Capítulo Trinta e Três
De pé e em silêncio, Tam ostentava uma expressão de desafio. Estava decidido a não mostrar qualquer sinal da sua trepidação interior enquanto ele e Mr. Jerome enfrentavam a mesa comprida, com as mãos apertadas atrás das costas como se estivessem em sentido.
À mesa de carvalho muito polido, estava sentada a Panóplia. Esta era constituída pelos membros mais velhos e mais poderosos do Conselho dos Styx. De cada um dos lados da mesa, estavam sentados uns quantos Colonos de estatuto mais elevado: os representantes do Conselho dos Governadores, homens que Mr. Jerome conhecera durante toda a sua vida, homens que eram seus amigos. Mr. Jerome tremia de vergonha sentindo a desonra que o cobria e não conseguia olhar para eles. Nunca pensara que pudesse a chegar a isto.
Tam estava menos intimidado; já tinha sido atirado ao tapete antes e conseguira sempre levantar-se no último instante. Embora estas alegações fossem graves, sabia que o seu álibi tinha passado o escrutínio deles. Imago e os seus homens tinham tratado do assunto. Tam observou enquanto Crawfly conferenciava com um dos colegas Styx e depois se inclinava para trás para falar com a criança Styx que estava de pé, meio escondida por trás das costas altas da cadeira dele. Bem, isso era irregular. Os filhos deles eram habitualmente mantidos longe da vista e muito longe da Colónia. Os recém-nascidos nunca eram vistos, ao passo que os mais velhos, dizia-se, eram fechados com os seus mestres no ambiente exclusivo dos colégios particulares. Nunca soubera de nenhum caso em que acompanhassem os mais velhos em público, quanto mais que estivessem presentes numa reunião como esta.
Os pensamentos de Tam foram interrompidos quando rebentou um debate aceso e áspero entre os Styx. Murmúrios ininteligíveis corriam de uma ponta à outra enquanto as mãos magríssimas comunicavam numa série de gestos duros. Tam deitou uma olhadela rápida a Mr. Jerome, que tinha a cabeça baixa. Estava a murmurar uma oração enquanto o suor lhe escorria das têmporas. Tinha a cara inchada e com um tom rosado doentio. Tudo isto estava a afectá-lo muito.
A agitação cessou repentinamente entre acenos de cabeça e palavras de concordância em staccato e os Styx reclinaram-se nas suas cadeiras enquanto um silêncio de arrepiar descia sobre a sala. Ia ser feita uma declaração.
— Mr. Jerome — disse o Styx à esquerda de Crawfly, — depois das devidas considerações e de investigações exaustivas — fixou as pupilas pequenas e redondas no homem que tremia — vamos permitir que se vá embora.
Outro Styx tomou a palavra de imediato:
— Achamos que as injustiças que lhe foram infligidas por membros específicos da sua família, passados e presentes, são injustas e infelizes. A sua honestidade não está em dúvida e a sua reputação não foi manchada. A não ser que tenha alguma coisa a declarar, está incondicionalmente absolvido.
Com uma expressão lúgubre, Mr. Jerome fez uma reverência e afastou-se da mesa a recuar. Tam ouviu o barulho das botas dele a arranhar o chão, mas não se atreveu a virar-se para o ver sair. Em vez disso, o seu olhar dirigiu-se para o tecto do salão de pedra e depois para as tapeçarias antigas penduradas na parede atrás da Panóplia, demorando-se numa que mostrava os Pais Fundadores a escavar um túnel perfeitamente redondo na vertente de uma colina verdejante.
Sabia que todos os olhos estavam agora fixos nele.
Outro Styx tomou a palavra. Tam reconheceu imediatamente a voz de Crawfly e foi obrigado a virar-se para o seu inimigo declarado. Ele está a adorar cada um dos minutos disto tudo, pensou Tam.
— Macaulay. Tu és um caso completamente diferente. Embora ainda não esteja provado, estamos convencidos de que instigaste e ajudaste os teus sobrinhos, Steth e Caleb Jerome, na tentativa frustrada de libertar o habitante da Superfície, Chester Rawls, e depois na fuga até à Cidade Eterna — declarou Crawfly, com um prazer evidente.
