Capítulo Trinta e Cinco
Cal continuava a tapar a cara com um lenço e a resmungar por causa dos «gases horrorosos» quando saíram da Ponte Blackfriars e começaram a descer os degraus até ao Embankment. À luz do dia, tudo parecia tão diferente que, por uns instantes, Will teve dúvidas sobre se estariam no sítio certo. Com as pessoas a passar à volta deles numa grande azáfama, parecia muito fantasioso pensar que algures, por baixo deles, havia uma Londres primitiva e abandonada e que eles os três iam voltar para lá.
Mas estavam no sítio certo e foi apenas um curto passeio até à entrada desse outro mundo estranho. Pararam ao pé do portão e espreitaram para baixo, a observar a água castanha a deslizar preguiçosamente lá em baixo.
— Parece funda — comentou Cal. — Porque é que está assim?
— Burro! — resmungou Will, batendo com a palma da mão na testa. — A maré! Não me lembrei da maré! Vamos ter de esperar que desça.
— Quanto tempo é que vai demorar?
Will encolheu os ombros, olhando para o relógio.
— Não sei. Pode levar horas.
Não havia mais nada a fazer a não ser ocuparem o tempo a percorrer as ruas nas traseiras da Tate Modern e a voltar de quando em quando à margem do rio, tentando não dar muito nas vistas. À hora do almoço já conseguiam ver o cascalho a aparecer.
Will decidiu que não podiam continuar a andar por ali durante mais tempo.
— Pronto, tudo a postos para a largada!
Estavam à vista de muitos transeuntes na hora do almoço, mas praticamente ninguém prestou atenção àquele trio de aspecto tão bizarro, vestido de forma excêntrica e carregado com mochilas, quando saltaram por cima do muro para os degraus de pedra. Foi então que um velho, com um barrete de lã e um cachecol a condizer, os viu e começou a gritar «Malditos miúdos!», ao mesmo tempo que abanava furiosamente o punho na sua direcção. Umas duas ou três pessoas juntaram-se para ver o que se passava, mas depressa perderam o interesse e seguiram o seu caminho. Isto pareceu acalmar a fúria do velho e também ele se afastou, a arrastar os pés e a resmungar alto para consigo mesmo.
Ao fundo dos degraus, a água esparrinhou à volta das pernas dos rapazes enquanto eles galopavam a toda a velocidade ao longo da margem ainda coberta, parando apenas quando ficaram escondidos por baixo do paredão. Sem hesitar, Cal e Bartleby entraram na boca do túnel de escoamento.
Will fez uma pequena pausa antes de os seguir. Deitou um último e demorado olhar ao céu cinzento pálido através dos intervalos das pranchas de madeira e inspirou fundo, saboreando as últimas golfadas de ar fresco.
Agora que já tinha recuperado as forças, sentia-se uma pessoa completamente diferente — estava preparado para tudo o que pudesse acontecer. Como se a febre o tivesse libertado de todas as dúvidas ou fraquezas, sentia a segurança conformada de um aventureiro amadurecido. Mas, ao baixar os olhos para o rio que corria vagarosamente, sentiu a dor cruciante da perda e da melancolia, ciente de que podia nunca mais voltar a ver aquele lugar. Claro que não era obrigado a fazê-lo, podia ficar ali se quisesse, mas sabia que nunca mais seria como dantes. Tinham acontecido demasiadas coisas, coisas que nunca poderiam ser desfeitas.
— Vá lá, deixa-te disso — disse para consigo, libertando-se daqueles pensamentos e entrando no túnel onde Cal o esperava, impaciente por avançar.
Com um único olhar, Will conseguiu ler as emoções contraditórias na cara do irmão: embora a ansiedade fosse claramente visível, havia também uma sugestão de outra coisa, uma sensação de alívio profundo provocada pela promessa de um regresso iminente ao mundo subterrâneo. Afinal de contas, era o seu lar.
Embora as circunstâncias a isso o tivessem obrigado, Will reflectiu no terrível erro que tinha sido trazer Cal com ele para a superfície. Cal precisava de tempo para se adaptar à vida na Superfície e isso era um luxo a que não se podiam dar. Quer gostasse quer não, o destino de Will era salvar Chester e encontrar o pai. E o destino de Cal estava inextricavelmente ligado ao seu.
