Capítulo Vinte e Quatro
Mais ou menos pela mesma altura em que Will e Cal estavam a chegar à casa Jerome, Rebecca estava parada, pacientemente, ao lado de uma senhora da Assistência Social às Famílias, no décimo terceiro andar de Mandela Heights, uma torre sombria e degradada no lado mais sórdido de Wandsworth. A assistente social estava a tocar à campainha do número 65 pela terceira vez sem obter resposta, enquanto Rebecca olhava em redor do chão sujo. Com um gemido baixo e cheio de remorsos, o vento soprava através das janelas partidas da escada e agitava os sacos de lixo parcialmente cheios amontoados a um canto.
Rebecca arrepiou-se. Não era só por causa do vento frio, mas também porque estava prestes a ser entregue àquilo que ela considerava ser um dos piores lugares na Terra.
Naquela altura, a assistente social já tinha desistido de tocar à campainha e começara a bater com força na porta. Continuava a não haver resposta, mas conseguia ouvir-se claramente o som da televisão lá dentro. Voltou a bater, desta vez mais insistentemente, parando quando, finalmente, ouviu o barulho de alguém a tossir e a voz estridente de uma mulher do outro lado da porta.
— ‘Tá bem, ‘tá bem, por amor de Deus, dêem-nos tempo!
A assistente social voltou-se para Rebecca e tentou sorrir-lhe animadoramente. A única coisa que conseguiu foi algo próximo de uma careta de pena.
— Parece que ela está em casa.
— Oh, óptimo — respondeu Rebecca, sarcasticamente, agarrando nas duas pequenas malas de viagem.
Ficaram à espera num silêncio desconfortável enquanto, com muita confusão, a porta era destrancada e a corrente retirada, tudo acompanhado de resmungos e pragas e pontuado por ataques de tosse intermitentes. Finalmente, a porta abriu-se e uma mulher de meia-idade, muito mal arranjada, com um cigarro pendurado ao canto da boca, mirou, desconfiadamente, a assistente social de alto a baixo.
— Que raio é isto? — perguntou, um olho franzido por causa do fumo do cigarro, que saltava com o vigor de um batuta de um maestro quando ela falava.
— Trouxe-lhe a sua sobrinha, Mrs. Boswell — anunciou a assistente social, indicando Rebecca, parada atrás dela.
— Vocês o quê? — respondeu rudemente a mulher, deitando cinza para cima dos sapatos imaculados da assistente social.
Rebecca encolheu-se.
— Não se lembra… falámos ao telefone ontem?
Os olhos lacrimosos da mulher pousaram em Rebecca, que sorriu e se inclinou um bocadinho para a frente para ficar dentro do seu limitado campo de visão.
— Olá, Tia Jean — cumprimentou ela, com o seu melhor sorriso.
— Rebecca, querida, claro, sim, olha-me só para ti, ‘tás tão grande! Uma verdadeira senhora. — A Tia Jean tossiu e abriu a porta para trás. — Sim, sim, entrem, tenho uma coisa ao lume.
Deu meia volta e afastou-se a arrastar os pés pelo pequeno corredor da entrada, deixando Rebecca e a assistente social a inspeccionar as pilhas de jornais já a encaracolarem, amontoadas ao longo das paredes, e o enorme número de cartas por abrir e de panfletos que cobriam a carpete imunda. Estava tudo coberto de uma fina camada de pó e os cantos do vestíbulo estavam enfeitados por festões de teias de aranha. Todo o espaço tresandava aos cigarros da Tia Jean. A assistente social e Rebecca ficaram paradas, em silêncio, até que a assistente social, como se se estivesse a obrigar a despertar de um transe, despediu-se abruptamente de Rebecca, desejando-lhe boa sorte. Parecia estar com uma pressa louca de se ir embora e Rebecca ficou a vê-la dirigir-se para a escada, fazendo uma curta pausa para deitar uma olhadela às portas do elevador como se estivesse à espera de que, por um milagre qualquer, ele tivesse voltado a funcionar e ela não tivesse de enfrentar a longa descida a pé até ao rés-do-chão.
