Capítulo Vinte e Oito

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Muito abaixo das ruas e das casas da Colónia, uma figura solitária agitou-se.

Ao princípio, o vento tinha sido uma brisa suave, mas depressa se tornara numa ventania aterrorizadora que lhe atirara saibro para a cara com toda a ferocidade de uma tempestade de areia. Tinha enrolado a camisa sobresselente à volta da cara e da boca quando ele se tornara ainda mais forte, ameaçando atirá-lo ao chão. E a poeira tinha sido tão densa e impenetrável que não conseguia ver as mãos à frente dele.

Não havia nada a fazer a não ser esperar que passasse. Tinha-se deitado no chão, enrolado numa bola, os olhos obstruídos e a arder com o fino pó preto. Tinha ficado ali, o uivo queixoso a rebentar-lhe os pensamentos até que, enfraquecido pela fome, caiu num torpor, meio acordado, meio a dormir.

Algum tempo depois, acordou com um estremeção e, sem saber quanto tempo tinha passado enrolado no chão do túnel, ergueu a cabeça para deitar um olhar cauteloso em redor. A escuridão estranha do vento tinha desaparecido, restando apenas algumas nuvens. Tossindo e cuspindo, sentou-se e sacudiu o pó da roupa. Com um lenço manchado, limpou os olhos lacrimejantes e os óculos.

Depois, de gatas, o Dr. Burrows começou a rastejar e a esgaravatar a terra seca, usando a luz de uma orbe luminescente, à procura de um montinho de matéria orgânica que juntara antes da tempestade de pó se ter desencadeado para fazer uma fogueira. Quando finalmente a encontrou, agarrou numa coisa que parecia uma folha de feto encaracolada. Mirou-a com os olhos franzidos cheio de curiosidade — não fazia a menor ideia do que seria. Como tudo o resto nos últimos nove ou dez quilómetros do túnel, estava tão seca e estaladiça como pergaminho antigo.

Estava a ficar cada vez mais preocupado com a sua provisão de água. Quando entrara no Comboio dos Mineiros, os Colonos tinham-lhe fornecido um cantil cheio de água, um pacote de uns vegetais secos quaisquer, umas tiras de carne e um pacotinho de sal. Podia racionar a comida, mas o problema era realmente a água; não tinha conseguido encontrar nenhuma fonte de água fresca onde pudesse voltar a encher o cantil naqueles dois dias e estava a chegar a um nível perigosamente baixo.

Depois de ter voltado a fazer um montinho de matéria orgânica, começou a bater com dois bocados de pedra um no outro até saltar uma pequena faísca que, ao cair no montículo, provocou uma chamazinha. Com a cabeça encostada à terra saibrosa do chão, soprou a chama suavemente e abanou-a com a mão, alimentando-a até o fogo ter pegado, banhando-o na sua luz. Depois agachou-se ao pé do diário aberto, sacudindo a camada de pó das folhas, e retomou o seu desenho.

Que descoberta! Um círculo de pedras regulares, cada uma delas do tamanho de uma porta e com umas letras estranhas gravadas nas faces. Não reconhecia a língua apesar de todos os seus anos de estudo. Era diferente de tudo o que já vira. A mente galopava enquanto ele sonhava com as pessoas que tinham escrito estas palavras, que tinham vivido muito abaixo da superfície da Terra, muito possivelmente durante milhares de anos, e que, no entanto, tinham a sofisticação suficiente para construir este monumento subterrâneo.

Pensando que tinha ouvido um ruído, parou repentinamente de desenhar e sentou-se muito direito. Controlando a respiração, manteve-se completamente imóvel, o coração a martelar-lhe no peito, enquanto espreitava para a escuridão para lá da iluminação do fogo. Mas não ouvia nada, apenas o silêncio que tudo invadia e que tinha sido a sua companhia durante toda a viagem.