Will estava preocupado por ter perdido tantos dias por causa da febre — não sabia se já não seria demasiado tarde para salvar Chester. Já teria sido exilado para as Profundezas, ou teria tido um fim inimaginável às mãos dos Styx? Fosse qual fosse a verdade, tinha de a descobrir. Tinha de continuar a acreditar que Chester ainda estava vivo; tinha de voltar para trás. Nunca conseguiria viver com aquilo suspenso sobre a sua cabeça.
Descobriram a chaminé vertical e, relutantemente, Will desceu para a poça de água gelada por baixo dela. Cal trepou para os ombros de Will para poder chegar à chaminé e enfiou-se nela, arrastando uma corda atrás. Quando o irmão estava em segurança no cimo da chaminé, Will atou a outra ponta da corda à volta do pescoço de Bartleby e Cal começou a içá-lo. Isto, como se veio a provar, era completamente desnecessário pois, mal o animal se viu dentro do tubo, usou as patas fortes para trepar até ao cimo com uma agilidade espantosa. A corda foi atirada para Will, que se içou para as sombras.
Depois deslizaram nos fundilhos das calças pela rampa convexa, aterrando com um baque surdo na saliência que marcava o início das escadas mal acabadas. Antes de continuar, tiraram cuidadosamente a roupa de lã de Bartleby e deixaram-na numa das saliências mais altas — não se podiam dar ao luxo de carregar com pesos inúteis. Will não fazia a menor ideia do que ia fazer mal conseguissem regressar à Colónia, mas sabia que tinha de ser muitíssimo prático… tinha de ser como Tam.
Os rapazes puseram as máscaras da tropa, olharam um para o outro durante uns instantes, fizeram um gesto de assentimento e, com Cal à frente, começaram a longa descida.
Ao princípio a descida foi árdua devido às escadas serem perigosas por causa da água que se infiltrava constantemente e, mais abaixo, à carpete de algas pretas. Will descobriu que não se lembrava praticamente nada de ter passado por ali anteriormente, percebendo que isso devia ter sido provocado pela doença misteriosa que já o dominava naquela ocasião.
Naquilo que lhes pareceu não ter demorado tempo algum, tinham chegado à abertura para a parede da caverna da Cidade Eterna.
— Que raio é isto? — exclamou Cal mal saíram para o cimo do imenso lance de escadas, os olhos a varrer rapidamente o seu percurso escuro.
Havia qualquer coisa que estava muito errada. A aproximadamente 30 metros mais abaixo, os degraus desapareciam por completo.
— Isso é aquilo que a que se chama uma verdadeira sopa de ervilhas — disse Will baixinho, o visor de vidro a cintilar com o brilho verde pálido.
Do local onde se encontravam, muito acima da cidade, olharam para o que parecia ser a superfície ondulante de um enorme lago opalino. Toda a superfície estava coberta de névoas espessas, iluminadas por uma luz estranha, como se fosse uma imensa nuvem radioactiva. Era muito assustador pensar que a vasta extensão da cidade enorme estava obscurecida sob aquela cobertura opaca. Will, num gesto automático, meteu a mão no bolso à procura da bússola.
— Isto vai dificultar-nos um bocadinho a vida — comentou, franzindo o cenho atrás da máscara.
— Porquê? — retorquiu Cal. Os olhos franziram-se por trás do visor quando um enorme sorriso se espalhou pela cara. — Eles não nos vão poder ver no meio desta coisa, não é verdade?
Mas a expressão de Will continuou sombria.
— É verdade, mas nós também não os poderemos ver.
Cal segurou Bartleby enquanto Will lhe atava uma corda à volta do pescoço. Não podiam arriscar-se a que ele resolvesse andar por onde lhe apetecesse naquelas condições.
— É melhor agarrares-te à minha mochila para não te perderes. E, faças o que fizeres, não soltes esse gato — ordenou Will ao irmão num tom muito sério quando deram os primeiros passos no nevoeiro, descendo lentamente para o meio dele, como mergulhadores de profundidade a enfiarem-se debaixo das ondas.
A visibilidade ficou imediatamente reduzida a pouco mais de meio metro — nem sequer conseguiam ver as botas, o que os obrigava a tactear à procura da borda de cada degrau antes de descerem para o seguinte.
