Capítulo Vinte e Um

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Will e Chester davam passos em falso e tropeçavam enquanto eram empurrados por um pequeno lance de escadas que levava a um edifício de um andar, entalado entre aquilo que Will deduziu serem ou escritórios ou fábricas pardacentas. Mal entraram, o polícia fê-los parar abruptamente e, fazendo-os dar meia volta, arrancou-lhes violentamente as mochilas das costas. Depois arremessou os dois rapazes para um banco de carvalho escorregadio, a superfície marcada aqui e ali por sulcos polidos, como se anos de malfeitores se tivessem esfregado ao longo do seu comprimento. Will e Chester arquejaram quando as costas bateram contra a parede, cortando-lhes a respiração.

— Não se mexam! — rugiu o polícia, colocando-se entre eles e a entrada.

Esticando o pescoço para a frente, Will conseguia ver um bocadinho atrás do homem e, através das portas com meias janelas, a rua onde se tinha juntado uma multidão. Muitos estavam a empurrar para conseguirem ver lá para dentro e alguns começaram a gritar iradamente e a agitar os punhos quando viram Will. Este sentou-se imediatamente para trás e tentou atrair o olhar de Chester, mas o amigo, louco de medo, estava a olhar fixamente para o chão à sua frente.

Will viu um quadro para informações ao lado da porta, onde estavam pregados um grande número de papéis com margens pretas. A maior parte das letras era demasiado pequena para as conseguir decifrar do sítio onde estava sentado, mas conseguiu ler alguns cabeçalhos escritos à mão como Regra e Édito, seguidos por uma enfiada de algarismos.

As paredes da esquadra estavam pintadas de preto do chão até a um corrimão, acima do qual eram de um branco amarelecido, estando a descascar em alguns sítios e manchadas de porcaria. O tecto era de um desagradável amarelo-nicotina com rachas fundas que corriam em todas as direcções, como o mapa das estradas de um qualquer país não identificado. Na parede à frente de Will, estava um quadro de um edifício com aspecto sinistro, com janelas estreitas e umas barras enormes à frente da entrada principal. Will conseguiu distinguir com dificuldade as palavras Newgate Prison escritas por baixo.

Em frente dos rapazes, havia um balcão comprido, onde o polícia tinha pousado as mochilas deles e a pá de Will, e por trás dele uma espécie de gabinete, onde estavam três secretárias rodeadas por uma floresta de armários estreitos de arquivo. Desta sala principal saíam outras mais pequenas e de uma delas vinha o matraquear rápido do que devia ser uma máquina de escrever.

No preciso momento em que Will estava a olhar para o canto mais afastado da sala, onde uma profusão de canos de cobre lustrosos subiam pelas paredes como gavinhas de uma videira antiga, ouviu-se um silvo estridente que terminou com um estrondo sólido. O barulho foi tão repentino que Chester se endireitou no banco e pestanejou como um coelho nervoso, despertado do seu torpor ansioso.

De uma das salas laterais, apareceu outro polícia que correu para os canos de bronze. Olhou para um painel de mostradores antiquados de onde saía uma cascata de fios torcidos que se enfiavam numa caixa de madeira. Depois abriu um ferrolho num dos canos, retirando um cilindro em forma de bala do tamanho de um pequeno rolo da massa. Desenroscando uma tampa numa das extremidades, extraiu um rolo de papel, tipo pergaminho, que estalou quando o esticou para ler.

— Os Styx21 estão a chegar — anunciou bruscamente, dirigindo-se em passadas largas para o balcão onde abriu um livro-razão enorme, sem nunca olhar para os rapazes.

Também ostentava uma estrela de um dourado alaranjado, cosida no casaco, e, embora a sua aparência fosse muito idêntica à do outro agente, era mais novo e tinha a cabeça coberta por uma cabeleira muito curta e branca.

— Chester — sussurrou Will.

Como o amigo não reagiu, esticou-se para o abanar. Num relâmpago, um cacete saltou, batendo-lhe certeiramente nos nós dos dedos.

— Desiste! — ladrou o polícia ao lado dele.

— Au! — Will saltou do banco, os punhos cerrados. — Seu gordo… — gritou ele, com o corpo a tremer, tentando controlar-se.

Chester esticou-se e agarrou-lhe o braço.

— Cala-te, Will!

Furioso, Will sacudiu a mão de Chester e olhou para os olhos frios do polícia.

— Quero saber porque estamos detidos — exigiu ele.

Durante um momento terrível, pensaram que a cara do polícia ia explodir, visto que tinha ficado de um vermelho intenso. Mas depois os ombros enormes começaram a estremecer e ouviu-se o ressoar de uma gargalhada surda e áspera, que foi aumentando de volume. Will olhou de lado para Chester, que estava a olhar alarmado para o polícia.

— BASTA!

A voz do homem atrás do balcão estalou como um chicote quando levantou os olhos do livro-razão, o olhar a incidir no polícia que se estava a rir e que se calou imediatamente.

— TU! — o homem fuzilou Will com os olhos. — SENTA-TE!

A voz dele tinha uma tal autoridade que Will não hesitou nem um segundo e voltou rapidamente a ocupar o seu lugar ao lado de Chester.

— Eu… — continuou o homem, cheio de importância, enchendo o peito enorme — sou o Primeiro Oficial. Já conhecem o Segundo Oficial — indicou com a cabeça o polícia ao lado deles.

O Primeiro Oficial olhou para o rolo de papel do tubo das mensagens.

— Estão por este meio acusados de entrada e permanência ilegais no Quarter, segundo o Estatuto Doze, Subsecção Dois — leu ele num tom monótono.

— Mas… — começou a dizer Will, numa voz submissa.

