Capítulo Vinte e Três
Will foi violentamente acordado pela porta da cela a abrir-se para trás e pelo Primeiro Oficial a pô-lo em pé. Ainda tonto de sono, foi levado como um embrulho para fora do calabouço, através da área da recepção da esquadra e pela porta de entrada até ao cimo das escadas de pedra.
O oficial largou-o e ele desceu uns quantos degraus a cambalear, até conseguir recuperar o equilíbrio. Ficou ali parado, estonteado e muito desorientado. Ouviu um baque surdo quando a mochila aterrou aos seus pés e, sem dizer uma palavra, o oficial deu meia volta e entrou na esquadra.
Era uma sensação estranha estar ali parado, banhado pelo clarão dos candeeiros da rua, depois de ter estado confinado naquela cela sombria durante tanto tempo. Sentiu uma brisa ligeira na cara — era húmida e cheirava a bafio, mas, mesmo assim, era um alívio depois da falta de ar que sentira no calabouço.
«O que é que acontece agora?», pensou, coçando o pescoço por baixo do colarinho da camisa de tecido grosseiro que lhe tinha sido dada por um dos oficiais. Com a mente ainda entorpecida, começou a bocejar, mas parou ao ouvir um barulho: um cavalo inquieto relinchou e bateu com um casco nas pedras húmidas. Will ergueu imediatamente a cabeça e viu uma carruagem escura, um pouco mais abaixo, do outro lado da rua, a que estavam atrelados dois cavalos brancos como a neve. À frente, estava sentado um cocheiro com as rédeas na mão. A porta da carruagem abriu-se, Cal saltou para fora e atravessou a rua na sua direcção.
— O que é isto? — perguntou Will, desconfiado, recuando um passo quando Cal se aproximou.
— Vamos levar-te para casa — replicou Cal.
— Para casa? O que é que queres dizer com «casa»? Contigo? Não vou a lado nenhum sem o Chester! — disse ele, resolutamente.
— Chiu, cala-te. Ouve! — Cal estava agora muito perto dele e falou com um tom de urgência. — Eles estão a observar-nos.
Inclinou a cabeça para o fundo da rua, sem nunca tirar os olhos de Will.
À esquina, estava uma figura sozinha, escura como uma sombra desencarnada, completamente imóvel. Will só conseguia distinguir a gola branca.
— Não me vou embora sem o Chester — silvou Will.
— O que é que achas que lhe vai acontecer se não vieres connosco? Pensa nisso.
— Mas…
— Podem ser brandos com ele, ou podem não ser. Depende de ti — disse Cal, olhando implorativamente para os olhos de Will.
Will olhou para trás, na direcção da esquadra uma última vez, depois suspirou e abanou a cabeça.
— Está bem.
Cal sorriu e, agarrando na mochila de Will, seguiu à frente até à carruagem, que continuava à espera. Segurou a porta para Will, que o seguiu de má vontade, com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa. Não estava a gostar nada daquilo.
Enquanto a carruagem se punha em movimento, Will estudou o interior austero. Não havia dúvida de que não tinha sido feita tendo em conta o conforto. Os assentos, tal como os painéis laterais, eram feitos de uma madeira dura e lacada a preto, e tudo cheirava a verniz com um leve odor a lixívia, que lembrava bastante um ginásio escolar no primeiro dia do período escolar. Mesmo assim, tudo era melhor do que a cela em que tinha estado fechado durante tantos dias com Chester. Will sentiu um repentino aperto no coração quando pensou no amigo, ainda encarcerado e agora sozinho no calabouço. Interrogou-se se Chester teria sequer sido avisado de que o tinham levado, e jurou a si próprio que arranjaria uma forma de tirar o amigo de lá, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida.
Desconsolado, deixou-se cair para trás no banco e pôs os pés no assento da frente, depois abriu a cortina de couro e espreitou pela janela aberta da carruagem. Enquanto a carruagem rolava ruidosamente pelas ruas desertas e cavernosas, casas sombrias e montras de lojas às escuras iam passando com uma regularidade monótona. Imitando Will, Cal também se recostou e pôs os pés em cima do banco da frente, deitando de quando em quando uma olhadela de soslaio a Will, ao mesmo que sorria muito satisfeito consigo próprio.
Os dois rapazes mantiveram-se em silêncio, ambos perdidos nos seus pensamentos, mas não passou muito tempo antes que a curiosidade natural de Will começasse a despertar um pouco. Fez um esforço consciente para observar as vistas sombrias que iam passando por ele, mas, passado um curto espaço de tempo, as pálpebras começaram a ficar pesadas à medida que o seu cansaço extremo e o aparentemente infindável submundo o começaram a vencer. Por fim, embalado pelo bater ritmado das patas dos cavalos, adormeceu, acordando ocasionalmente com um sobressalto, despertado pelo andamento irregular da carruagem. Com uma expressão algo espantada, olhava em volta constrangidamente, para grande contentamento de Cal, e depois a cabeça voltava a pender e ele tornava a sucumbir à fadiga.