Felizmente, chegaram ao fundo das escadas sem incidentes e, quando os charcos de lama apareceram, repetiram o ritual das ervas negras, esfregando a pasta peganhenta um no outro, desta vez para cobrir os cheiros da Superfície de Londres.
Seguindo pela borda do pântano, acabaram por chocar com a muralha da cidade e continuaram à volta dela. Se é que era possível, a visibilidade estava ainda pior e demoraram imenso tempo até descobrirem uma entrada.
— Um arco — sussurrou Will, parando tão abruptamente que o irmão quase caiu em cima dele.
A estrutura antiga solidificou-se por uns breves instantes à frente deles e depois o nevoeiro cerrou-se, voltando a escondê-la.
— Oh, que bom — replicou Cal sem um grama de entusiasmo.
Mal se encontraram dentro das muralhas da cidade, tiveram de apalpar caminho pelas ruas, praticamente colados um ao outro para não se separarem naquelas condições impossíveis. O nevoeiro era quase palpável, envolvendo-os e rolando como lençóis ao vento, abrindo de vez em quando e permitindo que vissem de relance uma secção da parede, um bocado do chão ensopado ou o brilho das pedras da calçada debaixo dos pés. O chapinhar das botas nas algas negras e a respiração pesada através das máscaras pareciam-lhes assustadoramente sonoros. A forma como o nevoeiro se contorcia e brincava com as suas sensações fazia com que tudo parecesse muito íntimo mas, ao mesmo tempo, muito afastado.
Cal agarrou no braço de Will e estacaram. Estavam a começar a aperceber-se de outros ruídos à volta que não eram feitos por eles. Ao princípio vagos e indistintos, estes sons estavam a tornar-se mais altos. Enquanto se esforçavam por ouvir, Will podia ter jurado que tinha apanhado um murmúrio áspero, tão perto dele que se encolheu. Puxou Cal uns passos para trás, convencido de que já tinham feito aquilo que ele mais temia, que tinham chocado de frente com a Divisão dos Styx. No entanto, Cal jurava que não tinha ouvido nada e, passado um bocado, recomeçaram nervosamente a avançar.
Então, ao longe, ouviu-se o uivar de gelar o sangue de um cão — desta vez não havia a menor dúvida. Cal apertou com mais força a trela de Bartleby quando o gato levantou a cabeça e espetou as orelhas. Embora nenhum dos rapazes dissesse nada, estavam ambos a pensar na mesma coisa: a necessidade de atravessarem a cidade o mais depressa possível tinha-se tornado ainda mais forte.
Avançaram silenciosamente, com os corações a bater furiosamente enquanto Will ia olhando para o mapa de Tam e consultava repetidamente a bússola com a mão tremente, na tentativa de fixar a posição em que se encontravam. A visibilidade era tão má que, na realidade, quase não fazia ideia de onde estavam. Tanto quanto sabia, até podiam estar a andar às voltas. Parecia que não estavam a fazer qualquer progresso e Will estava quase a perder a cabeça. Que belo chefe se estava a revelar!
Por fim, fê-los parar e acocoraram-se na sombra de um muro em ruínas. Debateram em murmúrios baixinhos o que fazer em seguida.
— Se começarmos a correr, não terá importância se dermos com uma patrulha. Podemos facilmente despistá-los nestas condições — sugeriu Cal calmamente, os olhos a saltar da direita para a esquerda atrás das lentes manchadas de humidade da máscara de gás. — É só continuar a correr.
— Sim, claro — replicou Will. — Achas mesmo que podias correr mais do que um daqueles cães? Gostava de ver isso.
Cal resfolegou furiosamente em resposta.
Will continuou.
— Olha, não fazemos a menor ideia de onde estamos e, se tivermos de nos pôr a correr, iremos provavelmente dar a um beco sem saída ou qualquer coisa assim…
— Mas mal entrarmos no Labirinto, eles nunca mais nos apanham! — insistiu Cal.
— Certo, mas primeiro temos de lá chegar e, por aquilo que sabemos, ainda está muito longe.
