Capítulo Seis

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No dia seguinte, depois da escola, Will e Chester retomaram o seu trabalho na escavação. Will estava de regresso, depois de ter despejado o entulho, o carrinho de mão cheio até acima de baldes vazios enquanto rolava ruidosamente para o final do túnel onde Chester continuava a atacar a camada de pedra com a picareta.

— Como é que vai isso? — perguntou-lhe Will.

— Não está a ficar mais fácil, isso é certo — replicou Chester, limpando o suor da testa com uma manga suja e espalhando a porcaria pela cara no processo.

— Espera, deixa-me ver. Descansa um bocado.

— Está bem.

Will fez incidir a luz do capacete na superfície rochosa, nos castanhos e amarelos subtis dos estratos estriados irregularmente pelos golpes da ponta da picareta, e soltou um suspiro ruidoso.

— Acho que é melhor parar e pensar um bocadinho nisto. Não vale a pena estarmos a bater com as cabeças numa parede de arenito! Vamos tomar uma bebida.

— Sim, boa ideia! — concordou Chester, cheio de gratidão.

Foram para a câmara principal onde Will entregou a Chester uma garrafa de água.

— Estou contente por teres querido trabalhar mais um bocado nisto. É bastante viciante, não é? — disse a Chester, que estava a olhar para longe.

Chester olhou para ele.

— Bem, na verdade é e não é. Disse-te que te ajudava a atravessar a rocha, mas depois disso não estou lá muito certo. Os braços doeram-me à brava ontem à noite.

— Oh, vais habituar-te, além disso, tens um talento natural.

— Achas que sim? A sério? — A cara de Chester resplandeceu de prazer.

— Não tenho a menor dúvida. Um dia podes vir a ser quase tão bom como eu!

Chester deu-lhe um murro no braço na brincadeira e desataram a rir-se, mas o riso morreu quando a expressão de Will se tornou séria.

— O que é? — perguntou Chester.

— Vamos ter de repensar isto. O veio de arenito é capaz de ser demasiado grosso para conseguirmos atravessá-lo. — Will entrelaçou os dedos e apoiou as mãos em cima da cabeça, um gesto afectado que apanhara do pai. — O que é que me dizes a… passarmos por baixo?

— Por baixo? Isso não nos iria fazer descer muito?

— Nah, já desci mais fundo.

— Quando?

— Uns quantos dos meus túneis eram muito mais fundos do que este — respondeu Will, evasivamente. — Estás a ver, se escavarmos por baixo, podemos usar a rocha de arenito, uma vez que é uma camada sólida, como tecto do novo túnel. Provavelmente, nem sequer vamos precisar de usar escoras nenhumas.

— Nenhumas escoras? — perguntou Chester.

— Será completamente seguro.

— E se não for? E se ele se desmoronar connosco por baixo?

Chester estava visivelmente infeliz.

— Preocupas-te demasiado. Anda, vamos lá começar!

Will já se tinha decidido e estava a começar a descer o túnel quando Chester o chamou:

— Hei! Para que é que estamos a dar cabo das costas com isto? … Quero dizer, existe alguma coisa em algum dos planos? Qual é o interesse?

Will ficou completamente espantado com a pergunta e passaram vários segundos antes de responder:

— Não, não há nada marcado no Serviço Oficial de Topografia e Cartografia, nem nos mapas dos arquivos do meu pai — confessou. Inspirou fundo e voltou-se para Chester. — O interesse está na escavação!

— Então achas que há qualquer coisa lá enterrada? — perguntou Chester muito depressa. — Como naquelas lixeiras velhas de que estavas a falar?

Will abanou a cabeça.

— Não. Claro que as descobertas são bestiais, mas isto é de longe muito mais importante! — Varreu com um gesto extravagante o espaço à sua frente.

— O quê?

— Isto tudo! — Will passou os olhos pelas paredes do túnel e depois pelo tecto por cima deles. — Não sentes? Com cada pazada de terra que tiramos é como se estivéssemos a viajar para o passado. — Fez uma pausa, sorrindo para si próprio. — Onde ninguém foi durante séculos… ou, se calhar até onde nunca ninguém foi.

— Então não fazes ideia do que é que está lá em baixo? — perguntou Chester.

— Absolutamente nenhuma, mas não estou disposto a que um bocado de arenito me vença — replicou Will, resolutamente.

Chester continuava desconcertado.

— É só que… estava a pensar, se não estamos a querer chegar a nenhuma coisa em particular, porque é que não vamos mas é trabalhar no outro túnel?

Will voltou a abanar a cabeça, mas não lhe respondeu.

— Mas isso seria tão mais fácil — insistiu Chester, com um tom exasperado a insinuar-se-lhe na voz, como se soubesse que não ia obter uma resposta racional de Will. — Porque não?

