Capítulo Trinta e Dois

ScreenShot025.jpg

Chega-se a um ponto em que o corpo está exausto, quando os músculos e os tendões já não têm nada para dar, quando tudo o que resta é o temperamento da pessoa, a sua fibra.

Will tinha atingido esse ponto. Sentia o corpo esgotado e inútil, no entanto continuava a arrastar-se, impelido pela responsabilidade que sentia pelo irmão e pelo dever de o pôr a salvo. Ao mesmo tempo, a consumi-lo estava a culpa insuportável de ter abandonado Chester, de o ter deixado cair nas mãos dos Colonos pela segunda vez.

Sou um inútil, um raio de um inútil. As palavras giravam-lhe na cabeça, em turbilhão, vezes sem conta. Mas nem ele nem o irmão falavam enquanto subiam, avançando penosamente por aquela interminável escada de caracol. Já no limite da resistência, Will obrigava-se a subir, degrau após degrau, lance após lance, sentindo as pernas a arder tanto como os pulmões. Escorregando e deslizando no piso de pedra encharcado e nas ervas viscosas que o cobriam, esforçava-se por reprimir a consciência terrível de que ainda tinham muito que andar.

— Gostava de parar agora — ouviu Cal a arfar.

— Impossível… não penses… que eu podia… depois… recomeçar — resmungou Will, ao ritmo dos seus passos pesados.

Aquelas horas angustiantes foram-se arrastando, até ele ter perdido a noção de quanto tinham subido, e nada no mundo existir ou lhe interessar, excepto a certeza estafante de que tinha de dar mais um passo, e outro, e continuar… e precisamente quando Will pensou que tinha atingido os limites da resistência e que não podia prosseguir, sentiu uma brisa muito suave na cara. Soube instintivamente que era ar puro. Parou e inspirou aquela frescura, esperando libertar-se do peso plúmbeo que sentia no peito e aliviar o farfalhar interminável dos pulmões.

— Não precisas disso — disse, apontando para a máscara de Cal.

Cal tirou-a da cabeça e enfiou-a no cinto, com o suor a escorrer-lhe em fio pela cara abaixo e os olhos orlados de vermelho.

— Bolas! — desabafou ele. — Está um bocado quente debaixo desta coisa.

Retomaram a subida, e pouco depois os degraus acabaram e eles entraram numa sequência de passagens estreitas. De vez em quando eram obrigados a trepar por escadas ferrugentas, ficando com as mãos cor-de-laranja sempre que testavam cada um dos degraus tão precários.

Finalmente chegaram a um pilar cilíndrico com um ângulo muito inclinado, com não mais de um metro de largura. Içaram-se para esta superfície deformada usando a grossa corda cheia de nós que descobriram lá pendurada (Cal tinha a certeza de que tinha sido o Tio Tam que a improvisara). Foram subindo, mão após mão, com os pés a encontrar apoio nas rachas e falhas pouco profundas à medida que subiam. A inclinação tornou-se mais acentuada e tiveram sérias dificuldades em gatinhar sobre a parte restante da pedra lodosa mas, apesar de se desequilibrarem algumas vezes, chegaram finalmente ao cimo, içando -se para um compartimento circular. Aí havia um pequeno respiradouro no chão. Inclinando-se lá para dentro, Will conseguiu ver os restos de uma grade de ferro havia muito corroída pela ferrugem.

— O que há lá em baixo? — ofegou Cal.

— Nada, não consigo ver absolutamente nada — disse Will, desanimado, agachando-se para descansar sobre os calcanhares. Limpou o suor da cara com a mão em carne viva. — Acho que estamos a fazer o que o Tam disse. Estamos a descer.

Cal olhou para trás e depois para o irmão, acenando com a cabeça. Durante vários minutos não se mexeram, imobilizados pela fadiga.

— Bem, não podemos ficar aqui para sempre — suspirou Will.

Balançou as pernas para dentro do respiradouro e, com as costas encostadas a um dos lados e os pés ao outro, começou a descer.

— E o gato? — gritou Will, depois de ter descido um pouco. — Será capaz de aguentar isto?

