Capítulo Quatro

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Will estava encostado ao guiador da bicicleta à entrada de uma extensão de terreno estéril cercado por árvores e arbustos selvagens. Voltou a olhar para o relógio e decidiu que ia dar mais cinco minutos a Chester para aparecer, mas mais nada. Estava a perder um tempo precioso.

O terreno era um daqueles lotes esquecidos que se encontram nos arredores de qualquer cidade. Provavelmente, este ainda não fora coberto de casas devido à proximidade da estação municipal de tratamento de resíduos e das montanhas de lixo que se erguiam e desapareciam com uma regularidade deprimente. Conhecido nas redondezas por «the Forty Pits», por causa das muitas crateras que lhe furavam a superfície, algumas chegando quase aos três metros de profundidade, era a arena para as frequentes batalhas entre dois bandos de adolescentes rivais, o Clan e o Click, cujos membros provinham dos bairros sociais mais difíceis de Highfield.

Era também o local favorito para os miúdos com bicicletas de corrida e, cada vez mais, motorizadas roubadas, sendo estas últimas atiradas para o chão e depois incendiadas, os esqueletos pretos como o carvão a cobrirem as zonas mais afastadas dos Pits, onde as ervas daninhas se entrelaçavam pelo meio das rodas e à volta dos motores enferrujados. Menos frequentemente, era também o local para divertimentos adolescentes sinistros, como caçadas a pássaros ou a rãs: os animais eram demasiadas vezes torturados lentamente até à morte e as suas tristes carcaçazinhas empaladas em paus, com sinistro regozijo juvenil.

Quando Chester fez a curva em direcção aos Pits, um brilho metálico intenso incidiu-lhe nos olhos. Era a superfície polida da pá de Will, que este trazia pendurada às costas, como um trabalhador samurai.

Sorriu e apressou o passo, apertando a sua pá bastante vulgar e mortiça contra o peito e acenando vigorosamente para a figura solitária ao longe, que era inconfundível com a sua pele espantosamente pálida, o boné de basebol e os óculos escuros. De facto, todo o aspecto de Will era bastante invulgar; trazia a «roupa de cavar», que consistia num casaco de malha demasiado grande com cotoveleiras de couro e umas calças velhas de bombazina incrustadas de terra, de uma cor indeterminada devido à delicada patine de lama seca que as cobria. As únicas coisas que Will conservava realmente limpas eram a sua adorada pá e as biqueiras de metal das botas de trabalho.

— Então, o que é que te aconteceu? — perguntou Will quando, finalmente, Chester chegou ao pé dele.

Will não conseguia compreender como é que o amigo podia ter sido retido fosse lá pelo que fosse, como é que era possível que houvesse qualquer coisa que pudesse ser mais importante do que isto.

Isto era um marco importante na vida de Will, a primeira vez que ele tinha permitido que alguém da escola — ou de outro lado qualquer — visse um dos seus projectos. Ainda não tinha a certeza de ter feito bem; ainda não conhecia Chester lá muito bem.

— Desculpa, tive um furo — respondeu Chester, arfando apologeticamente. — Tive de ir largar a bicicleta em casa e vir a correr até aqui… um bocado quente com este tempo.

Will olhou contrafeito para o Sol e franziu o sobrolho. O Sol não era amigo dele: a sua falta de pigmentação significava que mesmo o fraco poder do Sol num dia nublado lhe podia queimar a pele. O albinismo dava-lhe o cabelo quase branco puro que lhe saía do capacete da bicicleta e os olhos azuis claros, que estavam agora a desviar-se impacientemente para o interior dos Pits.

— Está bem, vamos direitos ao sítio. Já perdemos demasiado tempo — respondeu Will, abruptamente.

Saltou para a bicicleta, mal deitando um olhar a Chester, que começou a correr atrás dele.

— Anda, por aqui — comandou ele quando o outro rapaz não conseguiu manter a sua velocidade.

— Ei, pensava que já cá estávamos! — gritou Chester atrás dele, ainda a tentar recuperar o fôlego.