— Um palpite — respondeu Will abruptamente, e desandou pelo túnel fora antes que Chester conseguisse dizer outra palavra. Chester encolheu os ombros e pegou na picareta.

— Ele é maluco, e eu também devo estar maluco, caraças! Que raio é que estou a fazer aqui? — resmungou para consigo. — Podia estar em casa neste momento… na Play Station… e quente e seco. — Olhou para a roupa cheia de lama. — Maluco de um raio, caramba! — repetiu várias vezes.

O dia do Dr. Burrows tinha sido igual ao costume. Estava voluptuosamente reclinado na cadeira de dentista com um jornal dobrado no colo, prestes a deixar-se cair na sua sesta de depois do chá quando a porta do museu se abriu de rompante. Joe Carruthers, antigo major da Queen’s Own, entrou em passo decidido e vasculhou a sala com os olhos até localizar o Dr. Burrows, cuja cabeça oscilava sonolentamente na cadeira de dentista.

— Em sentido, Burrows! — berrou ele, quase sentindo prazer na reacção do Dr. Burrows, que endireitou imediatamente a cabeça.

Joe Carruthers, um veterano da Segunda Guerra Mundial, nunca tinha perdido nem o porte militar nem a brusquidão. O Dr. Burrows dera-lhe a alcunha bastante antipática de «Pineapple Joe»5 por causa do nariz bolboso e vermelho vivo — possivelmente, o resultado de um ferimento de guerra ou, como o Dr. Burrows por vezes gostava de especular, do consumo de quantidades excessivas de gin. Era invulgarmente animado para um homem na casa dos 70 e tinha tendência para ladrar alto. Era a última pessoa que o Dr. Burrows queria ver naquele preciso momento.

— Salte para o cavalo, Burrows, preciso que me venha fazer o reconhecimento de uma coisa, se puder dispensar um momento. Claro que pode, estou a ver que não está ocupado aqui, pois não?

— Ah, não, desculpe, Mr. Carruthers. Não posso deixar o museu sem ninguém. Afinal de contas, estou de serviço — respondeu preguiçosamente o Dr. Burrows, abandonando relutantemente os últimos vestígios de sono.

Joe Carruthers continuou a berrar-lhe do outro lado do átrio do museu:

— Venha lá, homem, isto é um serviço especial, sabe? Quero a sua opinião. A minha filha e o novo marido compraram uma casa mesmo ao virar da High Street. Têm estado a fazer umas obras na cozinha e encontraram uma coisa… uma coisa esquisita.

— Esquisita em que aspecto? — perguntou o Dr. Burrows, ainda irritado com a intrusão.

— Um buraco esquisito no chão.

— Isso não é uma coisa para os construtores resolverem?

— Não é esse tipo de coisa, meu velho. Não é nada esse tipo de coisa.

— Porquê? — perguntou o Dr. Burrows com a curiosidade aguçada.

— É melhor que venha dar uma olhadela, meu velho. Quero dizer, você sabe tudo sobre essas coisas da História. Pensei imediatamente em si. O melhor homem para esta tarefa, disse à Penny. Este tipo sabe mesmo do seu ofício, disse-lhe eu.

O Dr. Burrows apreciava bastante que o considerassem o perito em História da terra, por isso, levantou-se e vestiu o casaco cheio de importância. Depois de ter trancado o museu, pôs-se ao lado de Pineapple Joe, acompanhando a sua marcha forçada ao longo da High Street e depressa viraram para a Jekyll Street. Pineapple Joe só falou uma vez quando viraram outra esquina para a Martineau Street.

— Aqueles malditos cães… as pessoas não os deviam deixar à solta desta maneira — resmungou ele, franzindo os olhos para olhar para uns papéis que, ao longe, voavam de um lado para o outro da rua. — Deviam andar de trela.

E chegaram à casa.

O número 23 era uma casa geminada, feita de tijolo e com as características das primeiras casas georgianas, sem nada de diferente de todas as outras que ladeavam os quatro lados da praça. Embora cada uma das propriedades fosse bastante estreita e tivesse apenas um nico de jardim nas traseiras, o Dr. Burrows tinha-as admirado nas ocasiões em que calhara andar pela zona e estava satisfeito por ter a oportunidade de ver o interior de uma.

Pineapple Joe bateu na porta georgiana original de quatro painéis com força suficiente para a meter para dentro, com o Dr. Burrows a encolher-se todo a cada pancada. Uma mulher jovem abriu a porta e a cara iluminou-se ao ver o pai.

— Olá, Papá. Sempre conseguiste trazê-lo. — Voltou-se para o Dr. Burrows com um sorriso envergonhado. — Faça o favor de descer para a cozinha. Está numa grande confusão, mas vou pôr a chaleira ao lume — disse ela, fechando a porta atrás de si.