— Não te preocupes com ele — sorriu Cal. — Tudo o que conseguirmos fazer…

Will não chegou a ouvir o resto da frase de Cal. Escorregou. Os lados do respiradouro passaram por ele a correr e ele aterrou com um grande baque na água — ficou submerso num frio gélido. Debateu-se com os braços, depois os pés tocaram no fundo e ele pôs-se de pé e expeliu uma porção de líquido gelado. Percebeu que tinha água até à altura do peito e, depois de a ter sacudido dos olhos e puxado o cabelo para trás, olhou em volta. Não tinha a certeza, mas parecia haver uma luz ténue ao longe.

Ouviu os gritos frenéticos de Cal lá em cima.

— Will! Will! Estás bem?

— Só dei um mergulho rápido! — gritou, com uma gargalhada débil. — Deixa-te estar aí. Eu vou ver só uma coisa.

Esqueceu o cansaço e o desconforto por momentos enquanto olhava para aquele brilho fraco, tentando distinguir o mais pequeno pormenor naquilo que estava à sua frente.

Encharcado até aos ossos, saiu da água e, curvando-se sob o tecto baixo, rastejou lentamente em direcção à luz. Depois de andar umas centenas de metros, viu claramente a boca circular do túnel e, com o coração a bater, correu para ela. Caindo mais de um metro de uma saliência na rocha na qual não tinha reparado, aterrou bruscamente e deu consigo debaixo de uma espécie de desembarcadouro. Através de uma floresta de pesados postes de madeira, cobertos de ervas, conseguia ver os reflexos ondulantes da luz na água.

O cascalho estalava-lhe debaixo dos pés enquanto caminhava para o ar livre. Sentia na cara a frescura revigorante do vento. Respirava fundo, fazendo entrar o ar fresco nos pulmões doridos. Era tão bom. A pouco e pouco, começou a reparar no que o rodeava.

Noite. Luzes reflectiam-se num rio à sua frente. Um barco de recreio de dois andares passava, lançando ruído dos motores — lampejos brilhantes de cor pulsavam dos seus dois convés enquanto uma música de dança indistinta vibrava sobre a água. Depois, viu as pontes de um e outro lado e, à distância, a cúpula da Catedral de Saint Paul. A Catedral de Saint Paul que ele conhecia. Um autocarro vermelho de dois andares atravessou a ponte mais próxima dele. Este não era um rio antigo. Sentou-se na margem com surpresa e alívio.

Era o Tamisa.

Deitou-se para trás, na margem, e fechou os olhos, ouvindo o ruído monótono do trânsito. Tentou lembrar-se do nome das pontes, mas na verdade não lhe interessava muito — tinha saído cá para fora, tinha escapado, e nada mais importava. Tinha conseguido. Estava em casa. De volta ao seu mundo.

— O céu — disse Cal, com espanto na voz. — Então o céu é assim.

Will abriu os olhos e viu o irmão a esticar o pescoço para um lado e para o outro, enquanto olhava para os novelos de nuvens errantes apanhados nas luzes douradas que irradiavam das ruas. Embora Cal estivesse encharcado por ter estado imerso na água, tinha um largo sorriso, mas depois franziu o nariz, virando-o para cima.

— Puf, o que é isto? — perguntou em voz alta.

— O quê? — disse Will.

— Estes cheiros todos!

Will ergueu-se sobre um cotovelo e pôs-se a cheirar, aspirando o ar pelo nariz.

— Que cheiros?

— Comida… todos os géneros de comida… e… — Cal fez uma careta. — Esgotos… montes deles… e químicos…

Enquanto Will cheirava o ar, pensando novamente como era fresco, ocorreu-lhe que nem por uma vez tinha pensado no que iam fazer a seguir. Aonde iam? Tinha estado tão obcecado com a fuga que não pensara em mais nada. Levantou-se e examinou a sua roupa ensopada e suja, dos Colonos, e a do irmão, e o gato incrivelmente grande que andava agora a cheirar por ali como um porco à procura de trufas. O fresco vento invernal estava a tornar-se mais forte e ele tremia violentamente, com os dentes a começar a bater. Impressionou-o o facto de nem o irmão nem Bartleby terem experimentado, nas suas protegidas vidas subterrâneas, os excessos relativos do tempo na Superfície. Tinha de os fazer sair dali. E depressa. Mas não tinha dinheiro com ele — nem um cêntimo.

— Vamos ter de ir para casa a pé.