O Primeiro Oficial ignorou-o e continuou a leitura:

— Para além disso, entraram numa propriedade sem serem convidados com intenção de furtar, contrário ao Estatuto Seis, Subsecção Seis — continuou com indiferença. — Compreendem estas acusações? — perguntou.

Will e Chester trocaram olhares confusos e Will estava prestes a dar uma resposta quando o Primeiro Oficial o interrompeu.

— Ora bem, então o que é que temos aqui? — disse ele, abrindo as mochilas e despejando o seu conteúdo para cima do balcão.

Agarrou nas sanduíches embrulhadas em papel de alumínio que Will preparara e, sem se dar ao trabalho de as desembrulhar, limitou-se a cheirá-las.

— Ah, porco — disse com um leve sorriso.

E pela maneira como lambeu os beiços e as empurrou para o lado, Will percebeu que era a última vez que via o seu almoço.

Depois o Primeiro Oficial dirigiu a sua atenção para os outros artigos, analisando-os metodicamente. Demorou-se na bússola, mas o que mais o interessou foi o canivete do exército suíço, abrindo cada uma das lâminas e apertando a tesourinha com os dedos grossos até que finalmente o largou. Fazendo rolar descontraidamente uma das bolas de fio em cima do balcão com uma das mãos, utilizou a outra para abrir o mapa geológico que tinha estado na mochila de Will, inspeccionando-o curiosamente. Por fim, inclinou-se e cheirou o mapa, franzindo a cara com uma expressão de nojo, antes de se voltar para a máquina fotográfica.

— Hummm — murmurou pensativamente, virando-a de um lado para o outro com os dedos que lembravam bananas, para a conseguir observar de todos os ângulos.

— Isso é meu — disse Will.

O Primeiro Oficial ignorou-o completamente e, pousando a máquina fotográfica, agarrou numa caneta e mergulhou o aparo num tinteiro embutido no balcão. Com a caneta equilibrada por cima de uma página aberta do livro-razão, aclarou a garganta.

— NOME! — berrou, olhando para Chester.

— É… hã, sou… Chester… Chester Rawls — gaguejou o rapaz.

O Primeiro Oficial escreveu no livro. O arranhar do aparo na página era o único som na sala, e Will sentiu-se de repente completamente indefeso, como se a entrada no livro-razão fosse o início de um processo irreversível, cujo funcionamento lhe era completamente estranho.

— E TU? — ladrou ele para Will.

— Ele disse-me que o meu pai estava cá — disse Will, apontando corajosamente para o Segundo Oficial. — Onde é que ele está? Quero vê-lo já!

O Primeiro Oficial olhou para o colega e depois voltou-se outra vez para Will.

— Não vais ver ninguém se não fizeres o que te mandam.

Deitou outro olhar ao Segundo Oficial e franziu o sobrolho com mal disfarçada desaprovação. O Segundo Oficial desviou os olhos e mudou o peso de um pé para o outro, pouco à vontade.

— NOME!

— Will Burrows — respondeu Will, vagarosamente.

O Primeiro Oficial agarrou no rolo de papel e voltou a consultá-lo.

— Esse não é o nome que tenho aqui — disse ele, abanando a cabeça e fixando Will com os olhos duros como aço.

— Não me interessa o que diz aí. Sei muito bem como me chamo.

Fez-se um silêncio ensurdecedor enquanto o Primeiro Oficial continuava a olhar fixamente para Will. Então, fechou abrupta e ruidosamente o livro-razão, fazendo com que se levantasse uma nuvem de pó do tampo do balcão.

— LEVA-OS PARA O CALABOUÇO! — berrou apoplecticamente.

Levantaram-nos à força e, no preciso momento em que estavam a ser brutalmente empurrados por uma grande porta de carvalho, ouviram de novo o silvo seguido do estrondo quando chegou uma segunda mensagem ao sistema de tubos.

O corredor que ligava ao calabouço tinha cerca de 20 metros de comprimento e estava fracamente iluminado por um globo na outra ponta, por baixo do qual havia uma pequena secretária de madeira e uma cadeira. Do lado direito, havia uma parede vazia e, na parede oposta, quatro portas de ferro baço profundamente cravadas numa moldura de tijolos sólidos. Os rapazes foram empurrados para a porta mais afastada, que estava identificada pelo número quatro escrito em numeração romana. O Segundo Oficial destrancou-a com as suas chaves e ela abriu-se para trás nos gonzos bem oleados. Olhando para os rapazes, o polícia apontou com a cabeça em direcção à cela e, como eles ficaram parados no limiar, sem saberem o que fazer, perdeu a cabeça e atirou-os lá para dentro com as mãos enormes, fechando estrondosamente a porta.

No interior da cela, o estrondo da porta ecoou horrivelmente nas paredes, e os estômagos dos rapazes revolveram-se quando a chave girou na fechadura. Tentaram perceber os pormenores da cela escura e húmida apalpando em redor, e Chester conseguiu virar um balde, fazendo um grande barulho, ao andar. Descobriram que ao longo da parede havia uma saliência, com um metro de profundidade, e sentaram-se. Sentiram a superfície áspera, fria e húmida por baixo das mãos enquanto os olhos se ajustavam gradualmente à única fonte de luz na cela, a iluminação fraca que se infiltrava por um postigo de observação na porta. Por fim, Chester quebrou o silêncio com uma grande fungadela.

— Ena pá! Que raio de cheiro é este?

— Não sei bem — disse Will, cheirando o ar por seu turno. — Vómito? Suor?

Depois voltou a cheirar e afirmou com o tom de um entendido na matéria:

— Ácido carbólico e…

Voltando a cheirar, acrescentou:

— É enxofre?

