Capítulo Vinte e Dois
Rebecca estava deitada em cima da cama, a olhar para o tecto. Acabara de tomar um banho quente e tinha o roupão verde-ácido vestido e o cabelo envolto num turbante feito com a toalha. Estava a cantarolar baixinho, acompanhando a estação de música clássica no rádio da mesa-de-cabeceira enquanto meditava nos acontecimentos dos últimos três dias.
Tinha tudo começado quando uma noite, já muito tarde, fora acordada por frenéticos toques de campainha e pancadas na porta da frente. Tinha sido forçada a levantar-se para atender, uma vez que Mrs. Burrows, sob o efeito dos comprimidos para dormir que lhe tinham sido receitados recentemente, estava morta para o mundo.
Quando abrira a porta, quase fora derrubada pelo pai de Chester, que irrompera pelo vestíbulo e a começara imediatamente a bombardeá-la com perguntas.
— O Chester ainda cá está? Ainda não voltou para casa. Tentámos telefonar, mas ninguém respondeu. — Tinha a cara cinzenta e vestia uma gabardina bege amarrotada e com a gola torcida, como se a tivesse vestido muito à pressa. — Pensámos que ele deve ter resolvido passar cá a noite. Ele está cá, não está?
— Não tenho… — começou ela a dizer quando, ao olhar por acaso para a cozinha, viu que o prato de comida que deixara preparado para Will não tinha sido tocado.
— Ele disse que andava a ajudar o Will num projecto, mas… está cá? Onde é que está o teu irmão?… Importas-te de o chamar? — As palavras de Mr. Rawls enrolavam-se umas nas outras enquanto ele olhava ansiosamente para o vestíbulo e para o cimo das escadas.
Deixando o homem a corroer-se de nervosismo, Rebecca correu para o quarto de Will. Não se deu ao trabalho de bater à porta; já sabia o que ia encontrar. Abriu a porta e acendeu a luz. Como já esperava, Will não estava lá e a cama não tinha sido utilizada. Desligou a luz, fechou a porta e desceu as escadas para junto de Mr. Rawls.
— Não, não há sinais dele — disse ela. — Mas acho que o Chester esteve aqui na noite passada, só que não sei aonde é que possam ter ido. Talvez…
Ao ouvir isto, Mr. Rawls ficou quase incoerente, balbuciando qualquer coisa a respeito de ir aos locais que eles costumavam frequentar e de chamar a Polícia enquanto saía de rompante pela porta da rua, deixando-a aberta atrás dele.
Rebecca permaneceu no vestíbulo a morder o lábio. Estava furiosa consigo própria por não ter sido mais vigilante. Com todo o seu comportamento sigiloso e aquelas saídas sorrateiras com o seu novo amigo do peito, Will andava a tramar alguma coisa havia semanas — não tinha a menor dúvida. Mas o quê?
Bateu à porta da sala de estar e, não obtendo resposta, entrou. A sala estava às escuras e abafada, e conseguia ouvir um ressonar regular.
— Mamã — chamou, com uma insistência suave.
— Uuh?
— Mamã — repetiu mais alto, abanando o ombro de Mrs. Burrows.
— O quê? Nnn… dei… xa-me.
— Vá lá, Mamã, acorde. É importante.
— Na — disse ela, numa voz sonolenta.
— Acorde. O Will desapareceu! — disse Rebecca, num tom urgente.
— Deixa… me… em paz — resmungou Mrs. Burrows, soltando um grande bocejo e esbracejando com o braço para afastar Rebecca.
— Sabe para onde é que ele foi? E o Chester…
— Oh, vai-te embora! — guinchou a mãe, virando-se de lado na cadeira e puxando a velha manta de viagem para a cabeça.
O ressonar leve recomeçou e, quando ela voltou para o seu estado de hibernação, Rebecca soltou um suspiro de pura exasperação, parada ao lado do vulto sem forma.
Foi para a cozinha e sentou-se. Com o número de telefone do Inspector Chefe na mão e o telefone sem fios em cima da mesa à frente dela, pensou durante muito tempo no que deveria fazer. Foi só de madrugada que fez a chamada e, conseguindo apenas o serviço de atendimento de chamadas, deixou uma mensagem. Voltou para cima, para o quarto, e tentou ler um livro enquanto esperava por uma resposta.
A Polícia apareceu exactamente às sete horas e seis minutos. Depois disso, os acontecimentos ganharam uma vida própria. A casa encheu-se de polícias fardados que revistaram todas as divisões, espreitando para dentro de todos os armários e de todas as cómodas. Calçando luvas de borracha, começaram pelo quarto de Will e passaram depois ao resto da casa, acabando na cave, mas, aparentemente, sem encontrarem nada de muito interesse. Sentiu-se quase divertida quando os viu tirar peças de roupa de Will do cesto da roupa suja no patamar e selá-las meticulosamente, uma a uma, em sacos de plástico antes de as levar para fora de casa. Gostaria de saber o que é que as cuecas sujas de Will lhes poderiam dizer.
