Os nervos da guerra

 

 

I

 

 

 

 

Na madrugada de fevereiro de 1942, Albert Speer, arquiteto favorito de Hitler e seu amigo íntimo, estava com Hitler no quartel-general de campo deste em Rastenburg, na Prússia Oriental, revendo seus planos para a reconstrução de Berlim. A conversa, ele recordou mais tarde, animara visivelmente o cansado Líder, que havia passado as horas anteriores em uma desalentadora conferência com o ministro de Armamentos, Fritz Todt. O ministro de Armamentos já havia concluído durante a Batalha de Moscou, em novembro-dezembro de 1941, que a guerra não podia ser vencida. Não só os recursos industriais britânicos e americanos eram mais poderosos que os da Alemanha, como a indústria soviética estava produzindo equipamento melhor em escala maior, mais adaptado para o combate no rigor do inverno. Os suprimentos alemães estavam ficando escassos. Os empresários da indústria estavam avisando Todt de que não teriam condições de competir com a produção militar dos inimigos da Alemanha. Mas Hitler não ouvia. Para ele, o ataque japonês a Pearl Harbor retardaria o envolvimento americano no teatro europeu e daria uma nova chance de vitória à Alemanha. Em 3 de dezembro de 1941, ele emitira uma ordem para a “simplificação e o aumento da eficiência na produção de armamentos”, que pretendia gerar uma “produção em massa com princípios modernos”. Por ordem de Hitler, Todt reorganizara o sistema de administração da produção de armas em cinco comitês principais – para munição, armas, tanques, engenharia e equipamento – e montara um novo comitê consultivo com representantes da indústria e da Força Aérea. É provável que sua visita a Hitler em 7-8 de fevereiro de 1942 tenha envolvido discussões sobre essas novas estruturas e os benefícios que poderiam trazer. A despeito de todas as modificações, Todt muito provavelmente advertiu Hitler, durante aquela visita a Rastenburg, de que a situação em si permanecia grave, se não crítica; daí o ar de abatimento do Líder ao sair da reunião1.

Conversando rapidamente com Speer enquanto bebiam uma taça de vinho, Todt ofereceu-lhe um assento no avião que o levaria de volta a Berlim às oito da manhã de 8 de fevereiro. O arquiteto só estava em Rastenburg por acaso, tendo sido impedido de voltar de trem de Dnepropetrovsk para Berlim por causa da neve espessa. Em vez disso, aceitou uma carona de avião para o quartel-general de campo de Hitler, o que pelo menos o deixaria mais próximo de seu destino. Desse modo, ele estava à procura de transporte, e a oferta de Todt foi, portanto, tentadora. Mas, quando Hitler e Speer foram dormir, já eram três da manhã, e Speer mandou avisar que queria dormir e não viajaria com o ministro de Armamentos. Speer ainda estava adormecido quando o telefone à cabeceira de sua cama tocou pouco depois das oito da manhã. O avião de Todt, um bimotor Heinkel 111 convertido, decolara normalmente, mas a seguir espatifara-se contra a terra, pegando fogo. A aeronave ficara completamente destruída. Todos a bordo haviam morrido2. Uma comissão de inquérito posterior sugeriu que o piloto haveria acionado um mecanismo de autodestruição por engano; mas, na verdade, aquele avião não tinha tal mecanismo, tampouco houve qualquer evidência confiável de explosão no ar. Nicolaus von Below, ajudante aeronáutico de Hitler, mais tarde lembrou que Hitler proibira o uso de aviões bimotores pequenos como aquele por sua equipe de alto escalão e ficara preocupado com a aeronavegabilidade do Heinkel a ponto de mandar o piloto dar uma volta de teste antes de Todt embarcar. Below achava que as más condições do tempo nas quais o avião havia decolado fizeram que o piloto inexperiente não conseguisse enxergar bem e colidisse com o solo. O mistério nunca foi resolvido de modo satisfatório. Speer teria plantado uma bomba a bordo? Parece improvável, pois, embora o relato da colisão fornecido em suas memórias esteja cheio de imprecisões, não há motivo para duvidar da história de que ele estava em Rastenburg inteiramente por acaso, e com isso não teria tido tempo de planejar a morte de Todt. Tampouco, a despeito de um certo desgaste na relação entre os dois homens, haveria qualquer motivo óbvio para Speer querer Todt morto. Teria Hitler então decidido matar seu ministro de Armamentos porque não podia suportar o pessimismo de seus relatórios? Teria ele dito a Speer em particular para que não viajasse no avião? Essa especulação também é implausível; não era assim que Hitler lidava com subordinados incômodos ou inconvenientes, e, caso quisesse livrar-se de Todt, era muito mais provável que o tivesse simplesmente demitido ou, em uma situação extrema, mandado deter e fuzilar3.

Todt era um engenheiro e nazista comprometido que se destacara como construtor das famosas autoestradas da Alemanha na década de 1930. Hitler o respeitava e admirava, e o colocara a cargo não só da produção de armas e munições, como também de energia e canais pluviais e alguns aspectos da organização do trabalho forçado durante a guerra. Todt chefiara a indústria da construção sob a égide da administração do Segundo Plano de Quatro Anos de Göring. Ele havia dirigido sua própria companhia, a Organização Todt, construindo estradas por todos os territórios ocupados, prosseguindo com a criação das defesas da Linha Siegfried e construindo bases para submarinos na costa do Atlântico. No Partido, Todt era encarregado do Escritório Central de Tecnologia, controlando associações voluntárias de muitos tipos no setor. Na primavera de 1940, Hitler havia criado o novo Ministério dos Armamentos e nomeado Todt para dirigi-lo. Esse acúmulo de cargos dera a Todt poder considerável sobre o gerenciamento econômico da guerra, embora tivesse de enfrentar uma variedade de rivais, especialmente Hermann Göring4. Ele seria um homem difícil de substituir.

Durante o café da manhã no quartel-general do Líder em 8 de fevereiro de 1942, a conversa foi toda sobre quem deveria ser seu sucessor. Speer percebeu que seria convidado a assumir pelo menos algumas das funções de Todt, uma vez que, como inspetor-geral de obras de Berlim, já tinha algumas responsabilidades no setor, inclusive o reparo de estragos por bombardeio e fornecimento de abrigos antiaéreos. Todt havia incumbido Speer da tarefa de melhorar o sistema de transportes da Ucrânia, e de fato era por isso que ele estivera em Dnepropetrovsk. Hitler dissera a Speer mais de uma vez que queria confiar a ele algumas das tarefas de Todt. Mas Speer não estava preparado para quando, conforme recordou mais tarde, foi “convocado por Hitler como o primeiro interlocutor do dia no horário tardio de costume, por volta da uma da tarde” e informado de que estava sendo nomeado para suceder Todt em todas as suas funções, não apenas na de suserano da construção. Ainda que “estupefato”, Speer teve a presença de espírito de pedir a Hitler que emitisse um comando formal, que ele teria condições de usar para impor sua autoridade sobre sua nova esfera de operações. Entretanto, havia um último obstáculo a ser superado. No momento em que Speer estava saindo, Göring “chegou alvoroçado”. Havia embarcado em seu trem especial em sua cabana de caça, a 100 quilômetros de distância, assim que soubera da morte de Todt. “É melhor eu assumir as funções do doutor Todt dentro da estrutura do Plano de Quatro Anos”, disse ele. Mas era tarde demais. Hitler nomeou formalmente Speer para todas as tarefas de Todt. E a autoridade de Göring sobre a economia foi ainda mais rebaixada quando Speer persuadiu Hitler a assinar um decreto em 21 de março de 1942 ordenando que todos os outros aspectos da economia deviam ficar subordinados à produção de armas, comandada por ele5.

Em suas memórias, escritas muitos anos depois desses acontecimentos, Speer, não sem uma pontinha de sinceridade, confessou ter ficado surpreso com a “irresponsabilidade e frivolidade” de sua nomeação. Afinal de contas, ele não tinha experiência militar nem conhecimento em indústria. Speer escreveu que

 

combinava com o diletantismo de Hitler que ele preferisse escolher não especialistas como associados. Afinal, ele já havia nomeado um comerciante de vinhos como seu ministro de Relações Exteriores, seu filósofo do Partido como ministro para Assuntos do Leste e um ex-piloto de caça como supervisor de toda a economia. Agora estava pegando um arquiteto para ser seu ministro de Armamentos. Sem dúvida, Hitler preferia preencher os cargos de liderança com leigos. Durante toda sua vida, ele respeitou, mas desconfiou, de profissionais como Schacht6.