— Hum? — murmurou o amigo.

— Não! Couves, couves cozidas!

— Quero lá saber do que é, é um pivete horrível! — disse Chester, fazendo uma careta. — Este sítio é um nojo.

Voltou-se para olhar para o amigo na penumbra.

— Como é que vamos sair daqui, Will?

Will dobrou as pernas, pôs os pés na borda da saliência e encostou os joelhos ao queixo. Coçou a barriga da perna, mas não disse nada. Estava furioso consigo próprio, mas não queria que o amigo percebesse como é que se estava a sentir. Se calhar Chester, com a sua abordagem cautelosa e os avisos frequentes, tinha tido toda a razão. Cerrou os dentes e apertou os punhos com força na escuridão. Estúpido, estúpido, estúpido! Tinham entrado por ali dentro como um par de amadores. Tinha-se deixado arrastar pela excitação. E agora como é que iria conseguir encontrar o pai?

— Tenho um pressentimento pavoroso acerca disto — disse Chester, agora a olhar para o chão. — Nunca mais vamos voltar a ver as nossas casas, pois não?

— Olha, não te preocupes. Descobrimos o caminho de entrada para aqui e, raios, tão certo como dois e dois serem quatro, vamos descobrir uma maneira de sairmos — disse Will num tom muito seguro, tentando acalmar o amigo, embora ele próprio não pudesse sentir-se mais preocupado do que já estava com a terrível situação em que se encontravam.

Nenhum deles estava com vontade de falar, e a cela encheu-se com o barulho da vibração sempre presente e as corridas erráticas de insectos invisíveis.

Will acordou com um sobressalto, arfando como se estivesse a emergir para respirar. Ficou surpreendido ao descobrir que, na realidade tinha dormitado numa posição semi-sentada no banco. Quanto tempo é que tinha dormido? Olhou em redor, com os olhos turvos de sono, no meio da obscuridade sombria. Chester estava em pé, com as costas encostadas à parede, a olhar com os olhos muito abertos para a porta da cela. Will quase conseguia sentir o medo que emanava dele. Automaticamente, seguiu o olhar de Chester até ao postigo de observação: enquadrada na abertura, estava a cara maldosa do Segundo Oficial, mas, devido ao tamanho da cabeça, só estavam visíveis os olhos e o nariz.

Ouvindo o chocalhar metálico das chaves na fechadura, Will observou a cara do homem quando os olhos se estreitaram e, no instante seguinte, a porta abriu-se revelando a silhueta do oficial recortada no vão da porta, como uma monstruosa ilustração de um livro de quadradinhos.

— TU! — disse ele para Will. — JÁ CÁ PARA FORA!

— Porquê? Para quê?

— DESPACHA-TE! — ladrou o oficial.

— Will? — disse Chester, ansiosamente.

— Não te preocupes, Chester, vai correr tudo bem — disse Will fracamente enquanto se levantava, as pernas rígidas e cheias de cãibras por causa da humidade. Estendeu-as enquanto se deslocava desajeitadamente para fora da cela e entrava no corredor. Depois, sem que o tivessem mandado, começou a dirigir-se para a porta principal do calabouço.

— Quieto! — ordenou o Segundo Oficial asperamente enquanto voltava a fechar a porta à chave. A seguir, apertando dolorosamente o braço de Will, levou-o para fora do calabouço e fê-lo percorrer uma série de corredores mal iluminados, os passos de ambos a ecoar nas paredes com a cal a cair e no chão de pedra nu. Por fim, viraram uma esquina para uma escada estreita que levava a um pequeno corredor sem saída. Cheirava a humidade e a terra, tal como uma cave antiga.

De uma porta aberta a meio do corredor, saía uma luz intensa. Uma sensação de pavor ia crescendo no estômago de Will à medida que se aproximavam da porta e, como era de esperar, foi empurrado para dentro da sala bem iluminada pelo guarda e obrigado a parar abruptamente. Ofuscado pela claridade, Will franziu os olhos e olhou à sua volta.

A sala estava despida, com a excepção de uma cadeira bizarra e de uma mesa de metal, atrás da qual estavam duas figuras altas em pé, os corpos magros inclinados de forma que as cabeças quase se tocavam enquanto conversavam nuns murmúrios conspirativos. Will esforçou-se por ouvir o que diziam, mas não parecia ser em nenhuma língua que ele reconhecesse, pontuada, por assim dizer, por uns ruídos ásperos e agudos muitíssimo peculiares. Por mais que tentasse, não conseguia distinguir uma única palavra; era completamente ininteligível.

Por isso, com o braço ainda sujeito ao aperto esmagador do polícia, Will esperou, o estômago a encher-se de nós com a tensão nervosa, enquanto os olhos se iam habituando à claridade intensa. De vez em quando, os estranhos olhavam de fugida para ele, mas Will não se atreveu a pronunciar uma única palavra na presença desta nova e sinistra autoridade.

Estavam vestidos de igual, com golas engomadas, de uma brancura imaculada. Estas eram tão grandes que caíam em dobras sobre os ombros dos casacos compridos de couro, que rangiam quando os homens gesticulavam um com o outro. A pele das caras lúgubres, da cor da massa de vidraceiro acabada de fazer, servia apenas para realçar ainda mais os olhos pretos como azeviche. O cabelo, rapado nas têmporas, estava puxado para trás e colado ao couro cabeludo com óleo, o que fazia com que parecessem que traziam solidéus brilhantes.

Inesperadamente, pararam com o que estavam a fazer e voltaram-se para Will.

— Estes cavalheiros são os Styx — disse atrás dele o Segundo Oficial — e vais ter de responder às suas perguntas.