— Está bem — respondeu Cal, sem qualquer objecção, com a cabeça caída para trás para ver as estrelas, perdendo-se no dossel do céu. — Pelo menos, vi-as — murmurou para si próprio.

Um helicóptero passava lentamente no horizonte.

— Porque é que aquilo se está a mover? — perguntou.

Will sentiu-se demasiado cansado para explicar.

— Eles fazem isso — respondeu, numa voz monótona.

Partiram, mantendo-se perto da margem para não serem notados, e quase de imediato chegaram a uma série de degraus que levavam a uma passagem superior para peões. Ficava ao lado de uma ponte. Nessa altura, Will percebeu onde estavam — era a Ponte de Blackfriars.

Havia um portão a bloquear o cimo dos degraus, por isso treparam rapidamente o muro largo que estava ao lado para chegarem à passagem superior. Pingando água no chão e sentindo-se gelar no ar da noite, olharam em redor. Will estava dominado pelo pensamento terrível de que, mesmo ali, os Styx podiam ter espiões a vigiá-los. Depois de ter visto um dos irmãos Clarke na Colónia, sentia que não podia confiar em ninguém e olhava para as poucas pessoas na área circundante com uma suspeita crescente. Mas não havia ninguém ali perto, à excepção de um casal jovem que passeava de mãos dadas. Passaram por eles tão absortos um no outro que nem pareceu terem prestado a mais pequena atenção aos rapazes ou ao seu enorme gato.

Com Will à frente, subiram os degraus para a ponte. Ao chegar ao cimo, Will viu que o cinema IMAX ficava à sua direita. Soube imediatamente que não era daquele lado do rio que deviam estar. Para ele, Londres era um mosaico de lugares, que conhecia de visitas a museus com o pai ou de excursões da escola. O resto, as áreas que os ligavam, eram para ele um mistério. Havia só uma solução; confiar no seu sentido de orientação e tentar dirigir-se para norte.

Quando viraram à esquerda e atravessaram rapidamente a ponte, Will viu um sinal que indicava King’s Cross e percebeu de imediato que estavam a seguir na direcção certa. O trânsito passava por eles quando chegaram ao fim da ponte, e Will parou a fim de olhar para Cal e para o gato à luz de um poste de iluminação. Estamos a falar de três almas perdidas com um ar suspeito — davam muito nas vistas. Embora estivesse escuro, Will estava dolorosamente consciente de que uns miúdos encharcados até aos ossos e a vaguear pelas ruas de Londres àquela hora, com ou sem um gato gigante, chamariam provavelmente a atenção, e a última coisa de que ele precisava agora era ser apanhado pela Polícia. Tentou inventar uma história, ensaiando-a na sua mente, para o caso de isso acontecer.

— Ora, ora, ora — diziam os polícias fictícios. — Então o que é que temos por aqui?

—Mmm… andamos só a passear o… o…

A resposta imaginada de Will parou com uma hesitação. Não, isto não servia, tinha de estar mais bem preparado. Começou de novo:

Boa noite, senhores guardas. Andamos só a passear o animal de estimação do nosso vizinho.

O primeiro polícia inclinou-se para olhar, curioso, para Bartleby, estreitando os olhos ao fazer uma careta de óbvia aversão.

Parece-me perigoso, filho. Não devia andar com trela?

Que bicho é ao certo? — interrompeu o segundo polícia imaginário.

É um… — começou Will. O que é que ele podia dizer? — Ah, sim… É muito raro… um híbrido muito raro, um cruzamento entre um cão e um gato chamado um… um Cãoato28 — informou Will, solícito.

Ou será talvez um Gacão29? — sugeriu o segundo polícia, com um brilho nos olhos que dizia a Will que não acreditava em nada daquilo.

Seja o que for, é muito feio — disse o colega.

Chiu! Vai ofendê-lo!

Subitamente, Will percebeu que estava a perder o seu tempo com tudo isto. A realidade era que os polícias perguntariam apenas os nomes e as moradas deles, e comunicariam por rádio para confirmar. E eles seriam desmascarados, mesmo que tentassem dar informações falsas. Portanto, era isso que ia acontecer. Seriam

levados para a esquadra e detidos. Will suspeitava de que era provavelmente procurado pelo rapto de Chester ou por qualquer coisa igualmente ridícula, e o mais certo era acabar numa casa de correcção para menores. Quanto a Cal, seria um verdadeiro quebra-cabeças — obviamente não havia algum registo dele em qualquer parte, nenhuma identidade da Superfície. Não, tinham de evitar a Polícia a todo o custo.