Não sabia se tinha dormido minutos ou mesmo horas quando o cocheiro estalou o chicote e o acordou novamente. A carruagem continuou a rolar e os candeeiros da rua faiscavam através da janela a intervalos menos regulares. Will deduziu que deviam estar a chegar aos limites exteriores da cidade. Áreas mais amplas abriam-se entre os edifícios, atapetados por canteiros escuros, verdes, quase pretos, de líquenes, ou de qualquer coisa semelhante. Depois apareceram tiras de terra de ambos os lados da estrada, que estavam divididas em lotes por vedações com aspecto frágil, e que continham canteiros do que pareciam ser uma espécie de fungos grandes.
A dada altura, a velocidade a que seguiam abrandou enquanto atravessavam uma pequena ponte que cruzava um canal que parecia de tinta. Will olhou para a água que corria vagarosa e letárgica, que fluía como crude e, por qualquer razão, aquilo encheu-o de um terror inexplicável.
Tinha acabado de se voltar a recostar no assento e estava outra vez prestes a adormecer quando, de repente, a estrada começou a descer por uma encosta muito inclinada e a carruagem virou à esquerda. Depois, quando a estrada voltou a ficar plana, o cocheiro gritou «Oah!», e os cavalos abrandaram para um trote.
Agora, Will estava completamente acordado e enfiou a cabeça pela janela para ver o que se estava a passar. Havia um enorme portão de metal a bloquear o caminho e, ao lado, um grupo de homens amontoavam-se à volta de uma fogueira a aquecer as mãos. Afastada deles e parada no meio da estrada, uma figura encapuçada levantava uma lanterna no ar e agitava-a de um lado para o outro, fazendo sinal ao cocheiro para parar. Quando a carruagem se imobilizou, e para seu grande terror, Will avistou a figura instantaneamente reconhecível de um Styx a sair das sombras. Will fechou rapidamente a cortina e encolheu-se dentro da carruagem. Olhou interrogativamente para Cal.
— É o Skull Gate22. É a entrada principal para a Colónia — explicou Cal, num tom tranquilizador.
— Julgava que já estávamos na Colónia.
— Não — replicou Cal, incredulamente, — aquilo era apenas o Bairro. É uma espécie de… assim como um posto avançado… a nossa cidade fronteiriça.
— Então há mais para lá disto?
— Mais? Meu Deus, há quilómetros!
Will ficou sem fala. Olhou assustado para a porta enquanto o som de tacões de botas nas pedras da rua se aproximava. Cal agarrou-lhe o braço.
— Não te preocupes, eles verificam sempre todas as pessoas que querem passar. Não digas nada. Se houver algum problema, eu é que trato do assunto.
Naquele preciso instante, a porta do lado de Will abriu-se violentamente e o Styx fez incidir a luz de uma lanterna de latão no interior da carruagem. Fez com que o feixe de luz lhes iluminasse as caras e depois recuou um passo e iluminou o cocheiro, que lhe entregou uma folha de papel. Leu-o rapidamente. Aparentemente satisfeito, voltou-se novamente para os rapazes, dirigindo a luz ofuscante directamente para os olhos de Will e, com um esgar de desprezo, fechou a porta com um estrondo. Devolveu o papel ao cocheiro, deu meia volta e foi-se embora.
Ouvindo um estrépito clamoroso, Will levantou a bainha da cortina e voltou a espreitar para fora. Quando o guarda lhes fez sinal para avançarem, a luz da lanterna revelou que o portão era, na realidade, uma grade levadiça. Will ficou a observar enquanto ela subia aos sacões até a uma estrutura que o fez pestanejar de assombro. Esculpida numa pedra mais leve e sobressaindo da parede por cima da grade levadiça, estava uma caveira imensa, sem dentes.
— Aquilo é arrepiante — murmurou Will, baixinho.
— É mesmo para isso. É um aviso — replicou Cal, com indiferença, enquanto o cocheiro fazia estalar o chicote e a carruagem avançava e entrava, através da boca da aparição assustadora, numa caverna.
Inclinando-se para fora da janela, Will ficou a ver a grade a descer outra vez atrás deles, até que a curva do túnel a escondeu. Os cavalos ganharam velocidade e a carruagem fez uma curva e desceu uma encosta íngreme para um túnel gigantesco talhado no arenito vermelho escuro. À medida que o túnel descia, o ar ia mudando — começou a cheirar a fumo — e, por uns instantes, o zumbido de fundo sempre presente cresceu de intensidade até sacudir a própria estrutura da carruagem.
Fizeram uma curva apertada final e o zumbido abrandou e o ar tornou-se outra vez mais limpo. Cal juntou-se a Will na janela quando um enorme espaço se abriu à frente deles. Nos dois lados da estrada, erguiam-se filas de edifícios, uma floresta complexa de condutas de tijolo subia pelas paredes da caverna por cima deles, como varizes inchadas. Ao longe, chaminés escuras lançavam chamas de um azul frio e plumas de fumo verticais que, praticamente sem serem perturbadas por correntes de ar, subiam até ao tecto da caverna. Aí, o fumo acumulava-se, ondeando ao de leve e parecendo uma ondulação suave na superfície de um oceano castanho invertido.
— Isto é a Colónia, Will — disse Cal, a cara ao lado da de Will na janela estreita. — Isto é…
Will limitava-se a olhar pasmado, mal se atrevendo a respirar.
— … a nossa casa.
22 Portão da Caveira. (N. da T.)