Will não conseguia acreditar na sugestão absurda do irmão. De repente, apercebeu-se de que uns meses antes poderia ter sido ele a defender a corrida louca pelas ruas e vielas da cidade. De uma forma quase imperceptível, tinha mudado. Agora era ele o ajuizado e Cal o rapaz impulsivo e teimoso, cheio de uma confiança louca e disposto a arriscar tudo.
A troca furiosa de murmúrios continuou, tornando-se cada vez mais acesa até que, finalmente, Cal cedeu. Ia ser a abordagem «suave, suave»; iam fazer o caminho até ao outro lado da cidade centímetro a centímetro, mantendo o som dos passos no mínimo e fundindo-se no nevoeiro se alguém, ou alguma coisa, se aproximasse.
Estavam a avançar por cima de montes de escombros, com a cabeça de Bartleby a girar em todas as direcções, enquanto ele farejava o ar e o chão, quando, de repente, o gato estacou. Por mais que Cal puxasse a trela, recusava-se a mexer — tinha baixado o corpo rente ao chão, como se estivesse à caça de qualquer coisa, a cabeça grande quase colada ao chão, e a cauda esquelética esticada atrás dele. As orelhas estavam espetadas, a tremer como antenas de radar.
— Onde é que eles estão? — perguntou Cal num murmúrio frenético.
Em vez de responder, Will enfiou a mão num dos bolsos laterais da mochila de Cal e tirou dois grandes foguetes. Tirou também de um dos bolsos interiores do seu próprio casaco o pequeno isqueiro de plástico descartável da Tia Jean e ficou com ele na mão, preparado para agir.
— Anda, Bart — sussurrou Cal ao ouvido do gato, agachando-se ao lado dele. — Está tudo bem.
O pouco pêlo que Bartleby tinha estava agora todo eriçado. Cal conseguiu fazer com que o gato desse a volta e afastaram-se em bicos de pés na direcção oposta, como se estivessem a andar em cima de cascas de ovos, com Will a fechar a retaguarda com os foguetes na mão.
Seguiram um muro que se curvava suavemente, Cal a apalpar as pedras irregulares com a mão livre, como se fossem uma forma incompreensível de Braille. Will vinha a andar de costas, a controlar o que se passava. Não vendo nada senão as nuvens assustadoras e chegando à conclusão de que era inútil tentar confiar na sua visão nestas circunstâncias, deu meia volta e chocou contra um plinto de granito. Encolheu-se todo quando a face trocista de uma enorme cabeça de mármore apareceu no nevoeiro que se afastava. Rindo de si próprio, contornou-a e encontrou o irmão à espera um metro mais à frente.
Tinham avançado uns 20 passos quando o nevoeiro começou a recuar misteriosamente, revelando uma rua empedrada à frente deles. Will limpou apressadamente a humidade do visor e deixou que o olhar seguisse as margens do nevoeiro que recuava. Aos poucos e poucos, as bordas da rua e as fachadas dos edifícios foram ficando visíveis. Os dois rapazes sentiram uma onda de profundo alívio a percorrê-los quando as cercanias mais próximas se iam revelando tentadoramente pela primeira vez desde que tinham entrado na cidade.
E, de repente, o sangue gelou-se-lhes nas veias.
Ali, a menos de dez metros de distância, demasiado reais e terrivelmente nítidos, viram-nos. Uma patrulha de seis Styx abria-se em leque de um lado ao outro da rua. Estavam imóveis, como predadores, os grandes óculos redondos a observar os rapazes enquanto eles retribuíam estupidamente o olhar.
Pareciam espectros de um pesadelo do futuro com os casacos compridos com riscas verdes acinzentadas, os capacetes estranhos e as sinistras máscaras de respiração. Um deles segurava com uma grossa tira de couro um cão de aspecto feroz — estava a lutar contra a coleira, a língua obscenamente pendurada de um dos lados da boca monstruosa. Farejou e imediatamente virou a cabeça na direcção dos rapazes. Os seixos pretos dos olhos redondos tinham-nos avaliado num instante. Com um rosnido profundo e estrondoso, arreganhou os beiços, revelando uns enormes dentes amarelos que pingavam saliva com a excitação. A trela afrouxou quando ele se agachou, preparando-se para saltar.
Mas ninguém se mexeu. Como se o próprio tempo tivesse parado, os dois grupos limitaram-se a ficar parados a olhar um para o outro numa horrível e muda antecipação.