Perversamente, ao encarar o futuro, havia uma parte dele que quase desejava que os interceptassem. Tirar-lhe-ia o terrível fardo que, naquele momento, tinha sem qualquer dúvida sobre os ombros; olhou para a figura aterrada do irmão. Cal era um estranho, um ser anormal, neste lugar frio e inóspito, e Will não fazia qualquer ideia de como podia protegê-lo.

Mas Will sabia que, se se entregasse às autoridades e tentasse convencê-las a investigar a Colónia — primeiro era preciso que eles acreditassem num adolescente fugitivo —, podia estar a pôr em risco inúmeras vidas, as vidas da sua família. Quem sabia como tudo podia acabar? Estremeceu ao pensar na Descoberta, como a Avó Macauly lhe chamava, e tentou imaginá-la a ser levada para a luz do dia depois da sua longa vida subterrânea. Não podia fazer-lhe uma coisa dessas — nem pensar. Era uma decisão demasiado séria para ele tomar sozinho, e ele sentia-se tão terrivelmente só e isolado.

Enrolou o casaco húmido à sua volta e empurrou Cal e Bartleby para a passagem subterrânea que ficava na extremidade da ponte.

— Cheira muito a xixi aqui em baixo — comentou o irmão. — Os habitantes da Superfície marcam o seu território? — Virou-se para Will, com uma expressão inquiridora.

— Mmm… não é habitual. Mas isto é Londres.

Quando saíram da passagem subterrânea e começaram a andar pelo passeio, Cal parecia confuso com o trânsito, olhando para um lado e para o outro. Ao chegarem a uma via principal, pararam na curva. Will agarrou na manga do irmão com uma mão e no pescoço pelado do gato com a outra. Atravessando a rua quando houve uma acalmia do trânsito, chegaram à placa central para peões. Via as pessoas, cheias de curiosidade, a olhar para eles dos carros que passavam, e uma carrinha branca abrandou quase até parar mesmo ao lado deles, com o condutor a falar, excitado, ao telemóvel. Para alívio de Will, voltou a acelerar. Atravessaram as outras duas faixas e, pouco depois, Will conduziu-os para uma rua secundária mal iluminada. O irmão apoiou uma mão na parede de tijolo — parecia completamente desorientado, como um cego num ambiente desconhecido.

— Que ar poluído! — disse, com veemência.

— É só o fumo dos carros — respondeu Will, enquanto desatava o grosso cordel da lanterna e dele fazia uma trela com um nó corredio para o gato, que não pareceu importar-se nada.

— Cheira mal. Deve ser contra as leis — disse Cal, com total convicção.

— Tenho pena, mas não é — respondeu Will, levando-os pela rua.

Tinha de se manter afastado da rua principal e continuar por vielas tanto quanto possível, embora isso tornasse a viagem ainda mais difícil e sinuosa.

E assim começou a longa marcha para norte. À saída do centro de Londres, viram um carro da Polícia, mas Will conseguiu fazê-los dobrar uma esquina no último minuto.

— São como os Styx? — perguntou Cal.

— Não exactamente — respondeu Will.

Com o gato de um lado e Cal, nervoso, a andar aos repelões do outro, lá se foram arrastando. De vez em quando, o irmão parava de repente, como se portas invisíveis lhe batessem na cara.

— O que é? — perguntou Will numa dessas ocasiões em que o irmão se recusava a andar.

— É como que… raiva… e medo — disse Cal, com uma voz tensa, enquanto olhava, nervoso, para uma janela por cima de uma loja. — É tão forte. Não me agrada.

— Não vejo nada — disse Will, sem perceber o que estava a perturbar o irmão. Eram janelas vulgares, com uma réstia de luz a aparecer entre as cortinas de uma delas. — Não é nada, estás a imaginar coisas.

— Não, não estou. Sinto o cheiro — disse Cal, enfaticamente — e está a tornar-se mais forte. Quero ir-me embora.