Um segundo Styx continuou:
— A Panóplia registou a tua declaração de inocência e os teus protestos subsequentes. — Com um seco abanão desaprovador da cabeça, manteve-se em silêncio durante uns curtos instantes. — Analisámos as provas apresentadas em tua defesa mas, nesta altura, ainda não conseguimos chegar a uma conclusão. Por isso, decretámos que a investigação continue em aberto e que fiques detido e os teus privilégios revogados até futura decisão. Compreendes?
Tam assentiu sombriamente com a cabeça.
— Nós perguntámos, compreendes? — disse rispidamente a criança Styx, dando um passo em frente.
Um sorriso maldoso cintilou na cara de Rebecca, enquanto ela trespassava Tam com um olhar gélido. Sentiu-se a agitação de uma estupefacção silenciosa da parte dos Colonos por uma menor se ter atrevido a falar, mas não houve a menor indicação da parte dos Styx de que tivesse acontecido qualquer coisa fora do normal.
Dizer que Tam estava chocado seria um grande eufemismo. Estariam mesmo à espera de que ele respondesse a uma simples criança? Como não respondeu imediatamente, ela repetiu a pergunta, a vozinha dura tão afiada como um chicote.
— NÓS PERGUNTÁMOS, COMPREENDES?
— Compreendo — resmungou Tam, — muito bem mesmo.
Claro que não era uma sentença final, mas queria dizer que iria viver num limbo até eles decidirem que o ilibavam ou… bem… nem valia a pena pensar na alternativa.
Enquanto um Colono com ar sinistro o escoltava para fora da sala, não conseguiu evitar reparar no olhar de satisfação autocomplacente trocado entre Rebecca e Crawfly.
— Ora, diabos me levem! — pensou Tam. — É a filha dele!
Acordado do seu sono profundo pelo barulho atroador da televisão, Will sentou-se na poltrona com um sobressalto. Deitou automaticamente a mão ao comando e baixou o volume; foi só quando olhou em redor que compreendeu realmente onde estava e se lembrou de como tinha lá chegado. Estava em casa e numa sala que conhecia muito bem. Embora estivesse cercado pela incerteza sobre o que ia fazer a seguir, sentiu, pela primeira vez havia já muito tempo, que tinha algum controlo sobre o seu destino e isso fê-lo sentir-se bem.
Flectiu os membros rígidos e inspirou fundo várias vezes, tossindo violentamente. Apesar de estar morto de fome, sentia-se um bocadinho melhor do que no dia anterior; o sono tinha-lhe feito bem. Coçou a cabeça e depois deu uns puxões distraídos ao cabelo emaranhado e sujo, a brancura habitual manchada com a porcaria. Levantando-se com dificuldade do cadeirão, avançou aos tropeções para as cortinas e abriu-as uns centímetros para deixar o Sol entrar. Luz verdadeira. Foi uma visão tão agradável que as abriu de par em par.
— Claridade demais! — guinchou Cal repetidamente, com a cara enterrada na almofada.
Bartleby, acordando com os gritos de Cal, abriu os olhos. Fugiu imediatamente ao clarão, as pernas compridas a empurrá-lo para trás até cair do sofá. E ali ficou, escondendo-se da luz e a fazer uns ruídos que eram uma mistura de silvos assanhados e miados aflitos.
— Oh, meu Deus! Desculpem! — gaguejou Will, censurando-se mentalmente enquanto fechava outra vez as cortinas. — Esqueci-me completamente.
Ajudou o irmão a sentar-se. Este estava a gemer baixinho atrás da almofada que, conforme Will constatou, já estava ensopada de lágrimas. Perguntou para consigo se os olhos de Cal e de Bartleby se iriam alguma vez habituar à luz natural. Era mais um problema que Will ia ter de resolver.
— Isto foi tão estúpido — disse ele, desesperado. — Vou… a… vou procurar óculos escuros para vocês os dois.
Começou a procurar pela cómoda do quarto dos pais, mas a única coisa que descobriu foi que tinha sido esvaziada. Quando estava a ver a última gaveta, agarrou num saquinho de alfazema caído em cima do papel barato para embrulhos de Natal que a mãe tinha usado como forro e levou-o ao nariz para sentir o perfume familiar. Fechou os olhos enquanto o cheiro criava uma imagem vívida dela. Fosse para onde fosse que tivesse sido enviada para recuperar, já devia estar a mandar em todos os outros doentes. Estava pronto a apostar que ela já tinha conseguido a melhor cadeira na sala da televisão e já convencera alguém a trazer-lhe as suas chávenas de chá habituais. Sorriu. De certo modo, era muito provável que se estivesse a sentir mais feliz do que em todos aqueles anos. E, se calhar, também estava mais segura se os Styx resolvessem fazer-lhe uma visita.