 

Mas a escolha não era tão irracional quanto Speer mais tarde alegou. Como arquiteto, ele era menos um artista solitário sentado à mesa de desenho fazendo esboços de prédios e mais o gerente de um grande e complexo escritório envolvido em projetos enormes, de fato gigantescos, de construção e design7. Como inspetor-geral de obras em Berlim, já estava familiarizado com os estragos que o bombardeio podia causar e, como homem responsável pela restauração de estradas e ferrovias da Ucrânia, ele sabia tudo sobre os problemas gerados por comunicação deficiente e sobre a necessidade de organizar um fornecimento adequado de mão de obra. Havia trabalhado próximo de Todt em vários setores. Seus deveres já o haviam familiarizado com os jogos de poder de homens como Göring, e sua reação inicial à nomeação mostrou muito claramente que Speer era plenamente capaz de lidar com eles. Sobretudo, porém, ele era o homem de Hitler. Era amigo pessoal de Hitler, talvez o único. Mesmo depois de sua nomeação, os dois continuaram a se debruçar juntos sobre as maquetes para a nova Berlim e a sonhar com a transformação das cidades alemãs que efetuariam juntos depois que a guerra acabasse. Muito antes de sua nomeação, Speer havia caído totalmente sob o feitiço de seu Líder. Ele faria qualquer coisa que Hitler quisesse sem questionamento8.

Em contraste com o otimismo inextinguível de Speer, outros além de Fritz Todt haviam começado a ter sérias dúvidas nessa época quanto à capacidade alemã de continuar na guerra até a vitória. Poucos meses antes de sua nomeação, Speer visitara o gerente-geral da fábrica da Junkers em Dessau, Heinrich Koppenberg, para discutir os prédios necessários para abrigar a nova e gigantesca fábrica de aviões que ele planejava para o leste. Speer mais tarde recordou que Koppenberg levou-o “para uma sala fechada e me mostrou um gráfico comparando a produção americana de bombardeiros para os próximos anos com a nossa. Eu perguntei”, prosseguiu Speer, “o que nossos líderes tinham a dizer sobre aqueles números deprimentes. ‘Aí é que está, eles não vão acreditar’, disse ele. E então explodiu em um choro incontrolável9”. O general Georg Thomas, chefe do abastecimento do Comando Supremo das Forças Armadas Combinadas, tornou-se cada vez mais pessimista do verão de 1941 em diante. Em janeiro de 1942, ele estava mais preocupado a respeito de quem culpar pela desastrosa situação de abastecimento que confrontava o Exército no leste do que em salvar a situação, “uma vez que”, conforme disse, “algum dia alguém será considerado responsável10”. O general Friedrich Fromm, que comandava o Exército da reserva em casa e era responsável pela provisão de armamentos do Exército, informou o chefe do Estado--Maior Geral do Exército, Franz Halder, em 24 de novembro de 1941, de que a economia de armas estava “em curva descendente. Ele pensa”, anotou Halder em seu diário, “na necessidade de se fazer a paz!11”. As reservas de contingência estavam se esgotando e o suprimento de óleo estava acabando, e Fromm aconselhou Hitler a mandar todas as novas tropas disponíveis para o Grupo de Exércitos do Sul, de modo que este pudesse lançar uma investida rumo aos campos petrolíferos do Cáucaso. O desespero de alguns era ainda mais profundo. Em 17 de novembro de 1941, o chefe da organização do abastecimento da Força Aérea, Ernst Udet, um antigo ás da aviação, matou-se com um tiro depois de falhar repetidas vezes em convencer Hitler e Göring de que a produção de aeronaves na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos estava crescendo tão depressa que os aviões alemães estariam encarando uma desigualdade impossível, avassaladora, dentro de poucos meses12. Em janeiro de 1942, Walter Borbet, chefe da Associação Bochum, uma importante empresa de fabricação de armas onde ele desenvolvera novos métodos de produção, também se matou com um tiro, convencido tanto de que a guerra não poderia ser vencida quanto de que a liderança da Alemanha jamais seria persuadida a fazer a paz13.

Esses homens tinham um bom motivo para se preocupar. A despeito de todos os esforços alemães, os britânicos continuavam a superá-los na produção de tanques e de outras armas. Os oficiais de compras das Forças Armadas insistiam em sofisticação tecnológica em detrimento da produção em massa, e havia disputa constante entre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, cada um deles com alegações muito plausíveis para a prioridade na alocação de recursos. O foco em armamento complexo trazia lucros maiores para as empresas do que a produção em massa barata. Tudo isso retardava a produção e reduzia a quantidade de armamentos e equipamento disponíveis para as Forças Armadas. Ao mesmo tempo, Hitler continuava a exigir esforços sempre maiores da indústria, à medida que a situação militar não produzia o aguardado avanço decisivo. Em julho de 1941, ele ordenou a construção de uma nova frota para batalhas em alto-mar, o aumento de quatro vezes da Força Aérea e a expansão do número das divisões de veículos motorizados do Exército para 36. Ele estava muitíssimo ciente da quantidade rapidamente crescente de armas e equipamentos americanos que estavam chegando à Grã-Bretanha. Já na época em que se tornaram formalmente uma nação combatente, em dezembro de 1941, os Estados Unidos estavam produzindo um volume de armamentos em massa que a Alemanha até então não mostrava sinais de ser capaz de igualar. No início de 1942, os oficiais do Exército começaram a notar também uma melhora no equipamento e no armamento militar soviético. Exigir que a produção de armas alemã igualasse tudo isso parecia completamente irreal14.

Ao contrário de Todt e dos outros administradores econômicos que achavam que a guerra já estava perdida em termos econômicos e, portanto, também militares, Speer acreditava, assim como Hitler, que ela ainda poderia ser vencida. Ele tinha uma fé cega nos poderes de Hitler. Em todos os estágios, o lider havia triunfado sobre a adversidade, e isso aconteceria de novo. Speer não era um tecnocrata; era um verdadeiro crente15. É claro que não estava tão cego que deixasse de perceber que esse era o principal motivo de sua nomeação. De fato, Hitler confidenciou a ele mais de uma vez que a morte de Todt no momento em que Speer visitava seu quartel-general fora providencial. Conforme Speer escreveu mais tarde,

 

em contraste com o incômodo doutor Todt, Hitler deve ter me considerado de início uma ferramenta mais manejável. Quanto a isso, a mudança na equipe obedeceu ao princípio de seleção negativa que governou a composição do séquito de Hitler. Uma vez que reagia regularmente à oposição escolhendo alguém mais tratável, ao longo dos anos ele reuniu à sua volta um grupo de associados que se rendiam cada vez mais a seus argumentos e os traduziam em ação de modo cada vez mais inescrupuloso16.

 

Esse princípio já estivera em prática nas mudanças feitas por Hitler no alto escalão do Exército após o desastre de Moscou. Agora também estava em operação no gerenciamento da economia de guerra. Mas Speer não era um amador pelo menos a respeito de uma coisa. Nas semanas seguintes, ele rechaçou uma tentativa atrás da outra de Göring para restringir seus poderes. Recorreu a Hitler repetidamente para respaldá-lo e até para transferir as atribuições de armamentos do Plano de Quatro Anos para o Ministério de Armamentos. Em tudo isso, ele mostrou que seu instinto para o poder era tão forte quanto o de qualquer um na hierarquia nazista17.

 

 

II

 

Speer teve muitas vantagens importantes em sua missão de galvanizar a produção de guerra alemã em busca de maior eficiência. Teve o apoio de Hitler, ao qual recorreu sempre que deparou com oposição séria, e manteve boas relações com figuras-chave na hierarquia nazista. Como inspetor-geral de obras, por exemplo, Speer havia trabalhado próximo de Himmler e da SS, e para seus projetos grandiosos dependia do suprimento de pedra escavada pelos reclusos dos campos de concentração de Flossenbürg e Mauthausen18. Também tinha bons contatos na hierarquia da administração de armamentos (especialmente o secretário de Estado do Ministério do Ar, marechal de campo Erhard Milch, nominalmente um homem de Göring, mas na prática muito mais disposto a trabalhar com Speer). Speer também chegou ao cargo quando o impulso para a racionalização já havia começado, instigado pelas críticas insistentes de Hitler à ineficiência e facilitado pelas mudanças no gerenciamento econômico inauguradas por Todt em dezembro de 1941. Ele trabalhou duro para eliminar sobreposições na produção de armamentos entre as Forças Armadas. Subordinou diretamente a ele os principais produtores industriais e lhes deu um grau de responsabilidade delegada para a melhoria de seus métodos de produção. Lutou contra a burocracia excessiva e introduziu métodos simplificados de produção em massa. O resultado, afirmou mais tarde, foi um aumento significativo na produção em todos os setores em seis meses. “A produtividade total de armamentos aumentou 59,6% [...] Depois de dois anos e meio, a despeito do início do bombardeio pesado, elevamos toda a nossa produção de armamentos de um índice médio de 98 no ano de 1941 – reconhecidamente um ponto baixo – para um pico de 322 em julho de 194419.”

