Capítulo Vinte e Nove
Enquanto o fogo crepitava na lareira, Mr. Jerome reclinou-se numa das poltronas a ler o jornal. De tempos a tempos, as pesadas páginas enceradas tombavam para fora e ele flectia os punhos para as voltar a endireitar. Do seu lugar à mesa, Will não conseguia perceber um único cabeçalho; a tinta das maiúsculas escorrera de tal forma para o papel que parecia que um formigueiro tinha molhado as patas na tinta preta e depois passeado por cima das páginas.
Cal jogou outra carta e ficou ansiosamente à espera da resposta do irmão, mas Will estava a achar impossível continuar concentrado no jogo. Era a primeira vez que estava na mesma sala com Mr. Jerome sem ser o receptor de olhares hostis ou de um silêncio ressentido. Isto, por si só, representava um marco importante nas relações de ambos.
De repente, ouviu-se um estrondo quando a porta da rua se abriu e os três ergueram os olhos.
— Cal! Will! — berrou excitadamente o Tio Tam, irrompendo do átrio e dando cabo da cena de aparente felicidade doméstica.
Assumiu imediatamente uma expressão séria quando viu Mr. Jerome a olhar para ele do cadeirão onde estava sentado com uma expressão assassina.
— Oh! Desculpe, eu…
— Julgava que tínhamos um acordo — grunhiu Mr. Jerome, ao mesmo tempo que se levantava e dobrava o jornal debaixo do braço. — Disseste que não virias cá… quando eu estivesse em casa.
Passou empertigadamente por Tam sem lhe deitar um único olhar.
O Tio Tam fez uma careta e sentou-se ao lado de Will. Com um aceno conspirativo, indicou aos rapazes que se deviam chegar para mais perto dele. Esperou até ouvir os passos de Mr. Jerome desaparecerem ao longe antes de falar.
— Chegou o momento — disse Tam num murmúrio, extraindo do bolso interior do casaco uma pequena caixa cilíndrica de metal.
Tirou a tampa de um dos lados e, com os rapazes a observarem, puxou para fora um mapa velho e rasgado que estendeu em cima das cartas no tampo da mesa, alisando os cantos para que o mapa ficasse direito. Depois, voltou-se para Will.
— O Chester vai ser banido amanhã à noite — informou.
— Oh, Meu Deus! — Will endireitou-se na cadeira como se tivesse sofrido um choque eléctrico.
— Acabei de saber, está marcado para as seis horas — disse Tam. — Vai lá estar uma grande multidão. Os Styx gostam de transformar estas coisas em espectáculos. Acreditam que o sacrifício é bom para a alma.
Voltou-se para o mapa, cantarolando baixinho enquanto seguia a complexa grelha de linhas até que, finalmente, o dedo chegou a um minúsculo quadrado escuro. Depois, ergueu os olhos para olhar para Will como se se tivesse acabado de lembrar de qualquer coisa.
— Sabes, não é difícil… tirar-te daqui sozinho. Mas com o Chester também, isso já é uma história muito diferente. Foi preciso pensar muito mais, mas… — fez uma pausa, com Will e Cal a olharem fixamente para os olhos dele — descobri. Pode haver um caminho para fugir para a Superfície… pela Cidade Eterna.
Will ouviu Cal ofegar mas, por muito que quisesse fazer perguntas ao tio sobre esse lugar, não lhe pareceu apropriado enquanto Tam estava a falar. Ele explicou a Will o plano de fuga, traçando a rota no mapa enquanto os rapazes escutavam extasiados, absorvendo todos os detalhes. Os túneis tinham nomes como Watling Street, The Great North e Bishopswood. Will interrompeu o tio uma única vez com uma sugestão que, depois de muito meditar, Tam incorporou no plano. Embora exteriormente parecesse calmo e eficiente, Will sentia a excitação e o medo a crescerem-lhe no estômago.
— O problema com isto — disse Tam, soltando um suspiro — são as coisas desconhecidas, as variáveis, e nisso não te posso ajudar. Se encontrares alguns obstáculos, vais ter de tocar de ouvido… de te desenvencilhar o melhor que puderes.
Nesta altura, Will reparou que parte da centelha habitual nos olhos de Tam tinha desaparecido — não parecia o ser confiante do costume.
Tam voltou a repetir o plano do princípio ao fim e, quando acabou, tirou uma coisa da algibeira e entregou-a a Will.
— É uma cópia das direcções para quando estiveres dentro da Colónia. Se te apanharem, Deus nos livre, engole essa porcaria!