— Cadeira — disse o Styx da direita, os olhos pretos fixos em Will.

Apontou com uma mão comprida para a cadeira esquisita que estava entre Will e a mesa. Dominado por um mau pressentimento, Will não protestou quando o agente da polícia o sentou na cadeira. Uma barra de metal ajustável subiu das costas da cadeira, com duas tenazes almofadadas no cimo para prender firmemente a cabeça do ocupante no lugar. O agente ajustou a altura da barra, depois apertou as tenazes, comprimindo-as com força contra as têmporas de Will. Este tentou voltar a cabeça para olhar para o agente, mas as tenazes seguravam-no com firmeza. Enquanto o polícia o continuava a prender, Will percebeu que não tinha outra alternativa senão a de ficar de frente para os Styx, que estavam posicionados atrás da mesa como padres avaros.

O agente parou. Pelo canto do olho, Will viu-o puxar qualquer coisa debaixo da cadeira, depois ouviu o estalar de tiras de couro velhas e o ruído das fivelas enormes enquanto cada um dos punhos era atado à coxa correspondente.

— Para que é isto? — atreveu-se Will a perguntar.

— Para tua protecção — respondeu o agente, agachando-se para atar mais tiras à volta das pernas de Will, logo abaixo dos joelhos, prendendo-as às pernas da cadeira. Os tornozelos de Will foram presos de modo idêntico, com o agente a apertar a tiras com tal força que elas se enterravam impiedosamente na carne, fazendo com que Will se contorcesse com o desconforto. Reparou com desalento que isso parecia divertir os Styx. Por fim, uma tira com cerca de dez centímetros de espessura foi puxada com força por cima do peito e dos braços e apertada atrás das costas da cadeira. Então, o agente pôs-se em sentido até que um dos Styx lhe acenou silenciosamente e ele saiu da sala, fechando a porta atrás de si.

Sozinho com eles, Will observou num silêncio aterrorizado enquanto um dos Styx puxava de um candeeiro com um aspecto esquisito e o colocava no centro da mesa, virado para Will. Tinha uma base sólida e um braço curvo e curto com um abat-jour cónico e baixo. Este continha o que parecia ser uma lâmpada vermelho-escura; lembrou a Will uma velha lâmpada solar que vira no museu do pai. Ao lado dele encontrava-se uma pequena caixa preta com mostradores e botões e o candeeiro estava ligado a ela através de um fio castanho torcido. O dedo pálido do Styx carregou num interruptor e a caixa começou a zumbir suavemente.

Um dos Styx saiu de trás da mesa enquanto o outro continuava a manipular os comandos atrás do abat-jour. Com um estalido alto, a lâmpada produziu uma luz cor-de-laranja pálida durante uns curtos instantes e depois pareceu voltar a apagar-se.

— Vai tirar-me uma fotografia? — perguntou Will numa fraca tentativa de fazer humor, ao mesmo tempo que tentava disfarçar o tremor da voz

Ignorando-o, o Styx girou um botão da caixa preta como se estivesse a sintonizar um rádio.

Alarmantemente, uma pressão desconfortável começou a formar-se atrás dos olhos de Will. Abriu a boca num bocejo silencioso para tentar aliviar esta estranha tensão nas têmporas quando a sala começou a escurecer como se o aparelho estivesse literalmente a sugar toda a luz. Pensando que estava a ficar cego, Will pestanejou várias vezes e abriu os olhos o máximo que conseguiu. Com a maior das dificuldades, conseguiu apenas distinguir as duas silhuetas dos Styx recortadas pela luz fraca que se reflectia na parede atrás deles.

Apercebeu-se do barulho de um pulsar incessante, mas não conseguia descortinar de onde vinha. À medida que se ia tornando mais intenso, começou a sentir a cabeça verdadeiramente esquisita, como se todos os ossos e cartilagens estivessem a vibrar. Era como se um avião estivesse a voar muito baixo, mesmo por cima da cabeça dele. A ressonância parecia estar a transformar-se numa bola de energia cheia de picos mesmo no centro da cabeça. Agora estava realmente a sentir-se dominado pelo pânico, mas, sem conseguir mover um único músculo, não podia fazer nada para resistir.

Enquanto o Styx manipulava os mostradores, a bola pareceu mexer-se, começando a afundar-se-lhe no corpo, descendo para o peito, para depois começar a andar à volta do coração, fazendo-o arquejar e tossir involuntariamente. Logo a seguir, já estava a entrar e a sair-lhe do corpo, parando por vezes e pairando a curta distância atrás dele. Era como se uma coisa viva se estivesse a alojar e à procura de qualquer coisa. Depois voltou a mudar e agora flutuava meio dentro e meio fora do seu corpo, na zona da nuca.

— O que se passa? — perguntou Will, tentando mostrar alguma coragem, mas não obteve qualquer resposta das duas figuras cada vez mais escuras. — Não estão a assustar-me com nada disto, sabem?

Continuaram calados.

Will fechou os olhos por um segundo mas, quando os voltou a abrir, descobriu que já nem sequer conseguia distinguir as silhuetas dos dois Styx na escuridão total que o rodeava. Começou a lutar contras as amarras.

— A ausência de luz enerva-te? — perguntou o Styx da esquerda.

— Não, porque havia de me enervar?

— Como é que te chamas?

As palavras eram como golpes na cabeça de Will de uma faca na escuridão.

— Já vos disse que é Will, Will Burrows.

— O teu nome verdadeiro!

Mais uma vez, a voz fez com que Will fizesse uma careta de dor — como se cada palavra lhe desse choques eléctricos nas têmporas.