Ao assumir o gerenciamento da produção de armamentos, Speer alardeou as virtudes da racionalização. Trouxe vários empresários da indústria para integrar a nova estrutura de comitê implantada por Todt. Um exemplo típico do uso dos homens da indústria por Speer para aumentar a eficiência pode ser encontrado na produção de submarinos. Ele nomeou um fabricante de carros para reorganizar o processo de montagem em 1943. O novo chefe dos submarinos dividiu a produção de cada embarcação em oito seções, contratou uma empresa diferente para fazer cada seção com peças padronizadas e dentro de um cronograma coordenado com os das outras, montou o produto final em uma fábrica central e, com isso, reduziu o tempo que se levava para fazer cada submarino de 42 para 16 semanas. Speer também implementou um novo sistema de contratos de preços fixos introduzido por Todt em janeiro de 1941, o que forçou a baixa dos preços, e ofereceu isenção de imposto sobre pessoa jurídica para quem reduzisse custos e com isso os preços em um volume significativo. Speer exigiu que as companhias explorassem seus trabalhadores de modo mais eficiente, com a introdução de turnos dobrados, e tentou reduzir custos com o uso mais intensivo de instalações já existentes em vez de construir novas fábricas. Nada menos que 1,8 milhão de homens estava empregado na implantação de novas unidades industriais, mas boa parte da capacidade extra não podia ser usada devido à escassez de energia e à falta de máquinas-ferramentas. Speer rescindiu contratos para novas instalações industriais no valor de 3 milhões de reichsmarks, e introduziu uma concentração e uma simplificação drásticas na produção de armas e produtos relacionados a armas por toda a economia. O número de empresas, na maioria pequenas, envolvidas na produção de vidro prismático para uso em visores, telescópios, binóculos, periscópios e outros foi reduzido de 23 para sete, e a variedade de diferentes tipos de vidro caiu de assombrosos 300 para meros 14. Speer verificou que nada menos que 334 fábricas estavam fazendo equipamentos de combate a incêndio para a Força Aérea; no início de 1944, havia reduzido o número para 64, o que se calcula ter economizado 360 mil horas-homem por mês. O número de companhias produtoras de máquinas-ferramentas foi cortado de 900 no começo de 1942 para 369 até outubro do ano seguinte. Speer estendeu o princípio de racionalização até mesmo às indústrias de bens de consumo. Quando descobriu que cinco de 117 fabricantes de tapetes da Alemanha produziam 90% dos tapetes, mandou fechar as outras 112 e colocar suas fábricas e mão de obra na economia de guerra. Na competição por recursos, as diferentes Forças Armadas e seus fabricantes associados haviam exagerado suas necessidades, de modo que, por exemplo, fábricas de aviões haviam requisitado quatro vezes o volume de alumínio que na verdade era necessário para cada aeronave. O metal estava sendo estocado ou destinado a usos não essenciais, como fabricação de escadas e estufas. Speer fez as empresas entregarem seus estoques e vinculou a alocação de matérias-primas a metas de produção20.

A produção de armas exigia tremendas quantidades de aço, que Hitler mandou que fosse direcionado sobretudo para o Exército, e não para a Marinha ou para a Aeronáutica. Introduzir uma maior eficiência na organização da produção de aço foi em parte um feito do Ministério de Economia do Reich e de seu principal funcionário, Hans Kehrl. Ele implantou um novo sistema de encomenda e produção em 15 de maio de 1942, em um encontro do novo organismo de planejamento central que havia estabelecido com Milch para coordenar a produção de armas. Ao mesmo tempo, Speer indicou engenheiros de produção para aconselhar as empresas sobre como usar aço e outras matérias-primas de forma mais eficiente. Máquinas melhores e maior automação reduziram o desperdício. Em maio de 1943, Speer pôde afirmar que usava-se menos da metade de ferro e aço para produzir uma tonelada média de armamentos do que fora empregado em 1941. No fim da guerra, cada tonelada de aço estava sendo usada para produzir uma quantidade de munição quatro vezes maior do que em 1941. Entretanto, a produção de aço precisava de grande quantidade de coque, e isso revelou-se impossível de ser obtido, dadas as dificuldades enfrentadas pelo sistema ferroviário e a baixa produtividade do trabalho forçado nas minas. Além disso, as minas ainda careciam de mais de 100 mil operários, ao passo que as ferrovias precisavam de outros 9 mil homens para carregar e operar os trens que transportavam carvão. Informado desses problemas em 11 de agosto de 1942, Hitler declarou sem rodeios: “Se a produção da indústria siderúrgica não pode crescer conforme o planejado devido à escassez de carvão de coque, então a guerra está perdida21”.

Obteve-se mais carvão com um corte de 10% na alocação para os consumidores domésticos. A produção de aço do Grande Reich Alemão subiu para 2,7 milhões de toneladas por mês no início de 1943. Com o aumento da alocação de aço para as fábricas de munição e a introdução de novos incentivos à indústria, Speer conseguiu vangloriar-se de que a produção de armas como um todo duplicou em seu primeiro ano de ministério. Ao mesmo tempo, Erhard Milch e o Ministério do Ar conseguiram dobrar a produção mensal de aeronaves, em parte por concentrar a produção em um pequeno número de fábricas gigantescas. Colocando os produtores na linha ao forçá-los a fazer modificações no gerenciamento de alto nível, Milch levou adiante um programa de racionalização no qual o desenvolvimento de caças e bombardeiros mais avançados foi sacrificado em favor da produção em massa de grande número dos modelos existentes, obtendo-se assim significativa economia de escala. Um caça avançado, o Messerschmitt Me210, já estava sendo fabricado, mas o Ministério do Ar havia apressado demais a produção, deixando problemas cruciais de design e desenvolvimento sem solução. A aeronave era instável, mas centenas delas estavam sendo produzidas. Milch cancelou o projeto e focou os recursos na produção de aviões como o bimotor Heinkel 111. Esse bombardeiro médio havia voado pela primeira vez em 1934 e se mostrado ineficiente na blitz, de modo que fora reutilizado como um interceptador noturno sobre a Alemanha, onde obteve algum sucesso. De modo semelhante, Milch direcionou recursos para extrair mais caças Me109 das linhas de produção. O número de fábricas para fazer o caça foi reduzido de sete para três, e a produção saltou de 180 por mês para mil. Essas mudanças fizeram que, no verão de 1943, fossem produzidas duas vezes mais aeronaves por mês em comparação com um ano e meio antes22.

A Força Aérea havia repetidamente exigido modificações e melhorias nas aeronaves existentes, com isso retardando a produção; de fato, até o fim de 1942, o número de modificações no design recomendadas para o bombardeiro Junkers Ju88 havia atingido 18 mil, enquanto as especificações de mudanças no bombardeiro pesado Heinkel He177 armazenadas nos escritórios de design da Heinkel enchiam nada menos que 46 robustos arquivos. Trabalhando com Milch, Speer fez tudo que pôde para rechaçar novos pedidos de modificação no design, mas só no começo de 1944 conseguiu reduzir o número de modelos de aeronaves de combate em produção de 42 para 30, depois para nove e por fim para cinco. O número de tipos diferentes de tanques e veículos blindados foi cortado de 18 para sete em janeiro de 1944, com a relutante e muito adiada concordância do Exército, e um único tipo de arma antitanque substituiu as 12 existentes. Speer descobriu um total de 151 tipos diferentes de caminhões de carga sendo manufaturados para uso militar; em 1942, ele cortou o número para 23. O processo de simplificação estendeu-se também à mineração de carvão e às máquinas-ferramentas, onde um total de 440 diferentes tipos de prensas mecânicas e hidráulicas foi reduzido para 36. As peças eram um problema particular, complicando e retardando o processo de produção; o Ju88, por exemplo, usava mais de 4 mil tipos diferentes de porca e parafuso. Seu substituto posterior, o Ju288, usava apenas 200. Nesse setor, e em outros onde também foi possível, rebitadoras automáticas substituíram o trabalho manual, e o processo de simplificação fez também que os trabalhadores precisassem de treinamento menor e mais elementar do que antes. Tudo isso impulsionou a produtividade, que nas indústrias de armas foi mais de 50% maior em 1944 do que havia sido dois anos antes23.

