“Vida indigna de ser vivida”
I
Em 22 de setembro de 1939, na Polônia ocupada, uma unidade da SS de um grupo paramilitar formado pela SS e pela polícia, fundado em Danzig por Kurt Eimann, um líder local da SS, com um efetivo de 500 a 600 homens, embarcou um grupo de doentes mentais do asilo de Conradstein (Kocborowo) em um caminhão de carga e levou-os para um bosque nas redondezas, um campo de chacina onde muitos milhares de poloneses já haviam sido fuzilados pelos alemães. A SS os pôs em fila, ainda vestidos com as roupas do asilo, alguns usando até mesmo camisas de força, na beira de uma vala, e os oficiais da Gestapo do Velho Reich atiraram neles, um a um, na nuca. Os doentes mentais caíram na vala ao ser executados, e os paramilitares cobriram os corpos com uma fina camada de terra. Ao longo das semanas seguintes, chegaram mais carregamentos do asilo para sofrer a mesma sina, até cerca de 2 mil pacientes mentais terem sido mortos. Os parentes foram informados de que as vítimas tinham sido transferidas para outros asilos, mas o que aconteceu foi o contrário, e crianças deficientes físicas e mentais de instituições em Silberhammer (Srebrzysk), Mewe (Gniew) e Riesenburg (Probuty) foram levadas para Conradstein para execução. A mesma coisa estava acontecendo em outros locais. Em Schwetz (Swiece) e Konitz (Chojnice), unidades policiais alemãs e esquadrões de “autoproteção” étnica alemães realizaram as chacinas e, em novembro de 1939, pacientes de Stralsund, Treptow an der Rege, Lauenburg e Ückermünde foram levados para Neustadt, na Prússia Ocidental (Wejherowo), e fuzilados1.
Em Wartheland, o líder regional Greiser esvaziou os três maiores hospitais psiquiátricos de seus reclusos e mandou matar todos os pacientes poloneses e judeus. A maior parte foi abatida por membros da Força-Tarefa VI da SS. Um destino especial, porém, estava reservado aos pacientes do hospital de Treskau (Owińska). Foram levados para Posen e apinhados em uma sala lacrada do forte que funcionava como quartel-general local da Gestapo. Ali foram envenenados com gás monóxido de carbono liberado de latas. Foi a primeira vez na história que uma câmara de gás foi usada para matança em massa. Ocorreram mais assassinatos no forte; em certa ocasião, em dezembro de 1939, Himmler em pessoa foi lá observar. No início de 1940, essa campanha de assassinatos terminou com o transporte de mais reclusos de asilo para Kosten (Kościan), em Wartheland, onde foram embarcados em câmaras de gás montadas na traseira dos caminhões, levados para a zona rural e asfixiados. No total, por ocasião do encerramento da ação inicial, em janeiro de 1940, cerca de 7,7 mil reclusos de hospitais psiquiátricos e instituições para deficientes físicos e mentais haviam sido mortos, junto com uma quantidade de prostitutas de Gdingen (Gdynia) e Bromberg (Bydgoszcz) e ciganos de Preussisch-Stargard (Starograd)2. Esses acontecimentos dificilmente poderiam ser mantidos em segredo. O doutor Klukowski ouviu falar das chacinas em fevereiro de 1940. “É duro de acreditar em uma coisa terrível como essa”, ele escreveu3.
Os assassinatos continuaram nos meses seguintes. Em maio e junho de 1940, 1.558 alemães e uns 300 poloneses foram tirados de uma instituição mental de Soldau, no leste prussiano, e mortos em vagões de gás móveis em ação organizada por uma unidade especial sob o comando de Herbert Lange, que seguiu em frente matando muitas centenas mais de pacientes dos territórios incorporados da mesma maneira. Os homens de Lange recebiam um bônus especial de dez reichsmarks para cada paciente que matavam. A matança estendeu-se até mesmo aos doentes mentais do gueto de Lódź, de onde uma comissão médica alemã levou 40 para serem fuzilados em um bosque nas proximidades em março de 1940, e outro lote em 29 de julho de 1941. As condições do gueto, àquela altura, eram tão terríveis que as famílias judaicas ainda imploravam ao hospital para receber seus parentes com doenças mentais, embora estivessem plenamente cientes do risco que isso envolvia. No total, bem mais de 12 mil pacientes foram mortos nessas várias ações por Eimann, Lange e seus homens4. Embora tais assassinatos ocorressem no contexto de uma guerra na qual muitos milhares mais de poloneses e judeus estavam sendo fuzilados por unidades do Exército alemão, forças-tarefa do Serviço de Segurança da SS e milícias étnicas alemãs locais, eles acabavam
sobressaindo como qualitativamente diferentes em certos aspectos. Em Posen, a necessidade de criar espaço para alojar unidades militares da SS pode ter desempenhado um papel, e em alguns casos as acomodações liberadas pelos assassinatos ficaram disponíveis para colonos alemães do Báltico. Mas, na maior parte, tais considerações práticas foram de importância secundária ou de fato serviram apenas como uma forma de justificar as ações em termos aparentemente racionais. O espaço disponibilizado pelas chacinas não tem absolutamente nenhuma relação com o número de povoadores vindos do leste. Os verdadeiros motivos para as chacinas não foram práticos nem instrumentais, mas ideológicos5. Tampouco havia justificativa convincente para os assassinatos no que se refere à segurança. Ao contrário dos intelectuais poloneses, as vítimas não podiam ser consideradas uma ameaça à ocupação alemã ou à germanização da região a longo prazo. É significativo que os poucos reclusos dos asilos julgados aptos para trabalhar tenham sido poupados e levados para a Alemanha. O resto era “carga social”, “vida indigna de ser vivida”, a ser liquidada o mais rapidamente possível6.
II
Conforme sugere a visita de Himmler ao forte de Posen, os líderes nazistas de Berlim estavam bem cientes do que se passava e de fato deram o impulso ideológico para que aquilo tivesse início. Já a partir da metade da década de 1920 pelo menos, influenciado pelas obras de eugenistas radicais, Hitler considerava necessário eliminar “degenerados” da cadeia hereditária para a saúde racial e eficiência militar da Alemanha. “Se a Alemanha ganhar um milhão de crianças por ano”, declarou ele no comício do Partido em Nuremberg em 1929, “e remover 70 mil a 80 mil das mais fracas, o resultado final talvez seja um aumento em sua força7.” Em 14 de julho de 1933, o regime introduzira a esterilização compulsória de alemães considerados portadores de fraqueza hereditária, inclusive “inclinação moral débil”, um critério vago que podia abranger muitos tipos diferentes de desvio social. Cerca de 360 mil pessoas foram esterilizadas quando a guerra eclodiu8. Somado a isso, em 1935, o aborto por motivos eugênicos havia sido legalizado9. Já bem antes disso, entretanto, Hitler começara a planejar uma ação ainda mais radical. De acordo com Hans-Heinrich Lammers, chefe da Chancelaria do Reich, Hitler cogitara a inclusão de uma cláusula para o assassinato de doentes mentais na lei de 14 de julho de 1933, mas a arquivou porque seria por demais controversa. Em 1935, porém, conforme seu médico Karl Brandt recordou, Hitler disse ao líder dos médicos do Reich, Gerhard Wagner, que implementaria tal medida em tempos de guerra, “quando o mundo inteiro está com os olhos nas ações da guerra e, de todo modo, o valor da vida humana pesa menos na balança”. A partir de 1936, médicos da SS começaram a ser nomeados em número crescente como diretores de instituições psiquiátricas, ao mesmo tempo que as instituições administradas pela Igreja eram pressionadas para que transferissem os pacientes a entidades seculares. No fim de 1936 ou começo de 1937, foi estabelecido um comitê secreto para assuntos de saúde hereditária dentro da Chancelaria do Líder, de início com a ideia de esboçar a legislação para um tribunal de saúde hereditária do Reich. Também nessa época, o jornal As Tropas Negras da SS incitava abertamente a matança de “vida indigna de ser vivida”, e há evidências de que, ao mesmo tempo, vários líderes regionais começaram os preparativos para o assassinato de pacientes institucionalizados em suas áreas. Tudo isso sugere que os preparativos sérios para a matança de deficientes começou por volta dessa época. Só foi necessária a perspectiva de guerra iminente para colocá-la em prática10.
Tal perspectiva, enfim, tornou-se real no verão de 1939. Já em maio, enquanto os preparativos para a guerra com a Polônia estavam em andamento, Hitler havia implantado os arranjos administrativos para a matança de crianças com doenças mentais sob a égide do Comitê para Assuntos de Saúde Hereditária do Reich, agora renomeado de forma mais exata: Comitê do Reich para o Registro Científico de Doenças Hereditárias e Congênitas Graves. Um precedente, ou desculpa, foi achado em uma petição a Hitler escrita pelo pai de um bebê nascido em fevereiro de 1939 sem uma perna e sem a parte de um braço e sofrendo de convulsões. O pai queria que a criança fosse morta, mas o médico do hospital de Leipzig recusou-se a fazer isso porque o deixaria sujeito a processo por homicídio. A Chancelaria do Líder, o secretariado pessoal de Hitler, passou-lhe um dossiê do caso, e Hitler mandou Brandt ir a Leipzig e matar ele mesmo a criança após confirmar o diagnóstico e conversar com os colegas médicos de lá. Pouco depois, Brandt relatou a Hitler que fizera os médicos locais matar a criança em 25 de julho de 1939. Hitler então pediu formalmente a Brandt para, junto com o chefe da Chancelaria do Reich, encarregar-se da preparação ativa de um grande programa para matar crianças com deficiência física ou mental. O médico pessoal de Hitler, Theo Morell, intimamente envolvido no processo de planejamento, sugeriu que os pais das crianças assassinadas prefeririam que a morte fosse registrada como resultante de causas naturais. Em uma fase final do processo de planejamento, o chefe da Chancelaria do Líder, Philipp Bouhler, de 39 anos de idade, nazista de longa data que havia consolidado o gabinete com o passar do tempo e gradativamente estendido a influência deste para muitos setores do governo relacionados às milhares de petições dirigidas a Hitler que ele tinha como tarefa manejar, convidou de 15 a 20 médicos, muitos deles chefes de instituições psiquiátricas, para um encontro a fim de discutir o programa planejado de matança. Embora fosse para começar com crianças, Hitler, Bormann, Lammers e Leonardo Conti – chefe do Gabinete de Saúde do Partido e “líder de saúde do Reich” desde a morte de Gerhard Wagner, líder dos médicos do Reich, em 25 de março de 1939 – decidiram que Conti deveria ser incumbido de uma extensão para abranger também adultos. Agora que a decisão de matar doentes mentais e deficientes fora tomada, um decreto datado de 31 de agosto de 1939 pôs fim oficial ao programa de esterilização, exceto em uns poucos casos excepcionais11.