Por nenhuma razão particular, enquanto revistava um armário ao lado da cama, pensou na sua mãe verdadeira. Gostaria de saber onde se encontrava naquele preciso momento, se de facto ainda estivesse viva. A única pessoa na longa história da Colónia que tinha conseguido fugir aos Styx e sobrevivido. Cerrou os maxilares num gesto decidido ao ver o seu reflexo num espelho. Bem, agora ia haver mais dois Jeromes com essa distinção.
Numa prateleira alta do guarda-fatos da mãe encontrou o que procurava. Um par de óculos de sol de plástico e tortos que ela usava nas raras ocasiões em que se aventurava no exterior durante o verão. Voltou para junto de Cal, que estava a olhar com os olhos muito franzidos para a televisão na sala escurecida, completamente absorto pelo espectáculo do meio da manhã, onde o obsequioso apresentador, de permanente e muito bronzeado, a transbordar de simpatia, confortava uma mãe inconsolável de um adolescente viciado em droga. Os olhos de Cal ainda estavam um bocadinho vermelhos e molhados de lágrimas, mas ele não disse nada e, na realidade, nem sequer os desviou uma fracção de segundo do ecrã enquanto Will lhe punha os óculos, prendendo um elástico às duas hastes para ficarem mais seguros.
— Melhor? — perguntou Will.
— Muito melhor, sim — respondeu Cal, ajustando-os. — Mas estou cheio de fome — acrescentou, esfregando o estômago. — E tenho tanto frio — continuou, batendo os dentes dramaticamente.
— Primeiro, tomamos duche. Isso vai aquecer-te — disse Will, levantando o braço para sentir o cheiro acumulado do suor de muitos dias. — E roupa lavada.
— Duche? — perguntou Cal, olhando para ele sem perceber através das lentes dos óculos de sol.
Will conseguiu pôr a caldeira a funcionar e foi primeiro, a água quente a picar-lhe a pele num alívio doloroso enquanto as nuvens de vapor o envolviam num êxtase de esquecimento. Depois foi a vez de Cal. Will mostrou ao irmão como é que o chuveiro funcionava e deixou-o entregue a si próprio. Do guarda-fatos do armário do quarto, desenterrou um conjunto de roupa lavada para ele e outro para Cal, embora as do irmão precisassem de uns pequenos ajustes para lhe servirem.
— Agora sou um verdadeiro habitante da Superfície — anunciou Cal, admirando as calças largas com as bainhas enroladas para cima e a camisa enorme com duas camisolas por cima.
— Sim, estás mesmo na moda — comentou Will, rindo.
Bartleby foi mais problemático. Foi preciso muita lisonja e meiguice da parte de Cal para conseguir levar o animal a tremer de frio até à porta da casa de banho e depois tiveram de o empurrar por trás, como se fosse um burro recalcitrante, para conseguirem que entrasse. Como se soubesse o que o esperava na divisão cheia de vapor, deu um salto e tentou esconder-se debaixo do lavatório.
— Vá lá, Bart, seu fedorento, para dentro da banheira! — ordenou Cal, perdendo finalmente a paciência, e o gato enfiou-se de má vontade na banheira e ficou a olhar para eles com a expressão mais infeliz do mundo.
Soltou um gemido baixo e arrepiante quando a água lhe escorreu pela pele e, decidindo que já chegava, as patas arranharam o plástico da banheira enquanto tentava sair. Mas, com Will a segurá-lo, conseguiram terminar a tarefa, embora ficassem os três completamente encharcados no final do exercício.
Mal se viu fora da banheira, Bartleby desatou a correr à volta dos quartos como um dervixe enlouquecido, enquanto Will saqueava com enorme prazer o quarto de Rebecca. Enquanto atirava para o chão todas as suas roupas perfeitamente dobradas, perguntava para consigo como raio é que iria descobrir qualquer coisa que fosse remotamente própria para vestir um gato. Por fim, cortaram umas perneiras castanhas ao tamanho das patas traseiras do animal e uma velha camisola Benetton cor de púrpura resolveu o problema da outra metade. Will descobriu um par de óculos de sol Bugs Bunny do fim-de-semana de férias de Rebecca que se mantiveram no lugar na cabeça do animal mal lhe enfiaram na cabeça um chapéu tibetano às riscas amarelas e pretas.