— Não percebo o que é que quer dizer — respondeu, com os dentes cerrados.

A bola de energia começou a entrar-lhe no meio do crânio, o zumbido agora ainda mais intenso, o pulsar intenso a envolvê-lo num espesso cobertor de pressão.

— Estás com o homem chamado Burrows?

A cabeça de Will estava a andar à roda, ondas de dor a percorrê-lo. Sentia picadas desagradáveis nas mãos e nos pés, como se estivesse a ser picado por agulhas e alfinetes. Esta sensação horrível estava lentamente a espalhar-se pelo corpo todo.

— É o meu pai! — gritou ele.

— Qual é o vosso propósito aqui? — A voz nítida, rápida e antipática estava agora mais próxima.

— O que é que lhe fizeram? — perguntou Will numa voz sufocada, engolindo a saliva que lhe inundava a boca. Sentia que estava prestes a vomitar.

— Onde é que está a tua mãe?

A voz comedida mas insistente parecia agora estar a emanar da bola no interior da sua cabeça. Parecia que ambos os Styx lhe tinham entrado no crânio e lhe estavam a vasculhar febrilmente a mente, como ladrões a revolver gavetas e armários à procura de objectos de valor.

— Qual é o vosso propósito? — repetiram mais uma vez.

Will tentou novamente lutar contra as tiras, mas apercebeu-se de que já não conseguia sentir o próprio corpo. De facto, tinha a sensação de ter sido reduzido a nada, restando apenas uma cabeça flutuante, atirada à deriva para um nevoeiro de escuridão, e já não conseguia perceber para que lado estava virado, se para cima se para baixo.

— NOME? PROPÓSITO?

As perguntas seguiam-se, rápidas e intensas ao mesmo tempo que Will sentia que toda a energia que lhe restava se dissipava. Depois a voz persistente tornou-se mais fraca, como se Will se estivesse a afastar dela. As palavras estavam a ser-lhe gritadas de muito longe e cada uma das palavras, quando finalmente chegava até ele, dava origem a pequenos pontos de luz na periferia da sua visão, que nadavam e saltitavam até que a escuridão à frente dele se encheu de um mar fervente de pintas brancas, tão brilhantes e tão intensas que os olhos lhe doíam. Durante todo esse tempo, os sussurros ásperos voavam à sua volta e a sala rodopiava e descia abruptamente. Foi dominada por outra onda profunda de náusea e a cabeça encheu-se-lhe de uma sensação de calor intenso ao ponto de parecer que ia explodir.

— Estou a ficar agoniado… por favor… estou a ficar… sinto-me a desmaiar… por favor — e a luz do espaço branco trespassou-o e ele sentiu-se a ficar cada vez mais pequeno até ser apenas um ponto minúsculo no imenso vazio branco. E então a luz começou a desvanecer-se e a sensação de queimadura foi-se tornando cada vez menos intensa, até tudo ficar negro e silencioso, como se o próprio universo se tivesse apagado.

Voltou a si quando o Segundo Oficial, que o levava debaixo do braço, girou a chave na fechadura da porta da cela. Estava a tremer e fraco. Tinha a parte da frente da roupa coberta de vomitado e a boca estava seca e com um acre sabor metálico que o agoniava. A cabeça estalava-lhe com dores e, quando tentou olhar para cima, foi como se parte da sua visão tivesse desaparecido. Não conseguiu evitar gemer enquanto a porta estava a ser empurrada e aberta.

— Agora já não estás tão atrevido, pois não? — disse o oficial, largando o braço de Will.

Este tentou andar, mas as pernas pareciam geleia.

— Não depois do primeiro contacto com a Luz Escura — continuou o oficial, com um sorriso trocista.

Depois de um par de passos, as pernas de Will cederam e ele caiu pesadamente de joelhos. Chester correu para ele, aterrorizado com o estado do amigo.

— Will, Will, o que é que te fizeram? — Chester estava desvairado, enquanto ajudava o amigo a dirigir-se para o banco de pedra. — Estiveste fora durante horas!

— Só cansado… — conseguiu Will murmurar, enquanto se deixava cair no banco de pedra e se enrolava numa bola, grato pela frescura do forro de chumbo na cabeça dorida. Fechou os olhos… só queria dormir… mas a cabeça continuava a girar e as ondas de náusea rebentavam em cima dele.

— TU! — berrou o polícia.

Chester, sentado ao lado do amigo, levantou-se de um salto e voltou-se para o oficial que o chamava com um indicador grosso.

— É a tua vez.

Chester olhou para Will, que estava inconsciente.

— Oh, não!

— JÁ! — ordenou o polícia. — Não me obrigues a repetir.

Relutantemente, Chester saiu para o corredor. Depois de fechar a porta à chave, o polícia agarrou-o pelo braço e arrastou-o.

— O que é a Luz Escura? — perguntou Chester, os olhos vidrados de medo.

— Só perguntas — respondeu o oficial com um sorriso. — Nada que te preocupe.

— Mas eu não sei nada…

Will acordou com o barulho de um postigo a ser aberto na parte de baixo da porta.

— Comida — anunciou friamente uma voz.

Estava a morrer de fome. Ergueu-se apoiado num braço, o corpo dorido como se estivesse com gripe. Todos os ossos e músculos do corpo se queixaram quando tentou mover-se.

— Oh, meu Deus! — gemeu e, de repente, lembrou-se de Chester.

O pequeno postigo aberto lançava para dento da cela um bocadinho mais de luz do que o habitual e, quando olhou em redor, lá estava o amigo, deitado no chão numa posição fetal, ao pé do banco de pedra forrado a chumbo. A respiração de Chester era fraca e a cara estava pálida e febril.