Qualquer coisa estalou na cabeça de Will. Gritou e fez Cal dar meia volta, despertando-o daquela inércia paralisante. Depois começaram a correr, voltando para o nevoeiro, as pernas a moverem-se freneticamente. Correram e correram, incapazes de perceber quanto terreno estavam a cobrir através das camadas de névoa. Atrás deles vinham o ladrar selvático do sabujo e os gritos dos Styx.
Nenhum dos rapazes fazia a mínima ideia de para onde é que estavam a ir, desde que conseguissem sair daquela área. Não tinham tempo para pensar, as mentes paralisadas pelo pânico cego.
Foi então que Will voltou a si. Gritou a Cal que continuasse a correr enquanto ele abrandava para pegar fogo ao papel azul de uma candeia romana. Sem saber se o tinha acendido ou não, encostou-a a uma pedra, inclinando-a na direcção dos seus perseguidores.
Correu mais uns metros e voltou a parar. Acendeu o isqueiro, mas desta vez a chama recusou-se a aparecer. Praguejando, tentou uma e outra vez. Nada, só faíscas. Chocalhou-o como tinha visto os Greys fazer tantas vezes na escola quando estavam a acender os cigarros ilícitos. Inspirou fundo e voltou a tentar. Sim! A chama era pequena mas era o suficiente para acender o rastilho do foguete, uma bateria aérea. Mas agora o rosnar, o ladrar e as vozes estavam a aproximar-se muito. Perdeu a coragem e limitou-se a largar o foguete no chão.
— Will! Will! — ouviu chamar à frente dele.
Enquanto corria na direcção dos gritos, Will sentiu-se furioso por Cal estar a fazer tanto barulho, embora soubesse que nunca o encontraria de outra maneira. Will ia a correr a toda a velocidade quando alcançou o irmão, quase o atirando ao chão. Iam num sprint furioso quando rebentou o primeiro foguete. Disparou ruidosamente em todas as direcções, as vibrantes cores primárias a misturarem-se com a textura do nevoeiro antes de se apagarem com dois estrondos ensurdecedores.
— Continua! — silvou Will a Cal, que tinha chocado de cabeça numa parede e estava um pouco atordoado. — Anda! Por este lado! — disse, puxando o irmão pelo braço, sem lhe dar tempo de se aperceber da gravidade da pancada.
Os foguetes continuaram, explodindo em bolas de luz no alto da caverna ou em arcos baixos que iam acabar na própria cidade, traçando por instantes as silhuetas dos edifícios como se fossem o cenário de um espectáculo de sombras. Cada raio iridescente culminava de um relâmpago ofuscante e numa explosão igual a um tiro de canhão, que ribombava e ecoava pela cidade como uma tempestade enfurecida.
De quando em quando, Will parava para acender outro foguete, escolhendo candeias romanas, bombas aéreas ou foguetões que pousava em bocados de pedras ou atirava para o chão, com a esperança de baralhar a patrulha em relação à posição deles. Os Styx, se ainda os estavam a perseguir, estariam a sofrer o impacto deste ataque violento e Will tinha esperança de que o cheiro do fumo pudesse, pelo menos, fazer com que o cão lhes perdesse o rasto.
Quando o último dos foguetes rebentou numa cascata de luz e barulho, Will rezou para que tivesse conseguido fazê-los ganhar tempo suficiente para chegarem ao Labirinto. Abrandaram o ritmo para recuperar o fôlego e depois pararam por completo para ouvirem qualquer sinal dos seus perseguidores, mas não havia nada. Parecia que os tinham despistado. Will sentou-se num degrau largo de um edifício que parecia ter sido um templo e pegou no mapa e na bússola enquanto Cal ficava de vigia.
— Não faço a menor ideia de onde estamos — confessou ele, guardando o mapa. — É inútil!
— Podemos estar em qualquer sítio — concordou Cal.
Will levantou-se a olhar para a esquerda e para a direita.
— Acho que o melhor é continuarmos a seguir nesta direcção.
Cal concordou com a cabeça.
— Mas e se acabarmos por voltar ao sítio onde começámos?
— Não interessa. Temos é de continuar a mexer-nos — disse Will, começando a andar.