Rebecca entrou relutantemente no apartamento e foi ter com a tia à cozinha.
— Dava-me jeito uma ajudinha — disse a Tia Jean, tirando um maço de cigarros do meio do lixo em cima da mesa.
Rebecca inspeccionou a cena de mau gosto e má qualidade que tinha à sua frente. Feixes de luz atravessavam o nevoeiro sempre presente do fumo dos cigarros que pairava à volta da tia, como se fosse uma nuvem de tempestade pessoal. Franziu o nariz quando sentiu o cheiro ácido da comida da véspera no ar.
— Se vais ficar na minha casa — disse a tia no meio de um ataque de tosse, — vais ter de usar o corpinho.
Rebecca não se mexeu; tinha medo que qualquer movimento, por pequeno que fosse, resultasse em ficar coberta da porcaria que cobria todas as superfícies.
— Vá, Becs, pousa as malas, arregaça as mangas. Podes começar por pôr a chaleira ao lume.
A Tia Jean sorriu enquanto se sentava à mesa da cozinha. Acendeu um cigarro novo no que acabara de fumar antes de o apagar no tampo de fórmica da mesa, falhando por completo o cinzeiro a abarrotar.
O interior da casa Jerome era rico e confortável, com carpetes de padrões subtis, superfícies de madeira polida e paredes verdes escuras e vermelho-Borgonha. Cal tirou a mochila a Will e pousou-a ao lado de uma mesinha, onde estava um candeeiro de petróleo com uma chaminé de vidro em cima de um pequeno pano decorativo de linho creme.
— Por aqui — disse Cal, indicando que Will o devia seguir por uma primeira porta que saía do vestíbulo. — Esta é a sala de estar — anunciou, orgulhosamente.
A atmosfera da sala estava quente e húmida, com pequenas correntes de ar fresco que entravam pela grelha incrustada de porcaria por cima do sítio onde estavam parados. O tecto era baixo e tinha molduras de gesso, que tinham adquirido um tom branco sujo devido ao fumo e à fuligem da fogueira que crepitava na lareira enorme. À frente desta, esparramado num tapete persa, estava um animal grande e com aspecto sarnento, a dormir de costas com as patas para cima, exibindo desavergonhadamente um par de testículos pendentes.
— Um cão! — exclamou Will, um pouco surpreendido por ver um animal doméstico ali.
O animal era da cor da ardósia desgastada; não tinha praticamente pêlo nenhum, exceptuando umas pequenas áreas ocasionais onde havia, aqui e ali, uns tufos de pêlo escuro que irrompiam da pele frouxa que fazia pregas como se fosse um fato mal feito.
— Cão? É o Bartleby, é um gato, uma variante Rex. Um excelente caçador.
Atónito, Will voltou a olhar para o animal. Um gato? Era do tamanho de um doberman, muito mal tosquiado. Não havia nada de felino no animal, cuja grande caixa torácica subia e descia com a respiração regular. Quando Will se inclinou para o examinar mais de perto, resfolegou alto e as patas enormes agitaram-se, continuando a dormir.
— Cuidado! Ele arranca-te a cara!
Will virou-se para trás e viu uma senhora velha sentada numa das duas grandes poltronas de couro colocadas de cada um dos lados da lareira. Ela tinha estado sentada muito para trás quando ele entrara e não a tinha visto.
— Não lhe ia tocar — respondeu ele na defensiva, levantando-se.
Os olhos cinzentos claros da velha estavam a cintilar e nunca se despegaram da cara de Will.
— Não é preciso que lhe toquem — disse ela, acrescentando: — Ele é muito instintivo, lá isso é, o nosso Bartleby.
O rosto resplandecia de afeição quando olhou para o animal descomunal e luxuriante.
— Avó, este é o Will.
Mais uma vez, o olhar inteligente da velha senhora virou-se para Will e ela assentiu com a cabeça.
— Estou ciente disso. Ele é um Macaulay da cabeça aos pés e tem os olhos da mãe, não há que enganar. Olá, Will.