Ao princípio, Rebecca ocupou-se a arrumar a confusão que os investigadores tinham deixado atrás deles, usando a actividade como uma desculpa para percorrer a casa e ver se podia concluir alguma coisa das conversas que iam tendo lugar. Depois, como ninguém parecia prestar-lhe a menor atenção, abandonou a pretensa arrumação e limitou-se a andar por onde queria, passando a maior parte do tempo no corredor à frente da porta fechada da sala de estar onde o DCI e uma detective estavam a entrevistar Mrs. Burrows. Daquilo que Rebecca conseguiu apanhar, ela parecia oscilar entre a indiferença e a preocupação, e não foi capaz de lançar qualquer luz sobre o paradeiro actual de Will.
Os investigadores acabaram por acampar à frente da casa, onde se deixaram ficar, a andar de um lado para o outro, a fumar e a rir entre eles. Pouco depois, o DCI e a detective saíram da sala estar e Rebecca seguiu-os até à porta da rua. Quando o DCI seguia pelo carreiro que levava à fila dos carros da Polícia estacionados, não conseguiu deixar de ouvir o que ele estava a dizer.
— Aquela tem vários parafusos a menos — disse ele para a colega.
— Muito triste — comentou a detective.
— Sabes… — disse o DCI, parando para deitar uma olhadela à casa — perder um elemento da família é uma infelicidade… — A colega assentira com a cabeça.
— … mas perder dois é uma completa desgraça — continuou o DCI. — Uma verdadeira desgraça, na minha opinião.
A colega voltou a assentir, com um sorriso lúgubre na cara.
— É melhor passarmos o parque público a pente fino, só para não termos dúvidas — ouviu Rebecca antes de ele ficar finalmente demasiado longe para ser ouvido.
No dia seguinte, a Polícia mandara um carro buscá-las e Mrs. Burrows tinha sido interrogada durante várias horas, enquanto Rebecca fora convidada a esperar noutra sala, com uma senhora dos Serviços Sociais.
Agora, três dias mais tarde, a mente de Rebecca estava a repetir mais uma vez toda a cadeia de acontecimentos. Fechando os olhos, recordou as caras sérias que vira na esquadra da Polícia e as conversas que tinha conseguido ouvir.
— Isto não vai servir para nada — disse ela, olhando para o relógio e apercebendo-se das horas. Levantou-se da cama, desenrolou a toalha da cabeça e vestiu-se rapidamente.
Lá em baixo, Mrs. Burrows estava refugiada na sua poltrona, enroscada e completamente vestida debaixo da manta de viagem, que estava enrolada à volta dela como um casulo de xadrez descolorido. A única luz na sala vinha de um programa sem som da Universidade Aberta, a fria luz azul a pulsar intermitentemente, fazendo com que as sombras saltassem e tremessem, emprestando uma espécie de vida à mobília e aos objectos da sala. Estava a dormir profundamente quando foi acordada por um barulho. Um murmúrio profundo, como o do vento a atravessar os ramos das árvores do jardim lá fora. Entreabriu os olhos. No canto mais afastado da sala, junto das cortinas meio abertas das portas-janelas, conseguiu distinguir a sombra de um vulto grande. Por um curto instante, perguntou-se se estaria a sonhar, enquanto a sombra se deslocava e mudava de forma sob o efeito da luz da televisão. Esforçou-se por distinguir o que ali estava. Interrogou-se se poderia ser um intruso. O que é que devia fazer? Fingir que continuava a dormir? Ou ficar tão quieta e silenciosa que o intruso a ignoraria?
Conteve a respiração, tentando controlar o pânico crescente. Os segundos pareceram horas enquanto a sombra permanecia parada. Começou a pensar que, afinal, não passava de uma sombra inocente. Um truque da luz e uma imaginação demasiado activa. Soltou o ar dos pulmões e abriu os olhos completamente.
De repente, ouviu-se um som fanhoso e, para seu grande horror, a sombra dividiu-se em dois borrões fantasmagóricos distintos que avançaram para ela a uma velocidade enorme. Enquanto os seus sentidos se embrulhavam com o choque e o terror, uma voz calma e tranquila dentro da cabeça disse-lhe com uma convicção absoluta: «NÃO SÃO FANTASMAS!»
Num abrir e fechar de olhos, as figuras estavam ao pé dela. Tentou gritar, mas não conseguiu emitir um único som. Um tecido áspero roçou-lhe pela cara, ao mesmo tempo que sentia um cheiro bafiento peculiar, qualquer coisa parecida com roupas cheias de mofo. Depois, uma mão forte bateu-lhe e ela encolheu-se com a dor que lhe cortou a respiração, arquejando para tentar respirar, até que, como um recém-nascido, recuperou o fôlego e soltou um guincho assustador.
Não conseguiu oferecer qualquer resistência quando foi arrancada da cadeira e levada pelo ar até ao vestíbulo. Agora, berrando como uma louca e contorcendo-se e esperneando, teve um rápido vislumbre de uma outra figura que se avultava na porta da cave e uma mão enorme fechou-se-lhe sobre a boca, silenciando-lhe os gritos.
