em volta, havia pequenos quadros e silhuetas em molduras de bronze. Houve um que atraiu o olhar de Will: A Casa Martineau, leu ele na inscrição por baixo. Era um pequeno quadro a óleo daquilo que parecia ser uma casa senhorial rodeada por campos de erva ondulantes.

Ao pé da lareira, havia cadeiras forradas de um tecido vermelho escuro com um brilho baço. Havia uma mesa de jantar num dos cantos da sala e, no outro, um instrumento musical que Will identificou como sendo um cravo. Para além da luz do lume, a sala estava ainda iluminada por duas esferas do tamanho de bolas de ténis suspensas do tecto e dentro de umas gaiolas de pechisbeque ornamentadas. Tudo aquilo lembrou a Will um museu a que o pai o tinha levado e onde estava uma exposição com o título Como Costumávamos Viver. Enquanto olhava à sua volta, pensou que aquela sala não estaria deslocada nessa exposição.

Chester aproximou-se da mesa de jantar, onde estavam duas chávenas lisas de delicada porcelana branca pousadas nos respectivos pires.

— Têm qualquer coisa dentro — disse, com uma expressão de completa surpresa. — Parece chá!

Tocou hesitantemente no lado de uma das chávenas e olhou para Will, ainda mais espantado.

— Ainda está quente. O que é que se passa aqui? Onde estão as pessoas todas?

— Não sei — replicou Will.— Parece… parece….

Olharam um para o outro, com ar aturdido.

— Confesso que não sei o que parece — confessou Will.

— Vamos mas é embora daqui — disse Chester, e os dois correram para a porta e saíram disparados.

Quando voltaram ao passeio, Chester colidiu com Will quando este estacou.

— Para que é que estamos a correr? — perguntou Will.

— Ah… a… o… bem… — gaguejou Chester confusamente, enquanto tentava exprimir a sua preocupação por palavras.

Durante uns momentos ficaram parados, indecisos sobre o que haviam de fazer, sob o fulgor sublime de um candeeiro da rua. E depois Chester apercebeu-se, consternado, de que Will estava a olhar atentamente para a rua vendo-a curvar-se ao longe.

— Anda lá, Will. Vamos para casa. — Chester arrepiou-se enquanto olhava para as janelas da casa atrás dele, convencido de que havia lá alguém. — Este sítio põe-me os cabelos em pé.

— Não — ripostou Will, sem olhar sequer para o amigo. — Vamos seguir pela rua mais um bocadinho. Ver para onde vai. Depois podemos ir-nos embora. Prometo… Está bem? — disse, já a andar.

Chester ficou parado durante uns instantes, a olhar desejosamente para a porta de metal do outro lado da rua através da qual tinham entrado. Depois, com um gemido de resignação, seguiu atrás de Will ao longo da fila de casas. Muitas tinham luz nas janelas, mas, tanto quanto podiam perceber, não havia sinais dos ocupantes.

Quando chegaram à última casa, no sítio onde a rua curvava para a esquerda, Will parou por uns momentos a decidir se deveriam continuar ou voltar para trás. Com a voz a guinchar de desespero, Chester começou a suplicar dizendo que já chegava e que deviam voltar para trás, e foi então que se aperceberam de um barulho atrás deles. Começou como a restolhada de folhas, mas depressa cresceu de intensidade tornando-se numa cacofonia rumorejante.

— Que raio…? — exclamou Will.

Saindo disparado do telhado, um bando de pássaros do tamanho de pardais mergulhou em direcção a eles, como balas tracejantes vivas. Will e Chester baixaram-se instintivamente, levantando os braços para protegerem as caras enquanto as aves de um branco puro esvoaçavam à volta deles.

Will desatou a rir.

— Pássaros! São apenas pássaros! — exclamou, enquanto enxotava com os braços o bando maldoso, mas sem acertar em nenhum.

Chester baixou os braços e começou também a rir um bocadinho nervosamente, enquanto os pássaros revolteavam à volta deles. Então, tão depressa como tinham aparecido, os pássaros elevaram-se no ar e desapareceram por trás da curva no túnel. Will endireitou-se e avançou uns passos atrás deles, mas depois parou, petrificado.

— Lojas! — anunciou, numa voz espantada.

— Hum?— fez Chester.

E era mesmo verdade, num dos lados da rua, estendia-se uma fila de lojas com fachadas arqueadas. Sem dizerem nada, os dois rapazes começaram a dirigir-se para elas.

— Isto é irreal! — murmurou Chester quando chegaram à primeira loja com montras de vidro soprado à mão que distorcia os produtos no interior como se fosse uma lente mal feita.

— Jacobon’s Cloths — leu Chester no letreiro da loja, e depois espreitou para os rolos de tecido expostos no interior iluminado por uma luz verde e fantasmagórica.

— Uma mercearia — disse Will, enquanto continuavam a andar.

— E esta é uma espécie de loja de ferragens — observou Chester.

Will olhou para o tecto arqueado da caverna por cima deles.

— Sabes, agora devemos estar quase por baixo da High Street.

A espreitar para dentro das montras e a absorver a estranheza das lojas antigas, continuaram a andar, impelidos pela curiosidade descuidada, até que chegaram a um sítio onde o túnel se dividia em três. O do meio parecia descer para dentro da terra num ângulo pronunciado.

— Pronto, chega — disse Chester resolutamente. — Agora vamo-nos embora. Não me vou perder aí em baixo.

Todos os seus instintos estavam a gritar-lhe que deviam dar meia volta.