Chester Rawls — quase tão largo como alto e forte como um touro, conhecido por Cuboids ou por Chester Drawers na escola — tinha a mesma idade que Will, mas, como era evidente, ou beneficiara de uma nutrição melhor ou herdara o seu físico de halterofilista. Um dos graffiti menos ofensivos nas paredes das casas de banho da escola proclamava que o pai dele era um guarda-fatos e a mãe uma secretária bojuda.

Embora a amizade crescente entre Will e Chester parecesse improvável, aquilo que os tinha ajudado a unirem-se era exactamente a mesma coisa que os fazia sobressair na escola: a pele. No caso de Chester eram graves ataques de eczema que tinham como resultado bocados de pele em carne viva cheias de escamas e que faziam muita comichão. Isto devia-se, segundo o que lhe tinham dito sem qualquer proveito, ou a uma alergia não identificada ou a tensão nervosa. Fosse qual fosse a causa, ele suportara as brincadeiras e os insultos dos colegas da escola, os piores dos quais eram «horrível criatura escamuda» e «cu de serpente», até não ter conseguido aguentar mais e se ter revoltado, usando a vantagem física para esmagar os seus atormentadores de forma espectacular.

Do mesmo modo, a palidez leitosa de Will separava-o da norma e durante algum tempo suportara o peso de cantilenas do tipo «Chalky»3e «Frosty the Snowman»4. Mais impetuoso do que Chester, tinha perdido a cabeça numa tarde de Inverno numa altura em que os seus atormentadores lhe prepararam uma emboscada quando ia a caminho de uma escavação. Infelizmente para eles, Will usou a pá com grandes resultados, e ergueu-se uma batalha sangrenta e unilateral em que houve dentes perdidos e um nariz gravemente fracturado.

Compreensivelmente, tanto Will como Chester foram deixados em paz durante algum tempo e tratados com o tipo de respeito rancoroso dado aos cães malucos. No entanto, ambos os rapazes continuaram desconfiados dos colegas, acreditando que, se baixassem a guarda, era mais do que provável que a perseguição recomeçasse. Por isso, para além da inclusão de Chester em algumas equipas escolares devido à sua valentia física, permaneceram ambos outsiders: solitários na margem do recreio. Seguros no seu isolamento partilhado, não falavam com ninguém e ninguém falava com eles.

Tinham passado vários anos até falarem um com o outro, embora houvesse há muito uma admiração secreta entre os dois pela maneira como ambos haviam feito frente aos rufias da escola. Sem darem conta, ambos gravitavam um para o outro, passando juntos cada vez mais tempo durante as horas da escola. Will estivera tanto tempo sozinho e sem amigos que tinha de admitir que era agradável ter um companheiro, mas sabia que para que aquela amizade resultasse, mais cedo ou mais tarde teria de revelar a Chester a sua grande paixão — as escavações. E agora chegara o momento.

Will passou rapidamente com a bicicleta por entre os montes cobertos de erva, as crateras e as pilhas de lixo deixadas pelos camiões de lixo ilegais, travando a fundo quando chegou ao outro lado. Desmontou e escondeu a bicicleta num pequeno abrigo debaixo da carcaça de um carro abandonado, com a marca indecifrável em resultado da ferrugem e dos saques que sofrera.

— Cá estamos — anunciou, quando Chester o alcançou.

— É aqui que vamos cavar? — perguntou Chester, ofegante, olhando à volta do chão junto dos pés.

— Não. Recua um bocadinho — disse Will.

Chester afastou-se uns passos de Will, e olhou para ele com uma expressão preocupada.

— Vamos começar outro?

Will não respondeu. Em vez disso, ajoelhou-se e pareceu apalpar um montículo de erva à procura de qualquer coisa. Descobriu o que procurava — um bocado de corda cheia de nós —, levantou-se, agarrou na parte bamba da corda e puxou. Para grande surpresa de Chester, abriu-se uma brecha na terra e um painel grosso de contraplacado levantou-se, terra a rolar dele, para revelar a entrada escura por baixo.

— Porque é que precisas de a esconder? — perguntou Chester.