Do ponto de vista de Hitler, a Chancelaria do Líder era o local ideal para o planejamento e a implementação do programa de matança. Sendo seu gabinete pessoal, não era subordinada ao Partido, como a Chancelaria do Partido, nem fazia parte do serviço público, como a Chancelaria do Reich, de modo que ali seria mais fácil manter as deliberações sobre “eutanásia” em segredo do que se elas ocorressem no ambiente burocrático mais formal de uma das duas outras instituições. Morell submeteu a Hitler um memorando sobre a possibilidade de legalizar formalmente a matança de deficientes, e Hitler concedeu sua aprovação pessoal à ideia. Sob instruções do escritório de Bouhler, a Comissão de Reforma da Lei Criminal do Ministério da Justiça preparou um projeto de legislação retirando as sanções penais do assassinato de pessoas portadoras de doenças mentais incuráveis e confinadas em instituições. Longas discussões dentro das burocracias legais, médicas e eugenistas continuaram por muitos meses, enquanto a minuta era emendada e aprimorada. Mas, para Hitler, essas deliberações aparentemente infindáveis eram lerdas e pedantes demais. Como todo o resto das minutas da comissão, a proposta de legislação acabou arquivada12. Impaciente com a demora, Hitler aderiu à pressão de Bouhler para transferir a responsabilidade da matança de Conti para a Chancelaria do Reich outra vez, e em outubro de 1939 assinou uma ordem encarregando Bouhler e Brandt de “estender os poderes de médicos a serem especificados pelo nome, de modo que pessoas doentes incuráveis segundo a estimativa humana possam, com base na mais crítica avaliação do estado de sua doença, receber uma morte misericordiosa”. Embora não fosse um decreto formal, a ordem efetivamente tinha força de lei em um Estado onde os principais especialistas legais há muito vinham argumentando que até mesmo manifestações verbais de Hitler eram legalmente vinculativas. Todavia, por precaução, a medida foi mostrada ao ministro Gürtner, da Justiça do Reich, para antecipar quaisquer possíveis acusações; mas, exceto por ser revelada a uns poucos indivíduos selecionados envolvidos no programa, a ordem foi mantida em segredo. Para deixar claro que a medida estava sendo introduzida como consequência da intensificação da necessidade de purificar a raça alemã imposta pela guerra, Hitler antedatou-a para 1o de setembro de 1939, dia em que a guerra eclodiu13.
Quando Hitler assinou a ordem, o assassinato de pacientes adultos já estava em andamento na Polônia; mas não teria começado caso os líderes regionais da Pomerânia, de Danzing-Prússia Ocidental e da Prússia Oriental não estivessem cientes das decisões já tomadas em Berlim. Na Alemanha, o programa, de início, foi direcionado às crianças. O comitê secreto do Reich para Registro Científico de Doenças Hereditárias e Congênitas Graves, localizado na chancelaria de Bouhler, ordenou o registro compulsório de todos os recém-nascidos “malformados” em 18 de agosto de 193914. Incluíam-se criancinhas que sofriam de síndrome de Down, microcefalia, ausência de um membro ou deformidades da cabeça ou da coluna, paralisia cerebral e situações similares, além de condições de definição vaga, como “idiotia”. Médicos e parteiras recebiam dois reichsmarks por caso informado a seus superiores, que enviavam as listas das crianças em questão para uma caixa postal de Berlim, próxima ao gabinete de Bouhler. Três médicos da Chancelaria do Líder processavam os relatórios. Em seguida, marcavam o formulário de registro com um “+” se a criança devesse ser morta e o remetiam para a agência de saúde mais próxima, que então mandaria internar a criança em uma clínica pediátrica. Para começar, usaram-se quatro clínicas desse tipo, mas muitas outras foram estabelecidas mais adiante, chegando a mais de 3015.
Esse processo global de registro, transporte e chacina, inicialmente, dirigiu-se não a bebês e crianças que já estavam em hospitais ou instituições de assistência, mas aos que viviam em casa com os pais. Os pais eram informados de que as crianças seriam bem cuidadas, ou mesmo que a remoção para uma clínica especializada oferecia uma esperança de cura, pelo menos de melhora na condição. Dado o viés hereditário dos diagnósticos, uma grande proporção das famílias era pobre e inculta, e uma boa parte delas já estava estigmatizada como “antissocial” ou “hereditariamente inferior”. Aqueles que levantavam objeções à remoção dos filhos da casa da família às vezes eram ameaçados de retirada dos benefícios se não consentissem. Em todo caso, de março de 1941 em diante, os subsídios para crianças não eram mais concedidos às deficientes, e, depois de setembro de 1941, as crianças podiam ser tiradas de modo compulsório de pais que se recusassem a liberá-las. Em algumas instituições, os pais foram proibidos de visitar os filhos sob a desculpa de que isso dificultaria que se acostumassem com o novo ambiente; de qualquer forma, para muitos era difícil fazer essas visitas, uma vez que vários centros situavam-se em zonas remotas, para as quais não era nada fácil conseguir transporte público. Uma vez admitidas nas instituições sociais e médicas, as crianças eram colocadas em alas especiais, afastadas dos outros pacientes. A maioria dos centros de chacina executava a tarefa matando as crianças de fome ou administrando superdoses do sedativo Luminal na comida. Em poucos dias, as crianças desenvolviam problemas respiratórios e por fim sucumbiam à bronquite ou à pneumonia. Às vezes os médicos deixavam essas doenças sem tratamento, às vezes liquidavam as crianças com injeções letais de morfina16.
Um professor levado em excursão à ala de matança do asilo de Eglfing-Haar no outuno de 1939 mais tarde testemunhou que o diretor, Hermann Pfannmüller, nazista de longa data e defensor da eutanásia involuntária havia muitos anos, disse a ele abertamente que preferia deixar as crianças morrer naturalmente do que matá-las com injeção, pois isso poderia suscitar comentários hostis no exterior caso um dia as notícias vazassem.
Enquanto dizia essas palavras, [Pfannmüller] e uma enfermeira da ala puxaram uma criança do berço. Exibindo a criança como um coelho morto, ele pontificou com ar de conhecedor e um sorriso cínico algo nesta linha: “Esse aqui, por exemplo, ainda vai levar mais dois ou três dias”. Ainda consigo visualizar nitidamente o espetáculo daquele gordo de sorriso afetado com o esqueleto a choramingar em sua mão roliça, cercado por outras crianças famintas. Ademais, o assassino em seguida destacou que eles não retiravam a comida de repente, mas reduziam lentamente as rações17.
O programa continuou por boa parte do resto da guerra numa linha semelhante, matando um total estimado em 5 mil crianças. O limite máximo de idade para remoção e assassinato foi gradativamente elevado, primeiro para 8, depois para 12 e por fim para 16 anos. Na prática, algumas eram ainda mais velhas. Muitas dessas crianças e adolescentes sofriam de pouco mais que um tipo ou outro de dificuldade de desenvolvimento18.
Um grande número de agentes de saúde e médicos estava envolvido no esquema, cuja natureza e propósito tornaram-se assim amplamente conhecidos na classe médica. Poucos faziam objeção. Mesmo os que não concordavam com o programa e se recusaram a participar, não formularam nenhuma crítica baseada em princípios. Por muitos anos, e não desde 1933 apenas, a classe médica, em particular no campo da psiquiatria, esteve convencida de que era legítimo identificar uma minoria dos deficientes como tendo uma “vida indigna de ser vivida” e de que era necessário removê-los da cadeia da hereditariedade para que todas as medidas tomadas para melhorar a saúde da raça alemã sob o Terceiro Reich não fossem frustradas. Praticamente toda a classe médica estivera envolvida de modo ativo no programa de esterilização, e dali para a eutanásia involuntária foi só um pequeno passo na mente de muitos. Suas opiniões foram bem representadas por um artigo que apareceu no principal periódico dos médicos alemães em 1942, sobre “o novo médico alemão”, argumentando que era tarefa da categoria médica, em particular em tempos de guerra, quando muitos dos melhores e mais valentes da Alemanha estavam morrendo no campo de batalha, “aceitar a contrasseleção em seu povo”. “A mortalidade infantil”, prosseguia o texto, “é um processo de seleção, e na maioria dos casos afeta os inferiores em termos de constituição.” Era tarefa dos médicos restaurar o equilíbrio da natureza à sua forma original. Sem a matança dos incuráveis, a cura da maioria dos doentes e a melhora da saúde da nação seriam impossíveis. Até mesmo depois da guerra, muitos dos médicos envolvidos falavam com orgulho de seu trabalho, sustentando que haviam contribuído para o progresso humano19.
III
A ordem retrospectiva de Hitler para a “eutanásia” em outubro de 1939, colocando um verniz pseudolegal sobre uma decisão tomada já no fim de julho, aplicou-se não só a crianças, mas também a adultos em hospitais e instituições semelhantes. O planejamento para a extensão do programa de matança também começou antes da guerra. O programa, de codinome Ação T-4 – em alusão ao endereço da Chancelaria do Líder, Tiergartenstrasse, 4, de onde era gerenciado –, foi colocado nas mãos de um oficial sênior da chancelaria, Viktor Brack. Nascido em 1904, e portanto com idade na metade dos 30 e 40 anos, Brack, filho de um médico, era agrônomo e havia dirigido a fazenda anexa ao sanatório do pai. Entrou para o Partido Nazista e para a SS em 1929, e beneficiou-se do fato de o pai conhecer Heinrich Himmler e ter feito o parto de um de seus filhos. No começo da década de 1930, trabalhou com frequência como motorista de Himmler, antes de ser nomeado assistente e depois chefe da equipe de Bouhler e de se mudar com ele para Berlim. Brack era outro entusiasta da eutanásia involuntária, declarando depois da guerra que ela se baseara em considerações humanas. Na época, tais considerações não eram poderosas o bastante para superar sua percepção de que o que estava fazendo poderia ser considerado equivalente a homicídio, de modo que usou o pseudônimo Jennerwein ao tratar do programa de matança, e seu vice, Werner Blankenburg, que o sucedeu em 1942, quando Brack saiu para lutar no front, também disfarçou sua identidade (com o pseudônimo Brenner)20.
Brack logo criou toda uma burocracia para administrar a Ação T-4, inclusive organizações de fachada com nomes de aspecto inofensivo para gerenciar o registro, o transporte, os funcionários e os aspectos financeiros da operação. Ele colocou o doutor Werner Heyde no comando do setor médico do programa21. Nascido em 1902, Heyde havia lutado em uma unidade das Brigadas Livres na Estônia antes de se dedicar aos estudos médicos, formando-se em 1926. Ele claramente desfrutava de fortes ligações com a extrema direita, e em 1933 foi a Heyde que Himmler pediu que fizesse uma avaliação psicológica do futuro comandante do campo de concentração de Dachau, Theodor Eicke, após uma violenta altercação entre este e o líder regional do Palatinado, Josef Bürckel, que o recolheu a um asilo. A avaliação positiva de Heyde agradou Himmler, de cujo respaldo o médico agora desfrutava. Seguindo-se a esse encontro, Heyde filiou-se ao Partido Nazista em maio de 1933. Tornou-se oficial da SS em 1936. Na década de 1930, Heyde atuara como especialista médico em casos de esterilização e também efetuara avaliações de reclusos em campos de concentração. Nomeado para o corpo da Universidade de Würzburg em 1932, tornara-se conselheiro da Gestapo em assuntos psiquiátricos, palestrara sobre doenças hereditárias (ou aquelas supostamente hereditárias) e chefiara a divisão local do Gabinete de Política Racial do Partido Nazista. Em 1939, tornou-se professor catedrático da universidade. Eis aqui, pois, um exemplo de profissional médico que construiu a carreira mais nas áreas ideológicas da medicina nazista do que de forma tradicional. Ele parecia ajustado de modo ideal para administrar o programa de matança22.