Will desdobrou-a cuidadosamente. Era um bocado de pano, do tamanho de um lenço quando completamente aberto. A superfície estava coberta de uma imensa quantidade de linhas infinitesimais a tinta castanha, como um labirinto sem regras, representando cada uma delas um túnel. Embora o percurso de Will estivesse claramente marcado a tinta vermelho claro, Tam fê-lo percorrê-lo rapidamente.
Tam ficou a observar enquanto Will dobrava cuidadosamente o mapa de pano e depois voltou a falar numa voz suave.
— Isto tem de funcionar como um relógio. Porias toda a tua família em perigo se os Styx pensassem nem que fosse por um segundo que eu tinha tido alguma coisa a ver com isto… e não se ficariam só comigo; Cal, a tua avó e o teu pai ficariam todos na linha de fogo. — Apertou com força o braço de Will contra a mesa para dar mais ênfase à gravidade do aviso. — Mais uma coisa, quando chegarem à Superfície, tu e o Chester vão ter de desaparecer. Não tive tempo para preparar nada, por isso…
— E Sarah? — disparou Will quando a ideia lhe ocorreu repentinamente, embora o nome ainda lhe parecesse estranho nos seus lábios. — A minha mãe verdadeira? Não me poderia ajudar?
Na cara de Tam apareceu um leve sorriso.
— Estava a pensar quando é que te lembrarias disso.
O sorriso desapareceu e ele disse, como se estivesse a escolher as palavras com todo o cuidado:
— Se a minha irmã ainda estiver viva, e ninguém tem a certeza, está muito bem escondida. — Olhou para a palma da mão e esfregou-a com o polegar da outra. — Um mais um às vezes dá zero.
— O que é que quer dizer com isso? — perguntou Will.
— Bem, se por qualquer milagre a descobrisses, podias estar a indicar o caminho aos Styx. Nessa altura iriam acabar ambos a alimentar as larvas. — Voltou a levantar a cabeça e abanou-a uma vez, olhando pensativamente para Will. — Não, lamento, mas estás entregue a ti próprio. Vais ter de correr depressa e para muito longe, para o bem de todos nós e não só para o teu. Presta atenção às minhas palavras, se os Styx te agarrarem, vão fazer-te vomitar tudo, mais cedo ou mais tarde, e isso pôr-nos-ia a todos em perigo — rematou, sombriamente.
— Nessa altura, também teríamos de nos ir embora, não é verdade, Tio Tam? — perguntou Cal, numa voz cheia de coragem.
— Deves estar a brincar! — Tam voltou-se severamente para ele. — Não teríamos a mínima hipótese. Nem os veríamos aproximar.
— Mas… — começou Cal.
— Olha, isto não é um jogo, Caleb. Se os irritares demasiadas vezes, não estarás cá muito tempo para o lamentares. Antes que percebas o que te está a acontecer, estarás a dançar a Old Nick’s Jig27. — Fez uma pausa. — Sabes o que é isso? — Tam não esperou por uma resposta. — É um numerozinho interessante. Cosem-te os braços atrás das costas… — remexeu-se na cadeira, pouco à vontade — … com fio de cobre, arrancam-te as pálpebras e atiram-te para a câmara mais escura que possas imaginar, cheia de vermes vermelhos.
— De quê? — perguntou Will.
Tam estremeceu e, ignorando a pergunta de Will, continuou:
— Quanto tempo é que julgas que aguentarias? Quantos dias a chocar com as paredes na escuridão, o pó a fazer-te arder os olhos arruinados, antes de caíres de exaustão? Sentir as primeiras dentadas na pele quando eles se começarem a alimentar? Não o desejaria ao meu pior… — Não acabou a frase.
Os dois rapazes engoliram com força, mas a expressão de Tam voltou a iluminar-se.
— Já chega disso — disse ele. — Ainda tens aquela luz, não tens?
Ainda atordoado com o que acabara de ouvir, Will olhou para ele sem perceber. Depois recompôs-se e assentiu com a cabeça.
— Óptimo — disse Tam, tirando um pequeno embrulho de pano do bolso do casaco e pondo-o à frente de Will. — E estas podem vir a dar jeito.
Will tocou hesitantemente no embrulho.
— Bem, vá lá, espreita.
Will desapertou os cantos. Lá dentro estavam quatro pedras arredondadas de um preto acastanhado, com o tamanho de berlindes.
— Pedras nodo! — exclamou Cal.
— Sim. São mais raras do que botas de lesmas — Tam sorriu. — Estão descritas nos livros antigos, mas ninguém, excepto eu e os meus rapazes, viu uma. O Imago descobriu estas.