Speer também racionalizou a produção de tanques. No início da guerra, o Exército alemão havia confiado em dois tanques médios, o Mark III e o Mark IV, e em um tanque de design tcheco, o T-38, que haviam provado seu valor na invasão da Polônia e da Europa oriental em 1939-40. Mas, em 1941, eles toparam com o superior T-34 soviético, que era veloz, manobrável e ao mesmo tempo mais blindado e equipado com armas mais eficientes. Isso levou a uma importante reformulação, resultando na produção de dois tanques novos, o Tiger de 56 toneladas e o Panther de 45 toneladas. Eram equipamentos formidáveis, muito mais que um equivalente do T-34 e bem mais fortemente armados que seus concorrentes americanos. Speer conseguiu fazer que saíssem em quantidades consideráveis das linhas de produção em 1943. Mas, quase tão logo os tanques começaram a ser construídos, o bombardeio aliado começou a destruir as fábricas onde eram feitos, de modo que nunca puderam ser produzidos em número suficiente. A indústria soviética, por outro lado, estava fabricando quatro tanques para cada unidade feita pelos alemães no início de 1943. A transferência da indústria soviética para os Urais enfim havia dado frutos24. Em alguns setores, ao menos, a economia alemã pode ter sido capaz de produzir armas melhores que as de seus inimigos, mas foi inteiramente incapaz de se equiparar a elas na quantidade. A mudança para a produção em massa padronizada chegou mais tardiamente à Alemanha do que em outros lugares; na verdade, chegou tarde demais25.

A diferença em outros setores da produção de armamentos era similarmente impressionante, ainda que não tão dramática. Até mesmo os Estados Unidos estavam produzindo apenas a metade de armas de infantaria que a União Soviética produzia em 1942, e não muito mais aeronaves de combate e tanques. O método de racionalização americano era igual ao alemão, concentrando a produção em uma variedade limitada de unidades industriais gigantes que produziam um pequeno número de armamentos padronizados. Todavia, a racionalização alemã foi obtida à custa da qualidade em alguns setores. O caça Me109, por exemplo, era lento demais para fazer frente a seus equivalentes soviéticos, mais manobráveis. Os bombardeiros Junkers também eram lentos demais e pequenos demais para levar uma carga realmente devastadora. Os novos tanques Tiger e Panther eram produtos superiores, mas, como acontecia com frequência, foram levados às pressas para a batalha antes de todos os problemas de design terem sido resolvidos. Eles tinham uma preocupante tendência a quebrar. E com frequência excessiva ficavam sem combustível e não podiam ser reabastecidos26. Ao mesmo tempo, o povo soviético havia pago caríssimo por seus esforços hercúleos de produção: centenas de milhares de trabalhadores, em um tipo de procedimento que já se tornara familiar no impulso de Stálin rumo à industrialização na década de 1930, foram recrutados nas fazendas, a produção agrícola sofreu, e houve desnutrição disseminada e até mesmo fome. O pico febril da mobilização econômica soviética, evidente em 1942, não podia ser mantido por muito tempo. Mas os arranjos de empréstimo e arrendamento americanos abasteceram o Exército soviético com grandes quantidades de alimentos, matérias-primas e equipamentos de comunicação, especialmente rádios e telefones de campo, e também fizeram uma imensa diferença nos equipamentos e suprimentos britânicos. Em breve, os americanos entrariam na guerra na Europa e no norte da África de forma direta. No fim, os esforços de Speer para a racionalização, o ímpeto de Todt para a eficiência, as reformas organizacionais de Milch, as modificações administrativas de Kehrl, tudo isso foi insuficiente27.

Na metade da guerra, a economia americana estava produzindo uma quantidade de armas, aeronaves, navios de guerra, munição e equipamento militar que o Terceiro Reich não podia esperar igualar. Em 1942, as fábricas dos Estados Unidos produziram quase 48 mil aviões; no ano seguinte, quase 86 mil saíram das linhas de produção; e, em 1944, mais de 114 mil. Claro que uma grande parte foi para o combate aos japoneses no Pacífico. Mas, ainda assim, sobrou um número enorme para ser empregado no teatro de guerra europeu. Além disso, tanto a União Soviética quanto o Reino Unido também estavam superando a produção da Alemanha. Assim, em 1940, a União Soviética produziu mais de 21 mil aeronaves; em 1943, quase 37 mil. O império britânico produziu 15 mil aviões em 1940, mais de 20 mil em 1941, mais de 23 mil em 1942, cerca de 35 mil em 1943 e quase 47 mil em 1944. A maioria esmagadora foi produzida no próprio Reino Unido. A esses números comparam-se 10 mil aviões novos construídos na Alemanha em 1940, 11 mil em 1941 e 15 mil em 1942. As medidas de racionalização tomadas por Speer e Milch e a crescente concentração de recursos na produção de aeronaves só surtiram efeito em 1943, quando mais de 26 mil saíram das linhas de produção, e em 1944, quando o número atingiu quase 40 mil. Isso ainda era menos do que a Grã-Bretanha e seus domínios produziam, e menos de um quinto da produção combinada das três principais potências aliadas28.

Aconteceu o mesmo em outros setores. Por exemplo, de acordo com o Comando Supremo das Forças Armadas Combinadas, a Alemanha conseguiu manufaturar entre 5 mil e 6 mil tanques por ano de 1942 a 1944, e com isso fracassou significativamente em aumentar a produção. Isso era comparável à Grã-Bretanha e seus domínios, onde cerca de 6 mil a 8 mil tanques foram produzidos por ano. A União Soviética, porém, produziu cerca de 19 mil tanques por ano durante esse período, e a produção de tanques dos Estados Unidos subiu de 17 mil em 1942 para mais de 29 mil em 1944. Em 1943, a produção aliada combinada de metralhadoras chegou a 1,11 milhão, contra 165.527 da Alemanha. Claro que nem toda a aparelhagem militar aliada foi empregada contra os alemães; os britânicos e americanos em particular estavam travando guerras duras na Ásia e no Pacífico. Todavia, grande volume de armas e equipamentos americanos foi parar na Grã-Bretanha e na União Soviética, para apoiar o que já era uma maciça superioridade soviética em tanques e aeronaves. Em 1942, o destino já estava escrito, conforme Todt havia percebido29. Em 1944, ficou claro para qualquer um.

 

 

III

 

A pressão sobre a economia alemã pode ser medida pelo fato de que, em 1944, 75% do PIB era dedicado à guerra, comparado a 60% na União Soviética e 55% na Grã-Bretanha30. Todavia, a Alemanha pôde se beneficiar da anexação e da ocupação de uma grande parte da Europa na primeira metade da guerra. Como já vimos, a tomada da Polônia ofereceu oportunidades de enriquecimento às quais poucos conseguiram resistir. E o mais importante talvez é que a conquista de países ricos da Europa ocidental, com setores industriais avançados e agricultura próspera, ofereceu a promessa de fazer uma importante diferença a partir de 1940. Estima-se que, no total, a esfera de influência alemã na Europa em 1940 tivesse uma população de 290 milhões, com um PIB pré-guerra maior que o dos Estados Unidos. Entre as nações conquistadas, França, Bélgica e Países Baixos também tinham extensos impérios ultramarinos que aumentaram o poder econômico potencial do Terceiro Reich. As autoridades alemãs começaram a tratar de explorar os recursos dos países conquistados com uma impetuosidade que não era de bom augúrio para o futuro bem-estar das economias subjugadas. Na euforia inicial da vitória, pilhagem e roubo estiveram na ordem do dia. Após a derrota da França, as tropas alemãs sequestraram para seu próprio uso mais de 300 mil rifles franceses, mais de 5 mil peças de artilharia francesa, quase 4 milhões de projéteis franceses e 2.170 tanques franceses, muitos dos quais ainda estavam em uso pelo Exército alemão nas fases tardias da guerra. Tudo isso constituiu nada mais que um terço do butim total que os alemães apreenderam dos franceses. Outro terço foi proporcionado pela captura de milhares de locomotivas e vasta quantidade de material circulante. O sistema ferroviário alemão ficara à míngua no que se refere a investimento nos anos anteriores à guerra, levando a graves atrasos na movimentação de suprimentos volumosos, como carvão, pelo país. Mas teve então condições de reabastecer seus estoques depauperados com 4.260 locomotivas e 140 mil vagões de carga e vagões das ferrovias francesas, holandesas e belgas. Por fim, as forças alemãs confiscaram quantidades maciças de matérias-primas para a indústria de armas doméstica, inclusive 81 mil toneladas de cobre, suprimento de estanho e níquel para um ano e quantidades consideráveis de gasolina e óleo. No total, os franceses estimaram que o equivalente a 7,7 bilhões de reichsmarks em mercadorias foram levados de seu país durante a ocupação31.