Bartleby tinha um aspecto bastante bizarro com esta nova indumentária. No patamar, os dois irmãos recuaram para apreciar a obra e desataram de imediato a rir como loucos.
— E quem é um rapazinho bonito agora? — perguntou Cal, no meio das gargalhadas de cortar a respiração.
— Está mais bonito do que a maioria nestas redondezas — disse Will.
— Não te preocupes, Bart — disse Cal num tom de voz apaziguador, fazendo umas festas no dorso do agastado animal. — Muito… a… impressionante — conseguiu dizer, antes de rebentarem ambos outra vez a rir descontroladamente.
Por trás das lentes cor-de-rosa, o indignado Bartleby observava-os de lado com os seus grandes olhos.
Felizmente Rebecca, por muito que Will a amaldiçoasse, tinha deixado o congelador bem fornecido. Will leu as instruções do microondas e aqueceu três jantares de carne de vaca acompanhada de bolinhos de massa e feijão verde. Engoliram tudo na cozinha, com Bartleby de pé com as duas patas na mesa, a língua a raspar a embalagem de alumínio enquanto devorava esfomeadamente a carne sem deixar nada. Cal achou que era a melhor coisa que já tinha comido, mas declarou que ainda estava com fome e, por isso, Will foi buscar mais três jantares ao congelador. Desta vez, comeram carne de porco com batatas assadas. Empurraram tudo com uma garrafa de Coca-Cola, o que fez com que Cal se sentisse no céu.
— E agora? O que é que fazemos? — perguntou por fim, acompanhando com o dedo o subir das bolhinhas no copo.
— Para que é essa pressa toda? Vamos ficar bem por uns tempos — respondeu Will.
Esperava que pudessem ficar ali instalados, mesmo que fosse só por alguns dias, para ter tempo de planear a jogada seguinte.
— Os Styx sabem da existência deste sítio — já cá esteve alguém e vão voltar. Não te esqueças daquilo que o Tio Tam disse. Não podemos ficar parados no mesmo sítio de maneira nenhuma.
— Acho que tens razão — concordou Will, relutantemente — e podemos ser descobertos pelos agentes da imobiliária se trouxerem cá alguém para ver a casa.
Olhou sem ver para as cortinas de rede por cima do lava-louças e disse num tom determinado:
— Mas ainda tenho de tirar o Chester de lá.
O irmão olhou para ele horrorizado.
— Não estás a falar em voltar, pois não? Eu não posso voltar, Will. Os Styx faziam-me qualquer coisa terrível.
Cal não estava sozinho no medo de regressar ao subsolo. Will mal conseguia controlar o pavor perante a perspectiva de voltar a enfrentar os Styx. Sentia que tinha esticado a sorte até ao limite, e imaginar que conseguia levar avante uma audaciosa tentativa de fuga era pura loucura.
Por outro lado, o que iriam fazer se permanecessem na Superfície? Fugir? Quando pensava a sério no assunto, não lhe parecia realista. Mais cedo ou mais tarde, seriam apreendidos pela Polícia e, muito provavelmente, ele e Cal seriam separados e entregues a famílias adoptivas. E, pior do que isso, viveria o resto da sua vida sob a sombra da morte de Chester e com o conhecimento de que poderia ter-se juntado ao pai numa das maiores aventuras do século.
— Não quero morrer — disse Cal, numa voz fraca. — Dessa maneira não.
Afastou o copo e olhou implorativamente para os olhos de Will.
Isto estava a tornar-se cada vez mais difícil. Will não conseguia aguentar muito mais pressão. Abanou a cabeça.
— O que é que hei-de fazer, não posso deixá-lo ali. Não posso. Não o farei!
Mais tarde, enquanto Cal e Bartleby estavam instalados à frente da televisão a ver programas infantis e a comer batatas fritas, Will não conseguiu resistir e foi à cave. Tal como esperava, quando afastou a estante, não havia vestígios do túnel — até se tinham dado ao trabalho de pintar o bocado novo da parede de tijolo de modo a não destoar do resto. Sabia que, por trás dela, estava o habitual enchimento de pedra e terra. Tinham feito um bom trabalho. Não valia a pena perder mais tempo ali.