— Não posso deixar que esses filhos da mãe andem a meter o nariz na minha escavação, pois não? — disse Will com um tom possessivo.

— Não vamos entrar aí, pois não? — perguntou Chester, aproximando-se para espreitar para o buraco.

Mas Will já tinha começado a descer para dentro da abertura, que, depois de uma rampa de um metro ou dois, continuava a descer obliquamente.

— Tenho um sobresselente para ti — disse Will de dentro da abertura enquanto punha um capacete amarelo e acendia a lâmpada montada na parte da frente. A luz incidiu em Chester, que estava a pairar indeciso por cima dele.

— Bem, vens ou não? — perguntou Will, irritadamente. — Acredita em mim, é perfeitamente seguro.

— Tens a certeza?

— Claro — respondeu Will, dando uma palmada num dos suportes ao lado dele e sorrindo cheio de confiança para dar coragem ao amigo. Continuou a sorrir fixamente enquanto nas sombras atrás dele, e fora da vista de Chester, uma pequena chuva de terra lhe caía nas costas. — Tão seguro como uma casa. Verdade.

— Bem…

Mal se viu lá dentro, Chester ficou demasiado surpreendido para conseguir falar. Um túnel, com uns dois metros de largura e o mesmo de altura, descia com uma ligeira inclinação para a escuridão, os lados escorados com velhas tábuas de madeira a intervalos frequentes. Era exactamente igual, pensou Chester, às minas daqueles velhos filmes de cowboys que passavam na televisão aos domingos à tarde.

— Isto é fixe! Não fizeste isto tudo sozinho, Will, não podes ter feito!

Will sorriu muito satisfeito.

— Claro que fiz. Ando nisto desde o ano passado, e ainda não viste nem metade. Anda por aqui.

Voltou a colocar a tábua, selando a boca do túnel. Chester observou-o com um misto de emoções enquanto a última tira de céu azul desaparecia. Começaram a descer a passagem, passando por reservas de tábuas e traves de escoramento empilhadas desordenadamente contra as paredes.

— Uau! — exclamou Chester, baixinho.

Inesperadamente, a passagem alargou-se passando a uma área do tamanho de uma divisão razoavelmente grande, com dois túneis a ramificarem-se de cada uma das extremidades. No meio havia uma pequena montanha de baldes, uma mesa de cavalete e duas poltronas velhas. As tábuas de madeira do tecto estavam apoiadas por filas de escoras Stillson, colunas de ferro ajustáveis com crostas de ferrugem.

— Outra vez em casa, outra vez em casa — disse Will.

— Isto é… uma loucura — comentou Chester incredulamente e, depois, franziu o sobrolho. — Tens a certeza de que é seguro estarmos aqui em baixo?

— Claro que é. O meu pai ensinou-me a montar sarrafos e escoras, não é a primeira vez que faço isto, sabes… — Will hesitou, calando-se mesmo a tempo, antes de falar da estação de caminho-de-ferro que tinha escavado com o pai. O pai tinha-o feito jurar segredo e não podia quebrar esse juramento nem sequer com Chester. Fungou alto e depois continuou:

— E é perfeitamente seguro. É melhor não escavar túneis por baixo de edifícios, isso exige escoras muito mais fortes e muito mais planeamento. Também não é boa ideia em sítios onde há água ou correntes subterrâneas, podem fazer com que vá tudo abaixo.

— Não há água por aqui, pois não? — perguntou Chester muito depressa.

— Só esta. — Will enfiou a mão numa caixa de cartão que estava em cima da mesa e estendeu uma garrafa de água de plástico ao amigo. — Vamos lá descansar um bocadinho.

Sentaram-se nas poltronas velhas, bebericando das garrafas, enquanto Chester olhava para o tecto e esticava o pescoço para espreitar para os dois túneis.

— Isto é tão calmo, não é? — perguntou Will, soltando um suspiro de satisfação.

— É — replicou Chester. — Muito… ah… sossegado.