Não foram apenas o governo alemão e as Forças Armadas alemãs que tiveram vantagens com a conquista de outros países: soldados alemães comuns, como já vimos, também se beneficiaram. A escala de suas depredações na Polônia, na União Soviética e na Europa ocidental e oriental foi considerável. As cartas escritas por soldados alemães estão cheias de relatos e promessas de produtos, saqueados ou comprados com seus reichsmarks, enviados para sua família na Alemanha. Heinrich Böll, que mais tarde ficaria famoso como escritor ganhador do Nobel, enviou pacotes de manteiga, papel de carta, ovos, sapatos femininos, cebolas e muito mais. “Consegui metade de um leitão para vocês”, anunciou triunfante para a família pouco antes de ir para casa de licença em 1940. Mães e esposas postavam dinheiro para seus filhos e maridos na França e na Bélgica, na Letônia e na Grécia, a fim de que comprassem suprimentos para trazer ou mandar para casa. Os soldados raramente voltavam para a Alemanha sem carregar sacolas e malas de presentes, comprados ou roubados. Após o regime suspender as restrições sobre a quantidade que podia ser levada ou enviada para casa dessa forma, o número de pacotes remetidos da França para a Alemanha pelo correio militar logo disparou para mais de 3 milhões por mês. Houve um aumento no ordenado dos soldados no fim de 1940 explicitamente para ajudá-los a pagar por mercadorias estrangeiras para sua família. Mais importantes ainda foram as quantidades abusivas de mercadorias, equipamentos e sobretudo gêneros alimentícios oficialmente requisitados e sequestrados pelo Exército e autoridades civis alemães na Europa oriental ocupada32.

O Terceiro Reich também começou a explorar as economias de maneiras mais sutis, menos óbvias. A taxa de câmbio do franco francês e belga, do florim holandês e de outras moedas da Europa ocidental ocupada foi fixada em um nível extremamente favorável ao reichsmark alemão. Calcula-se, por exemplo, que o poder de compra do reichsmark na França ficou mais de 60% acima do que teria ficado caso a taxa de câmbio fosse definida sem intervenção nos mercados, ao invés de ser artificialmente fixada por decreto33. A Alemanha importou de maneira legítima imensas quantidades de mercadorias dos países conquistados, assim como simplesmente saqueou-os, mas não pagou por elas por meio do aumento de suas próprias exportações de forma proporcional. Em vez disso, empresas francesas, holandesas e belgas que exportavam mercadorias para a Alemanha eram pagas por seus próprios bancos centrais em francos ou florins, e as quantias pagas eram assinaladas como débitos do Reichsbank de Berlim. Claro que os débitos nunca foram pagos, de modo que, no fim de 1944, o Reichsbank devia 8,5 bilhões de reichsmarks para os franceses, quase 6 bilhões para os holandeses e 5 bilhões para os belgas e os luxemburgueses34. No total, os pagamentos franceses à Alemanha somaram quase metade de todos os gastos públicos da França em 1940, 1941 e 1942, chegando a 60% em 194335. Calcula-se que a Alemanha estivesse usando 40% dos recursos franceses nessa época36. No total, bem mais de 30% da produção líquida dos países ocupados na Europa ocidental foi extraída pelos alemães no período da guerra37. Os efeitos dessas extrações sobre a economia doméstica dos países ocupados foram significativos. O controle alemão dos bancos centrais dos países ocupados levou ao fim das restrições à emissão de notas bancárias, de modo que os “custos de ocupação” eram pagos inclusive com a simples impressão de dinheiro, levando a uma grave inflação, piorada pela escassez de mercadorias para se comprar, pois elas estavam sendo levadas para a Alemanha38.

As companhias alemãs também tiveram condições de usar o reichsmark sobrevalorizado para adquirir o controle de empresas rivais na França, na Bélgica e em outras partes da Europa ocidental. Podiam ser ajudadas nisso pela regulamentação de comércio e distribuição de matérias-primas do governo alemão, que em geral trabalhava a seu favor. Todavia, a enorme escalada do déficit da Alemanha pelo não reembolso de débitos aos bancos centrais dos países ocupados obviamente dificultava a exportação do capital necessário para a compra de empresas nos países ocupados. A I. G. Farben, monopólio alemão de pigmentos, conseguiu apoderar-se de boa parte da indústria química francesa, e firmas alemãs, sobretudo a Usina do Reich Hermann Göring, patrocinada pelo Estado, abocanharam muito da mineração e das indústrias de ferro e aço da Alsácia-Lorena. O patrocínio estatal alemão da Usina do Reich Hermann Göring proporcionou a esta uma vantagem óbvia sobre a iniciativa privada na aquisição de empresas estrangeiras. Muitos dos empreendimentos tomados eram de controle estatal ou de propriedade estrangeira; a arianização de firmas judaicas também desempenhou um papel nisso, embora em termos gerais não significasse muito. Entretanto, muitos dos maiores empreendimentos privados escaparam das tomadas de controle, inclusive grandes multinacionais holandesas como Philips, Shell e Unilever, ou o enorme conglomerado siderúrgico abrigado sob o nome Arbed. Claro que os ocupantes alemães supervisionavam as atividades dessas empresas de muitas maneiras, mas na maioria dos casos não conseguiram exercer controle direto ou colher benefícios financeiros diretos39.

Isso ocorreu em parte porque os governos nacionais continuaram a existir nos países ocupados da Europa ocidental, por mais limitados que fossem seus poderes, e as leis e os direitos de propriedade continuaram a vigorar como antes. Do ponto de vista de Berlim, portanto, o que se exigia era a cooperação econômica, por mais desiguais que fossem os termos em que se baseasse, e não a subjugação total ou expropriação conforme a linha adotada na Polônia. As autoridades de ocupação, civis e militares, estabeleceram as condições gerais e abriram as oportunidades para as empresas alemãs, por meio da arianização, por exemplo – embora não na França, onde a propriedade judaica era controlada pelas autoridades francesas. Portanto, tudo que podiam fazer as companhias alemãs, que buscavam expandir sua influência e colher os lucros da ocupação, era se insinuar com as autoridades de ocupação a fim de tentar passar as rivais para trás40. A política de cooperação ditada por Berlim limitava a liberdade de ação de tais companhias. E não havia nascido simplesmente da conveniência – do desejo de conquistar a cooperação da França e de outros países europeus ocidentais na luta em curso contra a Grã-Bretanha –, mas também de uma visão mais grandiosa: o conceito de uma Nova Ordem na Europa, uma economia pan-europeia de larga escala que mobilizaria o continente como um bloco único para se opor às gigantescas economias dos Estados Unidos e do império britânico. Em 24 de maio de 1940, representantes do Ministério de Relações Exteriores, Plano de Quatro Anos, Reichsbank, Ministério da Economia e outros setores interessados fizeram uma reunião para discutir como essa Nova Ordem seria estabelecida. Estava claro que tinha de ser apresentada não como um veículo do expansionismo alemão, mas como uma proposta de cooperação europeia. A política da Alemanha de tentar travar guerra com seus próprios recursos evidentemente não estava funcionando. Os recursos dos outros países também precisavam ser empregados. Conforme o próprio Hitler disse para Todt em 20 de junho de 1940: “O curso da guerra mostra que fomos longe demais em nossos esforços para adquirir autossuficiência41”. A Nova Ordem pretendia reconstituir a autossuficiência em termos europeus42.

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Mapa 12. A Nova Ordem na Europa, 1942

O que se exigia, portanto, conforme Hermann Göring, chefe do Plano de Quatro Anos, declarou em 17 de agosto de 1940, era “uma integração mútua e uma união de interesses entre a economia da Alemanha e da Holanda, Bélgica, Noruega e Dinamarca”, bem como uma cooperação intensificada com a França. Companhias como a I. G. Farben apareceram com sugestões sobre como suas próprias necessidades industriais particulares poderiam ser atendidas, conforme esclarece um memorando da companhia em 3 de agosto de 1940, pela criação de “uma grande esfera econômica organizada para conseguir autossuficiência e planejada em relação a todas as outras esferas econômicas do mundo43”. Nisso também, segundo explicou um representante do Ministério da Economia do Reich em 3 de outubro de 1940, era preciso prudência:

 

Pode-se adotar a ideia de que podemos simplesmente ditar o que vai acontecer no campo econômico na Europa, ou seja, de que podemos simplesmente considerar os assuntos do ponto de vista unilateral dos interesses alemães. Esse é o critério adotado às vezes por círculos empresariais privados quando tratam das questões da estrutura da economia europeia no futuro do ponto de vista de sua esfera de operações particular. Entretanto, uma visão dessas seria errada, porque em última análise não estamos sozinhos na Europa e não podemos comandar uma economia com nações subjugadas. É bastante óbvio que devemos evitar cair em qualquer dos dois extremos – de um lado, de que devemos engolir tudo e tirar tudo dos outros; e, de outro, de dizer: não somos assim, não queremos nada44.