O Dr. Burrows seguiu atrás de Pineapple Joe enquanto este avançava pisando com toda a força os lençóis cobertos de pó do corredor às escuras, onde o papel já tinha sido arrancado das paredes.

Mal se encontraram na cozinha, a filha de Pineapple Joe voltou-se para o Dr. Burrows:

— Desculpe, que mal-educada, nem sequer me apresentei. Chamo-me Penny Hanson — acho que já nos encontrámos antes.

Ela acentuou orgulhosamente o seu novo apelido. Durante uns instantes embaraçosos, o Dr. Burrows pareceu tão completamente confuso por esta sugestão, que ela corou envergonhada e murmurou rapidamente qualquer coisa sobre fazer o chá, enquanto o Dr. Burrows, indiferente ao desconforto dela, começava a inspeccionar a cozinha. Tinha sido completamente escavacada e o estuque arrancado até deixar os tijolos nus e havia um lava-louças novo instalado e um armário ainda por acabar ao longo de uma das paredes.

— Achámos que era boa ideia retirar a chaminé para nos dar espaço para uma mesa para o pequeno-almoço ali — disse Penny, apontando para a parede oposta à que tinha os armários. — O arquitecto disse que só precisávamos de uma viga no tecto. — Apontou para um buraco enorme onde o Dr. Burrows viu que tinham colocado uma viga de metal. — Mas quando os operários estavam a deitar abaixo as velhas paredes de tijolo laterais, a parede de trás desmoronou-se e descobriram isto. Telefonei ao arquitecto, mas ele ainda não me disse nada.

Ao fundo da lareira, um monte de tijolos manchados de fuligem indicavam o sítio onde tinha estado a laje da lareira. Com esta parede desaparecida, ficara visível um espaço razoável atrás dela, como um confessionário.

— Isto é invulgar. Um segundo fumeiro da chaminé? — perguntou a si mesmo, proferindo quase de imediato uma série de nãos ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

Aproximou-se e olhou para baixo. No chão havia uma abertura com um metro por meio metro. Passando por entre os tijolos soltos, agachou-se à borda do buraco e espreitou lá para dentro.

— Ah… tem uma lanterna à mão? — perguntou.

Penny foi buscar uma. O Dr. Burrows tirou-lha e apontou-a para dentro da abertura.

— Forro de tijolo, princípio do século XVIII, arriscaria dizer. Parece ter sido construído na mesma altura que a casa — murmurou para consigo enquanto Pineapple Joe e a filha o observavam atentamente. — Mas para que raio é que serve? — acrescentou. O mais estranho de tudo era que quando se inclinava e espreitava lá para dentro, não conseguia ver onde é que acabava. — Já experimentaram ver que profundidade tem? — perguntou a Penny, endireitando-se.

— Com quê? — replicou ela com simplicidade.

— Posso usar isto?

O Dr. Burrows agarrou na metade partida de um tijolo da pilha de entulho ao pé da lareira desmoronada. Ela assentiu coma cabeça e ele voltou-se para o buraco, preparando-se para o deitar lá para dentro.

— Agora, ouçam — disse-lhes quando o largou pela abertura.

Ouviram-no bater contra os lados à medida que caía, os barulhos a esmorecerem, até que só uns ecos fracos chegavam ao Dr. Burrows, que estava agora ajoelhado e inclinado sobre o buraco.

— Está…? — começou Penny a perguntar.

— Chiu! — silvou indelicadamente o Dr. Burrows, sobressaltando-a quando levantou a mão.

Instantes depois ergueu a cabeça e franziu o sobrolho para Pineapple Joe e Penny.

— Não o ouvi bater no fundo — observou ele, — mas pareceu-me que ressaltava das paredes durante uma eternidade. Como… como é que pode ser assim tão fundo?

Então, aparentemente indiferente à sujidade, deitou-se no chão e meteu a cabeça e os ombros dentro do buraco o mais longe que conseguiu, esquadrinhando a escuridão por baixo dele com a lanterna no braço estendido. De repente, imobilizou-se e começou a fungar alto.

— Não pode ser!

— O que é isso, Burrows? — perguntou Pineapple Joe. — Alguma coisa a comunicar?

— Posso estar enganado, mas era capaz de jurar que há uma correntezinha de ar ascendente — respondeu o Dr. Burrows tirando a cabeça para fora do buraco. — Porquê é que não sei, a não ser que toda a fila de casas tenha sido construída com um sistema de ventilação qualquer entre cada casa. Mas não consigo imaginar por que raio é que o teriam feito. O que é mais curioso é que a conduta… — rolou para ficar deitado de costas e apontou a lanterna para cima, por cima do buraco — … parece continuar para cima, mesmo por trás da chaminé normal. Presumo que também sirva para ventilar como parte do cano da chaminé, no telhado?