Mapa 4. Centros de matança da Ação T-4, 1939-45
Já no encontro crucial com Bouhler no fim de julho de 1933, Heyde, Brandt, Conti e outros envolvidos no planejamento do esquema de eutanásia involuntária de adultos começaram a discutir o melhor método de levá-lo a cabo. Em vista do fato de Hitler querer que uns 70 mil pacientes fossem eliminados, os métodos usados para matar as crianças pareciam lentos demais e por demais passíveis de suscitar suspeitas públicas. Brandt consultou Hitler sobre o assunto, e mais tarde afirmou que, quando o líder nazista perguntou-lhe qual seria a forma mais humana de matar os pacientes, ele sugeriu envenenamento por gás monóxido de carbono, um método já apresentado a ele por vários médicos e tornado familiar por meio de reportagens da imprensa sobre suicídios e acidentes domésticos. Tais casos haviam sido investigados em profundidade pela polícia, e assim o gabinete de Bouhler incumbiu Albert Widmann – nascido em 1912 e agente da SS, além de ser o principal químico do Instituto Técnico-Criminal (ou, pode-se dizer, de ciência forense) do Gabinete de Polícia Criminal do Reich – de calcular como matar com mais eficiência grandes números daquilo que lhe informaram ser “bestas em forma humana”. Ele calculou que seria preciso uma câmara hermética e mandou fazer uma na velha prisão municipal de Brandemburgo, vazia desde a construção da nova penitenciária de Brandemburgo-Görden em 1932. Os operários da SS construíram uma cela de 3 metros por 5 metros, com 3 metros de altura, revestida de azulejos para dar a impressão de um chuveiro, de modo a atenuar as apreensões de quem fosse levado para lá. Um cano de gás foi ajustado ao longo da parede com orifícios para permitir a entrada do monóxido de carbono na câmara. Como toque final, foi instalada uma porta vedada, com uma janelinha de vidro para se ver o que acontecia lá dentro23.
Quando a obra ficou pronta, provavelmente em dezembro de 1939, os envenenamentos por gás em Posen já haviam ocorrido e sido observados por Himmler em pessoa; sem dúvida, o método fora sugerido por Widmann ou um de seus colegas aos agentes locais da SS em Posen, dos quais pelo menos um era formado em química e mantinha contato com químicos de renome do Velho Reich24. Um subordinado de Himmler, Christian Wirth, oficial sênior da polícia de Stuttgart, foi um dos que assistiram à primeira demonstração do uso de gás em Brandemburgo, ao lado de Bouhler, Brandt, Conti, Brack e vários outros funcionários e médicos do quartel-general da T-4 em Berlim. Revezaram-se na janela para observar enquanto oito pacientes eram mortos na câmara de gás por monóxido de carbono administrado por Widmann, que lhes falou sobre como medir a dose correta. Todos aprovaram. Vários outros pacientes, que supostamente receberam injeções letais de Brandt e Conti, não morreram de imediato – também foram asfixiados depois –, e assim concluiu-se que o procedimento de Widmann era mais rápido e mais eficiente. Em breve, a câmara de gás de Brandemburgo, que entrou em funcionamento regular e continuou a ser usada para matar pacientes até setembro de 1940, tinha a companhia de outras câmaras de gás construídas no asilo de Grafeneck (Württemberg), que operaram de janeiro a dezembro de 1940, Hartheim, perto de Linz, ativada em maio de 1940, e Hadamar, em Hesse, que começou a funcionar em dezembro de 1940, substituindo Grafeneck. Esses eram antigos hospitais, que foram assumidos pela T-4 para uso exclusivo como centros de matança; outras câmaras de gás também entraram em uso em hospitais que mantiveram suas funções prévias em Sonnenstein, na Saxônia, inaugurada em janeiro de 1940, e Bernburg, no rio Saale, ativada em setembro do mesmo ano, substituindo a instalação original de Brandemburgo25.
Cada centro era responsável por matar pacientes de uma região específica. Manicômios e instituições locais para deficientes deviam enviar informações detalhadas para o escritório da T-4, junto com formulários de registro dos pacientes de longo prazo, esquizofrênicos, epiléticos, sifilíticos intratáveis, dementes senis, criminosos psicopatas, portadores de encefalite, doença de Hungtington e “todo tipo de debilidade mental” (uma categoria na verdade muito ampla e vaga). Pelo menos de início, muitos médicos dessas instituições não estavam cientes do propósito daquela tarefa, mas não deve ter demorado para que este ficasse bem claro. Os formulários eram avaliados por especialistas médicos subalternos politicamente confiáveis, aprovados pelos escritórios locais do Partido Nazista – pouquíssimos médicos recomendados ao gabinete da T-4 recusaram-se a desempenhar o papel atribuído a eles – e a seguir examinados por uma equipe de funcionários graduados. O critério essencial não era médico, mas econômico: o paciente era capaz de trabalho produtivo ou não? Essa questão viria a desempenhar um papel crucial nas futuras operações de chacinas de outros tipos, e também era central nas avaliações feitas por médicos da T-4 ao visitar instituições que deixavam de submeter os formulários de registro. Entretanto, por trás da avaliação econômica, o elemento ideológico do programa era óbvio: na visão do gabinete da T-4, aqueles eram indivíduos que deviam ser eliminados da raça alemã para o bem de seu rejuvenescimento a longo prazo; por esse motivo, as chacinas também abrangiam, por exemplo, epiléticos, surdos-mudos e cegos. Apenas veteranos de guerra condecorados foram eximidos. Na prática, entretanto, todos esses critérios eram arbitrários em um grau elevado, uma vez que os formulários continham poucos detalhes reais e eram processados a grande velocidade e em quantidades imensas. Hermann Pfannmüller, por exemplo, avaliou mais de 2 mil pacientes entre 12 de novembro e 1o de dezembro de 1940, ou uma média de 121 por dia, ao mesmo tempo que cumpria seus deveres como diretor do hospital público de Eglfing-Haar. Outro especialista, Josef Schreck, completou 15 mil formulários de abril de 1940 até o fim do ano, processando às vezes mais de 400 por semana, também cumprindo, ao mesmo tempo, suas outras atividades hospitalares. Nenhum dos dois pode ter gasto mais que alguns segundos para tomar a decisão de vida ou morte em cada caso26.
Os formulários, cada um deles assinalado por três especialistas subalternos com um sinal positivo vermelho para morte, um sinal negativo azul para vida, ou (ocasionalmente) um ponto de interrogação para análise posterior, eram enviados para um dos três médicos seniores para confirmação ou retificação. A decisão deles era final. Quando os formulários completos eram devolvidos ao gabinete da T-4, o nome dos pacientes selecionados para chacina era remetido para o escritório de transporte da T-4, que notificava as instituições onde eles eram mantidos e mandava um funcionário até lá para tratar dos arranjos necessários. Com frequência, as listas eram montadas de modo tão arbitrário que incluíam pacientes valorizados pelos diretores das instituições como bons trabalhadores, de modo que não raro outros pacientes eram colocados no lugar destes a fim de preencher a cota exigida. Também se devia relacionar os pacientes que não eram cidadãos alemães ou não eram de “sangue alemão ou relacionado”. Isso significava em primeiro lugar pacientes judeus, objetos de uma ordem especial emitida em 15 de abril de 1940: alguns milhares de pacientes judeus foram levados e asfixiados ou, mais adiante, levados para a Polônia ocupada e mortos lá ao longo dos dois anos e meio seguintes, sob a alegação de que os funcionários arianos haviam se queixado deles e de que não se podia esperar que tratassem deles. Diretores de hospitais psiquiátricos, como Hermann Pfannmüller em 20 de setembro de 1940, relataram com orgulho no devido tempo que suas instituições agora estavam “livres de judeus”, depois de o último recluso judeu ser morto ou levado embora27.
O procedimento era mais ou menos o mesmo para todas as categorias de pacientes selecionados para a chacina. No dia marcado, grandes veículos cinza, do tipo usado pelos correios para fornecer transporte público nas zonas rurais, chegavam para levar os pacientes. Embora os médicos e funcionários da T-4 garantissem repetidamente que os pacientes eram dementes e incapazes de tomar decisões por si sós ou de saber o que se passava, de forma alguma era assim no caso da grande maioria dos escolhidos para morrer, mesmo que supostamente “débeis mentais”. De início, alguns pacientes saudaram a diversão proporcionada pela chegada dos veículos, acreditando nas garantias dos auxiliares de que iriam passear. Mas muitos perceberam claramente que estavam sendo levados para a morte. Os médicos e enfermeiras nem sempre tinham o cuidado de enganá-los, e os rumores logo começaram a circular pelos asilos e instituições de assistência da Alemanha. “Estou vivendo de novo em estado de pavor”, escreveu uma mulher de uma instituição de Stettin para a família, “porque os carros estiveram aqui outra vez [...] Os carros estiveram aqui de novo ontem, e também há oito dias, levaram muita gente mais uma vez, não se sabe para onde. Todos nós ficamos tão transtornados que choramos”. Quando uma enfermeira disse: “Até a volta!” para uma paciente de Reichenau no momento em que ela embarcou no ônibus, a paciente virou-se e respondeu que “não nos veríamos de novo, ela sabia o que a aguardava com a Lei de Hitler”. “Aí vêm os assassinos!”, gritou um paciente de Emmendingen quando o ônibus chegou. Os assistentes, com frequência, injetavam sedativos pesados nos pacientes ansiosos, de modo que eram embarcados nos veículos em estado semicomatoso. Mas alguns pacientes começaram a recusar as injeções, temendo que contivessem veneno. Outros ofereciam resistência física ao ser carregados para os veículos, e a violência brutal com que deparavam ao fazer isso apenas aumentava a ansiedade dos demais. Muitos choravam descontroladamente ao ser arrastados a bordo28.
Assim que chegavam ao destino, os pacientes eram recebidos pelos funcionários, conduzidos a uma sala de recepção e instruídos a se despir. A identidade era verificada e passavam por um exame médico superficial, cujo principal objetivo era obter indícios para uma causa de morte plausível a ser colocada nos registros; aqueles com restaurações valiosas de ouro nos dentes eram marcados com uma cruz nas costas ou no ombro. Um número de identificação era carimbado ou afixado no corpo deles, eram fotografados (para demonstrar a suposta inferioridade física e mental) e então, ainda despidos, eram levados a uma câmara de gás disfarçada de chuveiro. Pacientes ainda nervosos com a situação recebiam injeções de tranquilizantes. Quando estavam dentro da câmara, as portas eram trancadas, e os funcionários liberavam o gás. A morte dos pacientes era qualquer coisa, menos pacífica ou humana. Olhando pela vigia, um observador de Hadamar mais tarde relatou ter visto
cerca de 40 a 50 homens apinhados compactamente na sala ao lado que agora morriam lentamente. Alguns jaziam no chão, outros haviam tombado sobre si mesmos, muitos tinham a boca aberta como se não conseguissem mais absorver o ar. O jeito como morreram foi tão repleto de sofrimento que não se pode falar de morte humana, ainda mais que muitos dos que foram mortos podem muito bem ter tido momentos de lucidez sobre o que estava acontecendo. Observei o procedimento por uns 2-3 minutos e então saí, pois não pude mais aguentar e me senti nauseado29.
Os pacientes eram mortos em grupos de 15 a 20, embora em certas ocasiões muitos mais fossem socados nas câmaras apinhadas. Depois de cerca de 5 minutos perdiam a consciência; passados 20 minutos estavam mortos. A equipe aguardava por uma hora ou duas, em seguida arejava a câmara com ventiladores. Um médico entrava para conferir a morte; depois dele serventes, geralmente conhecidos como “foguistas” (Brenner), separavam os corpos e os arrastavam para a “sala da morte”. Lá, corpos selecionados eram dissecados, ou por médicos subalternos que precisavam de treinamento em patologia, ou por outros que tinham ordens de retirar vários órgãos e enviá-los para estudo em institutos de pesquisa. Os foguistas pegavam os corpos marcados com uma cruz e quebravam os dentes de ouro, que eram empacotados e enviados para o escritório da T-4 em Berlim. A seguir, os corpos eram colocados em estrados de metal e levados para a sala do crematório, onde os foguistas, com frequência, trabalhavam noite adentro para reduzi-los a cinzas30.