Voltando à cozinha, empoleirou-se num banco e vasculhou os frascos em cima dos armários. Descobriu o dinheiro para os vídeos da mãe num pequeno pote de porcelana — havia praticamente 20 libras e moedas soltas.
Estava no átrio, a caminho da sala, quando começou a ver pintinhas de luz a dançar à frente dos olhos e a sentir o suor a cobrir-lhe o corpo todo. Foi então que, inesperadamente, as pernas se foram abaixo. Deixou cair o frasco que embateu na esquina da mesa e se estilhaçou, espalhando o dinheiro por toda a cozinha. Teve a sensação de que estava a cair em câmara lenta, uma dor aguda a queimar-lhe a cabeça até que ficou tudo preto e ele perdeu os sentidos.
Cal e Bartleby vieram a correr da sala quando ouviram o barulho.
— Will! O que é que aconteceu? — gritou Cal, ajoelhando-se ao lado dele.
Will voltou lentamente a si, as têmporas a latejar dolorosamente.
— Não sei — respondeu fracamente. — De repente, senti-me horrivelmente mal.
Começou a tossir e teve de suster a respiração para conseguir parar.
— Estás a arder — disse Cal, pondo-lhe a mão na testa.
— A gelar…
Will mal conseguia falar, de tal forma batia os dentes. Fez um esforço para se levantar, mas não teve força.
— Oh, meu Deus! — exclamou Cal, com a cara contraída de aflição.— Pode ser qualquer coisa da Cidade Eterna. Peste!
Will ficou calado enquanto o irmão o puxava para o pé do último degrau das escadas e lhe apoiou a cabeça. Foi buscar a manta de viagem e tapou-o. Passado um bocado, Will mandou Cal à casa de banho para lhe trazer umas aspirinas. Engoliu-as com um gole de Coca-Cola e, depois de um curto descanso, com a ajuda de Cal, conseguiu pôr-se em pé com as pernas a tremer.
Os olhos de Will estavam febris e desfocados e tinha a voz a tremer.
— Acho que temos mesmo de arranjar ajuda — disse, enxugando o suor da testa.
— Há algum sítio para onde possamos ir? — perguntou Cal.
Will fungou. Engoliu e assentiu, sentindo a cabeça a estalar.
— Só me consigo lembrar de um sítio.
— Anda cá! — berrou o Segundo Oficial para dentro da cela, com a cabeça tão esticada para a frente que os tendões no pescoço de touro sobressaíam, como nós de cordas.
Das sombras ouviram-se várias fungadelas enquanto Chester fazia o possível para controlar os soluços horríveis. Desde que tinha sido recapturado e trazido novamente para o calabouço, o Segundo Oficial tratava-o brutalmente. O homem tinha assumido como tarefa pessoal tornar a vida de Chester num verdadeiro inferno, não lhe dando as refeições e acordando-o, se acontecia ele dormitar no banco corrido, atirando-lhe um balde de água gelada para a cabeça ou gritando ameaças através da vigia de inspecção. Tudo isto tinha, provavelmente, a ver com a ligadura grossa à volta da cabeça do Segundo Oficial — o golpe com a pá que Will lhe dera tinha-o feito desmaiar — e, o que fora ainda pior, quando voltara a si, os Styx tinham passado quase um dia inteiro a interrogá-lo e a acusá-lo de negligência. Por isso, dizer que agora o Segundo Oficial estava muito amargo e vingativo seria demasiado suave.
Chester, meio morto de fome e tão exausto que estava à beira de um colapso, não sabia quanto tempo mais é que conseguiria aguentar este tratamento. Se a vida tinha sido difícil antes da tentativa de fuga abortada, agora era muito pior.
— Não me faças ir aí buscar-te! — berrou o Segundo Oficial.
Antes de ele acabar a frase, já Chester se tinha arrastado descalço até ficar iluminado pela luz fraca do corredor. Protegendo os olhos com uma mão, levantou a cabeça. Esta estava manchada de cinzento com a porcaria e a camisa estava rasgada.
— Sim, senhor — murmurou, servilmente.