Depois de vários quilómetros de desvios e esquinas tortuosas, chegaram ao cimo de um monte, na base do qual passava uma estrada principal muito movimentada, com seis faixas de rodagem e os carros a circular com muita velocidade.

— Estou a reconhecer isto — já não é longe. Talvez faltem dois ou três quilómetros, não mais — disse Will, aliviado.

— Não vou aproximar-me. Não consigo, é impossível com aquele fedor. Vai dar cabo de nós — disse Cal, afastando-se de Will.

— Não sejas estúpido, bolas! — exclamou Will. Estava demasiado cansado para ouvir disparates e a sua frustração transformou-se em raiva. — Estamos muito perto.

— Não — disse Cal, recusando-se a andar. — Vou ficar aqui!

Will tentou puxar o braço do rapaz, mas ele retirou-o com um repelão. Will tinha estado a lutar contra o cansaço durante vários quilómetros e ainda estava com dificuldade em respirar; não merecia isto. De repente, aquilo foi demais para ele. Pensou que ia mesmo perder a coragem e largar a chorar. Não era justo. Imaginava a casa e a cama acolhedora e limpa. Tudo o que queria era deitar-se e dormir. Mesmo enquanto caminhava, o corpo ia frouxo, como se estivesse a cair por um buraco para um lugar onde tudo era reconfortante e caloroso. Depois saía de lá, voltava a um estado de vigília e forçava-se a continuar.

— Muito bem! — disparou Will. — Faz como quiseres! — Começou a descer o monte, levando Bartleby pela trela.

Quando chegou à estrada, Will ouviu a voz do irmão sobre a barulheira do trânsito.

— Will! — gritava ele. — Espera por mim! Desculpa!

Cal veio a correr, aos tombos, pelo monte abaixo. Will percebeu que ele estava verdadeiramente aterrorizado. Continuava a sacudir a cabeça, para olhar em redor, como se estivesse prestes a ser atacado por um assassino imaginário.

Atravessaram a estrada nos semáforos, mas Cal insistiu em tapar a boca com a mão até se encontrarem a uma boa distância dali.

— Não aguento isto — disse, carrancudo. — Gostava da ideia de ver carros quando estava na Colónia… mas as brochuras não diziam nada sobre o cheiro que deitam.

— Têm lume?

Assustados com a voz, viraram-se. Tinham parado para descansar um minuto e, como se tivesse aparecido de nenhures, viram um homem mesmo atrás deles, com um sorriso de esguelha no rosto. Não era muito alto, mas estava bem vestido, com um fato justo, azul-escuro, camisa e gravata. Tinha cabelo preto, comprido, que ia puxando para trás, nas têmporas, e enfiando para trás das orelhas, como se estivesse a incomodá-lo.

— Deixei o meu isqueiro em casa — continuou, com uma voz grave e profunda.

— Não fumamos, lamento — respondeu Will, afastando-se rapidamente.

Havia algo de forçado e de sórdido no sorriso do homem, e Will começou a ficar muito preocupado.

— Vocês estão bem? Parecem cansados. Tenho um sítio onde podem aquecer-se. Não é longe daqui — disse o homem de modo insinuante. — Trazem o cãozinho também, claro.

Estendeu uma mão a Cal, e Will viu que tinha os dedos manchados de nicotina e as unhas negras de sujidade.

— Podemos mesmo? — disse Cal, devolvendo o sorriso ao homem.

— Não… é muito amável da sua parte, mas… — interrompeu Will, fulminando o irmão com os olhos, mas não conseguindo atrair-lhe a atenção.

O homem deu um passo na direcção de Cal e dirigiu-se a ele, ignorando Will por completo, como se ele não estivesse ali.

— Qualquer coisa quente para comerem? — ofereceu.

Cal ia responder quando Will falou.

— Temos de ir. Os nossos pais estão ali à esquina à nossa espera. Vamos, Cal — disse, com um tom de premência a insinuar-se-lhe na voz. Cal olhou, perplexo, para Will, que abanou a cabeça, franzindo o sobrolho. Percebendo que alguma coisa não estava bem, Cal começou a andar ao ritmo do irmão.

— É pena, talvez para a próxima? — disse o homem, com os olhos ainda fixos em Cal. Não fez qualquer movimento para os seguir, mas tirou um isqueiro do bolso do casaco e acendeu um cigarro. — Até à vista! — exclamou.