As famílias e os parentes das vítimas só eram informados da transferência para um centro de matança depois que isso havia ocorrido31. Uma carta posterior era enviada pela instituição receptora registrando a chegada a salvo, mas avisando os parentes para não os visitar até que estivessem acomodados em segurança. Claro que, quando os parentes recebiam a carta, o paciente, de fato, já estava morto. Algum tempo depois, as famílias eram notificadas de que o paciente havia morrido de ataque cardíaco, pneumonia ou enfermidade semelhante, de uma lista fornecida pelo gabinete da T-4 e ampliada por anotações feitas no exame de chegada. Cientes de que, em certo sentido, estavam agindo de forma ilegal, os médicos usavam nome falso ao assinar o atestado de óbito, bem como, é claro, ao colocar uma data falsa para fazer parecer que a morte ocorrera dias ou semanas após a chegada, em vez de apenas algumas horas depois. Retardar o anúncio da morte também tinha o efeito colateral de enriquecer a instituição, que continuava a receber os benefícios, as pensões e as subvenções da família pagos às vítimas pelo período entre sua verdadeira morte e a data oficialmente registrada no atestado. As famílias recebiam uma urna contendo, diziam-lhes, as cinzas do parente desafortunado; os foguistas, na verdade, simplesmente enchiam as urnas com as cinzas acumuladas no crematório após um grupo de vítimas ter sido cremado. Quanto às roupas das vítimas, os parentes eram informados de que haviam sido enviadas à organização de Previdência Popular Nacional-Socialista; porém, se fossem de alguma qualidade, em geral iam parar no guarda-roupa dos auxiliares da chacina. O elaborado aparato de fraude incluía mapas nos quais os funcionários espetavam um alfinete colorido na cidade natal de cada pessoa morta, de modo que, se muitos alfinetes aparecessem em um só lugar, o local da morte seria atribuído a outra instituição; os centros de matança até trocavam listas de nomes dos mortos para tentar reduzir as suspeitas. Foi feito o máximo esforço para manter todo o processo em segredo, com a equipe proibida de confraternizar com a população local e comprometida a não revelar a ninguém o que se passava, exceto a funcionários autorizados. “Qualquer um que não ficar calado”, avisou Christian Wirth a um grupo de novos foguistas de Hartheim, “irá para um campo de concentração ou será fuzilado32.”
Nos centros de matança, a atmosfera com frequência desmentia a impressão de frio calculismo transmitida pelos numerosos formulários e documentos gerados pela atividade. Aqueles que de fato executavam os assassinatos com frequência estavam bêbados, graças às cotas especiais de bebida que recebiam. Foi relatado que esse pessoal entregava-se a numerosos casos sexuais entre si para tirar a cabeça do fedor todo-penetrante da morte. Em Hartheim, a equipe fez uma festa para celebrar suas dez mil cremações, reunindo-se no crematório em volta do corpo nu de uma vítima recém-asfixiada, estendido em uma maca e coberto de flores. Um membro da equipe vestiu-se de clérigo e realizou uma cerimônia curta, em seguida foi distribuída cerveja a todos os presentes. No fim, nada menos que 20 mil foram asfixiados em Hartheim, o mesmo em Sonnenstein, 20 mil em Brandemburgo e Bernburg, e outros 20 mil em Grafeneck e Hadamar, somando um total de 80 mil33.
IV
Apesar do segredo que o cercava, a notícia sobre o programa de eutanásia involuntária não conseguiu ficar restrita à burocracia da T-4 e a seus centros de matança. As pessoas que moravam perto de Hadamar repararam nas nuvens de fumaça que se elevavam das chaminés da instituição não muito depois da chegada de cada transporte, enquanto membros da equipe que faziam as compras ou bebiam nas tavernas locais, nas raras ocasiões em que tinham permissão para sair, inevitavelmente falavam de seu trabalho. Outros notaram os ônibus chegar em sua localidade para levar doentes mentais; em uma ocasião no início de 1941, veículos embarcaram pacientes de uma instituição em Absberg não por trás dos portões, mas na praça da cidade, em plena vista do povo local, que começou a protestar, chorando e gritando insultos, quando os pacientes começaram a resistir e foram levados à força por serventes robustos34. Mais disseminada ainda era a suspeita entre os parentes daqueles levados para os centros de matança. Alguns realmente acolheram bem a perpectiva de seus filhos ou dependentes serem mortos; os menos perspicazes deixaram seus medos ser atenuados pelas enganadoras mensagens tranquilizadoras que vinham das instituições. Mas a maioria dos pais e parentes tinha suas redes pessoais e conhecia outros em situação semelhante, tendo-os encontrado em visitas no hospital ou, antes disso, no consultório médico. Sabiam instintivamente o que estava acontecendo ao serem informados de que seus dependentes haviam sido transferidos para algum lugar como Hartheim ou Hadamar. Às vezes, tentavam levá-los para casa antes que fossem colocados na lista de transporte. Uma mãe escreveu ao diretor da instituição do filho, ao saber que ele fora transferido: “Se meu filho já está morto, solicito então suas cinzas, pois em Munique circulam todos os tipos de rumores, e pelo menos uma vez eu quero ter clareza”. Outra mulher escreveu na margem da notificação oficial da transferência de sua tia para Grafenek: “Em poucos dias receberemos a notícia da morte da pobre Ida [...] Eu temo a próxima carta [...] Não teremos como ir à sepultura de Ida, nem como saber se as cinzas enviadas serão dela”. Com frequência crescente, o medo virou raiva com a chegada da notícia da morte. Por que, escreveu a irmã de um homem assassinado ao diretor da instituição de onde ele fora transportado, seu irmão afinal fora transferido se estava tão doente que morreu logo depois? A enfermidade dele não podia “ter simplesmente ocorrido ontem”. “Afinal”, ela escreveu furiosa, “estamos lidando com um ser humano pobre, doente e necessitado de ajuda, e não com uma cabeça de gado!!35”
Alguns funcionários da Justiça começaram a notar a frequência incomum de mortes entre os reclusos de instituições, e alguns promotores até cogitaram pedir à Gestapo para investigar as chacinas. Entretanto, ninguém foi tão longe quanto Lothar Kreyssig, juiz de Brandemburgo especializado em questões de tutela e adoção. Veterano de guerra e membro da Igreja Confessional, Kreyssig ficou desconfiado quando pacientes psiquiátricos tutelados pelo tribunal e que, portanto, se enquadravam em sua área de responsabilidade, começaram a ser transferidos de sua instituição e pouco depois dados como vítimas de morte repentina. Kreyssig escreveu ao ministro da Justiça, Gürtner, para protestar contra o que descreveu como um programa ilegal e imoral de assassinato em massa. A resposta do ministro da Justiça a essa e a outras indagações semelhantes de agente locais da lei foi tentar mais uma vez redigir uma lei garantindo imunidade efetiva aos assassinos, apenas para tê-la vetada por Hitler, com base em que a publicidade forneceria munição perigosa para a propaganda aliada. No fim de abril de 1941, o Ministério da Justiça organizou uma palestra de Brack e Heyde a juízes e promotores importantes para tentar acalmar a mente deles. Nesse ínterim, Kreyssig foi convocado para uma entrevista com o principal funcionário do Ministério, o secretário de Estado, Roland Freisler, que o informou que as mortes eram executadas por ordens de Hitler. Recusando-se a aceitar a explicação, Kreyssig escreveu aos diretores de hospitais psiquiátricos em seu distrito informando-os de que as transferências para os centros de matança eram ilegais e ameaçando-os com ação judicial caso transportassem algum paciente de sua jurisdição. Era seu dever legal, proclamou Kreyssig, proteger os interesses e a vida de seus tutelados. Uma entrevista posterior com Gürtner não conseguiu persuadi-lo de que estava errado ao fazer aquilo, e Kreyssig foi aposentado de forma compulsória em dezembro de 194136.
Kreyssig foi uma figura solitária na persistência das tentativas de deter a campanha. As dúvidas de advogados e promotores preocupados foram sufocadas pelo Ministério da Justiça, e não houve uma ação legal decorrente. Talvez as preocupações dos líderes religiosos fossem mais generalizadas. A despeito da transferência de muitos pacientes para instituições estatais desde 1936, uma quantidade muito grande de deficientes mentais e físicos ainda recebia tratamento em hospitais e lares dirigidos pelas igrejas e por suas organizações leigas de assistência social, a Missão Interna, no caso da Igreja Evangélica, e a Associação Cáritas, no caso da Católica. Alguns diretores de instituições psiquiátricas geridas pela Missão Interna tentaram retardar o registro e a transferência de seus pacientes, e um deles em particular, o pastor Paul Gerhard Braune, diretor de um grupo desses hospitais em Württemberg, também arregimentou a ajuda do pastor Friedrich von Bodelschwingh, uma figura célebre do mundo das organizações assistenciais protestantes. Bodelschwingh dirigia o famoso Hospital Bethel de Bielefeld e recusou-se categoricamente a permitir que seus pacientes fossem levados para a chacina. O líder regional do Partido de sua região recusou-se a mandar detê-lo, visto que sua reputação era não só nacional, mas mundial; Bodelschwingh era lendário pela aplicação altruísta dos princípios cristãos de caridade. No meio do impasse, pouco depois da meia-noite de 19 de setembro de 1940, um avião apareceu sobre o hospital e começou a bombardeá-lo, matando 11 crianças deficientes e uma enfermeira. Goebbels foi rápido em empurrar a imprensa a toda velocidade contra a barbaridade dos britânicos: “Infanticídio em Bethel – Crime revoltante”, berrou a manchete do Jornal Geral Alemão. Como, perguntou a imprensa controlada pelo Estado, podiam os britânicos mirar um centro tão conhecido da caridade cristã? Bodelschwingh ficou bem ciente da ironia. Ele perguntou ao administrador local: “Será que devo condenar a ação britânica e logo em seguida tomar parte em um ‘infanticídio’ de escala bem maior no Bethel?37”.
Dois dias depois do ataque, um funcionário alemão, que era um dos informantes do correspondente americano William L. Shirer, foi a seu quarto de hotel e, após desconectar o telefone, disse que a Gestapo estava liquidando os reclusos de instituições mentais. Ele insinuou fortemente que o Hospital Bethel fora bombardeado por um avião alemão porque Bodelschwingh recusara-se a cooperar. No fim de novembro, as investigações de Shirer deram resultados. “É uma história perversa”, ele anotou no diário. O governo alemão, escreveu, estava “levando à morte de forma sistemática a população de deficientes mentais do Reich”. Um informante havia mencionado o número de 100 mil, que Shirer considerou um exagero. O repórter americano descobriu que as chacinas ocorriam por ordem escrita de Hitler e eram dirigidas da Chancelaria do Líder. Seus informantes também haviam mencionado um punhado de notas de falecimento de pacientes de Grafeneck, Hartheim e Sonnenstein publicadas por parentes, às vezes em linguagem cifrada, que deixavam claro que eles sabiam o que estava acontecendo: “Recebemos a notícia inacreditável [...] Após semanas de incerteza [...] Depois de a cremação ter ocorrido recebemos a triste notícia [...]”. Os leitores de jornais alemães, pensou Shirer, sabiam como ler nas entrelinhas de tais notícias, e era por isso que elas agora estavam proibidas. O programa, concluiu Shirer, era “um resultado da decisão radical nazista de levar a cabo suas ideias eugênicas e sociológicas38”.