— O que é que elas fazem? — perguntou Will, a olhar para as estranhas pedras.
— Aqui em baixo, não vais derrotar um Colono ou, pior ainda, um Styx numa luta leal. As únicas armas que tens são luz e fuga — respondeu Tam. — Se te vires metido num aperto, abre uma destas coisas. Atira-a contra qualquer coisa dura e mantém os olhos bem fechados… vai dar a explosão da luz mais brilhante que possas imaginar. Espero que estas ainda estejam boas — sopesou uma na mão. Olhou para Will.
— Então, achas que estás pronto para isto?
Will disse que sim com a cabeça.
— Certo — disse o grande homem.
— Obrigado, Tio Tam. Não consigo dizer-lhe quanto… — disse Will, faltando-lhe as palavras.
— Não é preciso, meu rapaz.
Tam despenteou-lhe o cabelo afectuosamente. Baixou os olhos para a mesa e não falou durante uns segundos. Foi totalmente inesperado; o silêncio e o Tio Tam não combinavam. Will nunca o tinha visto assim, este homem gregário e imponente. A única coisa que conseguia imaginar era que ele estivesse aborrecido e não o quisesse demonstrar. Mas quando Tam ergueu a cabeça, o sorriso largo estava lá e a voz ribombava como sempre.
— Eu sabia que isto ia acontecer... Estava destinado a acontecer mais cedo ou mais tarde. Nós, os Macaulays, somos leais e lutaremos sempre por aqueles que amamos e em quem acreditamos, seja qual for o preço a pagar. Tu terias tentado fazer qualquer coisa para salvar o Chester e terias ido à procura do teu pai, quer eu te ajudasse, quer não.
Will assentiu com a cabeça, sentindo os olhos a encherem-se de lágrimas.
— Foi o que eu pensei! — trovejou Tam. — Tal como a tua mãe… tal como a Sarah… um Macaulay da cabeça aos pés! — Agarrou Will pelos ombros e apertou-o com firmeza. — A minha cabeça sabe que tens de ir, mas o meu coração diz o contrário. — Apertou Will contra si e suspirou. — É uma pena… podíamos ter passado uns bons tempos aqui em baixo, nós os três. Uns belos tempos mesmo.
Will, Cal e Tam conversaram até altas horas e, quando finalmente Will foi para a cama, mal dormiu.
De manhã cedo, antes de haver movimento em casa, Will arrumou a mochila e enfiou no cano da bota o mapa de pano que o Tio Tam lhe dera. Verificou se as pedras nodo e a esfera de luz estavam nas algibeiras e depois aproximou-se de Cal e abanou-o para o acordar.
— Vou-me embora — disse Will, baixinho, quando os olhos do irmão se abriram.
Cal sentou-se a coçar a cabeça.
— Obrigado por tudo, Cal — sussurrou Will, — e dizes adeus à Avó por mim, não dizes?
— Claro que digo — respondeu o irmão, e depois franziu o cenho. — Sabes que daria tudo para ir contigo.
— Eu sei, eu sei… mas ouviste o que disse o Tio Tam, tenho mais hipóteses se for sozinho. De qualquer das formas, a tua família está aqui — disse ele por fim, voltando-se para a porta.
Will desceu as escadas em bicos de pés. Estava muito excitado por estar outra vez em movimento, mas isto era temperado por uma tristeza inesperada por se estar a ir embora. Claro, ele podia ficar ali, num sítio a que realmente pertencia, se o quisesse, em vez de se aventurar no desconhecido e destruir tudo. Seria tão fácil voltar simplesmente para a cama. Quando chegou ao vestíbulo, ouviu Bartleby a ressonar nas sombras. Era um barulho reconfortante, o barulho do lar, nunca mais voltaria a ouvir aquele som se se fosse embora agora. Parou à porta, hesitante. Não! Como é que poderia viver consigo mesmo se escolhesse deixar o Chester entregue aos Styx? Preferia morrer a tentar libertá-lo. Inspirou fundo e, deitando um olhar por cima do ombro à casa tranquila, abriu o pesado ferrolho da porta. Abriu-a, passou o limiar e fechou-a silenciosamente atrás de si. Tinha saído.
Sabia que tinha de percorrer uma distância considerável, por isso começou a andar depressa, a mochila a marcar o ritmo nas suas costas. Levou cerca de 40 minutos a chegar ao edifício à saída da caverna que Tam lhe descrevera. Não era possível confundi-lo pois, ao contrário da maioria das estruturas da Colónia, tinha um telhado de telhas e não de pedra.