 

Seguir esse caminho do meio aproximava-se da linha adotada pelos imperialistas econômicos visionários que haviam desenvolvido pensamentos sobre uma esfera alemã de interesse econômico – às vezes conhecida como Mitteleuropa, “Europa Central” – antes da Primeira Guerra Mundial. Ela envolveria, pensavam os planejadores econômicos, a criação de cartéis, investimentos e aquisições de âmbito europeu. Iria requerer a intervenção do governo para abolir barreiras alfandegárias e regular as moedas. Mas, do ponto de vista da indústria alemã, a Nova Ordem devia ser criada sobretudo pela iniciativa privada. A integração econômica europeia sob a bandeira da Nova Ordem deveria basear-se não em regulamentações estatais e controles de governo, mas na reestruturação da economia de mercado europeia45.

Perseguir tal meta significava evitar tanto quanto possível dar a impressão de que a conquista dos países europeus ocidentais não passava de sua subjugação e exploração econômica. Ao mesmo tempo, porém, os planejadores econômicos alemães estavam certos de que a Nova Ordem seria implantada sobretudo para servir aos interesses econômicos alemães. Isso envolvia um jogo de artifícios que às vezes podia ser deveras sofisticado. Ciente, por exemplo, da má fama aderida ao conceito de reparações desde 1919, o Terceiro Reich não exigiu compensação financeira dos países derrotados; de qualquer modo, como poderia fazê-lo, uma vez que as reparações que a Alemanha tivera de pagar de 1919 a 1932 haviam sido para compensar o estrago causado à França e à Bélgica pela invasão alemã dos dois países em 1914, e ninguém invadira a Alemanha em 1940? Assim, os alemães vitoriosos, em vez disso, impuseram o que chamaram de “custos de ocupação” às nações derrotadas. Esses aparentemente eram para pagar a manutenção de tropas, bases militares e navais, campos de aviação e posições defensivas alemãs nos territórios conquistados. De fato, as somas extraídas com essa rubrica excederam em muitas vezes os custos de ocupação, atingindo, no caso da França, 20 milhões de reichsmarks por dia, o suficiente, segundo um cálculo francês, para sustentar um exército de 18 milhões de homens. Até o fim de 1943, quase 25 bilhões de reichsmarks tinham ido parar nos cofres alemães com essa justificativa. As somas eram tão grandes que os alemães encorajaram os franceses a contribuir para seu pagamento com a transferência de ações e, não muito depois, o controle majoritário de empreendimentos vitais de propriedade francesa na indústria petrolífera romena e nas imensas minas de cobre da Iugoslávia havia passado para empreendimentos de domínio alemão, como a onipresente Usina do Reich Hermann Göring e a recém-estabelecida “multinacional” Petróleo Continental46.

 

 

IV

 

O que tudo isso refletiu foi o fato de que, a partir do momento em que os preparativos sérios para a invasão da União Soviética tiveram início, as ideias de cooperação econômica começaram a ficar em segundo plano em relação aos imperativos da exploração econômica. Alguns, como Speer, levaram essas ideias relativamente a sério47. Mas, no que dizia respeito a Hitler, elas eram pouco mais que uma cortina de fumaça. Em 16 de julho de 1941, por exemplo, ele dedicou alguma atenção para uma declaração em um jornal francês de Vichy de que a guerra contra a União Soviética era uma guerra europeia e, portanto, deveria beneficiar todos os Estados europeus. “O que dizemos ao mundo sobre os motivos de nossas medidas”, disse ele, “deve [...] ser condicionado por razões táticas48.”48 Dizer que a invasão era uma iniciativa europeia era uma tática. A realidade é que seria pelos interesses da Alemanha. Isso já estava claro há tempos para os líderes nazistas. Conforme Goebbels declarou em 5 de abril de 1940: “Estamos levando a cabo na Europa a mesma revolução que fizemos em menor escala na Alemanha. Se alguém perguntar”, prosseguiu ele, “como imaginamos a nova Europa, temos de dizer que não sabemos. Claro que temos algumas ideias a respeito, mas, se as colocássemos em palavras, elas imediatamente nos criariam mais inimigos49”. Em 26 de outubro de 1940, ele deixou brutalmente claro a que se resumiam essas ideias: “Quando essa guerra acabar, queremos ser os senhores da Europa50”.

Em 1941, portanto, os países da Europa ocidental estavam sendo explorados ao máximo pelos alemães. A maioria tinha setores industriais avançados que se pretendia que contribuíssem para o esforço de guerra alemão. Todavia, logo ficou claro que a contribuição francesa estava ficando aquém do que os líderes econômicos e militares alemães esperavam. As tentativas de fazer que fábricas francesas produzissem 3 mil aeronaves para o esforço de guerra alemão emperraram repetidas vezes antes da assinatura de um acordo em 12 de fevereiro de 1941. Mesmo depois disso, a produção foi retardada pela escassez de alumínio e pelas dificuldades de se obter carvão para gerar energia. Apenas 78 aviões foram entregues por fábricas da França e dos Países Baixos até o fim do ano, ao passo que os britânicos haviam comprado mais de 5 mil dos Estados Unidos no mesmo período. No ano seguinte, as coisas melhoraram um pouco, com 753 aviões entregues à Força Aérea alemã; mas isso foi só um décimo da quantidade que os britânicos receberam dos americanos. O moral baixo, a saúde e a nutrição ruins dos trabalhadores, e provavelmente também uma considerável relutância ideológica, fizeram que a produtividade da mão de obra nas fábricas francesas de aviação fosse apenas um quarto do que era na Alemanha. Em conjunto, os territórios europeus ocidentais ocupados conseguiram produzir apenas pouco mais de 2,6 mil aviões para uso militar alemão durante toda a guerra51.

Mesmo com a adição de recursos naturais substanciais das áreas conquistadas da Europa ocidental, a economia do Terceiro Reich permaneceu calamitosamente mal de combustíveis durante a guerra. Particularmente séria era a falta de óleo derivado de petróleo. As tentativas de se encontrar um substituto não tiveram êxito. A produção de combustível sintético cresceu apenas para 6,5 milhões de toneladas em 1943, contra 4 milhões nos quatro anos anteriores. As economias europeias-ocidentais ocupadas em 1940 eram grandes consumidoras de óleo importado, e não produziam nem uma gota, de modo que apenas aumentaram os problemas de combustível da Alemanha ao terem suas antigas fontes de abastecimento abruptamente cortadas. A Romênia fornecia 1,5 milhão de toneladas de óleo por ano, e a Hungria quase o mesmo volume, mas não bastava de jeito nenhum. As reservas de combustível francesas e outras foram capturadas pelas forças ocupantes, reduzindo o abastecimento de petróleo da França a apenas 8% dos níveis pré--guerra. A Itália, aliada da Alemanha, consumiu quantidades adicionais de óleo alemão e romeno, visto que também teve as outras fontes cortadas. As reservas alemãs de óleo nunca passaram de 2 milhões de toneladas durante a guerra inteira. Em contraste, o império britânico e os Estados Unidos abasteceram a Grã-Bretanha com mais de 10 milhões de toneladas de óleo importado em 1942, e o dobro disso em 1942. Os alemães fracassaram em apoderar-se de outras fontes de óleo no Cáucaso e no Oriente Médio52.

O carvão, que ainda fornecia o combustível básico para a geração de eletricidade, tanto em industrial quanto doméstico, estava presente na Europa central e ocidental em quantidades imensas, mas a produção nos países ocupados despencou à medida que os operários reduziam o ritmo de trabalho. Alguns até entraram em greve em protesto contra as rações de comida insuportavelmente baixas e as condições deterioradas. Em 1943-44, cerca de 30% do carvão usado na Alemanha vinha de áreas ocupadas, em particular da Alta Silésia, mas muito mais poderia ter sido obtido, em especial das ricas minas de carvão do norte da França e da Bélgica. O bloqueio britânico cortou as importações de grãos, fertilizantes e forragens do além-mar, ao mesmo tempo que o confisco alemão desses produtos das fazendas francesas, holandesas e belgas e o recrutamento dos operários agrícolas para os projetos de trabalho forçado na Alemanha tiveram um efeito desastroso sobre a agricultura. Os fazendeiros tiveram de abater porcos, galinhas e outros animais em enormes quantidades porque não havia nada com que os alimentar. A colheita de grãos da França caiu mais da metade no período 1938-40. Os ocupantes alemães introduziram o racionamento de comida. Em 1941, as rações oficiais da Noruega estavam abaixo de 1,6 mil calorias por dia, na França e na Bélgica eram meras 1,3 mil. Isso não era o bastante para ninguém viver, e, assim como na Europa oriental ocupada, depressa surgiu um mercado negro, à medida que as pessoas violavam a lei para se manter vivas53. Tudo isso fez que o acréscimo das economias da Europa ocidental significasse bem menos do que o esperado para o fortalecimento do esforço de guerra alemão. Não só a produtividade nas minas de carvão caiu, como o confisco do material circulante e locomotivas franceses, belgas e holandeses também atrapalhou severamente o deslocamento de suprimentos de carvão pelo país, estorvando a produção industrial. À medida que o suprimento de carvão caiu, as usinas siderúrgicas, privadas do coque, essencial para a fundição, também começaram a se complicar. A economia alemã não só não foi capaz de tirar muita vantagem da aquisição de minas de carvão na França e na Bélgica, como as condições nas minas alemãs também começaram a se deteriorar. O recrutamento pelas Forças Armadas de muitos trabalhadores essenciais não ajudou, e as tentativas de induzir os homens a descer para as minas aumentando o salário já haviam sido solapadas pelas longas horas de trabalho, inclusive aos domingos, pelas condições perigosas e sobretudo pela parca cota de comida com que os mineiros tinham de subsistir54. No total, portanto, a economia de guerra alemã ganhou bem menos com a conquista de outros países europeus do que se poderia esperar.