Bodelschwingh e Braune foram ver Brack para protestar contra os assassinatos, e logo, unidos ao famoso cirurgião Ferdinand Sauerbruch, pressionaram o ministro da Justiça do Reich, Gürtner. As reuniões não tiveram nenhum efeito, de modo que Braune compilou um detalhado dossiê sobre os homicídios e o enviou a Hitler, ao que parece na crença de que ele não sabia de nada. No fim de sua longa e detalhada exposição, Braune pedia que o programa fosse sustado. “Se a vida humana vale tão pouco, isso não põe em perigo a moralidade de todo o povo?”, perguntou retoricamente. Ele foi informado de que Hitler não tinha condições de interromper o programa. Em 12 de agosto de 1940, a Gestapo aprisionou Braune, mas ele foi solto em 31 de outubro do mesmo ano, após um breve período, sob a condição de que parasse sua campanha39. Theophil Wurm, bispo protestante de Württemberg, escreveu ao ministro do Interior, Frick, em 19 de julho de 1940, pedindo que os assassinatos cessassem:
Se um assunto tão sério como o cuidado de centenas de milhares de companheiros de raça em sofrimento e necessitados de cuidado é tratado meramente do ponto de vista da utilidade transitória e decidido pela noção do extermínio brutal desses companheiros de raça, enveredou-se de vez por um rumo sinistro, e a cristandade foi definitivamente abandonada como um poder na vida que determina a vida individual e comunitária do povo alemão [...] Não há mais como parar nessa ladeira escorregadia40.
Sem receber resposta, ele escreveu de novo em 5 de setembro de 1940, perguntando: “O Líder sabe desse assunto? Ele aprovou isso?41”.
O problema de tais ações é que no fim não passaram da intervenção de uns poucos indivíduos corajosos e por isso não tiveram consequências efetivas. Tampouco levaram a qualquer oposição disseminada ao Terceiro Reich em geral. Membros da oposição conservadora militar estavam cientes da matança e a desaprovavam fortemente, mas já eram críticos do regime por outros motivos42. Homens como Bodelschwingh não se opunham ao Terceiro Reich em todos os aspectos. A Igreja Confessional estava num estado lamentável nessa época, após anos de perseguição pelo regime. A maioria dos pastores e agências assistenciais protestantes ou pertencia aos cristãos alemães pró-nazismo, ou mantinha-se de crista baixa nas brigas internas que convulsionavam a Igreja Evangélica desde 1933. A exata metade dos pacientes assassinados saiu de instituições gerenciadas pela Igreja Protestante ou Católica, e foi levada para a chacina muitas vezes com a aprovação das pessoas que as administravam43. A liderança nacional da Missão Interna estava preparada para concordar com as chacinas, contanto que se limitassem a “pessoas doentes que não são mais capazes de estímulo mental ou convívio humano”, uma concessão aceitável até mesmo para Bodelschwingh, desde que fosse explicitamente materializada em uma lei formal, embora ele aproveitasse a oportunidade para elaborar salvaguardas complexas no processo de seleção em sua instituição, planejadas para ter o efeito de causar atrasos infindáveis em todo o procedimento. Dúvida, assombro e desespero atormentavam a consciência dos pastores enquanto debatiam se estava certo ou não erguer a voz em protesto ao Estado, cuja legitimidade fundamental nenhum deles questionava. Será que isso não causaria danos à Igreja a menos que ela pudesse falar em uma só voz? Se protestassem, isso simplesmente não levaria à tomada das instituições da Missão Interna pelo Estado? Muitos temiam que um protesto público desse ao regime a desculpa ideal para intensificar ainda mais a perseguição à Igreja. Em uma das muitas reuniões e conferências sobre o assunto, o pastor Ernst Wilm, membro da Igreja Confessional que havia trabalhado no Hospital Bethel de Bodelschwingh, observou: “Somos obrigados a interceder e compartilhar a responsabilidade por nossos doentes [...] para que não possam dizer: eu estava nas mãos de assassinos e vocês não deram a mínima”. Para os poucos oponentes radicais das chacinas, como Wilm, a situação pareceu ser essa no fim de 1940 e também na maior parte do ano seguinte44.
V
A Igreja Católica também já estava sendo atacada pelo regime desde alguns anos antes. Muitas de suas organizações leigas haviam sido fechadas, e vários clérigos, detidos e aprisionados. O acordo com o regime, selado pela Concordata com o papa Pio XI em 1933, supostamente protegendo a posição da Igreja na Alemanha em troca da garantia de abstenção do clero da atividade política, estava em frangalhos. Em 1939, a liderança dos prelados alemães decidiu baixar a crista por medo de que algo ainda pior lhes acontecesse45. Todavia, a Igreja Católica, sob liderança do papado, era um organismo bem mais unido que sua equivalente protestante jamais poderia ser, pois havia algumas questões de dogma em que ela não estava preparada para fazer concessões. O papado já reclamara da política do regime de esterilizar os supostamente inaptos raciais, e não era provável que deixasse passar em branco a escalada dessa política rumo ao franco homicídio. Bispos alemães também haviam condenado o programa de esterilização e emitido diretrizes regulando até que ponto médicos, enfermeiras e funcionários católicos podiam participar disso, embora não fossem aplicadas na prática. Àquela altura, havia um novo papa em Roma, Pio XII, eleito em 2 de março de 1939. Não era outro senão o cardeal Pacelli, que fora representante do Vaticano na Alemanha por boa parte da década de 1920, lia e falava alemão fluentemente e havia desempenhado o papel principal na redação do protesto papal contra as violações da Concordata antes da guerra. Em outubro de 1939, sua primeira encíclica, Summi Pontificatus, declarou que o Estado não devia tentar substituir Deus como árbitro da existência humana. Mas somente no verão de 1940 começaram as manifestações contra a matança de deficientes, deflagradas inicialmente pelos eventos controversos no Hospital Bethel46.
O Hospital Bethel situava-se na diocese do bispo Clemens August von Galen, cuja acomodação inicial ao regime em 1933-34 havia dado lugar a uma postura mais crítica na época da guerra, particularmente em vista dos ataques ideológicos à cristandade por lideranças nazistas como Alfred Rosenberg e Baldur von Schirach47. Já abastecido por Bodelschwingh com copiosas informações, Galen escreveu ao cardeal Adolf Bertram em 28 de julho de 1940 com detalhes sobre a campanha de assassinato e incitando a Igreja a tomar uma posição moral quanto ao caso. Outros bispos também estavam preocupados. Conrad Gröber, arcebispo de Freiburg, escreveu em 1o de agosto de 1940 a Hans-Heinrich Lammers, chefe da Chancelaria do Reich, retransmitindo as preocupações de católicos leigos cujos parentes haviam sido mortos, avisando que os assassinatos prejudicariam a imagem da Alemanha no exterior e oferecendo-se para pagar todos os custos “que o Estado venha a ter com o cuidado de doentes mentais destinados à morte48”. Muitas das instituições de onde os reclusos eram retirados para ser mortos eram dirigidas pela Associação Cáritas alemã, a principal organização de assistência social católica, e seus diretores tinham pedido conselhos à hierarquia católica com urgência. Em 11 de agosto de 1940, a Conferência dos Bispos de Fulda protestou contra as chacinas em outra carta a Lammers e, em seguida, encarregou o bispo Heinrich Wienken, da Associação Cáritas, de fazer representações em pessoa. No Ministério do Interior, funcionários da T-4 tentavam justificar a matança, mas Wienken, citando o quinto mandamento (“Não matarás”), avisou que a Igreja iria a público se o programa de assassinatos não parasse49.
No encontro seguinte, entretanto, Wienken recuou, e apenas pediu que a avaliação dos pacientes fosse mais global antes de eles serem selecionados para a morte. Receou que sua posição pudesse minar os esforços para que padres detidos em Dachau fossem soltos. Foi admoestado pelo cardeal Michael Faulhaber, que disse com firmeza que os assuntos que o preocupavam eram meras “eventualidades” diante do fato central de que pessoas estavam sendo assassinadas. “Se as coisas continuarem no ritmo atual”, advertiu o cardeal, “o trabalho de execução estará completo em seis meses50.” Quanto à sugestão, ao que parece colocada por Wienken, de que os textos de Sir Thomas More justificavam a matança dos inaptos, Faulhaber escreveu em tom escarninho que “realmente era difícil não escrever uma sátira. Então ingleses e Idade Média de repente tornaram-se modelos exemplares. Pode-se fazer referência também à queima de bruxas e aos pogroms contra judeus em Strassburg51”. As negociações no fim foram interrompidas porque o Ministério do Interior recusou-se a colocar qualquer coisa por escrito. Em 2 de dezembro de 1940, o Vaticano emitiu um decreto declarando sem rodeios: “O assassinato direto de uma pessoa inocente devido a defeitos mentais ou físicos não é permitido”. Era “contra a lei divina natural e positiva52”. Apesar disso, a hierarquia da Igreja na Alemanha decidiu que ações adicionais seriam desaconselháveis. “Qualquer ação incauta ou precipitada”, advertiu o conselheiro-chefe do cardeal Bertram em 2 de agosto de 1940, “poderia na prática ter as mais deletérias e extensas consequências nos assuntos pastorais e eclesiásticos53.”. As evidências não eram suficientes para um protesto, Bertram disse a Galen em 5 de agosto de 1940. Só em 9 de março de 1941 Galen publicou o decreto em seu boletim informativo oficial. O que enfim instigou Galen a falar abertamente foi a detenção de padres pela Gestapo e a tomada de propriedade jesuíta em Münster, sua cidade natal, para fornecer acomodações a pessoas que perderam suas casas em um bombardeio aéreo. Isso convenceu-o de que a cautela aconselhada por Bertram quase um ano antes tornara-se inútil. Nos sermões proferidos em 6, 13 e 20 de julho de 1941, Galen atacou a ocupação de propriedades da Igreja em Münster e áreas adjacentes e a expulsão de monges, freiras e irmãos e irmãs leigos pela Gestapo. Somado a isso, criticou a ação de “eutanásia”. A polícia tentou intimidar Galen ao silêncio dando uma batida no convento onde sua irmã Helene von Galen encontrava-se, detendo-a e confinando-a em um porão. Porém, a destemida Von Galen subiu por uma janela e escapou54.
