Capítulo Dois

ScreenShot021.jpg

Do outro lado de Highfield, Terry Watkins, «Tipper Tel» para os colegas de trabalho, de pijama, lavava os dentes em frente do espelho da casa de banho. Estava cansado e a contar com uma boa noite de sono, mas a sua mente ainda continuava num turbilhão por causa do que vira naquela tarde.

Tinha sido um dia terrivelmente comprido e árduo. Ele e a sua equipa de demolição estavam a deitar abaixo a antiga fábrica de hidrocarbonato de chumbo a fim de abrirem espaço para um novo edifício de escritórios de um departamento governamental qualquer. O que ele mais queria era ir para casa, mas tinha prometido ao patrão que ia tirar umas filas de tijolos na cave para fazer uma avaliação da extensão das fundações. A última coisa a que a sua companhia se podia dar ao luxo era exceder o tempo do contrato, o que era sempre um risco com estes edifícios antigos.

Enquanto o holofote portátil brilhava intensamente atrás dele, tinha batido com a marreta, partindo os tijolos vermelhos feitos à mão que revelaram as entranhas vermelho vivo como animais esventrados. Voltou a bater, com fragmentos a saltarem e a caírem no chão coberto de fuligem da cave, e praguejou baixinho porque todo aquele sítio estava demasiado bem construído.

Depois de mais umas pancadas, esperou até que a nuvem de pó dos tijolos assentasse. Para sua grande surpresa, descobriu que a área de parede que estivera a atacar só tinha um tijolo de espessura. Havia uma placa antiga de ferro-gusa onde a segunda e a terceira camadas deveriam estar. Bateu-lhe um par de vezes e ela ressoou com um clangor substancial a cada pancada. Não ia ceder com facilidade. Respirou pesadamente enquanto pulverizava os tijolos em redor das bordas da superfície para descobrir, com um profundo espanto, que tinha dobradiças e até uma espécie de puxador cravado na superfície.

Era uma porta.

Fez uma pausa, ofegando durante uns instantes enquanto tentava perceber porque é que alguém havia de querer aceder àquilo que, de acordo com a lógica, deveria ser uma parte das fundações.

Depois cometeu o maior erro da sua vida.

Usou a chave de parafusos para levantar a pega, um anel de ferro forjado que girou, surpreendentemente, com muito pouco esforço. A porta abriu-se para dentro com uma pequena ajuda das suas botas de trabalho e bateu ruidosamente contra a parede do outro lado, o barulho a ecoar durante o que lhe pareceu uma eternidade. Agarrou na lanterna e apontou-a para a escuridão total da divisão. Conseguiu ver que tinha pelo menos uns seis metros de largura e que era, na realidade, circular.

Passou a porta e pisou a superfície de pedra do outro lado. Mas ao dar o segundo passo, o chão de pedra desapareceu e o pé não encontrou mais nada senão ar. Havia um buraco! Oscilou na beirinha, os braços a girarem freneticamente até conseguir recuperar o equilíbrio e desviar-se da borda. Embateu no umbral da porta e agarrou-se a ele com toda a força enquanto inspirava fundo várias vezes para acalmar os nervos e praguejava contra si próprio pela sua precipitação.

— Vamos lá, isto não pode ser — disse em voz alta, obrigando-se a agir.

Virou-se e avançou devagarinho, com a lanterna a mostrar que estava de facto de pé num rebordo de pedra, com uma escuridão ominosa à sua frente. Inclinou-se tentando perceber o que estava lá em baixo — parecia não ter fundo. Tinha entrado num enorme poço de tijolo. E, quando olhou para cima, não conseguiu ver a parte de cima do poço — as paredes de tijolo curvavam-se dramaticamente para dentro das sombras, para além dos limites da sua pequena lanterna de bolso. Uma brisa forte parecia soprar do cimo, gelando-lhe o suor da nuca.

Girando o feixe de luz, viu que havia uns degraus a toda a volta do poço, com cerca de meio metro de largura, que começavam logo abaixo do rebordo de pedra. Pisou o primeiro, batendo com o pé com toda a força para o testar e, uma vez que parecia seguro, começou a descer a escada com toda a cautela, para não escorregar na fina camada de pó, palha e galhos que a cobria. Agarrando-se às paredes do poço, foi descendo, cada vez mais fundo, até a porta iluminada não ser mais do que um ponto minúsculo por cima dele.