Quem eram eles? O que é que queriam? De repente, ocorreu-lhe um pensamento terrível. A sua preciosa televisão e os seus gravadores de vídeo! Era isso! Era isso que eles queriam! A terrível injustiça daquilo tudo. Era demais, depois de tudo o que ela tivera de aguentar. Mrs. Burrows viu vermelho.
Arranjando energia em lado nenhum, chamou a si a força sobre-humana dos desesperados. Soltou uma das pernas e deu um pontapé violento. Isto deu origem a uma intensa actividade quando os seus assaltantes tentaram agarrar-lhe a perna, mas ela deu outro pontapé ao mesmo tempo que se torcia e dava meia volta. A cara de um dos atacantes ficou ao seu alcance; aproveitou a oportunidade e atirou-se para a frente, mordendo com todas as suas forças. Descobriu que o tinha agarrado pelo nariz e sacudiu a cabeça como se fosse um terrier com uma ratazana.
Ouviu-se um gemido de congelar o sangue e a força com que estava a ser agarrada abrandou um pouco. Isso foi o suficiente para Mrs. Burrows. Enquanto as figuras perdiam o controlo e caíam para trás uma de encontro à outra, Mrs. Burrows pousou os pés no chão e lançou os braços para trás, como um esquiador a descer uma encosta. Com um grito, escapou-se e fugiu para a cozinha, deixando-os a agarrarem apenas a manta de viagem em que tinha estado enrolada, como se fosse a cauda abandonada de um lagarto em fuga.
Num abrir e fechar de olhos, Mrs. Burrows voltou. Atirou-se para o meio das três formas enormes. E armou-se uma verdadeira confusão.
Rebecca, do seu lugar privilegiado no cimo das escadas, estava perfeitamente colocada para observar enquanto tudo se desenrolava. Na semi-escuridão do vestíbulo lá em baixo, uma coisa qualquer metálica relampejava para trás e para a frente e de um lado para o outro, e conseguia ver uma cara tresloucada de fúria. A cara de Mrs. Burrows. Rebecca percebeu que ela segurava uma frigideira que brandia para a esquerda e para a direita como se fosse um alfange. Era a frigideira nova, com o fundo extra-largo e o revestimento especial anti-aderente.
As formas sombrias renovaram o seu ataque uma e outra vez, mas Mrs. Burrows não cedeu terreno, repelindo-as com golpes múltiplos, a frigideira a ecoar de forma satisfatória quando batia numa cabeça aqui ou num cotovelo acolá. No meio de toda aquela confusão, Rebecca conseguia ver os clarões dos movimentos enquanto a salva de golpes continuava a uma velocidade incrível, dando origem a um coro de resmungos e gemidos.
— MORTE! — gritava Mrs. Burrows. — MORRE! MORRE!
Uma das sombras estendeu o braço tentando agarrar no de Mrs. Burrows que segurava a frigideira, enquanto ele girava desenhando oitos, tendo como resultado uma tremenda pancada que fez estalar um osso. O homem soltou um ganido como o de um cão ferido e cambaleou para trás, levando os outros atrás. E então, em uníssono, deram meia volta e escaparam-se os três pela porta da frente. Moviam-se com uma velocidade espantosa, como baratas apanhadas pela luz, e desapareceram rapidamente.
Na acalmia que se seguiu, Rebecca desceu sorrateiramente as escadas e acendeu a luz do vestíbulo. Mrs. Burrows, com o cabelo encharcado a cair-lhe em mechas escuras na cara branca, como chifres flácidos, virou imediatamente o seu olhar de louca para Rebecca.
— Mamã — chamou Rebecca, baixinho.
Mrs. Burrows ergueu a frigideira acima da cabeça e avançou para ela. A expressão feroz dos olhos enlouquecidos pela fúria fez com que Rebecca desse um passo atrás, pensando que ia ser atacada.
— Mamã! Mamã, sou eu, está tudo bem, eles foram-se embora… já se foram embora!
Uma expressão de satisfação consigo própria espalhou-se pela cara de Mrs. Burrows enquanto se observava e assentia com a cabeça, parecendo ter reconhecido a filha.
— Está tudo bem, Mamã, a sério — disse Rebecca, tentando acalmá-la.
Aventurou-se a aproximar-se da mulher ofegante e, muito delicadamente, tirou-lhe a frigideira da mão. Mrs. Burrows não ofereceu qualquer resistência.
Rebecca soltou um suspiro de alívio e, olhando em volta, reparou numas manchas escuras na carpete. Podia ser lama ou — olhou mais de perto e franziu o sobrolho — sangue.
— Se eles sangram — disse Mrs. Burrows, seguindo o olhar de Rebecca, — posso matá-los.
Arreganhou os lábios, mostrando os dentes, e soltou um rosnido baixo e depois desatou a rir horrivelmente, com umas gargalhadas ásperas e nada naturais.
— Que lhe parece uma bela chávena de chá quente? — perguntou Rebecca, forçando um sorriso quando Mrs. Burrows se voltava a acalmar.
Passando-lhe um braço à volta da cintura, levou-a na direcção da porta da sala de estar.