Epílogo




O calor suave do Sol enchia um dia bonito nos princípios do Ano Novo, tão ameno que parecia Primavera. Desobstruída de edifícios altos, a tela de um azul perfeito do céu estava apenas manchada pelos pontinhos das gaivotas que, ao longe, desciam e subiam nas correntes de ar quente. Se não fosse pela intrusão ocasional do trânsito que passava na estrada ao lado do canal, poder-se-ia imaginar que se estava algures na costa, talvez mesmo numa aldeia piscatória adormecida.

Mas isto era Londres e as mesas de madeira no exterior do pub estavam a começar a encher-se à medida que a atracção do tempo ameno se ia tornando demasiado tentadora. Três homens de fato escuro e as caras anémicas de funcionários de escritório saíram arrogantemente pela porta e sentaram-se com as suas bebidas. Inclinados sobre a mesa, cada um deles tentava suplantar os outros, falando demasiado alto e rindo roucamente, como corvos desordeiros. Ao lado deles estava um grupo muito diferente: estudantes de jeans e t-shirts desbotadas que praticamente não faziam barulho. Estavam quase a sussurrar uns para os outros enquanto bebericavam as suas cervejas e enrolavam um ou outro cigarro.

Sentado sozinho num banco de madeira à sombra do prédio, Reggie ia bebendo a sua cerveja, a quarta da hora do almoço. Sentia-se um bocado zonzo mas, como não tinha nada programado para a tarde, tinha resolvido fazer a vontade a si próprio. Agarrou numa mão cheia de peixinhos fritos de uma tigela ao lado dele e mastigou-os pensativamente.

— Viva, Reggie — disse-lhe uma das empregadas do bar, os braços carregados de copos periclitantemente empilhados uns nos outros enquanto ia recolhendo os sujos.

— Ora viva — replicou ele, hesitantemente. Nunca era muito bom a lembrar-se dos nomes dos empregados dos bares.

Ela sorriu-lhe prazenteiramente e depois abriu a porta com a anca e entrou. Havia anos que Reggie aparecia intermitentemente por ali, mas ultimamente tinha-se tornado num cliente regular, aparecendo quase todos os dias para comer num dos seus pratos favoritos: peixinhos fritos, bacalhau e batatas fritas.

Era um homem reservado que não dava conversa a estranhos. Para além do facto de dar gorjetas muito generosas, aquilo que o fazia sobressair dos clientes rascas habituais era a sua aparência. Tinha um cabelo espantosamente branco. Às vezes, usava-o como um motoqueiro já velhote, numa trança que pareci uma cobra a descer-lhe pelas costas, mas outras deixava-o solto, tufado e fofo como o de um caniche acabado de ser lavado. Nunca largava os óculos muito escuros, fosse qual fosse o tempo, e as roupas eram esotéricas e antiquadas como se as tivesse pedido emprestadas a um encarregado do guarda-roupa de um teatro. Dada a sua aparência excêntrica, os empregados do bar tinham chegado à conclusão de que devia ser um músico desempregado, um actor «em descanso» ou mesmo um artista ainda não descoberto, dos muitos que havia na zona.

Encostou-se à parede, suspirando de satisfação, no preciso momento em que apareceu uma rapariga magra, com uma cara agradável e um lenço de algodão às flores na cabeça. Carregando um cesto de verga, foi de mesa em mesa, tentando vender pequenos raminhos de urze com papel de alumínio enrolado nos caules. Era uma cena que podia ter sido retirada dos tempos vitorianos. Sorriu, pensando como era estranho que as ciganas ainda andassem a vender mercadorias tão inocentes quando à sua volta as grandes companhias promoviam as suas marcas tão implacavelmente nos grandes cartazes.

— Imago!

O nome vogou até ele no momento em que se levantou uma brisa e um carro muito amolgado fazia temerariamente uma curva da estrada, os pneus a chiar muito alto. Arrepiou-se e olhou desconfiado para um velho que caminhava com dificuldade pelo passeio, apoiado à bengala. As faces do homem estavam cobertas de uns pêlos cinzentos espetados, como se se tivesse esquecido de fazer a barba nessa manhã.

Quando a rapariga que vendia urze passou com o cesto, Imago desviou os olhos do homem e estudou outra vez as pessoas sentadas nas mesas. Não, ele estava um bocado nervoso. Não era nada. Devia ter sido imaginação sua.

Pôs a tigela dos peixinhos no colo e serviu-se de outra mão cheia, empurrando-a para baixo com cerveja. Isto é que era vida! Sorriu para consigo e esticou as pernas.

Ninguém viu que ele era atirado contra a parede por um espasmo súbito e depois saltava para fora do banco, a cara grotescamente contorcida. Quando caiu no chão, os olhos reviraram-se nas órbitas e a boca abriu-se e depois fechou-se pela última vez.

Estava tudo acabado antes de a ambulância chegar. Como ele podia rolar para fora da maca, os dois homens da ambulância resolveram carregar com o corpo rígido, um de cada lado. A multidão de curiosos arfou de espanto com o espectáculo, murmurando entre si enquanto o corpo de Imago, petrificado como uma estátua na posição de sentado, era metido na ambulância. E não havia absolutamente nada que os homens da ambulância pudessem fazer em relação à tigela ainda presa na mão do cadáver, com uma tal força que não a conseguiram tirar.

Coitado do velho Reggie. Um grupo bastante insensível no que se referia ao bem-estar da clientela, os empregados do bar ficaram genuinamente perturbados com a morte dele. Especialmente quando a cozinha foi fechada e muitos deles perderam o emprego. Mais tarde disseram-lhes que havia um composto de chumbo obscuro na comida dele; era uma ocorrência anormal, um peixe envenenado num milhão. O corpo dele tinha simplesmente deixado de funcionar, o sangue coagulou como cimento rápido devido ao choque tóxico esmagador.

No inquérito, o médico legista não se mostrou muito comunicativo em relação à natureza do veneno. De facto, parecia bastante confuso com os vestígios de químicos complexos, nunca registados até então.

Só uma pessoa, a rapariga que, do outro lado da estrada, observava a ambulância, sabia a verdade. Tirou o lenço e atirou-o para a sarjeta, sacudindo o cabelo preto como azeviche com um sorriso de satisfação consigo mesma, enquanto punha os óculos escuros e virava o rosto para o céu brilhante. Enquanto se afastava, começou a cantar baixinho:

Sunshine… You are my sunshine…

Ainda não tinha acabado…