Galen então inflamou-se por completo. Em um quarto sermão, em 3 de agosto de 1941, foi muito mais longe. Ele foi incitado pela visita secreta do padre Heinrich Lackmann, capelão da Instituição Marienthal, que contou que os pacientes estavam prestes a ser levados para a chacina e pediu-lhe que fizesse algo a respeito. Galen considerou aquilo um crime em potencial e agiu tendo por base que seu dever legal era expor a situação. No sermão, primeiro referiu-se mais uma vez à detenção de padres e ao confisco de propriedade da Igreja, e a seguir voltou-se a uma longa denúncia de todo o programa de eutanásia. Forneceu detalhes circunstanciais que apenas havia insinuado no sermão de 6 de julho de 1941, incluindo casos específicos, e acrescentou que o doutor Conti, líder dos médicos do Reich, “não fazia mistério do fato de que um grande número de doentes mentais da Alemanha realmente já havia sido assassinado de forma deliberada e muitos mais devem ser mortos no futuro”. Tais assassinatos eram ilegais, declarou. Galen contou que, ao ficar sabendo do transporte de pacientes da Instituição Marienthal perto de Münster no fim do mês anterior, havia acusado formalmente os responsáveis em uma carta ao promotor público. E disse à congregação que pessoas não eram como cavalos ou vacas velhos, para serem abatidos quando não servissem mais. Se esses princípios fossem aplicados a seres humanos, “então fundamentalmente está aberto o caminho para o assassinato de todas as pessoas improdutivas, doentes incuráveis ou inválidos por motivo de trabalho ou guerra, então está aberto o caminho para o assassinato de todos nós, quando ficarmos velhos e fracos e, com isso, improdutivos”. Em tais circunstâncias, perguntou ele retoricamente, “quem vai poder confiar em seu médico?”. Os fatos que ele havia narrado estavam firmemente estabelecidos. Católicos, declarou Galen, tinham de evitar aqueles que blasmefavam, atacavam sua religião ou ocasionavam a morte de homens e mulheres inocentes. Do contrário, estariam envolvidos na culpa55.
A sensação gerada pelos sermões, não só o último deles, foi enorme. Galen imprimiu-os como mensagem pastoral e fez que fossem lidos nas igrejas paroquiais. Os britânicos apoderaram-se de uma cópia, transmitiram trechos pelo serviço da BBC alemã e jogaram cópias sobre a Alemanha no formato de panfletos, bem como traduziram-no em várias outras línguas e distribuíram na França, na Holanda, na Polônia e em outras partes da Europa. As cópias chegaram a muitos lares. Umas poucas pessoas protestaram ou falaram sobre a matança com os colegas de trabalho; algumas foram detidas e colocadas em campos de concentração, inclusive alguns padres que haviam copiado e distribuído os sermões. As ações de Galen encorajaram outros bispos, como Antonius Hilfrich, bispo de Limburg, que escreveu uma carta de protesto ao ministro da Justiça, Gürtner (ele mesmo católico), em 13 de agosto de 1941, denunciando os assassinatos como “uma injustiça que brada aos céus56”. O bispo de Mainz, Albert Stohr, fez sermão contra a retirada da vida57. Foi o mais forte, mais explícito e mais disseminado protesto contra qualquer política nazista desde o início do Terceiro Reich. Galen manteve-se calmo, resignado com o martírio. Mas nada aconteceu. A publicidade gerada foi tão grande que os líderes nazistas, por mais enraivecidos que estivessem, temeram tomar alguma atitude contra ele. O líder regional Meyer escreveu a Bormann exigindo o enforcamento do bispo, uma ideia com a qual o próprio Bormann rapidamente concordou. Mas tanto Hitler quanto Goebbels, ao saber dos acontecimentos por intermédio de Bormann, concluíram que fazer de Galen um mártir apenas levaria a mais agitação, o que simplesmente não era cogitável no meio de uma guerra. Tratariam dele quando a guerra acabasse, disse Hitler. Os membros comuns do Partido em Münster não compreenderam: por que, perguntavam, o bispo não era aprisionado, se ele evidentemente era um traidor?58
A reação do governo foi oblíqua: em agosto de 1941, lançou um filme intitulado Eu acuso!, no qual uma bela moça acometida de esclerose múltipla expressa o desejo de dar fim a seu sofrimento, e o marido e um amigo a ajudam a morrer, após longas discussões sobre certo e errado em uma ação desse tipo. As discussões também estendiam-se ao princípio da eutanásia involuntária, justificada em um certo trecho por uma elaborada palestra de um professor universitário. O filme foi visto por 18 milhões de pessoas, e muitas, relatou o Serviço de Segurança da SS, consideraram-no uma resposta aos sermões de Galen. As cenas-chave de fato foram inseridas pessoalmente por Viktor Brack, do gabinete da T-4. Pessoas de mais idade e em especial médicos e intelectuais rejeitaram a mensagem, mas médicos mais jovens foram mais favoráveis, desde que a eutanásia fosse executada por motivos médicos após exame apropriado, um princípio com o qual muita gente comum concordava. Os advogados ouvidos foram da opinião de que o tipo de suicídio assistido retratado no filme precisava de mais sustentação legal, ao passo que a maioria só aprovou a eutanásia no caso de ser voluntária. Se a pessoa a ser morta fosse “débil mental”, uma categoria não abordada no filme de maneira alguma, a maioria das pessoas achava que isso só poderia acontecer com o consentimento dos parentes. O Serviço de Segurança da SS informou que padres haviam visitado os paroquianos para tentar persuadi-los a não ver o filme. As pessoas comuns não tiveram dúvidas sobre os propósitos da película. “O filme é realmente interessante”, disse uma, “mas as coisas que acontecem nele são iguais às que estão acontecendo nos asilos de lunáticos, onde agora estão dando cabo de todos os malucos.” A mensagem subliminar da T-4, de que o programa de assassinato era justificável, não funcionou59.
O que aconteceu, porém, foi que o programa foi suspenso. Uma ordem direta de Hitler para Brandt em 24 de agosto de 1941, passada adiante para Bouhler e Brack, suspendeu a asfixia de adultos até segunda ordem, embora Hitler também se certificasse de que a chacina de crianças, que era em escala muito menor e portanto muito menos perceptível, continuasse60. O sermão de Galen e a reação pública disseminada que ele suscitou dificultaram a continuidade da matança, pois isso criaria ainda mais desassossego, conforme os líderes nazistas admitiram com relutância. Enfermeiras e serventes, em especial nas instituições católicas para doentes e incapacitados, estavam começando a obstruir para valer o processo de registro. O programa de matança agora era de conhecimento público, e parentes, amigos e vizinhos das vítimas estavam fazendo sua inquietação ser publicamente sentida. Além disso, associaram-na claramente à liderança nazista e à sua ideologia; de fato, a despeito da crença ingênua de homens como o bispo Wurm, de que Hitler não sabia daquilo, o perigo de Hitler levar parte da culpa era muito grande. Em meados de 1941, até mesmo Himmler e Heydrich estavam criticando “equívocos na implementação” do programa. E a cota fixada por Hitler, de 70 mil mortes, já fora preenchida61.
Todavia, essas considerações, no fim das contas, não diminuem a importância das ações de Galen62. É impossível dizer com certeza o que aconteceria se Galen não tivesse ignorado o conselho de seus superiores na Igreja Católica e erguido a voz contra a chacina de deficientes mentais e físicos. Mas, dada a propensão do nazismo para radicalizar suas políticas quando deparava com pouca ou nenhuma resistência, é ao menos possível, de fato até mesmo provável, que aquilo tivesse continuado muito além da cota original depois de agosto de 1941; encontrar gente para operar as câmaras de gás em Hadamar e outros lugares não teria sido difícil, mesmo com algumas equipes tendo partido para a Polônia. No fim, fica claro que os nazistas não haviam de modo algum abandonado a intenção de livrar a sociedade daqueles que consideravam um fardo. Mas, de agosto de 1941 em diante, se isso fosse feito, teria ser de forma muito vagarosa e secreta. Doentes mentais, pacientes psiquiátricos de longo prazo e outros classificados pelo regime como levando “uma vida indigna de ser vivida” estavam ligados intimamente demais às redes centrais da sociedade alemã para ser isolados e liquidados, ainda mais porque as definições de anormalidade aplicadas pelos especialistas da T-4 eram arbitrárias e incluíam muitas pessoas inteligentes e ativas o bastante para saber o que estava acontecendo com elas e contar para os outros.
O mesmo, entretanto, não pode ser dito dos outros grupos perseguidos na sociedade alemã, como os ciganos ou os judeus. Galen nada disse sobre eles, tampouco os outros representantes das igrejas, com raras exceções. A lição que Hitler tirou de todo o episódio foi que não era desaconselhável ordenar o assassinato indiscriminado de grandes grupos de pessoas, mas que, no caso de uma ação futura desse tipo contra outra minoria deparar com problema semelhante, era desaconselhável dar tal ordem por escrito. E a propaganda eufemística que havia cercado a ação da T-4, as fraudes, as garantias às vítimas e aos parentes, desde a descrição do assassinato como “tratamento especial” até o disfarce das câmaras de gás como chuveiros, precisariam ser ainda mais intensificadas quando fosse a vez de ações maiores de assassinato em massa. A campanha de eutanásia involuntária fora um segredo público, no qual o emprego de eufemismos e rodeios dera uma opção às pessoas: ignorar o que realmente estava acontecendo ao aceitar as aparências, ou penetrar no verdadeiro significado, uma iniciativa nada árdua ou problemática, e a seguir ser confrontadas com a difícil escolha de fazer ou não fazer alguma coisa a respeito. Na época em que o programa principal de matança foi encerrado, em agosto de 1941, uma grande parte dos profissionais médicos e cuidadores havia sido trazida para operar a máquina de assassinato. De um pequeno grupo inicial de médicos comprometidos, o círculo de envolvidos tinha se ampliado de forma inexorável até clínicos-gerais, psiquiatras, assistentes sociais, funcionários dos asilos, serventes, enfermeiras, administradores, motoristas e muitos outros estarem envolvidos por meio de uma mistura de rotina burocrática, pressão pura e simples, propaganda e incentivos e recompensas de um tipo ou outro. A máquina de assassinato em massa desenvolvida ao longo da Ação T-4, desde a seleção de vítimas até a exploração econômica de seus despojos, havia operado com sinistra eficiência. Tendo sido colocada à prova nesse contexto, a máquina agora estava pronta para ser aplicada em outros, em escala bem mais ampla63.
VI
Os assassinatos em massa nos quais o Terceiro Reich se lançou no outono de 1939, tanto na Alemanha quanto nas regiões ocupadas da Polônia, estavam longe de ser consequência da eclosão de uma guerra na qual a liderança nazista julgava que a própria existência da Alemanha estava em jogo. Muito menos ainda foram produto da “barbarização do conflito armado”, ocasionada por uma luta de vida ou morte contra um inimigo implacável em condições severas. A invasão da Polônia ocorreu em circunstâncias favoráveis, com um clima bom, contra um inimigo que foi varrido com facilidade desdenhosa. As tropas invasoras não precisaram ser convencidas por doutrinamento político de que o inimigo representava uma enorme ameaça ao futuro da Alemanha; os poloneses claramente não eram. As lealdades primárias nos escalões mais baixos do Exército permaneceram intactas, não tiveram de ser substituídas por um sistema de disciplina rija e pervertida que substituísse valores militares por ideologia racial64. Quase tudo que viria a acontecer na invasão da União Soviética de junho de 1941 em diante já estava acontecendo em escala menor na invasão da Polônia quase dois anos antes65. Desde o princípio, as forças-tarefa do Serviço de Segurança da SS entraram no país arrebanhando os politicamente indesejáveis e fuzilando-os ou mandando-os para campos de concentração, massacrando judeus, detendo homens e mandando-os para a Alemanha como trabalhadores forçados e se engajando em uma política sistemática de limpeza étnica e transferência de populações locais executadas de forma brutal.