— Não olhes para trás — sussurrou Will entredentes, enquanto se afastava rapidamente com Cal a reboque. — Nem te atrevas a olhar para trás!

Uma hora mais tarde, entraram em Highfield. Will evitou a High Street, com medo de ser reconhecido, seguindo pelas vielas e ruas secundárias até virarem para a Broadlands Avenue.

Lá estava ela. A casa, completamente às escuras, com um letreiro de uma imobiliária no jardim da frente. Will indicou-lhes o caminho, contornando a casa, sob o telheiro do carro, para o jardim das traseiras. Deu um pontapé num tijolo debaixo do qual sempre estivera escondida a chave de reserva da porta das traseiras, e murmurou uma oração silenciosa de agradecimento quando viu que ainda lá estava. Abriu a porta e deram alguns passos cautelosos no hall imerso na escuridão.

— Colonos! — disse Cal de imediato, encolhendo-se enquanto continuava a cheirar o ar. — Estiveram aqui… e não foi há muito tempo.

— Por amor de Deus.

A Will, apenas cheirava um pouco a desabitado e a mofo, mas não estava para se dar ao trabalho de discutir. Não querendo chamar a atenção dos vizinhos, manteve as luzes apagadas e usou o globo de luz para inspeccionar cada uma das salas, enquanto Cal permanecia no hall, com os sentidos bem alerta.

— Não há aqui absolutamente nada… ninguém. Estás satisfeito? — disse Will, quando voltou para baixo.

Com alguma consternação, o irmão avançou um pouco mais para o interior da casa, com Bartleby a segui-lo de perto, e Will fechou e trancou a porta atrás de si. Conduziu-os à sala de estar e, assegurando-se de que os cortinados estavam bem fechados, ligou a televisão. Depois foi para a cozinha.

O frigorífico estava completamente vazio, com apenas um pacote de margarina e um tomate velho, que estava verde e mirrado. Por momentos, Will olhou, sem compreender, para as prateleiras vazias. Para ele, isto era inédito, confirmando quão longe as coisas tinham chegado. Suspirou quando fechou a porta e viu um pedaço de papel de linhas colado sobre ela. Estava escrito na caligrafia perfeita de Rebecca; era uma das suas listas de compras.

Rebecca! A fúria apoderou-se subitamente dele. A ideia daquela impostora a fazer-se passar por sua irmã durante todos aqueles anos fê-lo ficar hirto de raiva. Ela tinha mudado tudo. Agora nem sequer conseguia pensar na vida confortável e previsível que levava antes do desaparecimento do pai, porque ela tinha estado ali, a observar e a espiar… a própria presença dela manchava todas as suas memórias. A traição dela era da pior espécie — era Judas enviado pelos Styx.

— Cabra! — gritou, rasgando a lista, amarrotando-a e atirando-a para o chão.

Quando ela caiu no chão de linóleo imaculadamente limpo que Rebecca tinha esfregado semana sim semana não com uma regularidade estupidificante, Will olhou para o relógio parado, na parede, e suspirou. Cambaleou até ao lava-louças e encheu copos de água para si e para Cal, e uma tigela para Bartleby, e depois voltou para a sala de estar. Cal e o gato já estavam enroscados no sofá a dormir, Cal com a cabeça indolentemente apoiada no braço. Viu que estavam ambos a tremer, por isso foi buscar uns edredões às camas lá de cima e estendeu-os sobre os seus corpos adormecidos. A casa não tinha o aquecimento central ligado e estava frio, mas não assim tanto. Tinha razão quando pensou que eles não estavam habituados àquelas temperaturas tão baixas e, mentalmente, tomou nota para lhes arranjar roupa quente na manhã seguinte.

Will bebeu a água rapidamente e subiu para a cadeira da mãe, enrolando-se na manta de viagem dela. Os seus olhos mal repararam nas perigosíssimas proezas de snowboard que passavam na televisão, quando se enroscou, exactamente como a mãe fizera durante tantos anos, e caiu no mais profundo sono.

28 Dat no original. Palavra inventada a partir de dog (cão) e cat (gato). (N. da T.)

29 29 Cog no original. Palavra inventada a partir de cat (gato) e dog (cão). (N. da T.)