Agora estava na estrada que levava ao Skull Gate. Tam dissera-lhe que tinha de ser cauteloso porque os Styx mudavam as sentinelas a intervalos irregulares e não havia maneira de se saber quando ia aparecer um ao virar da esquina.
Saindo da estrada, Will trepou por cima de um portão e atravessou o pátio que estava à frente do edifício, uma casa em ruínas de uma quinta. Ouviu um grunhido de porcos que vinha de um dos edifícios mais afastados e viu de relance umas galinhas presas num galinheiro noutra zona. Estavam magras e mal alimentadas, mas tinham penas muito brancas.
Entrou no edifício com o telhado de telha e viu as velhas traves de madeira encostadas à parede, tal como Tam tinha descrito. Quando rastejou para debaixo delas, uma coisa qualquer moveu-se na sua direcção.
— Que…?
Era Tam. Mandou imediatamente que Will se calasse, levando um dedo aos lábios. Will mal conseguiu conter a surpresa. Olhou interrogativamente para Tam, mas a cara do homem estava carregada e séria.
Mal havia espaço para os dois debaixo das traves e Tam agachou-se desconfortavelmente enquanto fazia deslizar uma enorme laje ao longo da parede. Depois inclinou-se para Will.
— Boa sorte! — sussurrou-lhe ao ouvido e, literalmente, empurrou-o para dentro da abertura.
Depois a laje fechou-se com um ruído desagradável atrás de Will, que ficou sozinho.
Na escuridão profunda, enfiou a mão no bolso à procura da esfera de luz a que já tinha atado um cordel grosso. Enfiou-a no pescoço, ficando assim com as duas mãos livres. Ao princípio, deslocou-se com facilidade ao longo da passagem, mas depois, ao fim de uns nove ou dez metros, esta começou a perder altura. O tecto do túnel era tão baixo que ele acabou por ter de andar de gatas. A passagem fazia um ângulo para cima e, à medida que se deslocava penosamente por cima de bocados recortados de rochas partidas, a mochila estava sempre a bater no tecto.
Apercebeu-se de um movimento à sua frente e parou petrificado. Com alguma preocupação, levantou o globo de luz para ver o que era. Conteve a respiração quando uma coisa branca atravessou o corredor como um raio e aterrou com um baque surdo não mais do que dois metros à sua frente. Era uma ratazana sem olhos, do tamanho de um gatinho bem alimentado, com um pêlo branco como a neve e uns bigodes que oscilavam como asas de borboleta. Levantou-se nas patas traseiras, a franzir o focinho e com os incisivos grandes e brilhantes perfeitamente visíveis. Não mostrava qualquer sinal de estar com medo dele.
Will descobriu uma pedra no chão do túnel e atirou-a com toda a força que conseguiu. Falhou, fazendo ricochete na parede ao lado do animal, que nem sequer estremeceu. A indignação de Will por uma simples ratazana o estar a reter cresceu dentro dele e lançou-se para o animal com um rosnido. Num salto descontraído, este saltou para ele e aterrou-lhe num ombro e, durante uma fracção de segundo, nem o rapaz nem a ratazana se mexeram. Will sentia os bigodes, tão delicados como pestanas, a roçarem-lhe a face. Sacudiu os ombros freneticamente e ela levantou voo, saltando uma vez na parte de trás da perna de Will, e disparando na direcção oposta.
— Que estupor… — exclamou Will enquanto tentava recompor-se antes de continuar a avançar.
Rastejou durante o que lhe pareceram horas, as mãos a ficarem cortadas e doridas com os fragmentos afiados como lâminas espalhados pelo chão. Então, para seu grande alívio, a passagem aumentou de altura e quase conseguiu voltar a pôr-se em pé. Agora que já se conseguia mover com velocidade, sentia-se quase eufórico e com uma vontade irreprimível de cantar enquanto contornava as curvas do túnel. Mas decidiu não o fazer quando lhe ocorreu que as sentinelas do Skull Gate não deveriam estar longe da sua posição actual e poderiam ouvi-lo.
Por fim, chegou ao fim do túnel, que estava tapado com várias camadas de sacas tesas, que tinham sido sujadas para as camuflar. Empurrou-as para o lado e conteve a respiração quando viu que o túnel acabava por baixo do tecto de uma caverna e que estava pelo menos a 30 metros da estrada lá em baixo. Estava satisfeito por ter chegado até ali, tão longe do Skull Gate, mas tinha a certeza de que não podia estar bem. Estava a uma altura tão assustadora que partiu imediatamente do princípio de que estava no sítio errado. Depois lembrou-se das palavras de Tam: «Vai parecer impossível, mas vai devagarinho. O Cal conseguiu fazê-lo comigo quando era muito mais novo, por isso, também és capaz de o fazer.»