Aquilo que o Dr. Burrows não lhes disse — não se atreveu a dizer-lhes porque pareceria demasiado bizarro — foi que tinha sentido aquele cheiro a mofo peculiar: o mesmo cheiro que sentira quando colidira com o homem de boné na High Street no dia anterior.

Por seu lado, no túnel, Will e Chester estavam finalmente a fazer progressos. Escavavam o solo por baixo da pedra de arenito quando a picareta de Will bateu em qualquer coisa sólida.

— Raios! Não me digam que a rocha também continua por aqui abaixo! — gritou ele, exasperado.

Chester largou imediatamente o carrinho de mão e veio a correr da câmara principal.

— O que é que aconteceu, Will? — perguntou, espantado com a explosão de fúria.

— Merda! Merda! Merda! — gritou Will, atacando violentamente o obstáculo com a picareta.

— O quê? O que é? — gritou Chester. Estava em estado de choque. Nunca tinha visto Will perder a calma daquela maneira; parecia possuído.

Will aumentou o ataque com a picareta, trabalhando com uma velocidade febril enquanto atacava violentamente a parede da rocha. Chester viu-se forçado a recuar uns passos para evitar os golpes e as torrentes de terra e pedra que estava atirar para trás dele.

De repente, Will parou e calou-se durante um momento. Depois, atirando a picareta para o lado, deixou-se cair de joelhos para esgaravatar com as mãos em qualquer coisa que estava à frente dele.

— Ora, olha para isto!

— Olho para quê?

— Vê tu mesmo — respondeu Will a ofegar.

Chester gatinhou até lá e viu o que é que tinha excitado tanto o amigo. No sítio de onde Will tinha retirado a terra havia vários bocados de uma parede de tijolos visíveis por baixo da camada de arenito e ele já tinha soltado um dos tijolos.

— Mas… e se há um esgoto ou um túnel de comboios, ou qualquer coisa dessas? Tens a certeza de que podemos estar a fazer isto? — perguntou Chester, ansiosamente. — Pode ser qualquer coisa que tenha a ver com o fornecimento de água. Não estou a gostar disto!

— Acalma-te, Chester. Não há nada nos mapas desta zona. Estamos nos limites exteriores da cidade antiga, certo?

— Certo — respondeu Chester, sem perceber onde é que o amigo queria chegar.

— Bem, nos últimos 100 ou 150 anos, não terá havido nada construído aqui, por isso, é improvável que seja um túnel, mesmo esquecido por aqui. Eu estudei os mapas antigos com o Papá. Admito que possa ser um esgoto, mas se olharmos para a curvatura do tijolo quando se encontra com a laje, então é provável que estejamos perto do cimo. Também pode ser apenas a parede da cave de uma casa antiga, ou talvez umas fundações, mas o que me espanta é que tenha sido construído por baixo do arenito. Muito estranho.

Chester recuou uns passos e não disse nada, por isso Will voltou aos seus esforços durante mais uns minutos e depois parou, apercebendo-se de que o amigo continuava a pairar nervosamente atrás dele. Will voltou-se e soltou um suspiro resignado.

— Olha, Chester, se isso te fizer ficar mais feliz, paramos por hoje e eu falo com o meu pai esta noite. Para ver o que é que ele acha.

— Sim, preferia que fizesses isso, Will. Sabes… por via das dúvidas.

O Dr. Burrows despediu-se de Pineapple Joe e da filha, prometendo descobrir tudo o que pudesse sobre a casa e a sua arquitectura nos arquivos locais. Olhou para o relógio e fez uma careta. Sabia que não era correcto deixar o museu fechado durante tanto tempo, mas queria ver uma coisa antes de voltar para lá.

Deu a volta à praça várias vezes, examinando as casas nos quatro lados. A praça tinha sido construída toda ao mesmo tempo e cada uma das casas era igual às outras. Mas aquilo que lhe interessava era a ideia de que todas poderiam ter condutas misteriosas a atravessá-las. Atravessou a rua e cruzou o portão no meio da praça, que tinha como centro uma área pavimentada rodeada por uns canteiros de roseiras bastante negligenciadas. Aqui tinha uma vista melhor dos telhados e apontou com o dedo enquanto tentava contar exactamente quantos canos de chaminé havia em cada um.

— Não bate certo — concluiu, franzindo o sobrolho. — Muito peculiar, realmente.

Deu meia volta, saiu da praça e, voltando a fazer o caminho até ao museu, chegou exactamente à hora do fecho.

5 Pineapple – ananás. (N. da T.)