— Estás a ficar nervoso, meu velho — disse ele, voltando a descontrair-se. Sentiu-se tranquilizado com o som da sua própria voz nos confins do corredor rochoso. — É apenas o teu estômago outra vez, meu velho tonto — comentou, e riu-se em voz alta.

Desenrolou a camisa da boca e do nariz. A cara estava golpeada e ferida, o cabelo estava embaraçado e sujo e uma barba estranha pendia-lhe do queixo. As roupas estavam imundas e rasgadas em certos sítios. Parecia um eremita louco. Enquanto o fogo crepitava, agarrou no diário e voltou a concentrar-se no círculo de pedras.

— Isto é verdadeiramente excepcional, uma miniatura de Stonehenge. Que descoberta incrível! — exclamou, esquecendo-se completamente, durante uns momentos, da fome e sede que sentia. Com o rosto animado e feliz, continuou a desenhar.

Depois largou o diário e o lápis e ficou sentado sem se mexer durante uns segundos enquanto uma expressão distante se infiltrava nos olhos. Levantou-se e, levando o globo de luz na mão, afastou-se da fogueira, recuando até ficar fora do círculo das pedras. Começou a andar vagarosamente à volta dele. Enquanto o fazia, segurava o globo ao lado da cara como se fosse um microfone. Esticou os lábios e baixou a voz a tentar imitar um entrevistador de televisão.

— E diga-me, Dr. Burrows, recentemente nomeado Reitor dos Estudos Subterrâneos, o que significa para si o Prémio Nobel?

Andando agora mais depressa à volta do círculo, com uma elasticidade jovial nos seus passos, a voz voltou ao seu tom normal e mudou a luz do globo para o outro lado da cara. Adoptou uma atitude levemente surpreendida fazendo uma pantomima de hesitação.

— Oh, eu… eu… eu devo dizer… foi verdadeiramente uma grande honra, e, ao princípio, senti que não era digno de seguir as pegadas desses grandes homens e mulheres…

Nesse preciso momento, o pé bateu num bocado de rocha e ele praguejou cegamente enquanto dava uns passos aos tropeções. Recuperando o equilíbrio, recomeçou a andar, continuando simultaneamente com a sua resposta.

— As pegadas desses grandes homens e mulheres, dessa gloriosa lista de vencedores que me precederam.

Tornou a passar o globo para o outro lado da cara.

— Mas, Professor, as suas contribuições para tantos campos, medicina, física, química, biologia, geologia e, acima de tudo, arqueologia, são inestimáveis. O senhor é considerado um dos maiores eruditos vivos do planeta. Alguma vez pensou que iria chegar a isto, no dia em que começou o túnel na sua cave?

O Dr. Burrows soltou um «aah» melodramático quando o globo mudou de lado outra vez.

— Bem, eu sabia que me estava reservado mais… muito mais do que a minha carreira no museu lá em…

A voz do Dr. Burrows esmoreceu e calou-se, ao mesmo tempo que ele estacava. A cara perdeu a alegria e ficou vazia de qualquer expressão. Enfiou o globo na algibeira, mergulhando nas sombras projectadas pelas pedras enquanto pensava na família e se interrogava em como estariam sem ele. Abanando a cabeça suja de lama, voltou a arrastar os pés para dentro do círculo e deixou-se cair no chão ao lado do diário, a olhar sem ver para as chamas tremeluzentes que iam ficando mais esborratadas enquanto ele as fitava. Por fim, tirou os óculos e limpou a humidade dos olhos com a parte de dentro dos punhos.

— Tenho de fazer isto — disse para si mesmo, voltando a pôr os óculos e a pegar no lápis. — Tenho de fazer isto.

A luz da fogueira irradiava por entre as pedras do círculo, projectando no chão e nas paredes do túnel raios de luz suaves e móveis. No centro desta roda, totalmente absorta, a figura de pernas cruzadas resmungou baixinho enquanto apagava um erro no diário.

Naquela altura, não conseguia pensar em ninguém; era um homem tão obcecado que nada mais lhe interessava, nada mesmo.