Essas ações não se limitaram à SS. Desde o princípio, funcionários do Partido Nazista, camisas-pardas, funcionários públicos e em especial oficiais subalternos e soldados do Exército também aderiram, acompanhados no devido tempo pelos colonos alemães que foram para a Polônia. Detenções, espancamentos e assassinatos de poloneses e em especial de judeus tornaram-se corriqueiros, mas mais impressionante ainda foi a extensão do ódio e do desprezo contra eles mostrados pelos soldados alemães comuns, que não deixaram de humilhar judeus nas ruas ritualmente, rindo e escarnecendo enquanto arrancavam a barba deles e os faziam executar ações degradantes em público. Também impressionante foi a pressuposição dos alemães invasores e colonizadores de que os bens de poloneses e judeus estavam livremente disponíveis como butim. O furto e a pilhagem de propriedade judaica foi quase universal entre as tropas alemãs. Às vezes, estas eram ajudadas e instigadas por poloneses locais. Na maioria das vezes, os próprios poloneses não judeus também foram roubados. É claro que todas essas ações refletiam a política oficial, ditada do alto por Hitler em pessoa, que havia declarado que a Polônia deveria ser totalmente destruída, suas classes profissionais e de educação acadêmica, aniquiladas e sua população, reduzida à condição de servos incultos cuja vida não valia quase nada. A expropriação da propriedade polonesa e judaica foi ordenada de forma explícita por Berlim, bem como a germanização dos territórios ocupados, as transferências de população e o confinamento dos judeus em guetos. Todavia, o zelo com que os invasores alemães, seguindo a linha dessas orientações políticas centrais, agiram por iniciativa própria, com frequência indo muito além delas na brutalidade sádica da implementação, ainda requer alguma explicação.
Ódio e desprezo em relação a poloneses, bem como a ucranianos, bielorrussos e russos, e ainda mais a “judeus orientais”, estavam profundamente enraizados na Alemanha. Mesmo antes da Primeira Guerra Mundial, as doutrinas de igualdade humana e emancipação inculcadas em largas camadas da classe operária pelo movimento trabalhista social-democrata não se estenderam tanto a ponto de incluir minorias desse tipo. A grande massa dos trabalhadores comuns considerava poloneses e russos atrasados, primitivos e incultos; de fato, a ocorrência frequente de pogroms antissemitas na Rússia tsarista muitas vezes foi citada pelos operários como uma evidência que sustentava essa opinião. O medo de uma invasão bárbara do leste desempenhou papel de destaque em persuadir os social-democratas a votar a favor dos créditos de guerra em 1914. O advento da ditadura comunista na União Soviética havia apenas reforçado e aprofundado tais crenças. Para a maioria dos alemães, inclusive, ironicamente, para muitos judeus alemães cultos e aculturados, os “judeus orientais” da Polônia pareciam ainda mais atrasados e primitivos. No início da década de 1920, eles causaram um ressentimento totalmente desproporcional em seu número quando uns poucos encontraram refúgio da violência da guerra civil russa. A propaganda nazista, reforçando incessantemente tais estereótipos, aprofundou o preconceito contra eslavos e judeus do leste durante a década de 1930 até eles parecerem menos que humanos para muitos alemães, em particular para a geração mais jovem66.
Agressividade, dureza, brutalidade, uso de força, as virtudes da violência haviam sido inculcadas em toda uma geração de jovens alemães de 1933 em diante, e, mesmo que a educação e a propaganda nazistas nesses setores tenham obtido graus variados de sucesso, é evidente que não foram totalmente isentas de efeito. O nazismo ensinou que o poder era do mais forte, os vencedores levavam tudo, e gente de raça inferior era caça liberada. Não surpreende que a geração mais jovem de soldados alemães tivesse o comportamento mais brutal e violento em relação aos judeus. Conforme Wilm Hosenfeld relatou em uma carta da Polônia para seu filho em novembro de 1939: “Os judeus dizem: ‘O soldado velho é bom, o soldado jovem é medonho67’”. O que os alemães invasores e ocupadores fizeram na Polônia a partir de setembro de 1939 não foi tanto um produto da guerra, e sim de processos de doutrinamento a longo prazo que criaram uma sensação arraigada de que eslavos e judeus orientais eram sub-humanos e que os inimigos políticos não tinham direitos de nenhuma espécie. Quanto a isso, o general Gotthard Heinrici, que não era um nazista fanático, mas um soldado profissional convicto, era típico, e suas cartas revelam preconceitos arraigados pela associação casual de eslavos, judeus, sujeira e vermes. “Percevejos e piolhos grassam por toda parte aqui”, ele escreveu à esposa da Polônia em 22 de abril de 1941, “e também judeus terríveis com a Estrela de Davi no braço68.” De modo revelador, ele também viu um paralelo histórico no tratamento de judeus e poloneses pelos ocupadores alemães. “Poloneses e judeus servem para ser escravos”, registrou dias depois. “Ninguém aqui tem nenhuma consideração por eles. Aqui é como nos tempos antigos, quando os romanos conquistavam outros povos69.” Descreveu o Governo Geral como “realmente o monte de lixo da Europa”, cheio de casas “semidestruídas, dilapidadas, imundas, com cortinas esfarrapadas por trás das janelas, duras de sujeira70”. Com certeza, ele jamais estivera nos bairros pobres de seu próprio país. Para Heinrici, assim como para muitos outros, a sujeira era eslava e polonesa. “Só de andar pelas ruas”, relatou da Polônia em 1941, “já se tem a sensação de que se pegou piolhos e pulgas. Nos becos judaicos há tanto fedor que você tem de limpar e assoar o nariz depois de atravessá-los para se livrar da imundície inalada71.”
Assim sendo, quando as forças alemãs adotaram o que consideraram ações de retaliação contra a resistência polonesa à invasão, fazendo reféns, fuzilando civis, queimando pessoas vivas, reduzindo fazendas a cinzas e muito mais, estavam agindo não por necessidade militar, mas a serviço de uma ideologia de ódio e desprezo racial que estaria em grande parte ausente na invasão de outros países mais a oeste72. A violência contra inimigos raciais e políticos, reais ou imaginários, havia se tornado corriqueira no Terceiro Reich bem antes da eclosão da guerra. A violência imposta a poloneses e em especial a judeus desde o início de setembro de 1939 continuou, intensificando a linha de ação estabelecida pelo Terceiro Reich, assim como a pilhagem e a expropriação a que eles foram submetidos. O fundamento lógico definitivo para tal política, na cabeça de Hitler e das lideranças nazistas, era aprontar a Alemanha para a guerra, removendo a suposta ameaça da presença judaica e assim impedindo a possibilidade de uma “punhalada nas costas” de elementos subversivos na frente doméstica, como a que eles acreditavam que fizera a Alemanha perder a Primeira Guerra Mundial73.
Considerações semelhantes ficaram evidentes, entre outras, no tratamento nazista da Polônia ocupada, desde o começo projetada para ser um trampolim para a invasão há muito imaginada da Rússia soviética. E foram óbvias também no assassinato em massa de doentes mentais e deficientes iniciado no verão de 1939. Isso também não foi um mero produto da guerra, menos ainda consequência da petição fortuita dos pais de um bebê deficiente a Hitler, conforme foi sugerido certas vezes. Ao contrário, essa matança foi planejada por longo período, prenunciada pela esterilização em massa de quase 400 mil alemães “inaptos” antes de a guerra eclodir, prefigurado por Hitler dez anos antes e em preparativos desde meados da década de 1930. A violência imposta à Polônia pelas forças alemãs também foi programada. Seguiu logicamente as políticas nazistas de tempos de paz, estendendo-as e intensificando-as em novas e terríveis maneiras74. Em menos de dois anos, essas políticas seriam levadas ainda mais longe e aplicadas em escala ainda maior. Nesse ínterim, por maior que fossem a obsessão com a limpeza étnica e a busca de “espaço vital” no leste, Hitler e os nazistas ainda eram confrontados pelo fato de que o que começara em setembro de 1939 não era apenas a extensão havia muito sonhada das fronteiras políticas e étnicas da Alemanha a leste, mas também, de modo menos encorajador para eles, uma guerra mundial na qual a Alemanha estava contra o poder combinado da Grã-Bretanha e da França, os dois países europeus com os maiores impérios ultramarinos, vitoriosos contra a Alemanha na guerra de 1914-18. Até o fim, Hitler tivera a esperança de que tal conflito pudesse ser evitado e que o deixariam destruir a Polônia em paz. Agora, porém, ele se via diante do problema de o que fazer com os inimigos da Alemanha a oeste.
1 Volker Riess, Die Anfänge der Vernichtung “lebensunwerten Lebens” in den Reichsgauen Danzig-Westpreussen und Wartheland 1939/40 (Frankfurt am Main, 1995), p. 21-4, 98.
2 Ibid., p. 355-8. Para os vagões de gás, ver Matthias Beer, “Die Entwicklung der Gaswagen beim Mord an den Juden”, VfZ 35 (1987), p. 403-17.
3 Klukowski, Diary, p. 76 (18 de fevereiro de 1940).
4 Longerich, Politik, p. 236-7; Ernst Klee (ed.), Dokumente zur “Euthanasie” (Frankfurt am Main, 1985), p. 70-81; Michael Burleigh, Death and Deliverance: “Euthanasia” in Germany, c. 1900-1945 (Cambridge, 1994), p. 130-3.
5 Longerich, Politik, p. 234-5, 648, nota 36, argumentando de modo persuasivo contra a alegação de Götz Aly de que as chacinas mantinham conexão causal com os planos de reassentar alemães étnicos na área (Aly, “Final Solution”, p. 70-6; idem, “Medicine against the Useless”, em idem et al., Cleansing the Fatherland: Nazi Medicine and Racial Hygiene (Baltimore, Md., 1994), p. 22-98).
6 Riess, Die Anfänge, p. 359; também Ernst Klee, “Euthanasie” im NS-Staat: Die “Vernichtung lebensunwerten Lebens” (Frankfurt am Main, 1985 [1983]), p. 95-8, 112-5; e Burleigh, Death, p. 130.
7 Citado em Kurt Nowak, “Euthanasie” und Sterilisierung im “Dritten Reich” – Die Konfrontation der evangelischen und katholischen Kirche mit dem “Gesetz zur Verhütung erbkranken Nachwuchses” und der “Euthanasie”-Aktion (Göttingen, 1984 [1977]), p. 63-4.
8 Evans, The Coming of the Third Reich, p. 35-8, 143-5, 377-8; idem, The Third Reich in Power, p. 506-15.
9 Hans-Walter Schmuhl, “Die Patientenmorde”, em Angelika Ebbinghaus e Klaus Dörner (eds.), Vernichten und Heilen: Der Nürnberger Ärzteprozess und seine Folgen (Berlim, 2001), p. 295-328, na p. 301; Klee (ed.), Dokumente, p. 35-64.
10 Citado em Burleigh, Death, p. 97; Klee, “Euthanasie”, p. 76-7; citação de Wagner em Eugen Kogon et al. (eds.), Nationalsozialistische Massentötungen durch Giftgas: Eine Dokumentation (Frankfurt am Main, 1983), p. 28-9; Hans-Walter Schmuhl, Rassenhygiene, Nationalsozialismus, Euthanasie: Von der Verhütung zur Vernichtung “lebensunwerten Lebens”, 1890-1945 (Göttingen, 1987), p. 149-50, 178-81.