— Está bem — concordou Will, — mas…

Estava a descer do passeio para a rua empedrada quando se ouviu um barulho ensurdecedor de ferro a bater em pedra. Num relâmpago ofuscante, quatro cavalos brancos avançaram para ele, faíscas a saltar dos cascos negros, a respirar pesadamente e a puxar um sinistro coche negro. Will não teve tempo para reagir pois, nesse mesmo instante, os dois foram agarrados e erguidos no ar pelo cachaço.

Um único homem segurava os dois, pendurados e indefesos, com as mãos enormes e nodosas.

— Intrusos! — gritou o homem numa voz áspera e feroz, enquanto erguia o par até à cara e os inspeccionava com uma expressão de repugnância.

Will tentou levantar a pá para lhe bater, mas foi-lhe arrancada da mão.

O homem trazia um capacete ridiculamente pequeno e um uniforme azul-escuro de um tecido grosseiro que produzia um som áspero quando ele se mexia. Will reparou que, ao lado de uma fila de botões baços, havia uma estrela de cinco pontas de um tecido dourado alaranjado cosida no casaco. O seu captor enorme e ameaçador era claramente um polícia qualquer.

— Socorro! — articulou Chester silenciosamente para o amigo, tendo ficado sem voz enquanto eram sacudidos de um lado para o outro nas mãos do homem.

— Estávamos à tua espera — trovejou o homem.

— O quê? — exclamou Will, olhando para ele sem perceber.

— O teu pai disse-nos que não demorarias muito a vir juntar-te a nós.

— O meu pai? Onde é que está o meu pai? O que é que fizeram com ele? Põe-me no chão! — gritou Will, enquanto tentava virar-se e pontapear o homem.

— Não vale a pena contorceres-te. — O homem levantou ainda mais o rapaz esbracejante e cheirou-o. — Gente da superfície. Nojento!

Will cheirou-o também.

— Também não cheiras lá muito bem.

O homem deitou a Will um olhar de puro desprezo e depois levantou Chester e cheirou-o também. Completamente desesperado, Chester tentou dar uma cabeçada no homem. Ele afastou a cara, mas não sem que antes Chester, com um movimento violento do braço, lhe atingisse o capacete. Este saltou-lhe da cabeça, expondo um escalpe pálido coberto com uns tufos curtos de cabelos brancos e finos.

O homem sacudiu Chester violentamente pelo colarinho e depois, com um grunhido horrível, bateu com as cabeças dos rapazes uma na outra. Embora os capacetes os protegessem de qualquer dano quando embateram ruidosamente, eles ficaram tão chocados com a ferocidade do homem que abandonaram imediatamente quaisquer ideias de resistência.

— Basta! — gritou o homem, e os aturdidos rapazes ouviram um coro de risadas azedas atrás dele, apercebendo-se pela primeira vez dos outros homens que estavam a olhar para eles com olhos claros e sérios.

— Julgam que podem vir cá abaixo e entrar à socapa nas nossas casas? — grunhiu o homem, enquanto os punha no chão e os empurrava na direcção do túnel central, onde a rua descia.

— É a choça para vocês os dois — rosnou alguém atrás deles.

Foram empurrados sem cerimónia pelas ruas, que nesta altura se estavam a encher de pessoas que saíam de várias portas e becos para olharem embasbacados para este desafortunado par de estrangeiros. Meio arrastados e meio aos tropeções, de cada vez que escorregavam os rapazes eram selvaticamente levantados pelo enorme agente. Parecia que ele estava a representar para a assistência, fazendo crer que estava a controlar a situação.

No meio de toda a confusão e pânico que sentiam, Will e Chester olhavam freneticamente em volta, na esperança vã de conseguirem descobrir uma oportunidade para fugir, ou de que alguém viesse em seu socorro. Mas as caras iam ficando exangues à medida que esta esperança se esvaía e eles compreendiam a gravidade da situação em que se encontravam. Estavam a ser arrastados cada vez mais para dentro das entranhas da terra, e não havia absolutamente nada que pudessem fazer em relação a isso.

Antes que tivessem tempo para perceber o que estava a acontecer, tinham-nos feito virar numa curva do túnel e o espaço à frente deles abriu-se. Ficaram mudos de espanto perante a confusão estonteante de pontes, aquedutos e passagens aéreas que se cruzavam por cima de um reticulado de ruas calcetadas e alamedas, todas ladeadas por edifícios.

Arrastados a uma velocidade impossível pelo polícia, eram observados por grupos de pessoas, cujos rostos largos exibiam curiosidade, mas se mantinham impassíveis. Mas nem todas as caras eram como a do captor ou as dos homens que os tinham perseguido pela High Street, com a pele lívida e os olhos deslavados. Se não fossem as roupas antiquadas, algumas pessoas teriam parecido bastante normais e poderiam facilmente passar despercebidas em qualquer rua inglesa.

— Socorro! Socorro! — gritava Chester desesperadamente, enquanto voltava a tentar, com pouca convicção, libertar-se da garra do polícia.

Mas Will mal reparou nisso. A sua atenção tinha sido despertada por um indivíduo alto e magro, de pé ao lado de um candeeiro, cujo rosto aparecia por cima de um colarinho branco engomado e com um comprido casaco escuro que reflectia a luz como se fosse feito de couro polido. Destacava-se impressionantemente das pessoas atarracadas perto dele, os ombros levemente curvados para a frente como um arco muito esticado. Todo o seu ser emanava maldade e os olhos escuros nunca se desviaram dos de Will, que sentiu uma onda de pavor percorrê-lo da cabeça aos pés.

— Acho que estamos metidos num grande sarilho, Chester — disse ele, incapaz de afastar os olhos do homem sinistro, cujos lábios finos estavam contorcidos num sorriso sardónico.