Will estava mudo de espanto, hipnotizado pelos seus modos delicados e a luz vibrante que dançava nos olhos velhos. Era como se uma parte dele, uma memória vaga, se tivesse acendido, tal como uma brasa a morrer é reacendida por uma brisa leve. Sentiu-se imediatamente à vontade na presença dela. Mas porquê? Ele era, por natureza, sempre prudente quando conhecia um adulto e, ali em baixo, neste lugar mais estranho do mundo, não podia dar-se ao luxo de baixar a guarda. Tinha decidido colaborar com estas pessoas, fazer o jogo deles, mas não estava disposto a confiar em ninguém. Contudo, com esta senhora idosa era diferente. Era como se a conhecesse.
— Anda, senta-te, fala comigo. Tenho a certeza de que há imensas histórias fascinantes que me podes contar da tua vida lá em cima. — Ergueu momentaneamente o rosto para o tecto. — Caleb, põe a chaleira ao lume, vamos comer umas gulodices. O Will vai contar-me tudo sobre si — disse ela, apontando para a outra cadeira de couro com uma mão delicada, mas forte. Era a mão de uma mulher que tivera de trabalhar duramente durante toda a sua vida.
Will sentou-se na borda da cadeira, o lume quente a aquecê-lo e a descontraí-lo. Embora não o conseguisse explicar a si próprio, sentia que, finalmente, tinha chegado a um lugar seguro, a um santuário.
A velha senhora olhou atentamente para ele e, inconscientemente, Will devolveu-lhe o olhar, o calor da atenção dela tão reconfortante como o da fogueira na lareira. Todo o horror e sofrimento da última semana foram momentaneamente esquecidos e, soltando um suspiro, sentou-se para trás, observando-a com uma curiosidade crescente.
O cabelo era fino e branco como a neve e ela usava-o num carrapito no cimo da cabeça, preso por um gancho de tartaruga. Trazia um vestido azul, simples, de mangas compridas e com uma gola branca aos folhos.
— Porque é que tenho a sensação de que já a conheço? — perguntou Will, repentinamente.
Tinha a sensação estranhíssima de que podia dizer tudo o que lhe viesse à cabeça a esta completa estranha.
— Porque conheces — respondeu ela, com um sorriso. — Peguei-te ao colo quando eras bebé e cantei-te canções de embalar.
Ele abriu a boca para protestar, para dizer que o que ela acabara de dizer não podia ser verdade, mas calou-se. Franziu o sobrolho. Mais uma vez, lá muito do fundo, veio-lhe uma centelha de reconhecimento: era como se todas as fibras do seu corpo lhe estivessem a dizer que ela estava a falar verdade. Havia qualquer coisa tão familiar na velha senhora. A garganta contraiu-se-lhe e engoliu várias vezes, tentando controlar os sentimentos. A velha senhora viu a emoção encher-lhe os olhos de lágrimas.
— Ela teria tido tanto orgulho em ti, sabes — disse a Avó Macaulay. — Eras o primeiro filho. — Inclinou a cabeça para a prateleira da lareira. — Dás-me aquela fotografia… ali, no meio?
Will levantou-se para examinar as muitas fotografias em molduras de tamanhos e formas diferentes. Não reconheceu logo nenhum dos retratados; alguns estavam a sorrir disparatadamente, outros tinham expressões soleníssimas. Todos tinham a mesma característica etérea dos daguerreótipos, as fotografias antigas que mostram imagens que parecem fantasmas de pessoas de um passado distante, que ele tinha visto no museu do pai em Highfield. Como a velha senhora lhe tinha pedido, esticou-se para agarrar na maior fotografia de todas, que tinha o lugar mais importante no centro da prateleira. Vendo que era de Mr. Jerome e de uma versão mais nova de Cal, hesitou.
— Sim, é essa — confirmou a senhora.
Will entregou-lha, ficando a observar enquanto ela a virava no colo, abria os fechos e levantava a parte de trás. Havia outra fotografia lá escondida, que ela extraiu com as unhas e lhe passou sem fazer qualquer comentário.