Will pôs-se em pé nas pernas fracas e, com dificuldade, foi buscar os dois tabuleiros que pousou no banco. Inspeccionou rapidamente o que continham. Havia duas tigelas com qualquer coisa lá dentro e um líquido dentro de umas chávenas de folha amolgadas. Tinha tudo um aspecto muito pouco apetitoso, mas pelo menos estava quente e não cheirava muito mal.

— Chester? — disse ele, agachando-se junto do amigo.

Will sentia-se terrivelmente mal. Ele, e apenas ele, era o responsável por tudo o que tinha acontecido a ambos. Começou suavemente a abanar o ombro de Chester.

— Ei! Estás bem?

— Uuu… quê…? — gemeu o amigo, tentando levantar a cabeça.

Will conseguiu perceber que ele tinha estado a sangrar do nariz; o sangue estava coagulado e manchava-lhe a cara.

— Comida, Chester. Anda, vais sentir-te melhor quando tiveres comido qualquer coisa.

Will puxou Chester e sentou-o, encostando-lhe as costas à parede. Molhou a manga no líquido de uma das chávenas e começou a limpar o sangue da cara de Chester.

— Deixa-me em paz — protestou Chester fracamente, tentando empurrá-lo.

— Ora bem, assim já está melhor. Toma, come qualquer coisa — disse-lhe Will, estendendo-lhe uma tigela, que Chester empurrou para longe imediatamente.

— Não tenho fome. Sinto-me pessimamente.

— Pelo menos bebe um bocadinho disto. Acho que é um chá de ervas qualquer. — Will entregou a bebida a Chester, que fechou as mãos à volta da chávena quente.

— O que é que eles te perguntaram? — perguntou Will, com a boca cheia de uma papa cinzenta.

— Tudo. Nome… morada… o teu nome… essas coisas todas. Não me consigo lembrar da maior parte. Acho que desmaiei… Julguei mesmo que ia morrer — disse Chester numa voz sem entoação, a olhar para o vazio.

Will começou a rir baixinho. Por estranho que pudesse parecer, o seu próprio sofrimento parecia ter sido algo aliviado ao ouvir as queixas do amigo.

— O que é que é assim tão engraçado? — perguntou Chester numa voz ultrajada. — Não tem graça nenhuma!

— Não — respondeu Will, soltando uma gargalhada. — Eu sei. Desculpa. Olha, experimenta um bocado disto. Até é bastante bom.

Chester arrepiou-se, enojado, quando viu a papa cinzenta na tigela. Mas, mesmo assim, agarrou na colher e espetou-a desconfiadamente na papa. Depois, cheirou-a.

— Não cheira assim tão mal — disse, tentando convencer-se.

— Limita-te a comê-la, bolas! — disse Will, voltando a encher a boca. — Sentia as forças a voltarem-lhe a cada colherada. — Não consigo deixar de pensar que lhes disse qualquer coisa sobre a Mamã e a Rebecca, mas não tenho a certeza de não ter sonhado. — Engoliu e ficou uns segundos calado, mordendo a parte de dentro da boca porque havia qualquer coisa que o estava a começar a preocupar. — Só espero não as ter metido em sarilhos também. — Enfiou outra colherada na boca e, ainda a mastigar, continuou a falar enquanto lhe vinha outra recordação à memória. — E o diário do Papá… continuo a vê-lo na minha cabeça, muito claramente, como se eu estivesse lá, a observar, enquanto os compridos dedos brancos deles o abrem e viram as páginas uma a uma. Mas isso não pode ter acontecido, pois não? Está tudo baralhado. E tu? Como foi?

Chester remexeu-se um bocadinho.

— Não sei. Sou capaz de ter mencionado a cave na tua casa… e a tua família… a tua mãe… e a Rebecca… sim… sou capaz de lhes ter contado qualquer coisa sobre ela… mas… oh, meu Deus, não sei… está tudo tão confuso. É como se não me conseguisse lembrar se foi isso que eu disse, ou que eu pensei.

Pousou a tigela e apoiou a cabeça nas mãos enquanto Will se reclinava para trás, a olhar para o tecto escuro.

— Gostava de saber que horas são — disse ele, soltando um suspiro, — lá em cima.

Durante o que devia ter sido a semana seguinte, sucederam-se mais interrogatórios dos Styx, a Luz Escura a deixá-los com os mesmos horrorosos efeitos secundários da primeira vez: exaustão, uma incerteza estonteada sobre o que tinham dito exactamente aos seus torturadores, e os acessos terríveis de vómitos que se seguiam.

E então chegou um dia em que os rapazes foram deixados em paz. Embora não pudessem ter a certeza, ambos estavam convencidos de que os Styx deviam ter conseguido tudo o que pretendiam na altura e esperavam, desesperadamente, que as sessões tivessem finalmente terminado.

E as horas foram passando e os rapazes dormitaram intermitentemente, as horas das refeições vieram e passaram, e eles dividiam o tempo entre andar de um lado para o outro, quando se sentiam suficientemente fortes, e descansar no banco de pedra e, ocasionalmente, até mesmo a gritar à porta, sem nenhum resultado. E naquela luz constante e imutável, perderam todo o sentido do tempo e do dia e da noite.

Para lá das paredes da cela, estavam a decorrer processos complicados: investigações, reuniões e discussões, tudo na língua secreta e áspera dos Styx, que estavam a decidir o destino a dar-lhes.