— É mais do que isso, é tão quente e tranquilo aqui em baixo. E o cheiro… é a modos que reconfortante, não é? O Papá diz que é de onde nós todos viemos, há muito tempo… os homens das cavernas e essas coisas todas… e, claro, é onde acabamos todos no fim… debaixo do chão, quero eu dizer. Por isso, parece-nos uma coisa natural, a casa de onde viemos.

— Sim, calculo que sim — concordou Chester, dubiamente.

— Sabes, dantes pensava que, quando compramos uma casa, também ficávamos donos de tudo o que está por baixo dela.

— O que é que queres dizer com isso?

— Bem, a tua casa está construída num lote de terreno, certo? — disse Will, batendo com a bota no chão da caverna para dar mais efeito. — E tudo o que está por baixo desse lote, mesmo até ao centro da Terra, também é teu. Claro que quando te vais aproximando do centro do planeta, o «segmento», se lhe quiseres chamar assim, vai ficando cada vez mais pequeno até atingires o centro propriamente dito.

Chester assentiu devagarinho, sem saber o que dizer.

— Por isso, sempre me imaginei a escavar até lá baixo… a escavar a minha fatia do mundo e todos esses milhares de milhas que são desperdiçados, em vez de me limitar a ficar sentado num prédio encavalitado na crosta da Terra — disse Will, sonhadoramente.

— Estou a ver — replicou Chester, percebendo a ideia. — Assim, se escavasses mesmo até lá abaixo, podias ter uma espécie de arranha-céus, mas virado para o lado errado. Como um pêlo que cresce para dentro ou qualquer coisa assim. — Coçou involuntariamente o eczema do antebraço.

— Sim, é exactamente isso. Não tinha pensado nisso dessa maneira, é uma boa maneira de o explicar. Mas o Papá diz que na realidade não possuímos todo o chão por baixo de nós… o Governo tem o direito de construir linhas de metro e outras coisas se o quiser fazer.

— Oh! — exclamou Chester, perguntando para consigo para que é que tinham estado a falar naquilo, se era assim.

Will levantou-se de um salto.

— Bem, agarra numa picareta, em quatro baldes e num carrinho de mão e vem atrás de mim por aqui. — Apontou para um dos túneis às escuras. — Há um pequeno problema com umas rochas.

Entretanto, voltando à superfície, o Dr. Burrows caminhava cheio de determinação a caminho de casa. Gostava sempre da oportunidade que tinha para pensar enquanto percorria o par de quilómetros e, além disso, poupava no bilhete do autocarro.

Parou à porta da papelaria, estacando abruptamente a meio de um passo, oscilou ligeiramente, deu uma volta de noventa graus e entrou.

— Dr. Burrows! Já tinha começado a pensar que nunca mais o voltávamos a ver — disse o homem atrás do balcão quando levantou os olhos do jornal aberto à sua frente. — Julgava que tinha ido dar uma volta ao mundo num cruzeiro ou qualquer coisa assim.

— Ah, não, infelizmente — replicou o Dr. Burrows, tentando não olhar para os Snickers, tabletes de Mars e Walnut Whips que estavam sedutoramente expostos à sua frente.

— Guardámos-lhe as suas encomendas — disse o comerciante enquanto se inclinava por baixo do balcão e tirava uma pilha de revistas. — Aqui estão elas: Excavation Today, The Archaeological Journal e Curators’ Month. Tudo presente e correcto, espero?

— Fenomenal — disse o Dr. Burrows, à procura da carteira. — Não gostaria que as tivessem deixado ir parar às mãos de outra pessoa!

O lojista ergueu as sobrancelhas.

— Acredite, não se pode dizer que haja uma procura excessiva destes títulos por estes lados — disse ele enquanto recebia uma nota de 20 libras do Dr. Burrows. — Parece que tem andado a trabalhar em qualquer coisa — comentou ao ver as unhas encardidas do Dr. Burrows. — Tem andado nalguma mina?

— Não — replicou o Dr. Burrows, contemplando a terra incrustada debaixo das unhas. — A verdade é que tenho andado a fazer umas remodelações na minha cave. É uma sorte não as roer, não é?