Mais uma vez, o silêncio desceu sobre eles e as formas e sombras misteriosas apareceram e suavizaram-se como se os edifícios tão depressa estivessem focados como desfocados nesta cidade invisível. Tinham progredido lenta e tortuosamente através de uma sucessão de ruas quando Cal os fez parar.
— Acho que está a clarear um bocadinho, sabes? — sussurrou ele.
— Bem, isso já é alguma coisa — replicou Will.
Mais uma vez, Bartleby cheirou o ar e agachou-se a silvar enquanto as margens do nevoeiro recuavam à frente deles. Os rapazes estacaram, os olhos a varrer febrilmente o ar leitoso.
Como se se estivessem a levantar véus para a revelar, ali, a menos de seis metros, a sombra de um forma escura estava ameaçadoramente agachada. Ambos ouviram um rosnar baixo e gutural.
— Jesus! Um sabujo! — exclamou Cal, engolindo em seco.
Os corações pararam quando se aperceberam daquela realidade assustadora. Não conseguiram fazer mais nada a não ser olhar enquanto ele se levantava, as musculosas patas traseiras a ganhar vida dando patadas no chão, e depois começou a mover-se, acelerando a uma velocidade espantosa. Não havia absolutamente nada que pudessem fazer. Não valia a pena correrem; ele estava demasiado perto. Como uma máquina a vapor infernal, o cão negro avançava para eles, a condensação a sair das narinas abertas.
Will não teve tempo para pensar. Quando o viu saltar, largou a mochila e empurrou Cal para o lado.
O sabujo ergueu-se no ar e chocou violentamente contra o peito de Will. As patas, que mais pareciam maças, atiraram-no ao chão, a cabeça a bater com um ruído surdo nas algas que cobriam o chão. Meio atordoado, Will estendeu os braços e agarrou o pescoço do monstro com as duas mãos. Os dedos encontraram a coleira grossa e agarraram-se a ela enquanto ele tentava afastar a fera da cara.
Mas o animal era demasiado forte. As mandíbulas abriam e fechavam tentando agarrar a máscara, acabando por abocanhá-la. Will ouviu o guincho das presas a apertar a borracha quando a máscara se esborrachou na cara dele, e depois um estalido alto quando um dos vidros dos óculos se estilhaçou. Sentiu o cheiro pútrido da respiração do cão, que lembrava carne podre e quente, enquanto o animal continuava a puxar e a torcer a máscara, as correias atrás da cabeça de tal modo esticadas que estavam à beira de se romper.
Rezando para que a máscara continuasse no lugar, tentou com todas as suas forças voltar a cabeça para o lado. As mandíbulas do animal resvalaram da máscara, mas a vitória de Will durou pouco. O cão recuou ligeiramente, mas voltou imediatamente a atirar-se. Gritando e ainda agarrado à coleira grossa com todas as suas forças, Will mal conseguia manter a cara afastada, os braços já no limite das suas forças. A coleira estava a cortar-lhe os dedos — nem conseguia acreditar no peso daquela criatura. Uma e outra vez, Will desviou a cabeça, conseguindo evitar por um triz os dentes que abriam e fechavam como as mandíbulas de uma armadilha a fecharem-se com um estalo.
Foi então que o animal se contorceu e desviou o corpo.
Uma das mãos de Will resvalou e, sem nada que o detivesse, o animal procurou de imediato um alvo mais compensador. Agarrou o antebraço de Will e mordeu com força. Will gritou de dor e a outra mão abriu-se involuntariamente, soltando a coleira.
Agora não havia nada que o parasse.
O animal trepou imediatamente para cima dele e cravou-lhe os incisivos no ombro. No meio das rosnadelas e das dentadas, Will ouviu o tecido do casaco a rasgar quando os dentes enormes, como dois punhais gémeos, penetraram e rasgaram a carne. Will voltou a gemer quando a fera abanou a cabeça, rosnando alto. Estava impotente, como um boneco de trapos a ser abanado de um lado para o outro. Com o braço livre, deu murros fracos no flanco e na cabeça do animal, mas não servia de nada.