Ignorando isto, os rapazes esforçavam-se tenazmente para manter o moral elevado. Conversavam longamente, em murmúrios, sobre a forma de escaparem e sobre se Rebecca iria acabar por perceber tudo e conduzir as autoridades ao túnel da cave. Como se censuraram amargamente por não terem deixado um recado! Ou, quem sabe, talvez o pai de Will fosse a resposta para os problemas deles — conseguiria arranjar uma maneira qualquer de os tirar dali? E em que dia da semana estavam? E, o que ainda era mais importante, sem se lavarem já há tanto tempo, as roupas deviam ter adquirido um cheiro pestilento, e, sendo esse o caso, porque é que não sentiam esse cheiro um no outro?

Foi durante uma discussão particularmente animada sobre quem seriam aquelas pessoas e de onde é que teriam vindo, que o postigo de vigia se abriu de supetão e o Segundo Oficial espreitou com um sorriso escarninho. Calaram-se de imediato enquanto a porta era destrancada e a familiar figura soturna bloqueava totalmente a luz do corredor. Qual deles é que ia ser daquela vez?

— Visitas.

Olharam um para o outro, incrédulos.

— Visitas? Para nós?— perguntou Chester, sem querer acreditar.

O polícia abanou a cabeça enorme e olhou para Will.

— Tu.

— E o Ches…?

— Tu, vem imediatamente! JÁ! — gritou o polícia.

— Não te preocupes, Chester, não vou a lado nenhum sem ti — disse Will num tom confiante ao amigo, que se sentou para trás com um sorriso doloroso e assentiu com a cabeça numa confirmação silenciosa.

Will levantou-se e saiu da cela a arrastar os pés. Chester viu a porta fechar-se. Encontrando-se mais uma vez sozinho, olhou para as mãos, ásperas e encardidas de terra e ansiou por casa e por conforto. Sentiu a ferroada cada vez mais frequente da frustração e da impotência e os olhos encheram-se de lágrimas escaldantes. Não, não ia chorar, não lhes podia dar essa satisfação. Sabia que Will iria arranjar uma solução e que estaria preparado para quando isso acontecesse.

— Anda lá, estúpido — disse baixinho, limpando as lágrimas com a manga. — Deita-te e dá-me 20 — disse ele, imitando a voz do treinador de futebol, enquanto se deitava no chão da cela e começava a fazer flexões, contando ao mesmo tempo.

Will foi levado para uma sala caiada com o chão encerado e umas cadeiras dispostas à volta de uma grande mesa de carvalho. Sentadas à mesa, estavam duas figuras, ainda um bocado desfocadas visto que os olhos ainda não se tinham adaptado depois da escuridão do calabouço. Esfregou os olhos e olhou para o peito. A camisa estava imunda e, o que era ainda pior, salpicada dos vestígios secos de vomitado. Esfregou-a fracamente antes de a sua atenção ser atraída por uma vigia com um aspecto estranho na parede à sua esquerda. A superfície do vidro, se era vidro, tinha uma estranha profundidade de uma tonalidade preta e azul. E esta superfície fosca e matizada não parecia reflectir a luz dos globos da sala.

Por qualquer razão, Will não conseguia afastar os olhos da superfície. De repente, sentiu um espasmo de reconhecimento. Foi percorrido por uma sensação nova, e no entanto familiar: eles estavam lá atrás. Eles estavam a observar aquilo tudo. E, quanto mais olhava, mais a escuridão o invadia, tal como acontecera com a Luz Escura. Sentiu um espasmo repentino na cabeça. Desequilibrou-se para a frente, como se estivesse prestes a desmaiar, e a mão esquerda procurou cegamente e encontrou as costas da cadeira à sua frente. O oficial, vendo isto, agarrou-o pelo outro braço e ajudou-o a sentar-se de frente para os dois estranhos.

Will inspirou fundo um par de vezes e a tontura passou. Olhou para cima quando alguém tossiu. À frente dele, estava sentado um homem grande e, ao lado dele, mas um bocadinho mais para trás, um rapazito. O homem era muito semelhante aos outros que Will já tinha visto — podia facilmente passar pelo Segundo Oficial vestido à civil. Estava a olhar fixamente para Will com um desprezo mal disfarçado. Will sentia-se demasiado esgotado para se importar e retribuiu mortiçamente o olhar do estranho.

Depois, quando as pernas rasparam de forma audível no chão e o rapaz se aproximou mais da mesa, Will focou a atenção nele. O rapaz estava a olhar para Will com um ar espantado e intrigado. Tinha uma expressão aberta e amigável, o primeiro semblante amigável que Will via ali em baixo desde que tinha sido preso. Calculou que o rapaz devia ser uns dois anos mais novo do que ele. O cabelo era quase branco e cortado curto e os olhos azul-claros brilhavam de malícia. Quando os cantos da boca do rapaz se curvaram num sorriso, Will pensou que ele lhe parecia vagamente familiar. Tentou desesperadamente lembrar-se de onde é que já o teria visto, mas a sua mente ainda estava demasiado nublada e confusa. Franziu os olhos a olhar para o rapaz e tentou novamente descobrir de onde é que o conhecia, mas não lhe valeu de nada. Era como se estivesse a lançar o anzol num charco lamacento, tentando descobrir qualquer coisa preciosa apenas com o tacto a guiá-lo. A cabeça começou a andar à roda e fechou os olhos com força, deixando-se ficar assim.

Ouviu o homem a aclarar a garganta.

— Sou Mr. Jerome — disse ele num tom inexpressivo e superficial. Era evidente, pela voz, que não se sentia confortável com a situação e muito aborrecido por se encontrar ali. — Este é o meu filho…

— Cal — ouviu Will o rapaz dizer.

— Caleb — corrigiu o homem, apressadamente.

Seguiu-se um silêncio longo e desconfortável, mas mesmo assim Will não abriu os olhos. Sentia-se isolado e seguro com eles fechados. Era estranhamente reconfortante.