Inclinou-se para a frente, a fim de analisar os rebordos e nichos na parede de rocha por baixo dele. Depois saiu cautelosamente por cima da borda do túnel e começou a descer, verificando e tornando a verificar cada apoio tremente das mãos e dos pés antes de fazer o movimento seguinte.
Tinha descido apenas uns dez metros quando ouviu barulho lá em baixo. Um gemido desolado. Parou e pôs-se à escuta, o coração a bater-lhe com força nos ouvidos. Tornou a ouvir. Tinha um pé numa pequena saliência e o outro pendurado, ao passo que as mãos se agarravam com toda a força a um afloramento de rocha à altura do peito. Torceu a cabeça devagarinho e espreitou por cima do ombro.
Um homem, a balançar uma luz, caminhava na direcção do Skull Gate com duas vacas macilentas uns passos atrás. Gritou-lhes qualquer coisa enquanto as guiava, sem se aperceber da presença de Will por cima dele.
Will estava completamente exposto, mas não podia fazer nada. Deixou-se ficar completamente imóvel, rezando para que o homem não parasse e olhasse para cima. Foi então que a coisa que Will temia aconteceu; o homem parou abruptamente.
Oh, não, agora é que é!
Com a sua visão de pássaro, Will conseguia ver claramente o cabelo branco e brilhante do homem enquanto ele tirava qualquer coisa de uma saca que levava ao ombro. Era um cachimbo de barro com um bocal comprido, que ele carregou com o tabaco de uma bolsa e acendeu, deitando pequenas nuvens de fumo. Will voltou a ouvi-lo dizer qualquer coisa às vacas, e depois recomeçou a andar.
Will soltou um suspiro de alívio silencioso e, depois de verificar se a costa estava livre, acabou rapidamente a descida, passando de apoio em apoio até se encontrar em segurança no chão.
Depois desatou a correr o mais depressa que podia pela estrada, que tinha dos dois lados campos de cogumelos com proporções impossíveis, os chapéus bolbosos apoiados em pés grossos. Agora já os reconhecia como pães de tostão e, enquanto avançava, o movimento da luz a saltitar na mão lançava uma multidão de sombras de cogumelos nas paredes da caverna atrás deles.
Will abrandou o ritmo quando sentiu uma facada dolorosa de lado. Inspirou fundo várias vezes para tentar aliviar a dor e depois forçou-se a voltar a ganhar velocidade, ciente de que cada minuto contava se queria alcançar Chester a tempo. Deixando para trás caverna após caverna, os campos de pães de tostão acabaram por dar lugar a carpetes negras de líquenes, e ele sentiu-se aliviado quando viu os primeiros candeeiros de rua e o contorno nebuloso de um edifício ao longe. Estava a ficar mais perto. De repente, encontrou-se num enorme arco de pedra talhado na rocha. Passou por baixo dele e entrou na parte central do Quarter. Não tardou muito que as casas começassem a amontoar-se de cada um dos lados da estrada, e ele começou a sentir-se ainda mais nervoso. Embora parecesse que não andava ninguém por ali, tentou reduzir o barulho das botas ao mínimo, correndo em bicos de pés. Estava aterrorizado com a possibilidade de alguém sair de uma das casas e vê-lo.
E então viu aquilo de que andava à procura. Era o primeiro dos túneis que Tam lhe mencionara. Recordou as palavras do Tio: «Vais usar as ruas traseiras. É, mais seguro.»
— Esquerda, esquerda, direita.
Enquanto avançava, Will ia repetindo a sequência que Tam lhe metera na cabeça.
Os túneis tinham largura suficiente para as carruagens passarem.
— Atravessa esses depressa — tinha-lhe dito o tio. — Se encontrares alguém, limita-te a passar por ela como se tivesses todo o direito de estar ali.
Mas não havia ninguém enquanto Will corria com todas as suas forças, a mochila a bater-lhe com força nas costas a cada passo. Quando voltou a entrar na caverna principal, estava a suar e sem fôlego. Reconheceu o perfil baixo da esquadra da Polícia entre as duas estruturas mais altas e abrandou para um passo normal para dar tempo a recuperar a respiração e arrefecer.
— Cheguei até aqui — disse para si próprio.
O plano parecera tão fácil quando Tam o descrevera, mas agora começava a interrogar-se se teria cometido um erro horrível.
— Não tens tempo para pensar — tinha-lhe dito Tam, apontando-lhe um dedo para acentuar as palavras. — Se hesitares, o ímpeto perde-se, e tudo irá dar para o torto.