11 Riess, Die Anfänge, p. 281-90; Karl Heinz Roth e Götz Aly, “Das ‘Gesetz über die Sterbehilfe bei unheilbar Kranken’: Protokolle der Diskussion über die Legalisierung der nationalsozialistischen Anstaltsmorde in den Jahren 1938-1941”, em Karl Heinz Roth (ed.), Erfassung zur Vernichtung: Von der Sozialhygiene zum “Gesetz über Sterbehilfe” (Berlim, 1984), p. 101-79, nas p. 104-11; Friedlander, The Origins, p. 39-44; Burleigh, Death, p. 93-100; Klee, “Euthanasie”, p. 77-81; Longerich, Politik, p. 234-5. A cronologia desses acontecimentos foi exaustivamente recapitulada em Ulf Schmidt, “Reassessing the Beginning of the ‘Euthanasia’ Programme”, German History, 17 (1999), p. 543-50, que também apresenta efetivamente os relatos padrão sobre o nome e a anamnese do bebê de Leipzig cujo estado de saúde deu a Hitler o pretexto para o lançamento da ação. Ver também Ulf Schmidt, Karl Brandt: The Nazi Doctor: Medicine and Power in the Third Reich (Londres, 2007), p. 117-23 (para o caso) e p. 123-46 (para o lançamento do programa).
12 Roth e Aly, “Das ‘Gesetz’’’, p. 112-7; Burleigh, Death, p. 98-9; Friedlander, The Origins, p. 44-6.
13 Ibid., p. 67-8; Klee (ed.), Dokumente, p. 85-91; Christian Ganssmüller, Die Erbgesundheitspolitik des Dritten Reiches: Planung, Durchführung und Durchsetzung (Colônia, 1987), p. 158-70.
14 Klee, “Euthanasie”, p. 80-1.
15 Burleigh, Death, p. 99-101; Klee, “Euthanasie”, p. 82-95; Klee (ed.), Dokumente, p. 238-
-45, 295-307; Ganssmüller, Die Erbgesundheitspolitik, p. 150-5. Para Binding e Hoche, ver Evans, The Coming of the Third Reich, p. 145.
16 Götz Aly, “Der Mord an behinderten Hamburger Kindern zwischen 1939 und 1945”, em Angelika Ebbinghaus et al. (eds.), Heilen und Vernichten im Mustergau Hamburg: Bevölkerungs- und Gesundheitspolitik im Dritten Reich (Hamburgo, 1984), p. 147-55; Burleigh, Death, p. 101--11; Schmuhl, “Die Patientenmorde”, p. 302; idem, Rassenhygiene, p. 182-9.
17 Citado em Friedlander, The Origins, p. 50.
18 Aly, “Der Mord”, p. 151; Schmuhl, Rassenhygiene, p. 188-9.
19 Citado em Aly, “Der Mord”, p. 148; ver também Burleigh, Death, p. 100; Schmuhl, “Die Patientenmorde”, p. 305-6, e Gerhard Baader, “Heilen und Vernichten: Die Mentalität der NS-Ärzte”, em Ebbinghaus e Dörner (eds.), Vernichten und Heilen, p. 275-94.
20 Friedlander, The Origins, p. 68-9; Ganssmüller, Die Erbgesundheitspolitik, p. 155-7.
21 Bom panorama geral básico em Armin Trus, “... vom Leid erlösen”: Zur Geschichte der nationalsozialistischen “Euthanasie”-Verbrechen: Texte und Materialien für Unterricht und Studium (Frankfurt am Main, 1995), p. 91-7; mais detalhes em Schmuhl, Rassenhygiene, p. 190-5.
22 Friedlander, The Origins, p. 65-6; Burleigh, Death, p. 113-4.
23 Friedlander, The Origins, p. 86-7; Schmuhl, Rassenhygiene, p. 195-7; Widmann, citado em Klee (ed.), Dokumente, p. 69.
24 Riess, Die Anfänge, p. 355-8.
25 Friedlander, The Origins, p. 86-94.
26 Ibid., p. 73-84; Klee, “Euthanasie”, p. 115-23; Klee (ed.), Dokumente, p. 92-104; Burleigh, Death, p. 128-9.
27 Schmuhl, Rassenhygiene, p. 202-3, 215-7.
28 Friedlander, The Origins, p. 83-5; Klee, “Euthanasie”, p. 174-90; Klee (ed.), Dokumente, p. 105-16, 184-90; Burleigh, Death, p. 135-46.
29 Citado em Klee (ed.), Dokumente, 125 (box); ver também, sobre o procedimento, Friedlander, The Origins, p. 93-110.
30 Klee, “Euthanasie”, p. 149-52; Klee (ed.), Dokumente, p. 149-59; Burleigh, Death, p. 146--9; Schmuhl, Rassenhygiene, p. 203-8.
31 Friedlander, The Origins, p. 85.
32 Wirth, citado em Klee (ed.), Dokumente, p. 124-5; também, em termos mais gerais, ibid., p. 119-42; Friedlander, The Origins, p. 102-6; e Burleigh, Death, p. 149-57.
33 Friedlander, The Origins, p. 109-10. Ver também Johannes Tuchel (ed.), “Kein Recht auf Leben”: Beiträge und Dokumente zur Entrechtung und Vernichtung “lebensunwerten Lebens” im Nationalsozialismus (Berlim, 1984), e Roland Müller (ed.), Krankenmord im Nationalsozialismus: Grafeneck und die “Euthanasie” in Südwestdeutschland (Stuttgart, 2001), uma coleção de documentos de conferência.
34 Burleigh, Death, p. 169-73.
35 Tudo citado em Klee, “Euthanasie”, p. 310; ver também Schmuhl, Rassenhygiene, p. 207-11.
36 Klee (ed.), Dokumente, p. 209; Friedlander, The Origins, p. 116-21; Lothar Gruchmann, “Ein unbequemer Amtsrichter im Dritten Reich: Aus den Personalakten des Dr. Lothar Kreyssig”, VfZ 32 (1984), p. 462-88.
37 Klee, “Euthanasie”, p. 255-8; ver, de modo mais geral, Nowak, “Euthanasie” und Sterilisierung.
38 Shirer, Berlin Diary, p. 398-401, 447-51.
39 Klee (ed.), Dokumente, p. 151-62 (republicando o memorando na íntegra); Klee, “Euthanasie”, p. 285.
40 Citado em Klee (ed.), Dokumente, p. 213-4.
41 Friedlander, The Origins, p. 113-4; Burleigh, Death, p. 166-9; Ganssmüller, Die Erbgesundheitspolitik, p. 170-2; Schmuhl, Rassenhygiene, p. 312-46.
42 Ulrich von Hassell, The von Hassell Diaries: The Story of the Forces against Hitler inside Germany 1938-1944 (Boulder, Colo., 1994 [1946]), p. 150, 159, 165.
43 Klee (ed.), Dokumente, p. 143.
44 Klee, “Euthanasie”, p. 278-85; Burleigh, Death, p. 167-8.
45 Klee, “Euthanasie”, p. 234-53.
46 Beth A. Griech-Polelle, Bishop von Galen: German Catholicism and National Socialism (New Haven, Conn., 2002), p. 77; Evans, The Third Reich in Power, p. 515-6.
47 Ibid., p. 239.
48 Klee (ed.), Dokumente, p. 167-8, 193.
49 Ibid., p. 170-3; Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 76-7.
50 Klee (ed.), Dokumente, p. 182-4; Burleigh, Death, p. 174-6; Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 76-8 (mas citando as palavras de Burleigh como se fossem de Faulhaber).
51 Klee (ed.), Dokumente, p. 183.
52 Ibid., p. 184. A ênfase desses vários documentos sobre a ilegitimidade do assassinato de inocentes refletiu o apoio de longa data da Igreja Católica e suas organizações leigas à pena de morte: ver Richard J. Evans, Rituals of Retribution: Capital Punishment in Germany 1600-1987 (Oxford, 1996), p. 76-7, 332-3, 336-8, 432-3, 604-6, 654-5, 711-4, 797-9.
53 Klee (ed.), Dokumente, p. 193; visão geral em Schmuhl, Rassenhygiene, p. 346-54.
54 Klee (ed.), Dokumente, p. 82-3, 178-86.
55 Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 84-5, 186-96; Burleigh, Death, p. 176-8.
56 Trus, “...vom Leid erlösen”, p. 147-8.
57 Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 86; Klee, “Euthanasie”, p. 335-9.
58 Joachim Kuropka (ed.), Meldungen aus Münster, 1924-1944: Geheime und vertrauliche Berichte von Polizei, Gestapo, NSDAP und ihren Gliederungen, staatlicher Verwaltung, Gerichtsbarkeit und Wehrmacht über die politische und gesellschaftliche Situation in Münster (Münster, 1992).
59 Relato em Boberach (ed.), Meldungen, IX, p. 3.175-8, também republicado em Trus, “... vom Leid erlösen”, p. 138-41. Ver também Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 86-93; Burleigh, Death, p. 209-19; Karl Ludwig Rost, Sterilisation und Euthanasie im Film des “Dritten Reiches”: Nationalsozialistische Propaganda in ihrer Beziehung zu rassenhygienischen Massnahmen des NS-Staates (Berlim, 1984), p. 166-8; e Kurt Nowak, “Widerstand, Zustimmung, Hinnahme: Das Verhalten der Bevölkerung zur ‘Euthanasie’’’, em Norbert Frei (ed.), Medizin und Gesundheitspolitik in der NS-Zeit (Munique, 1991), p. 235-51.
60 Lothar Gruchmann, “Euthanasie und Justiz im Dritten Reich”, VfZ 20 (1972), p. 235-79, nas p. 278-9.
61 Ganssmüller, Die Erbgesundheitspolitik, p. 173; Gruchmann, “Euthanasie”, p. 277.
62 Burleigh, Death, p. 176-80, exagera o caso contra a Igreja Católica; Friedlander, The Origins, p. 111-2, aceita mais ou menos como verdade e dá o crédito à opinião pública e não às igrejas; Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 92-3, resume os argumentos de forma sensata, pontuando que os sermões de Galen expressavam em termos religiosos o que a opinião pública sentia de forma mais geral.
63 Uma análise excelente em Longerich, Politik, p. 241-2.
64 Daí os argumentos em Omer Bartov, The Eastern Front 1941-1945: German Troops and the Barbarization of Warfare (Londres, 1985); e idem, Hitler’s Army, datando esses processos a partir da invasão da União Soviética; ver a crítica em Rossino, Hitler Strikes Poland, p. 191, e o relato de muitas obras que assumem que a guerra alemã de extermínio racial no leste só começou em 1941 em Böhler, Auftakt, p. 9-16.
65 Tadeusz Piotrowski, Poland’s Holocaust: Ethnic Strife, Collaboration with Occupying Forces, and Genocide in the Second Republic, 1918-1947 (Jefferson, N. C., 1998); Böhler, Auftakt, p. 241-7.
66 Berndt e Strecker (eds.), Polen; Richard J. Evans (ed.), Kneipengespräche im Kaiserreich: Die Stimmungsberichte der Hamburger Politischen Polizei 1892-1914 (Hamburgo, 1989), p. 361-83.
67 Hosenfeld, “Ich versuche”, p. 292 (carta ao filho, 23 de novembro de 1939).
68 Johannes Hürter (ed.), Ein deutscher General an der Ostfront: Die Briefe und Tagebücher des Gotthard Heinrici 1941/42 (Essen, 2001), p. 56 (carta à esposa, 22 de abril de 1941).
69 Ibid., p. 56 (carta à esposa, 25 de abril de 1941).
70 Ibid., p. 57 (carta à família, 30 de abril de 1941).
71 Ibid.
72 Rossino, Hitler Strikes Poland, p. 121-43.
73 Evans, The Coming of the Third Reich, p. 61.
74 Ver Rossino, Hitler Strikes Poland, argumentando contra Jürgen Förster, “Jewish Policies of the German Military, 1939-1942”, em Asher Cohen et al. (eds.), The Shoah and the War (Nova York, 1992), p. 53-71, na p. 56, e Umbreit, Deutsche Militärverwaltungen, p. 137, 273.