Mr. Jerome olhou irritado para o Segundo Oficial.

— Isto é uma inutilidade — resmungou. — É uma pura perda de tempo!

O polícia inclinou-se para a frente e espetou um dedo no ombro de Will.

— Endireita-te e sê civilizado para com a tua família. Mostra algum respeito.

Surpreendido, Will abriu os olhos. Girou na cadeira para olhar pasmado para o oficial.

— O quê?

— Disse para seres civilizado — apontou com a cabeça para Mr. Jerome — para a tua família.

Will voltou a girar na cadeira para ficar de frente para o homem e o rapaz.

— De que é que estão a falar?

Mr. Jerome encolheu os ombros e baixou os olhos e o rapaz franziu o sobrolho, o olhar a saltar de Will para o oficial e depois para o pai, como se não estivesse a compreender muito bem o que se estava a passar.

— O Chester tem razão, vocês são todos completamente malucos aqui em baixo — exclamou Will, e encolheu-se quando o Segundo Oficial avançou para ele com a mão levantada.

Mas a situação foi controlada quando o rapaz falou.

— Deves lembrar-te disto? — disse ele, enfiando a mão num velho saco de lona que tinha no colo.

Todos os olhos estavam fixos nele quando, por fim, tirou um pequeno objecto que colocou em cima da mesa, à frente de Will. Era um boneco de madeira, uma ratazana ou um rato. O focinho pintado de branco estava lascado e as cores desbotadas e o casaquinho de cerimónia estava a desfiar-se, todavia, os olhos cintilavam estranhamente. Cal olhou expectante para Will.

— A avó disse que era o teu preferido — continuou, quando Will não reagiu. — Deram-mo depois de te teres ido embora.

— O que é que estás…? — perguntou Will, perplexo. — Depois de eu me ter ido embora para onde?

— Não te lembras de nada? — perguntou Cal. Olhou reverentemente para o pai, que agora estava sentado para trás na cadeira, com os braços cruzados.

Will estendeu a mão e agarrou no boneco para o examinar mais de perto. Quando o inclinou para trás, reparou que os olhos se fechavam, uma cortina minúscula que extinguia a luz. Percebeu que devia haver um globo de luz minúsculo dentro da cabeça que emitia luz através das contas de vidro que eram os olhos do animal.

— Ele dorme — disse Cal, e acrescentou: — Tu tinhas esse boneco… no teu berço.

Will largou-o abruptamente em cima da mesa como se ele o tivesse mordido.

— De que é que estás para aí a falar? — perguntou bruscamente ao rapaz.

Houve um momento de incerteza da parte de todos e, mais uma vez, um silêncio enervante encheu a sala, quebrado apenas pelo Segundo Oficial que começou a cantarolar baixinho para si próprio. Will ficou sentado a olhar para o animal até que Cal o tirou da mesa e o voltou a arrumar. Depois, levantando os olhos para olhar para Will, franziu o sobrolho.

— Chamas-te Seth — disse, num tom quase zangado. — És meu irmão.

— Hah!

Will soltou uma gargalhada seca na cara de Cal e depois, como se toda a amargura pelo tratamento que recebera às mãos dos Styx subisse dentro dele, abanou a cabeça e respondeu-lhe num tom desagradável:

— Pois. Claro. Tudo o que quiseres.

Will já estava farto daquela charada. Sabia muito bem quem era a sua família e não era este par de cómicos à sua frente.

— É verdade. A tua mãe era minha mãe. Ela tentou fugir com nós os dois. Levou-te para a Superfície, mas deixou-me com a Avó e o Pai.

Will revirou os olhos e torceu-se para olhar para a cara do Segundo Oficial.

— Muito inteligente. É um bom truque, mas não acredito.

O polícia esticou os lábios, mas não disse nada.

— Foste recolhido por uma família da Superfície… — disse Cal, erguendo a voz.

— Claro, e estou prestes a ser recolhido por uma família de doidos varridos aqui em baixo! — replicou Will muito zangado, começando de facto a perder as estribeiras.

— Não desperdices as tuas palavras com ele, Caleb — disse Mr. Jerome, pousando-lhe a mão no ombro.

Mas Cal sacudiu-a e continuou, a voz a começar a faltar-lhe com o desespero.

— Eles não são a tua família verdadeira. Nós é que somos. Somos do mesmo sangue.

Will olhou para Mr. Jerome, cuja cara vermelha não exprimia nada a não ser ódio. Depois voltou a olhar para Cal, que agora se tinha sentado para trás, desanimado, a cabeça curvada. Mas Will não se impressionou. Aquilo era tudo uma brincadeira estúpida. Eles acreditarão mesmo que sou tão estúpido que me iria deixar levar por isto? — perguntou a si próprio.

Apertando o casaco, Mr. Jerome levantou-se muito depressa, dizendo:

— Isto não leva a lado nenhum.

E Cal, pondo-se também em pé, disse baixinho:

— A Avó sempre disse que irias voltar.

— Não tenho avós nenhuns. Morreram todos! — gritou Will, saltando da cadeira, os olhos a brilhar de raiva e orlados de lágrimas. Correu para a janela na parede e encostou a cara ao vidro.

— Muito espertos! — gritou. — Quase me iam fazendo cair na esparrela!

Protegeu os olhos da luz da sala num esforço para ver para lá do vidro, mas não havia nada, apenas uma escuridão inexorável. O Segundo Oficial agarrou-o por um braço e arrastou-o para longe. Will não resistiu — a capacidade de lutar tinha-o abandonado por agora.

21 Referência ao rio Estiges que, segundo a mitologia, separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos. (N. da T.)