Voltando-a de forma a apanhar a luz, Will estudou a fotografia de perto. Mostrava uma mulher jovem com uma camisa branca e uma saia comprida preta. Nos braços, segurava um pequeno embrulho. O cabelo era de um branco puro, idêntico ao de Will, e a cara era linda, uma cara forte com olhos bondosos e uma estrutura de ossos delicada, uma boca cheia e um queixo quadrado… o queixo dele, em que ele tocou involuntariamente.
— Sim — disse a velha senhora, suavemente, — é a Sarah, a tua mãe. Tu és igual a ela. Essa fotografia foi tirada umas semanas depois de teres nascido.
— Hum? — exclamou Will, quase deixando cair a fotografia.
— O teu verdadeiro nome é Seth… foi com esse nome que foste baptizado. Quem ela tem ao colo és tu.
Sentiu-se como se o coração tivesse parado. Espreitou para o embrulho. Conseguia ver que era um bebé, mas não conseguia distinguir bem a cara por causa da envolta. A cabeça andou à roda, as mãos começaram a tremer, como se todos os seus sentimentos e pensamentos se misturassem uns nos outros. Mas, apesar de tudo isto, algo definido emergiu e fez sentido, como se tivesse andado a lutar com um problema até ali insolúvel e, de repente, tivesse descoberto a solução. Como se, enterrada bem no fundo da sua consciência, tivesse estado sempre uma pequena pergunta escondida, uma suspeita nunca admitida de que a sua família, o Dr. Burrows e a Mrs. Burrows e a Rebecca, que ele conhecera durante toda a sua vida, fossem, por qualquer razão, diferentes dele. Não conseguia explicá-lo nem a si próprio, mas sabia.
As suas suspeitas de que eles estivessem a tentar enganá-lo, e de que tudo aquilo fosse um truque deliberadamente elaborado, evaporaram-se e uma lágrima rolou-lhe pela face, deixando uma linha clara e delicada na cara suja. Limpou-a apressadamente com a mão. Quando entregou a fotografia à Avó Macaulay, apercebeu-se de que estava corado.
— Conta-me como é lá em cima, na Superfície — disse ela, para o poupar ao embaraço.
Will sentiu-se grato, ainda de pé, pouco à vontade, ao lado da cadeira dela enquanto a senhora voltava a montar a moldura e depois lha estendia para a voltar a pôr no sítio.
— Bem… — começou ele, titubeante.
— Sabes, nunca vi a luz do dia nem nunca senti o Sol na cara. Qual é a sensação? Dizem que queima.
Will, agora outra vez sentado na cadeira, olhou para ela. Estava pasmado.
— Nunca viu o Sol?
— Muito poucos daqui o viram — disse Cal, voltando a entrar na sala e sentando-se no tapete aos pés da avó. Começou a amassar delicadamente a prega pendurada e bastante sarnenta debaixo do queixo do gato; quase de imediato, um ronronar alto e pulsante encheu a sala.
— Conta-nos, Will, conta-nos como é — disse a Avó Macaulay, pousando a mão na cabeça de Cal quando este se encostou ao braço da cadeira.
E Will começou a contar-lhes, um bocadinho hesitante ao princípio, mas depois, como se uma torrente tivesse sido libertada, descobriu que estava quase a tagarelar ao falar da sua vida lá em cima. Espantava-o sentir como era fácil e muito natural falar com aquelas pessoas que conhecia há tão pouco tempo. Falou-lhes da família, da escola, deliciando-os com histórias sobre as escavações com o pai — ou melhor, com a pessoa que ele acreditava ser o pai até esse momento — e sobre a mãe e a irmã.
— Gostas muito da tua família da Superfície, não gostas? — perguntou a Avó Macaulay, e Will foi apenas capaz de assentir com a cabeça.