De repente, o animal soltou-se do ombro e ergueu-se nas patas traseiras, o peso imenso ainda a pregá-lo ao chão. Quando os olhos enlouquecidos se fixaram nos dele, Will conseguiu ver as mandíbulas abertas a poucos centímetros da cara, e os fios de saliva a pingar nos óculos. Will percebia que Cal estava a fazer tudo o que podia para ajudar; avançava rapidamente para bater e dar pontapés na fera e depois recuava com a mesma velocidade. De cada vez que o fazia, o cão limitava-se a voltar a cabeça para ele e a rosnar-lhe como se soubesse que ele não era nenhuma ameaça séria. O seu cerebrozinho selvagem estava apenas concentrado numa coisa, na presa que estava completamente à sua mercê.
Will tentou desesperadamente rolar para um lado, mas o animal tinha-o pregado ao chão. Sabia que não podia competir com esta fera diabólica e imparável que parecia feita de enormes placas de músculos, tão duros e tão resistentes como uma rocha.
— Vai-te embora! — gritou a Cal. — Foge!
Então, vindo não sabia de onde, um carnudo raio cinzento saltou para a cabeça do sabujo.
Por um breve instante, Bartleby pareceu ficar suspenso no ar, as costas arqueadas e as garras abertas como navalhas mortíferas a poucos centímetros da cabeça do cão. No instante seguinte, tinha caído e houve uma confusão de movimentos frenéticos. Ouviu-se o rasgar da carne quando os dentes de Bartleby encontraram o primeiro alvo. Uma torrente escura de sangue caía sobre Will de um rasgão lívido no sítio onde tinha estado a orelha do cão. A fera soltou um latido baixo e, encolhendo-se, saltou de cima de Will, com Bartleby ainda agarrado à cabeça e ao pescoço e a atacá-lo com dentadas e golpes selváticos que rasgavam a pele das patas traseiras.
— Levanta-te! Levanta-te! — gritava Cal, enquanto ajudava Will a pôr-se em pé com uma mão e agarrava na mochila com a outra.
Os rapazes recuaram para uma distância segura e depois pararam, sentindo-se forçados a ficar e a ver. Estavam presos ao chão, petrificados com esta batalha entre cão e gato enquanto ambos se contorciam num combate mortal, as formas a fundirem-se uma na outra até se transformarem num remoinho indistinto de vermelho e cinzento, pontuado por dentes e garras faiscantes.
— Não podemos ficar aqui — gritou Will.
Conseguia ouvir os gritos de uma patrulha que se aproximava e que estava quase a chegar ao local da batalha.
— Bart, larga! Anda!
— Os Styx! — gritou Cal para o irmão. — Temos de ir.
Cal afastou-se relutantemente, sempre a espreitar para trás para ver se o gato os estava a seguir através do nevoeiro. Mas não havia sinal de Bartleby, apenas os silvos e os latidos distantes.
Gritos e barulho de pés ecoavam à volta deles. Os rapazes estavam a correr às cegas, com Cal a resmungar com o esforço de carregar com as duas mochilas e Will a tremer em estado de choque, o braço a pulsar com uma dor contínua. Sentia o sangue a escorrer e ficou alarmado ao constatar que estava a correr pelas costas da mão em pequenos riachos e a pingar das pontas dos dedos.
Sem fôlego, os dois rapazes decidiram rapidamente qual a direcção a tomar, esperando sem grande fé que os levasse para fora da cidade e não direitos aos braços dos Styx. Mal chegassem à zona pantanosa, dariam a volta à muralha da cidade até encontrarem a entrada do Labirinto. E se acontecesse o pior e não a conseguissem encontrar, Will sabia que acabariam por chegar novamente às escadas de pedra e conseguiriam regressar rapidamente à Superfície.
Do barulho que ouviam, a patrulha parecia estar a aproximar-se. os rapazes estavam a correr a toda a velocidade, mas, de repente, chocaram com um muro. Teriam inadvertidamente entrado num beco sem saída? Aquele pensamento terrível ocorreu aos dois em simultâneo. Apalparam desesperadamente a parede até descobrirem um arco, com os lados a ruir e já sem a pedra central.
— Graças a Deus! — murmurou Will, deitando um olhar de alívio a Cal. — Foi por pouco!
Cal assentiu, respirando pesadamente. Espreitaram rapidamente para trás deles antes de passarem o arco.
Com a rapidez de um relâmpago, mãos fortes agarraram-nos rudemente de ambos os lados do arco e levantaram-nos no ar.