Will limpou o suor da testa e preparou-se para a etapa seguinte.
À medida que se aproximava, a visão da entrada da esquadra da Polícia fê-lo recordar a primeira vez em que ele e Chester tinham sido arrastados pelos degraus acima e os interrogatórios horríveis e extenuantes que se seguiram. Veio-lhe tudo em torrente e tentou afastá-los da mente enquanto se enfiava nas sombras junto da parede lateral do edifício e tirava a mochila das costas. Tirou lá de dentro a máquina fotográfica, inspeccionando-a rapidamente antes de a guardar no bolso. Depois escondeu a mochila e dirigiu-se para os degraus.
O Segundo Oficial estava reclinado numa cadeira, com os pés em cima do balcão. Os olhos giraram para olhar para o recém-chegado, o movimento lento, como se tivesse estado a dormitar. Levou quase um segundo a reconhecer a pessoa à frente dele e, quando o fez, espalhou-se-lhe na cara carnuda uma expressão de surpresa e confusão.
— Bem, bem, bem, o Jerome. Que raio é que estás aqui a fazer?
— Vim visitar um amigo — replicou Will, rezando para que a voz não tremesse.
Sentia-se como se estivesse a deslocar-se para a ponta do ramo de uma árvore e este fosse ficando cada vez mais fino e mais instável à medida que ia avançando. Se perdesse o equilíbrio naquele momento, a queda poderia ser fatal.
— Então quem é que te deixou voltar cá? — perguntou o Segundo Oficial, desconfiadamente.
— Quem é que acha? — respondeu Will, tentando sorrir calmamente.
O Segundo Oficial reflectiu por uns instantes, mirando-o da cabeça aos pés.
— Bem, suponho que… se te deixaram passar o Skull Gate, deve estar tudo bem — raciocinou em voz alta, enquanto se levantava vagarosamente.
— Disseram-me que o podia ver — disse Will, — uma última vez.
— Então sabes que vai ser esta noite? — perguntou o Segundo Oficial, esboçando um leve sorriso.
Will assentiu com a cabeça e viu que isto tinha desfeito qualquer dúvida que ainda houvesse na cabeça do homem. Os modos do agente alteraram-se imediatamente.
— Não fizeste este caminho todo a pé, pois não? — perguntou.
Um sorriso generoso e amigável franziu-lhe a cara como uma ferida rasgada na barriga de um porco. Will nunca tinha visto este lado dele antes e isso ainda lhe tornava mais difícil fazer o que tinha de fazer.
— Sim, saí muito cedo de casa.
— Não admira que pareças afogueado. Bem, então é melhor vires comigo — disse o Segundo Oficial, levantando a aba na ponta do balcão para passar chocalhando as chaves.
— Ouvi dizer que te estavas a integrar muito bem — acrescentou. — Eu sabia que o farias… mal te vi pela primeira vez. Lá no fundo ele é um dos nossos, disse eu ao Primeiro Oficial. Tem todo o ar disso, disse-lhe eu.
Entraram pela velha porta de carvalho na escuridão do calabouço. O cheiro familiar fez com que Will se arrepiasse quando o Segundo Oficial abriu a porta da cela e o mandou entrar. Levou uns instantes até que os olhos se adaptassem e depois viu-o: Chester estava sentado no canto do banco, as pernas dobradas e encostadas ao queixo, o amigo não reagiu imediatamente, olhando para Will com uma expressão vazia. Depois, com um relâmpago de reconhecimento e de pura descrença, levantou-se de um salto.
— Will? — perguntou, deixando cair o queixo. — Will! Nem consigo acreditar!
— Olá, Chester — disse Will, tentando que a voz não traísse a excitação que sentia.
Estava extasiado por o voltar a ver, mas ao mesmo tempo todo o seu corpo tremia com a adrenalina.
— Vieste tirar-me daqui, Will? Posso ir-me já embora?
— Ah… não é bem assim.
Will deu meia volta, ciente de que o Segundo Oficial estava mesmo atrás dele e podia ouvir tudo.
O Segundo Oficial tossiu, pouco à vontade.
— Tenho de te fechar cá dentro, Jerome. Espero que compreendas… regulamentos — disse ele enquanto fechava a porta e girava a chave na fechadura.
— O que é, Will? — perguntou Chester, sentindo que havia qualquer coisa errada. — São más notícias? — continuou, afastando-se um passo de Will.
— Estás bem? — perguntou Will, demasiado preocupado para lhe responder, enquanto ouvia o Segundo Oficial a sair do calabouço pela porta de carvalho e a fechá-la com firmeza.