— Os Styx querem falar contigo. Têm uma coisa para te dizer — disse o Segundo Oficial com a voz distorcida pela maldade, e depois começou a rir. — Uma coisa que te vai arrumar de vez.
Ainda se estava a rir quando Chester, sem que lhe fosse mandado, começou a descer o corredor em direcção à porta principal do calabouço, as solas dos pés a raspar vagarosamente nas lajes rachadas.
— Toca a mexer! — ladrou o Segundo Oficial, batendo com o molho de chaves no fundo das costas de Chester.
— Ai! — queixou-se Chester, numa voz dorida.
Quando atravessaram a porta principal, Chester teve de tapar os olhos, de tão desabituado que estava à luz. Continuou a arrastar-se, seguindo na direcção que o teria levado até à secretária da recepção da esquadra da Polícia se o Segundo Oficial não o tivesse feito parar.
— E onde é que pensas que vais? Não estás a pensar que vais para casa, pois não? — O homem começou a rir-se, mas depois ficou outra vez muito sério. — Não, vais é virar à direita, para o corredor, olá se vais!
Chester, baixando as mãos e tentando ver através dos olhos semicerrados, fez um quarto de volta muito devagar e depois parou, preso no lugar.
— A Luz Escura? — perguntou, cheio de medo, sem se atrever a voltar a cara para o Segundo Oficial.
— Não, já passámos isso. É aqui que vais receber o castigo que mereces, vermezinho insignificante.
Atravessaram uma série de corredores com o Segundo Oficial a importunar Chester com empurrões e cotoveladas e a rir-se entredentes durante todo o caminho. Acalmou-se quando viraram uma esquina e ficaram à frente de uma porta aberta de onde jorrava uma luz intensa, iluminando a parede em frente, caiada de branco.
Embora os movimentos de Chester fossem lânguidos e a sua expressão vazia, interiormente os seus medos estavam em ebulição. Debatia freneticamente consigo próprio se devia tentar fugir e desatar a correr pelo corredor. Não fazia a menor ideia de onde iria parar ou até onde conseguiria chegar, mas, pelo menos, adiaria o confronto com fosse lá o que fosse que o esperava. Durante algum tempo, claro.
Abrandou o passo ainda mais, os olhos a doer quando se forçou a olhar directamente para o clarão de luz que saía da porta. Estava a ficar cada vez mais perto. Não sabia o que é que estava à espera lá dentro — outra das pavorosas e estranhas torturas deles? Ou se calhar… se calhar um carrasco.
Todo o seu corpo se inteiriçou, todos os músculos a querer fazer tudo menos levá-lo para aquela luz estonteante.
— Estamos quase — disse o Segundo Oficial por cima do ombro de Chester, que percebeu que não tinha outra alternativa senão cooperar.
Não ia haver adiamentos miraculosos nem fugas no último instante.
Estava a arrastar tão vagarosamente os calcanhares que mal se movia quando o Segundo Oficial lhe deu um empurrão com tanta força que o fez levantar voo e entrar pela porta. Deslizando pelo chão de pedra apoiado no peito, acabou por parar, deixando-se ficar estendido no chão, um pouco atordoado.
A luz rodeava-o por todos os lados e ele pestanejou rapidamente no clarão doloroso. Ouviu a porta fechar-se com um estrondo e, pelo barulho de papéis, percebeu que estava mais alguém na sala. Imaginou imediatamente quem é que devia, ou deviam ser — dois Styx altos, muito provavelmente avultando-se imponentemente atrás de uma mesa, tal como tinham estado durante as sessões com a Luz Escura.
— Levanta-te — ordenou uma voz nasal e aguda.
Chester obedeceu e, muito lentamente, ergueu os olhos para a origem da voz. Não podia ter ficado mais surpreendido pela visão com que se deparou.
Era um único Styx e era pequeno e mirrado, o cabelo grisalho e ralo puxado para trás e a cara coberta de tantas rugas e linhas que parecia uma passa branqueada. Dobrado sobre uma mesa alta com o tampo inclinado, parecia um professor antigo.
Chester ficou completamente desarmado perante esta aparição rodeada pela luz intensa. Não era daquilo que tinha estado à espera. Estava a começar a sentir-se aliviado, dizendo para consigo que, afinal, talvez as coisas fossem correr melhor do que pensara, quando os olhos se cruzaram com os do velho Styx.