O Dr. Burrows saiu da loja com o seu novo material de leitura, tentando enfiá-lo no bolso lateral da pasta ao mesmo tempo que abria a porta. Ainda a lutar com as revistas, recuou às cegas para o passeio, chocando em cheio com alguém que se deslocava a grande velocidade. Arquejando enquanto ressaltava do homem pequeno mas muito possante com quem chocara, o Dr. Burrows deixou cair a pasta e as revistas. O homem, que dera a ideia de ser sólido como uma locomotiva, não pareceu nada afectado e limitou-se a seguir o seu caminho. O Dr. Burrows, muito atrapalhado e a gaguejar, tentou chamá-lo para se desculpar, mas o homem continuou a andar determinadamente, ajustando os óculos escuros e, voltando ligeiramente a cabeça, esboçou um esgar muito pouco amigável para o Dr. Burrows.

O Dr. Burrows ficou pasmado. Era um homem de boné. Ultimamente, começara a reparar, entre a população geral de Highfield, num tipo de pessoas que pareciam — bem, diferentes, mas que não davam demasiado nas vistas. Sendo habitualmente um observador de pessoas e tendo analisado a situação como fazia sempre, concluíra que estas pessoas tinham de ter qualquer relação umas com as outras. O que mais o surpreendia era que, quando mencionava o assunto, mais ninguém na área de Highfield parecia ter reparado nos homens com caras peculiarmente angulosas, que usavam bonés de fazenda, casacões pretos e óculos escuros muito grossos.

Quando o Dr. Burrows chocara com o homem, deslocando-lhe ligeiramente os óculos pretos como azeviche, tivera a oportunidade de ver um «espécimen» de perto pela primeira vez. Além da cara estranhamente angulosa e do cabelo fino, tinha olhos azuis muito claros, quase brancos, e uma pele pastosa e translúcida. Mas havia mais outra coisa: um cheiro peculiar que emanava do homem, a bafio. Fez-lhe lembrar as malas velhas cheias de roupas bafientas que por vezes eram deixadas à porta do museu por benfeitores anónimos.

Observou o homem a descer energicamente a High Street e a afastar-se até não ser mais do que um vulto distante. Nessa altura, um transeunte atravessou a rua, tapando a linha de visão do Dr. Burrows. Nesse instante, o homem de boné desapareceu. O Dr. Burrows franziu os olhos por trás dos óculos enquanto continuava à procura dele, mas, embora os passeios não estivessem tão cheios de gente como isso, não conseguiu voltar a localizá-lo, por mais que tentasse.

Ocorreu-lhe que devia ter feito o esforço de seguir o homem de boné para ver para onde é que ele ia. Mas, sendo como era, um homem de temperamento pacífico, o Dr. Burrows não gostava de nenhuma forma de confrontação e rapidamente argumentou para consigo que não era uma boa ideia, dada a atitude hostil do homem. Por isso, qualquer ideia de fazer trabalho de detective foi rapidamente abandonada. Além disso, ele podia descobrir noutro dia qualquer onde é que o homem, e talvez até toda a família de sósias de boné, vivia. Quando se estivesse a sentir um bocadinho mais intrépido.

Debaixo do chão, Will e Chester faziam turnos a atacar a rocha, que Will tinha identificado como sendo um tipo de arenito. Estava satisfeito por ter recrutado Chester para a escavação, pois ele parecia ter muito jeito para aquilo. Observava com uma admiração silenciosa enquanto Chester usava a picareta com imensa força e, mal se abria uma fissura na parede da rocha, sabia exactamente quando tirar o material solto, que Will enfiava rapidamente nos baldes com a pá.

— Precisas de um intervalo? — sugeriu, vendo que Chester começava a dar mostras de cansaço. — Anda, vamos fazer uma pausa para respirar.

Will estava a falar à letra pois, com a entrada para a escavação tapada, depressa o sítio onde estavam, a seis metros de distância da câmara principal, ficava sem ar e abafado.

— Se continuar a avançar com este túnel — disse a Chester, enquanto empurravam os carrinhos de mão carregados, — vou ter de instalar uma chaminé vertical para ventilação. É só que é uma chatice tão grande instalar uma coisa dessas, quando podia estar a fazer progressos aqui em baixo.