Depois levou Chester para o canto da cela e explicou-lhe o que tinham de fazer.
Minutos depois, ouviram o barulho que Will tanto receava: o Segundo Oficial estava a entrar no calabouço e a dirigir-se para eles.
— São horas, cavalheiros — disse ele.
Deu a volta à chave, abriu a porta e Will saiu lentamente.
— Adeus, Chester — disse ele.
Quando o Segundo Oficial começou a fechar a porta, Will pôs a mão no braço do homem.
— Só um segundo. Acho que deixei uma coisa lá dentro.
— O quê? — perguntou o homem.
O Segundo Oficial estava a olhar directamente para ele quando Will tirou a mão do bolso. Viu que a luzinha vermelha estava acesa: a máquina estava preparada. Will carregou no botão.
O clarão acertou em cheio na cara do polícia. Ele soltou um uivo e deixou cair as chaves, tapando os olhos com as mãos e deixando-se cair no chão. O clarão tinha sido tão intenso comparado com o brilho sublime da luz dos globos que até Will e Chester, que se tinham protegido, sentiram o efeito do brilho intenso.
— Desculpe — disse Will ao homem, que gemia.
Chester estava parado, imóvel, dentro da cela, com uma expressão estupidificada na cara.
— Mexe-te, Chester! — gritou Will, inclinando-se para dentro e puxando-o, arrastando-o para longe do Segundo Oficial que estava a começar a apalpar o caminho até à parede, ainda a gemer horrivelmente.
Quando entraram na recepção, Will olhou acidentalmente para o outro lado do balcão.
— A minha pá! — exclamou, enquanto se enfiava por baixo do balcão e a arrancava da parede.
Estava a voltar quando viu o Segundo Oficial sair a cambalear do calabouço. O homem atirou-se às cegas na direcção de Chester e, antes de Will conseguir perceber o que se estava a passar, já o tinha agarrado pelo pescoço.
Chester soltou um grito estrangulado e debateu-se para se soltar.
Will não hesitou um segundo. Brandiu a pá. Esta bateu violentamente na testa do Segundo Oficial com o barulho de ossos a estalar, e ele caiu desamparado no chão, soltando um gemido.
Desta vez, Chester não se atrasou na partida. Estava colado às costas de Will quando saíram disparados da estação, abrandando apenas para Will ir buscar a mochila antes de virarem para o trecho da estrada que Chester passara tantas horas a observar da janela da cela. Depois entraram num túnel lateral.
— Estamos no caminho certo? — perguntou Chester, a tossir e a respirar pesadamente.
Will não respondeu e continuou a correr até chegarem ao fim do túnel.
E ali estavam elas, tal como Tam tinha dito, três casas parcialmente demolidas no perímetro de uma caverna circular tão grande como um anfiteatro. O chão rico e argiloso dava a sensação de ser elástico quando o pisaram e o ar cheirava a estrume velho. As paredes da caverna despertaram a atenção de Will. Aquilo que ao princípio tomara por estalagmites, eram na realidade troncos de árvore petrificados, uns rachados até ao meio e outros torcidos em volta uns dos outros. Estes restos fossilizados erguiam-se nas sombras como uma floresta de pedras esculpidas.
Will estava a sentir-se cada vez mais desconfortável, como se houvesse qualquer coisa insalubre e ameaçadora a irradiar do meio das árvores antigas. Sentiu-se aliviado quando chegou à casa do meio e empurrou a porta da frente que se abriu toda torta, presa por apenas um gonzo.
Através do átrio, sempre em frente…
Chester fechou a porta com o ombro atrás deles enquanto Will entrava na cozinha. Era mais espaçosa do que a da casa Jerome. Quando atravessaram o chão de azulejos, a espessa camada de pó ganhou vida. Tornou-se numa pequena tempestade e, no clarão do globo de luz, todos os movimentos que faziam deixavam uma marca nas partículas aéreas.
Descobre a parede com a cruz pintada,
Will encontrou-a e empurrou-a. Abriu-se uma pequena vigia debaixo da mão. Lá dentro havia um manípulo. Girou-o para a direita e uma secção da parede de azulejos abriu-se para fora — era uma porta inteligentemente disfarçada. Atrás dela havia uma antecâmara com caixas empilhadas até ao tecto de cada um dos lados e uma outra porta na parede mais afastada. Mas esta não era uma porta vulgar — era feita de ferro pesado e cravada de rebites e, ao lado, tinha uma manivela para a abrir.
É hermética — para os germes não entrarem.
Havia uma vigia à altura da cabeça, mas não se via nenhuma luz através do vidro embaciado.