Finalmente, os degraus acabaram e encontrou-se num chão de lajes de pedra. Usando a lanterna para olhar à sua volta, conseguiu ver muitos canos cor de bronze baço que se entrelaçavam pelas paredes acima, como um órgão de igreja bêbado. Seguiu a rota de um deles e viu que se abria num funil, como se fosse uma espécie de chaminé. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi uma porta com uma pequena vigia de vidro. Não havia dúvida de que havia luz a brilhar através dela e a única coisa que lhe ocorreu foi que tinha ido parar, sem saber como, ao metropolitano, principalmente porque conseguia ouvir o zumbido baixinho de máquinas e sentia uma corrente de ar constante.

Aproximou-se devagarinho da janela, um círculo de vidro grosso, mosqueado e riscado pelo tempo, e espreitou para o outro lado. Não conseguia acreditar nos seus olhos. Através da superfície ondulada, havia uma cena que lembrava um filme velho e riscado a preto e branco. Parecia ser uma rua e uma enfiada de edifícios. E, banhadas pela luz de esferas brilhantes de um fogo que se movia lentamente, pessoas passarinhavam de um lado para o outro. Pessoas com um aspecto assustador. Fantasmas anémicos vestidos com roupas antiquadas.

Ele não era um homem particularmente religioso, indo à igreja apenas para casamentos e um ou outro funeral, mas por uns breves instantes perguntou para consigo se teria ido parar a um anexo do inferno, ou, pelo menos, a uma espécie de parque temático do purgatório. Afastou-se da janela, benzeu-se, murmurando aflitivamente umas Ave-Marias atabalhoadas, e subiu a correr as escadas num pânico cego, barricando a porta atrás de si não fosse algum demónio escapar-se.

Atravessou a correr o estaleiro das obras, fechando os portões a cadeado. Enquanto seguia para casa de carro, completamente aturdido, ia pensando no que iria contar ao patrão no dia seguinte. Embora a tivesse visto com os seus próprios olhos, não conseguia deixar de visualizar a cena uma e outra vez na sua mente. Quando chegou a casa, não sabia bem em que acreditar.

Não conseguiu resistir a falar disso com a família; precisava de falar com alguém sobre aquilo. Aggy, a mulher, e os dois filhos adolescentes acharam que ele tinha estado a beber e por isso foram desagradáveis com ele durante o jantar. Por entre gargalhadas cruéis, ergueram garrafas imaginárias e fingiram beber delas até ele se calar. Mas ele não conseguia esquecer o assunto e, por fim, Aggy disse-lhe para pôr uma rolha e parar de falar em monstros infernais de cabelo branco e bolas de fogo cintilantes porque ela estava a tentar ver ‘Stenders na televisão.

Por isso, ali estava ele na casa de banho, esfregando os molares e a pensar se o inferno existiria de facto, quando ouviu o princípio de um grito — o grito da mulher, aquele geralmente reservado para ratos ou aranhas a passearem-se pela banheira. Mas foi interrompido antes de poder continuar até se transformar no habitual guincho estridente.

As suas campainhas de alarme instintivas começaram a tocar, os nervos a estremecer como se estivessem em curto-circuito e girou sobre si próprio apenas para as luzes se apagarem e o mundo se virar do avesso quando foi levantado e pendurado pelos tornozelos. Os braços e as pernas ficaram presos aos flancos por alguém de tal forma mais forte do que ele que não conseguiu descobrir nenhuma maneira de lhe resistir. Depois, um tecido grosso foi enrolado à sua volta, atando-lhe todo o corpo, até ficar transformado num rolo de carpete humano e foi posto na horizontal e carregado para fora de casa como se o fosse.

Gritar estava fora de questão, uma vez que tinha a boca obstruída, e só com grande esforço é que conseguia respirar. A dado momento, julgou que ouvia a voz de um dos filhos, mas foi tão rápida e abafada que não conseguiu ter a certeza. Nunca tivera tanto medo pela família e por si próprio em toda a sua vida. Nem nunca se tinha sentido tão totalmente impotente.