No fim, tudo isso refletiu a primazia da exploração impiedosa ditada pelo Estado. Alguns economistas, como Otto Bräutigam, um alto funcionário do Ministério para os Territórios do Leste, de Rosenberg, considerou que a Alemanha poderia ter extraído muito mais das economias dos países que conquistou, sobretudo na Europa oriental, se sua liderança tivesse seguido as ideias de uma Nova Ordem de colaboração na Europa, em vez de políticas de subjugação racial, opressão e assassinato em massa55. Alguns empresários e capitalistas podem ter pensado na mesma linha, mas no geral tomaram como imutáveis as políticas do regime em relação aos povos submetidos e tentaram ganhar o que pudessem com elas. Conforme o cientista político exilado Franz Neumann afirmou durante a guerra, tratava-se claramente de uma economia de comando, uma economia capitalista de mercado cada vez mais submetida à direção e ao controle vindos de cima56. Tratava-se de algo além disso? A economia nazista estava se deslocando por completo do capitalismo de livre iniciativa? Não há dúvida de que, no curso da guerra, o regime interveio de maneira cada vez mais intrusiva na economia, em uma extensão que ia muito além de apenas conduzi-la em certas direções ou de forçá-la a operar no contexto político de uma guerra global. O controle de preços e câmbio, a regulamentação da distribuição de mão de obra e de matérias--primas, a limitação dos dividendos, a racionalização forçada, a fixação e a refixação de metas de produção e muito mais constituíram uma deformação drástica do mercado. O vasto e precipitado aumento do gasto estatal em armamentos distorceu o mercado ao sacar recursos da produção de bens de consumo para as indústrias bélicas e pesadas. Desse modo, a indústria passou a servir cada vez mais aos propósitos e interesses de um regime político impulsionado pela ideologia57.

Além disso, com o passar do tempo, Estado e Partido tomaram posse de parte crescente da economia. Praticamente toda a indústria de jornais e revistas, por exemplo, já havia caído sob propriedade nazista antes da guerra, e, de modo semelhante, outros meios de comunicação, inclusive estúdios de cinema e editoras de livros, pertenciam em grande parte a divisões do Partido Nazista. Em algumas áreas, como a Turíngia, os chefes regionais do Partido deram jeito de pôr as mãos em indústrias essenciais. Depois de 1939, agências estatais ou partidárias puderam assumir o controle de companhias de proprietários estrangeiros cujos países estavam em guerra com a Alemanha, e a arianização de empresas judaicas em países ocupados proporcionou oportunidades adicionais. A Usina Hermann Göring, gerida pelo Estado, espalhou seus tentáculos ainda mais longe nesse sentido. O Escritório Central de Economia e Administração da SS, sob Oswald Pohl, alastrou-se em uma rede complexa de empresas, cobrindo uma espantosa variedade de setores. A empresa holding montada por Pohl em 1940, a chamada Empreendimento Econômico Alemão (Deutscher Wirtschaftsbetrieb), tinha ou arrendava e efetivamente controlava construtoras, fábricas de móveis, cerâmicas e cimento, uma pedreira, fábricas de munição, marcenarias, indústrias têxteis, editoras de livros e muito mais. Com frequência, isso refletia os interesses particulares, às vezes deveras excêntricos, de Himmler. Assim, por exemplo, Himmler estava interessado em reduzir o consumo de álcool na Alemanha e em especial na SS, de modo que tomou providências para que a companhia de água mineral Apollinaris, em Bad Neuenahr, de propriedade britânica antes da guerra, fosse arrendada dos curadores alemães para a holding da SS, recompensando-a com um grande contrato de fornecimento de água mineral para a SS. O diretor não pôde ser despedido, mas foi forçado a trabalhar com um assistente indicado pela SS, dando-lhe uma grande parte do controle. Outras companhias caíram sob controle direto. O império econômico da SS expandiu-se muito rapidamente como resultado desses acontecimentos58. Ao mesmo tempo, porém, não tinha uma concepção geral clara sobre qual seria seu papel. Simplesmente cresceu por acréscimo, de forma fortuita, como sugere o exemplo da companhia de água mineral Apollinaris. O domínio final da economia alemã tampouco foi uma meta significativa da SS; isso sempre ficou em segundo lugar em relação às políticas de segurança e racial59. Nos dois últimos anos da guerra, essas metas de fato empurraram as ambições econômicas da SS para o plano de fundo60.

Por mais impressionantes que tenham sido esses acontecimentos, eles não alteraram em muito o fato de que a Alemanha ainda era uma economia capitalista, dominada pela iniciativa privada. A regulamentação foi disseminada e intrusiva, mas foi efetuada por muitas instituições e organizações diferentes, com frequência rivais61. Gerentes industriais e executivos de empresas conseguiram preservar pelo menos alguma liberdade de ação, mas ficaram cientes de que sua autonomia era cada vez mais restringida durante a guerra, junto com o funcionamento de uma economia de livre mercado, e ficaram profundamente preocupados que o regime pudesse se tornar uma economia plenamente “socialista”, gerida pelo Estado; Joseph Goebbels, amplamente considerado um “socialista”, era um verdadeiro “bicho-papão” nesse ponto, mas os impérios econômicos em expansão da SS e da Usina Hermann Göring, entre outros, também eram motivo de ansiedade. Essas preocupações levaram muitos empresários e industriais a cooperar com o regime o máximo que podiam, a fim de evitar, pensavam eles, intromissões ainda mais drásticas em seu poder de tomada de decisão62.

Assim, gerentes, executivos e presidentes de companhias estavam mais que dispostos a tirar vantagem dos muitos incentivos que o Estado tinha a oferecer, mais notadamente, é claro, a oferta de lucrativos contratos de armas. Os negócios alemães beneficiaram-se igualmente das atividades da SS. O Banco Dresdner, por exemplo, emitiu créditos para a SS, e altos executivos foram recompensados tornando-se oficiais da organização. Os serviços do banco para a SS incluíram fornecimento de empréstimos para obras de construção em Sachsenhausen e financiamento para a construção do Crematório II de Auschwitz63. Huta, a pequena empresa que construiu as vans de gás usadas para matar judeus em Chelmno e outros locais, a empresa de engenharia Topf e Filhos, que construiu as câmaras de gás de Auschwitz, e muitas outras companhias ficaram muitíssimo felizes em lucrar com o negócio da morte. Algumas, como a companhia que fornecia o Zyklon-B para Auschwitz, possivelmente podiam ignorar o uso dado a seus produtos, mas na maioria dos casos era totalmente óbvio. Aqueles que processaram o ouro das restaurações dentárias extraídas do corpo de judeus mortos em Auschwitz e outros campos de morte devem ter tido poucas dúvidas a respeito de sua procedência. Depois de recolhidas nos campos, as restaurações eram enviadas para uma refinaria operada pela firma Degussa, com sede em Frankfurt, a líder em processamento de metais preciosos na Alemanha. O metal era derretido e fundido em barras, junto com outros produtos de ouro, joias e coisas assim, retirados dos judeus e outras pessoas das áreas conquistadas da Europa. No total, estima-se que a Degussa obteve cerca de 2 milhões de reichsmarks com a pilhagem de judeus entre 1939 e 1945; 95% da entrada de ouro na firma entre 1940 e 1944 veio do saque64. A Degussa obteve tal lucro vendendo o ouro por meio do Reichsbank para instituições financeiras como o Deutsche Bank65. A origem de boa parte desse ouro ficava bem clara para aqueles que o processavam na fábrica. As restaurações chegavam na fábrica da Degussa para processamento, conforme recordou uma trabalhadora muito depois da guerra, em um estado que deixava claríssimo de onde tinham vindo: “As coroas e pontes, e havia aquelas nas quais os dentes ainda estavam fixados [...] Isso era o mais deprimente, o fato de que tudo ainda estava ali. Provavelmente como no momento em que haviam sido quebrados e arrancados da boca. Os dentes ainda estavam ali, e às vezes ainda ensanguentados e com pedaços de gengiva66”.