Eram os olhos mais escuros e mais frios que Chester já vira. Pareciam dois poços sem fundo que o atraíam para eles e que, por um qualquer poder não natural e maléfico, o empurravam para o vazio. Chester sentiu um arrepio de frio, como se a temperatura da sala tivesse descido bruscamente, e começou a tremer violentamente.
O velho Styx baixou os olhos para a mesa e Chester oscilou, desequilibrado, como se tivesse sido abruptamente libertado por qualquer coisa que o tinha tido preso num aperto inexorável. Soltou o ar repentinamente, inconsciente até àquele momento que o tinha estado a reter. Então o Styx começou a ler num tom comedido:
— Foste considerado culpado à luz do Decreto 42, Éditos 18, 24, 42…
Os números continuaram, mas não significavam nada para Chester até que o Styx fez uma pausa e, muito prosaicamente, disse a palavra «sentença». Chester começou a prestar atenção a partir dessa altura.
— O prisioneiro será levado deste lugar e transportado de comboio para o Interior e aí será banido e entregue às forças da natureza. Cumpra-se — concluiu o velho Styx, batendo com a mão uma na outra e mantendo-as muito apertadas, como se estivesse a espremer uma coisa qualquer. Depois ergueu lentamente a cabeça dos papéis e disse: — Que o Senhor tenha piedade da tua alma.
— O que… o que quer dizer? — perguntou Chester, vacilando sob o olhar gélido do Styx e as implicações daquilo que acabara de ouvir.
Sem necessitar de consultar os papéis à sua frente, o Styx limitou-se a repetir a sentença, calando-se em seguida. Chester lutou com as perguntas que lhe corriam em tropel pela cabeça, movendo os lábios, mas sem emitir nenhum som.
— Sim? — perguntou o velho Styx, de uma maneira que sugeria que já tinha estado nesta situação muitas vezes e que achava extremamente cansativo ter de falar com o prisioneiro submisso à sua frente.
— O que… o que é que isso quer dizer? — acabou por conseguir dizer Chester.
O Styx olhou fixamente para ele durante vários segundos e, com uma impassibilidade total, disse:
— Banido. Vais ser escoltado até à Estação dos Mineiros, a uma profundidade de muitas braças, e depois ficas sozinho para fazeres o que quiseres.
— Vão levar-me ainda mais para dentro da Terra?
O Styx assentiu com a cabeça.
— Não precisamos de gente da tua laia na Colónia. Tentaste fugir e a Panóplia não vê essas coisas de bom grado. Não és digno de servir aqui. — Voltou a bater palmas. — Banido.
De repente, Chester sentiu o peso dos milhões de toneladas de terra e rocha por cima dele. Como se estivessem a comprimi-lo, espremendo-lhe o sangue. Recuou a cambalear.
— Mas eu não fiz nada! Não sou culpado de nada! — gritou, estendendo suplicantemente as mãos para o homenzinho impassível. Tinha a sensação de estar a ser enterrado vivo e de que nunca mais voltaria a ver a sua casa, ou o céu azul, ou a família… tudo aquilo que amava e por que tanto ansiava. A esperança a que se tinha agarrado desde que tinha sido capturado e fechado naquela cela escura abandonou-o de um jacto, como o ar de um balão furado.
Estava condenado.
Este homenzinho odioso estava-se nas tintas para ele… Chester percebeu isso na cara impassível do Styx e nos olhos assustadores — olhos de réptil, desumanos. E Chester sabia que não valia a pena tentar persuadi-lo ou implorar-lhe que o deixasse viver. Esta gente era selvagem e impiedosa, e tinham-no condenado arbitrariamente ao destino mais horroroso. Um túmulo ainda mais fundo.
— Mas porquê? — perguntou Chester, com as lágrimas a molhar-lhe a cara enquanto chorava abertamente.
— Porque é a lei — respondeu o velho Styx. — Porque eu estou sentado aqui e tu estás de pé aí. — Sorriu, sem o menor traço de simpatia.
— Mas … — protestou Chester, com um gemido.
— Agente, leve-o para o calabouço — disse o velho Styx, agarrando nos papéis com os dedos cheios de artritismo.
E Chester ouviu a porta abrir-se com um guincho atrás dele.