— Encarrega-te daquilo enquanto eu procuro os aparelhos para respirar — ordenou Will a Chester, apontando para o manípulo.
O amigo apoiou-se no manípulo e ouviu-se um silvo quando o selo de borracha grossa na base da porta se levantou do chão. Will encontrou as máscaras que Tam tinha dito que iriam ser deixadas lá, capuzes de lona velha com canos de borracha preta presos a cilindros. Pareciam equipamentos de mergulho antiquados.
Foi então que, da escuridão lá fora, Will ouviu um miado queixoso. Soube o que era ainda antes de se virar.
— Bartleby!
O gato entrou a correr, vindo do átrio da entrada. Com as patas a raspar excitadamente na poeira, foi direito à porta secreta, enfiando o focinho na abertura e cheirando curiosamente.
— O que é aquilo? — perguntou Chester, tão espantado com a visão do gato descomunal que largou a manivela.
Esta rodou livremente enquanto a porta descia nos rolamentos e se fechava com um grande estrondo. Bartleby deu um salto para trás.
— Por amor de Deus, Chester, abre essa porta! — gritou Will.
Chester assentiu e recomeçou.
— Precisas de ajuda? — perguntou Cal, aparecendo das sombras.
— Não! Tu também? Que raio é que estás aqui a fazer? — arquejou Will.
— Vou com vocês — respondeu Cal, muito espantado com a reacção do irmão.
Chester parou de girar a manivela e olhou rapidamente de um irmão para o outro.
— Ele é igualzinho a ti!
Will tinha chegado a um ponto em que toda a situação tinha atingido uma insanidade própria, uma insanidade aleatória e desesperada. O plano de Tam estava a desmoronar-se à frente dos seus olhos e tinha o pressentimento horrível de que iam ser todos apanhados. Tinha de voltar a pôr tudo no lugar… de alguma maneira e depressa.
— POR AMOR DE DEUS! ABRE-ME ESSA PORTA, SE FAZES FAVOR! — berrou ele o mais alto que podia e Chester, docilmente, recomeçou a rodar a manivela.
A porta estava agora a meio metro do chão e Bartleby enfiou a cabeça por baixo dela para dar uma olhadela, deitou-se no chão e deslizou pela abertura, desaparecendo imediatamente.
— O Tam não sabe que estás aqui, pois não? — perguntou Will, agarrando o irmão pela gola do casaco.
— Claro que não. Resolvi que tinha chegado a altura de ir para a Superfície, como tu e a Mãe.
— Mas não vais — rosnou Will, com os dentes cerrados.
Depois, ao ver a dor no rosto do irmão, largou-lhe o casaco e adoçou a voz.
— A sério, não podes… o Tio Tam matava-te se soubesse que estavas aqui. Volta já para casa…
Will não acabou a frase. Tanto ele como Cal tinham sentido as ondas fortes do cheiro a amoníaco a espalhar-se pelo ar.
— O alarme! — exclamou Cal, com olhos assustados.
Ouviram uma agitação lá fora, alguns gritos, e depois o barulho de vidro a partir-se. Correram para a janela da cozinha e espreitaram pelas vidraças partidas.
— Styx! — ofegou Cal.
Will calculou que eram pelo menos 30, dispostos num círculo à frente da casa, e esses eram apenas aqueles que ele conseguia ver do seu lugar. Arrepiou-se ao pensar em quantos seriam ao todo. Baixou-se e olhou para Chester, que estava a levantar freneticamente a porta, e a abertura estava agora suficientemente alta para eles poderem passar por baixo.
Will olhou para o irmão e percebeu que só havia uma coisa a fazer. Não o podia deixar à mercê dos Styx.
— Anda! Passa por baixo da porta — incitou, baixinho.
A cara de Cal iluminou-se e ele começou a agradecer a Will, que lhe enfiou a máscara nas mãos e o empurrou para a porta.
Enquanto Cal deslizava pela abertura, Will voltou-se para a janela a tempo de ver os Styx a avançarem para a casa. Foi o suficiente — lançou-se para a porta, gritando a Chester para agarrar numa máscara e segui-lo. Ao ouvir a porta da casa a abrir-se violentamente, percebeu que o tempo chegava à justa para escaparem.
Foi então que aconteceu uma daquelas coisas horríveis.
Um daqueles acontecimentos que, mais tarde, voltamos a visualizar uma e outra vez na cabeça… mas que, no fundo, sabemos que não tinha havido nada a fazer.
Foi quando a ouviram.
Uma voz que ambos conheciam.
27 Tipo de dança tradicional com um ritmo muito rápido. (N. da T.)