Chegaram à câmara principal e sentaram-se nas poltronas a saborear a água.

— E o que é que fazemos com isto tudo? — perguntou Chester, apontando para os baldes cheios nos carrinhos de mão.

— Carregamos tudo para a superfície e despejamos na ravina aqui ao lado.

— E é permitido fazer isso?

— Bem, se alguém perguntar, digo que estou a escavar uma trincheira para um jogo de guerra — replicou Will. Dando um gole na garrafa, engoliu ruidosamente. — De qualquer das maneiras, porque é que haviam de se interessar? Para eles não passamos de um bando de miúdos estúpidos com baldes e pás — acrescentou desdenhosamente.

Interessavam-se se vissem isto… isto não é o que os miúdos normais fazem — disse Chester, os olhos a saltitar em redor da sala. — Porque é que fazes isto, Will?

— Olha para isto.

Will levantou cuidadosamente um caixote de plástico que estava no chão ao lado da cadeira dele e pousou-o no colo. Depois começou a tirar para fora uma série de objectos, inclinando-se para os pôr um a um em cima da mesa. Entre eles, havia garrafas Codswallop — garrafas de refrigerantes vitorianas com gargalos estreitos que continham berlindes de vidro — e toda uma colecção de frascos de remédios de cores e tamanhos diferentes, todos com um lindo brilho aveludado de terem estado tanto tempo metidos na terra.

— E para estes — disse Will, reverentemente, enquanto tirava uma grande colecção de boiões vitorianos para paté, de vários tamanhos, tampas decoradas e os nomes numa letra retorcida e antiga que Chester nunca tinha visto. Na realidade, Chester parecia verdadeiramente interessado, agarrando em cada um dos boiões e questionando Will sobre a idade deles e o sítio exacto onde os tinha encontrado. Encorajado, Will continuou até os artigos encontrados nas suas escavações mais recentes estarem todos em cima da mesa. Depois recostou-se na cadeira a observar a reacção do seu novo amigo.

— O que é isto? — perguntou Chester, espetando o dedo num montinho de metal muito enferrujado.

— Pregos de cabeça de rosa. Provavelmente do século XVIII. Se olhares com atenção, vais ver que são todos diferentes, uma vez que eram feitos à mão por…

Mas, com a excitação, Chester já tinha avançado para a outra ponta da mesa onde outra coisa qualquer lhe atraíra a atenção.

— Isto é tão fixe! — disse ele, erguendo e girando um frasquinho de perfume de forma a que a luz incidisse nos maravilhosos tons de azul-cobalto e malva. — É inacreditável que alguém o possa ter deitado fora.

— É, não é? — concordou Will. — Podes ficar com ele, se quiseres.

— Não! — exclamou Chester, atónito com a oferta.

— Sim, vá. Tenho outro exactamente igual em casa.

— Ei, isto é o máximo… obrigado — disse Chester, ainda a admirar o frasco com um tal enlevo que não viu a cara de Will abrir-se no maior sorriso imaginável.

Will vivia praticamente para os momentos em que podia mostrar ao pai os achados da sua colheita mais recente, mas isto era mais do que alguma vez poderia ter desejado: uma pessoa da mesma idade do que ele que parecia genuinamente interessada no fruto dos seus trabalhos. Contemplou o atravancado tampo da mesa e sentiu uma onda de orgulho invadi-lo. Via-se muitas vezes a recuar para o passado e a recuperar estas pequenas peças de História deitadas fora. Para Willy, o passado era um local muito mais agradável do que a sombria realidade do presente. Suspirou e começou a arrumar cada um dos artigos no caixote.

— Ainda não encontrei nenhum fóssil aqui em baixo… uma coisa qualquer verdadeiramente velha… mas uma pessoa nunca sabe se vai ter sorte — disse ele, olhando sonhadoramente na direcção da ramificação do túneis. — É aí que está a emoção disto tudo.

3 Branco como giz. (N. da T.)

4 Gélido, o Homem de Neve. (N. da T.)