Sabia que nada disto, nenhuma destas revelações de que podia ter uma família verdadeira ali em baixo na Colónia, iria mudar o que sentia pelo pai. E, por muito que Rebecca lhe tivesse dificultado a vida, tinha de confessar que sentia terrivelmente a sua falta. Sentiu uma tremenda onda de remorsos, sabendo que agora ela devia estar doida de preocupação sem saber o que lhe tinha acontecido. O seu pequeno e bem ordenado mundo estaria a desmoronar-se à sua volta. Engoliu com força. — Desculpa, Rebecca, devia ter-te contado, devia ter-te deixado um bilhete! Perguntou para consigo se ela teria chamado a Polícia quando descobrira que ele tinha desaparecido, o mesmo procedimento, bastante ineficaz, que tinham utilizado quando o pai tinha desaparecido. Mas tudo isto foi posto de parte, mal a imagem de Chester, sozinho e ainda encarcerado naquela cela pavorosa, lhe passou pela cabeça.
— O que é que vai acontecer ao meu amigo? — perguntou, repentinamente.
A Avó Macaulay não respondeu, a olhar absorta para o lume, mas Cal não hesitou em responder.
— Eles nunca o irão deixar voltar… nem a ti.
— Mas porquê? — perguntou Will. — Prometemos que não diremos nada… acerca disto tudo.
Houve uns segundos de silêncio e depois a Avó Macaulay tossicou delicadamente.
— Isso não resultaria com os Styx — disse ela. — Eles não podem correr o risco de alguém falar de nós aos habitantes da Superfície. Poderia dar origem à Descoberta.
— Descoberta?
— É o que nos ensinam no Livro das Catástrofes. É o fim de todas as coisas, quando as pessoas são descobertas e morrem às mãos dos de lá de cima — disse Cal num tom monótono, como se estivesse a recitar um verso.
— Deus nos proteja — murmurou a velha senhora, desviando os olhos e voltando a concentrar-se na lareira.
— Então o que é que eles vão fazer com o Chester? — perguntou Will, cheio de medo da resposta.
— Ou o põem a trabalhar, ou podem bani-lo… metê-lo num comboio para as Profundezas, e deixá-lo entregue à sua sorte — replicou Cal.
Will ia perguntar o que eram as Profundezas quando, no átrio, a porta da frente se abriu com um estrondo. O lume flamejou e lançou uma série de fagulhas que cintilaram por uns breves instantes enquanto eram sugadas pela chaminé. A Avó Macaulay espreitou para o outro lado da poltrona, sorrindo quando Cal e Bartleby se puseram instantaneamente de pé. Uma poderosa voz masculina trovejou:
— ORA VIVA PARA QUEM ESTÁ AÍ DENTRO!
Ainda meio a dormir, o gato chocou de lado com a parte de baixo de uma mesa de apoio, que caiu com um grande estrondo ao mesmo tempo que a porta da sala se abria violentamente. Um homem maciço e robusto irrompeu pela sala como um trovão, a cara pálida, mas com as bochechas rosadas, a sorrir com uma excitação não disfarçada.
— ONDE É QUE ELE ESTÁ? ONDE É QUE ELE ESTÁ? — gritou ele, cravando o olhar feroz em Will que se levantou apreensivamente da cadeira, sem saber como interpretar esta explosão humana.
Com duas passadas, o homem tinha atravessado a sala e apertava Will num abraço de urso, levantando-o do chão como se ele pesasse tanto como um saco de penas. Soltando uma gargalhada ensurdecedora, segurou Will à distância de um braço, cujos pés balançaram no ar, impotentemente.
— Deixa-me olhar para ti. Sim… Sim, és o filho da tua mãe, não há dúvida nenhuma; são os olhos, não são Ma? Ele tem os olhos dela e o queixo… a forma daquele rosto lindo, meu Deus, ah, ah, ah! — rugiu ele.
— Vá lá, Tam, põe-no no chão — disse a Avó Macaulay.
O homem voltou a pousar Will no chão, ainda a observar atentamente os olhos assarapantados do rapaz, ao mesmo tempo que sorria e abanava a cabeça.
— É um grande dia, um grande dia mesmo! — estendeu a Will uma mão que parecia um presunto.
— Sou o teu Tio Tam.