 


 

1 Richard Overy, “Rationalization and the ‘Production Miracle’ in Germany during the Second World War”, em idem, War and Economy in the Third Reich (Oxford, 1994), p. 343--75 (citações nas p. 353-4).

2 Speer, Inside the Third Reich, p. 271-9; Tooze, The Wages of Destruction, p. 508-9.

3 Relato corrigido de Speer em Gitta Sereny, Albert Speer: His Battle with Truth (Londres, 1995), p. 274-83; Max Müller, “Der Tod des Reichsministers Dr Fritz Todt”, Geschichte in Wissenschaft und Unterricht 18 (1967), p. 602-5; discussão em Kershaw, Hitler, II, p. 502-3.

4 Karl-Heinz Ludwig, Technik und Ingenieure im Dritten Reich (Düsseldorf, 1974), p. 403-72, e Müller, “The Mobilization”, p. 453-85.

5 Speer, Inside the Third Reich, p. 261-5, 275-7, 291; Sereny, Albert Speer, p. 291-2.

6 Müller, “The Mobilization”, p. 773-86.

7 Evans, The Third Reich in Power, p. 183-6; Alan S. Milward, The German Economy at War (Londres, 1985), p. 72-99.

8 Ver Evans, The Third Reich in Power, p. 183-6.

9 Speer, Inside the Third Reich, p. 262-3.

10 Citado em Tooze, The Wages of Destruction, p. 506-7.

11 Halder, Kriegstagebuch, III, p. 309 (24 de novembro de 1941).

12 Budrass, Flugzeugindustrie, p. 724. Um fator contributivo podem ter sido as intrigas de gabinete contra sua posição.

13 Tooze, The Wages of Destruction, p. 123-4, 508.

14 Ibid., p. 587-9; Overy, “Rationalization”, p. 356, 343-9.

15 Walter Naasner, Neue Machtzentren in der deutschen Kriegswirtschaft 1942-1945 (Boppard, 1994), p. 471-2.

16 Speer, Inside the Third Reich, p. 280.

17 Ibid., p. 282-5.

18 Paul B. Jaskot, The Architecture of Oppression: The SS, Forced Labor, and the Nazi Monumental Building Economy (Londres, 2000), p. 80-113.

19 Speer, Inside the Third Reich, p. 287-300 (citação nas p. 295-6); Milward, The German Economy at War, p. 54-71 (para os feitos de Todt).

20 Overy, War and Economy, p. 356-70.

21 Tooze, The Wages of Destruction, p. 568-74.

22 Ibid., p. 578-84.

23 Overy, War and Economy, p. 356-67.

24 Weinberg, A World at Arms, p. 538.

25 Mark Harrison (ed.), The Economics of World War II: Six Great Powers in International Comparison (Cambridge, 1998), p. 26.

26 Edward R. Zilbert, Albert Speer and the Nazi Ministry of Arms: Economic Institutions and Industrial Production in the German War Economy (Londres, 1981), esp. p. 184-257; Budrass, Flugzeugindustrie, p. 738-9, 891.

27 Tooze, The Wages of Destruction, p. 587-9; Mark Harrison, Accounting for War: Soviet Production, Employment and the Defence Burden, 1940-1945 (Cambridge, 1996); e John Barber e Mark Harrison, The Soviet Home Front, 1941-1945: A Social and Economic History of the USSR in World War II (Londres, 1991).

28 Tooze, The Wages of Destruction, p. 407; Müller, “The Mobilization”, p. 723; Boog, “The Strategic Air War”, p. 118.

29 Rolf-Dieter Müller, “Albert Speer and Armaments Policy in Total War”, GSWW V/II, p. 293-832, na p. 805.

30 Harrison (ed.), The Economics of World War II, p. 20-1.

31 Tooze, The Wages of Destruction, p. 383-5; Alan S. Milward, The New Order and the French Economy (Oxford, 1984), p. 81.

32 Muitos exemplos adicionais em Götz Aly, Hitler’s Beneficiaries: Plunder, Racial War, and the Nazi Welfare State (Nova York, 2007 [2005]); também Elmshäuser e Lokers (eds.), “Man muss hier nur hart sein”, p. 55, 62, 63, 68 etc.

33 Jeremy Noakes e Geoffrey Pridham (eds.), Nazism 1919-1945, III: Foreign Policy, War and Racial Extermination: A Documentary Reader (Exeter, 1988), p. 295; Alan S. Milward, War, Economy and Society 1939-1945 (Londres, 1987 [1977]), p. 137.

 

34 Tooze, The Wages of Destruction, p. 386-8; Overy et al. (eds.), Die “Neuordnung” Europas.

35 Milward, War, Economy and Society, p. 139-41.

36 Milward, The New Order and the French Economy, p. 111.

37 Harrison (ed.), The Economics of World War II, p. 22.

38 Milward, War, Economy and Society, p. 138-45.

39 Tooze, The Wages of Destruction, p. 389-91; Noakes e Pridham (eds.), Nazism, III, p. 297-8.

40 Harald Wixforth, Die Expansion der Dresdner Bank in Europa (Munique, 2006), p. 871-902.

41 Noakes e Pridham (eds.), Nazism, III, p. 274-80, na p. 280.

42 Alan Milward, The Fascist Economy in Norway (Oxford, 1972), p. 1, 3; idem, War, Economy and Society, p. 153-7; Ludolf Herbst, Der totale Krieg und die Ordnung der Wirtschaft: Die Kriegswirtschaft im Spannungfeld von Politik, Ideologie und Propaganda 1939-1945 (Stuttgart, 1982), p. 127-44.

43 Noakes e Pridham (eds.), Nazism, III, p. 283-4.

44 Ibid., p. 286.

45 Milward, The New Order and the French Economy, p. 23-8.

46 Tooze, The Wages of Destruction, p. 391-3.

47 Milward, The New Order and the French Economy, p. 147-80.

48 Noakes e Pridham (eds.), Nazism, III, p. 290.

49 Ibid., p. 292.

50 Ibid., p. 292.

51 Tooze, The Wages of Destruction, p. 409-10; Milward, The New Order and the French Economy, p. 293-4.

52 Tooze, The Wages of Destruction, p. 411-2.

53 Ibid., p. 418-9; Noakes e Pridham (eds.), Nazism, III, p. 298.

54 Tooze, The Wages of Destruction, p. 412-8.

55 Noakes e Pridham (eds.), Nazism, III, p. 304-9.

56 Franz Neumann, Behemoth: The Structure and Practice of National Socialism 1933-1944 (Nova York, 1944 [1942]), p. 293.

57 Harold James, The Deutsche Bank and the Nazi Economic War against the Jews: The Expropriation of Jewish-Owned Property (Cambridge, 2001), p. 213-4.

58 Walter Naasner, SS-Wirtschaft und SS-Verwaltung (Düsseldorf, 1998), p. 164-7; Michael Thad Allen, The Business of Genocide: The SS, Slave Labor, and the Concentration Camps (Chapel Hill, N. C., 2002), p. 58-71, 107-12.

59 Naasner, Neue Machtzentren, p. 197-44; Georg Enno, Die wirtschaftlichen Unternehmungen der SS (Stuttgart, 1963), p. 70-1, 145.

60 Jan Erik Schulte, Zwangsarbeit und Vernichtung: Das Wirtschaftsimperium der SS: Oswald Pohl und das SS-Wirtschafts-Verwaltungshauptamt 1933-1945 (Paderborn, 2001), p. 440-1.

61 Berenice A. Carroll, Design for Total War: Arms and Economics in the Third Reich (Haia, 1968), p. 233.

62 Paul Erker, Industrie-Eliten in der NS-Zeit: Anpassungsbereitschaft und Eigeninteresse von Unternehmen in derRüstungs- und Kriegswirtschaft 1936-1945 (Passau, 1993), p. 73-5.

63 Johannes Bähr, Die Dresdner Bank in der Wirtschaft des Dritten Reichs (Munique, 2006), p. 477-570.

64 Peter Hayes, From Cooperation to Complicity: Degussa in the Third Reich (Cambridge, 2004), p. 190-1.

65 Ver Jonathan Steinberg, The Deutsche Bank and its Gold Transactions during the Second World War (Munique, 1999).

66 Erna Spiewack, entrevista para a televisão em 1998, citado em Hayes, From Cooperation to Complicity, p. 193.