Will estendeu automaticamente a mão e Tam agarrou-a na palma gigantesca e sacudiu-a, apertando-a com toda a força, e, puxando Will para ele, revolveu-lhe o cabelo com a outra mão, ao mesmo tempo que lhe cheirava ruidosamente o cimo da cabeça de uma forma muito exagerada.
— Este está cheio de sangue Macaulay — trovejou ele. — Não acha, Ma?
— Sem a menor dúvida — respondeu ela, com doçura. — Mas não o estejas a assustar com as tuas maluquices, Tam.
Bartleby estava a esfregar a cabeça enorme nas calças pretas do Tio Tam, ao mesmo tempo que ia insinuando o corpo comprido entre o dele e o de Will, sempre a ronronar e a emitir um gemido baixo que não parecia deste mundo. Tam olhou de relance para o animal e depois olhou para Cal, que ainda estava de pé ao lado da cadeira da avó, a gozar o espectáculo.
— Cal, o aprendiz do mago, como é que estás, meu rapaz? O que é que pensas disto tudo, hem? — Olhou de um rapaz para o outro. — Meu Deus, é tão bom ver os dois outra vez debaixo do mesmo tecto! — Abanou a cabeça, incredulamente. — Irmãos, ah, irmãos, meus sobrinhos. Isto merece uma bebida. Uma bebida a sério!
— Íamos mesmo agora tomar um chá — interveio rapidamente a Avó Macaulay. — Queres tomar uma chávena?
Ele virou-se para a mãe e sorriu abertamente com um brilhozinho malicioso nos olhos.
— Porque não? Vamos lá beber um chá e pôr a conversa em dia.
Mal ouviu isto, a velha senhora saiu da sala e o Tio Tam sentou-se na cadeira dela, que gemeu com o seu peso. Esticando as pernas, tirou um cachimbo de dentro do sobretudo enorme e encheu-o com o tabaco de uma bolsa. Depois usou uma brasa da lareira para acender o cachimbo, recostou-se para trás e soprou uma nuvem de fumo azulado para o tecto ornamentado, sempre a olhar para os dois rapazes.
Durante um bocado, a única coisa que se ouviu foi o estalar do carvão a arder, o ronronar intrusivo de Bartleby e os sons distantes da velha senhora a afadigar-se na cozinha. Ninguém sentia necessidade de falar enquanto a luz trémula lhes saltitava nas caras e lançava sombras trementes nas paredes atrás deles. Por fim, o Tio Tam falou.
— Sabes que o teu pai da Superfície passou por aqui?
— Viu-o? — perguntou Will, inclinando-se para o Tio Tam.
— Não, mas falei com aqueles que o viram.
— Onde é que ele está? O polícia disse que ele estava em segurança.
— Em segurança? — O Tio Tam inclinou-se para a frente, tirando o cachimbo da boca, a cara a assumir uma expressão mortalmente séria. — Ouve, não acredites numa palavra que essa escumalha sem coluna vertebral te disser, são todos umas serpentes e uns miseráveis. São os sapos venenosos dos Styx.
— Já chega, Tam — disse a Avó Macaulay, entrando na sala a chocalhar um tabuleiro com os apetrechos do chá nas mãos trémulas e um prato com umas «gulodices», como ela lhes chamava, uns montes sem forma cobertos de icing sugar. Cal levantou-se e ajudou-a, dando as chávenas a Will e ao Tio Tam. Will deu a cadeira à Avó Macaulay e sentou-se no tapete ao lado de Cal.
— E então, o que é que há com o meu pai? — perguntou Will um pouco abruptamente, sem conseguir conter-se mais tempo.
Tam assentiu com a cabeça e voltou a acender o cachimbo, lançando umas grandes nuvens de fumo que lhe envolveram a cabeça como se fosse nevoeiro.
— Desencontraste-te dele por uma semana. Foi para as Profundezas.
— Banido? — Will sentou-se muito direito, a cara muito preocupada ao lembrar-se do termo que Cal usara.
— Não, não — exclamou Tam, gesticulando com o cachimbo. — Ele queria ir! Uma coisa muito curiosa, segundo todos os relatos, ele foi voluntariamente… sem anúncios… sem espectáculo… nada das habituais cenas teatrais dos Styx. — O Tio Tam encheu a boca de fumo e expeliu-o vagarosamente, com a testa franzida. — Suponho que não teria sido um grande espectáculo para as pessoas, sem tiradas declamatórias e sem gemidos dos condenados. — Olhou para o lume, continuando de testa franzida como se estivesse totalmente confundido com tudo aquilo. — Nas semanas antes de partir, ele tinha andado a passarinhar por aí, a escrevinhar no bloco de notas… a aborrecer as pessoas com perguntas tolas. Acho que os Styx pensaram que ele era um bocado… — Tam bateu com o dedo no lado da testa.
A Avó Macaulay aclarou a garganta e olhou severamente para ele.
— … inofensivo — disse ele, corrigindo-se. — Acho que foi por isso que o deixaram andar por aí, mas podes apostar que lhe vigiaram todos os movimentos.
Will remexeu-se pouco à vontade no sítio onde estava sentado no tapete persa; não lhe parecia correcto estar a exigir respostas deste homem simpático e bem disposto, este homem que era, supostamente, seu tio, mas não conseguia conter-se.
— O que é que são exactamente as Profundezas? — perguntou.
— Os círculos interiores, o Interior. — O Tio Tam apontou para o chão com a ponta do cachimbo. — Por baixo de nós. As Profundezas.
— É um sítio mau, não é? — interveio Cal.
— Nunca lá estive. Não é um sítio para onde se queira ir — disse o Tio Tam, olhando para Will.
— Mas o que é que lá há? — perguntou Will, morto por saber mais coisas sobre o sítio para onde o pai tinha ido.
— Bem, a uns oito ou nove quilómetros mais abaixo, há outras… suponho que lhes poderias chamar colónias. É aí que o Comboio dos Mineiros pára, é aí que vivem os Coprolites. — Chupou ruidosamente o cachimbo. — O ar é mau aí em baixo. É o fim da linha, mas os túneis continuam muito mais, quilómetros e quilómetros, ao que dizem. As lendas até falam de um mundo interior bem fundo, no centro, povoações mais antigas, cidades mais antigas, maiores do que a Colónia. — O Tio Tam soltou uma gargalhada de desprezo. — Cá na minha opinião, é tudo uma data de patranhas.
— Mas já houve alguém que tivesse descido esses túneis? — perguntou Will, esperando fervorosamente que alguém o tivesse feito.
— Bem, há algumas histórias. No ano 220, ou por aí, dizem que um Colono regressou depois de vários anos de Banimento. Como é que ele se chamava…. Abraham qualquer coisa?
— Abraham de Jaybo — disse a Avó Macaulay, baixinho.
O Tio Tam olhou para a porta e baixou a voz.
— Quando o encontraram na Estação dos Mineiros, ele estava num estado horrível, coberto de cortes e equimoses, sem língua… cortada, dizem. Estava quase morto de fome, parecia um cadáver ambulante. Não durou muito; morreu uma semana depois, de uma doença desconhecida que fez com que o sangue fervesse e saísse pelas orelhas e pela boca. Não podia falar, claro, mas há quem diga que fez desenhos, uma data deles, quando estava deitado, demasiado assustado para conseguir dormir.
— Os desenhos eram sobre quê? — perguntou Will, com os olhos esbugalhados.
— Ao que parece, sobre tudo: máquinas infernais, animais estranhos, paisagens impossíveis e coisas que ninguém conseguia compreender. Os Styx disseram que era tudo produto de uma mente doente, mas há outros que dizem que as coisas que ele desenhou existem mesmo. Até hoje, os desenhos estão bem guardados a cadeado nos cofres fortes do Governador… embora ninguém que eu conheça os tenha alguma vez visto.
— Meu Deus, daria tudo para os ver — disse Will, fascinado com o que acabara de ouvir.
O Tio Tam soltou uma gargalhada profunda.
— O que foi? — perguntou Will.
— Bem, segundo parece, o tal tipo Burrows disse exactamente a mesma coisa quando lhe contaram a história… usou exactamente as mesmas palavras.