Guerra total

 

 

I

 

 

 

 

A extensão do programa nazista de extermínio em 1942 ocorreu em um contexto militar no qual as Forças Armadas alemãs estavam mais uma vez na ofensiva. Por certo, a derrota do Exército alemão diante de Moscou significou que a crença de Hitler na fragilidade do regime stalinista na União Soviética havia se mostrado decididamente errada. A Operação Barba Ruiva fracassara visivelmente em atingir as metas estabelecidas nos dias confiantes de junho de 1941. Depois de refrear a onda alemã diante de Moscou, o Exército Vermelho havia partido para a ofensiva e forçado o Exército alemão a recuar. Conforme um oficial alemão escreveu para o irmão: “Os russos estão se defendendo com uma coragem e tenacidade que o doutor Goebbels caracteriza como ‘animal’; isso custa-nos sangue, assim como cada rechaço dos atacantes. Ao que parece”, prosseguiu ele, com um sarcasmo que traiu o respeito crescente das tropas alemãs pelo Exército Vermelho, bem como um desprezo generalizado por Goebbels entre a classe dos oficiais, “a verdadeira coragem e o heroísmo genuíno apenas começam na Europa ocidental e no centro dessa parte do mundo1”.

O frio de rachar do ápice do inverno, seguido de uma primavera que transformou o solo em lama mole, dificultou qualquer nova campanha de qualquer escala até maio de 1942. A essa altura, incentivado pela vitória sobre os alemães diante de Moscou, Stálin ordenou uma série de contraofensivas. Sua confiança foi ainda mais reforçada pelo fato de que as instalações industriais realocadas para os Urais e o Transcáucaso haviam começado a produzir quantidades significativas de equipamento militar – 4,5 mil tanques, 3 mil aviões, 14 mil armas de fogo e mais de 50 mil morteiros até o começo da campanha de primavera de maio de 1942. Ao longo do verão e outono de 1942, o comando do Exército Vermelho testou uma variedade de maneiras de empregar os novos tanques combinados com a infantaria e a artilharia, aprendendo com os erros em cada ocasião2. Mas os primeiros contra-ataques de Stálin mostraram-se tão desastrosos quanto as iniciativas militares do outono anterior. Assaltos maciços às forças alemãs em Leningrado fracassaram em recuperar a cidade sitiada, ataques pelo centro foram rechaçados em combates ferozes, e ao sul os alemães aguentaram firmes diante de repetidas investidas soviéticas. Na área de Kharkov, uma ofensiva soviética de larga escala em maio de 1942 terminou com 100 mil soldados do Exército Vermelho mortos e o dobro disso capturados como prisioneiros. Os comandantes soviéticos haviam subestimado gravemente a força alemã na região e fracassaram em estabelecer a supremacia aérea. Enquanto isso, o marechal de campo Fedor von Bock, de volta em 20 de janeiro de 1942 como comandante do Grupo de Exércitos do Sul, após a licença de saúde, havia concluído que o ataque era a melhor defesa, e travou uma campanha prolongada e por fim bem-sucedida na Crimeia. Mas o tempo todo ele permaneceu agudamente cônscio da tenuidade das linhas alemãs e do estado de cansaço contínuo das tropas, notando com preocupação que elas “seguiam em frente lutando com grande dificuldade e perdas consideráveis3”. Em uma vitória importante, Bock tomou a cidade de Voronej. A situação pareceu melhorar. “Ali eu vi com meus próprios olhos”, escreveu Hans-Albert Giese, um soldado do norte rural da Alemanha, “como os nossos tanques fizeram os colossos russos em pedaços. O soldado alemão é melhor em tudo. Também acho que a coisa estará acabada por aqui este ano4.”

Mas não seria assim. Hitler julgou Bock procrastinador e excessivamente cauteloso na sequência da captura de Voronej, permitindo que divisões soviéticas essenciais escapassem do envolvimento e da destruição. Bock estava preocupado com suas tropas esgotadas. Mas Hitler não quis saber disso. Retirou Bock do comando em 15 de julho de 1942, substituindo-o pelo coronel-general Maximilian von Weichs5. O amargurado Bock passou o resto da guerra efetivamente na reforma, tentando defender de modo obsessivo, sua conduta no avanço a partir de Voronej e esperando inutilmente ser reconduzido ao posto. Enquanto isso, em 16 de julho de 1942, a fim de assumir o comando pessoal das operações, Hitler mudou seu quartel-general de campo para um novo centro, chamado de Lobisomem, perto de Vinnitsa, na Ucrânia. Transportados da Prússia Oriental em 16 aviões, Hitler, seus secretários e equipe passaram os três meses e meio seguintes em um complexo de cabanas úmidas, flagelados pelo calor diurno e por mosquitos vorazes. Ali também foi instalado provisoriamente o quartel-general operacional do Comando Supremo do Exército e das Forças Armadas6. A principal arremetida da ofensiva de verão alemã almejava garantir o Cáucaso, com seus ricos campos de petróleo. A escassez de combustível havia desempenhado papel significativo na derrocada em Moscou no inverno anterior. Com o exagero dramático típico, Hitler advertiu que, se os campos de petróleo do Cáucaso não fossem conquistados em três meses, a Alemanha perderia a guerra. Tendo dividido anteriormente o Grupo de Exércitos do Sul em um setor norte (A) e um setor sul (B), ele então ordenou que o Grupo de Exércitos A liquidasse as forças inimigas em torno de Rostove-na-Donu e a seguir avançasse pelo Cáucaso, conquistando a costa leste do mar Negro e penetrando na Chechênia e em Baku, no Cáspio, duas regiões ricas em petróleo. O Grupo de Exércitos B deveria tomar a cidade de Stalingrado e investir sobre o Cáspio via Astrakhan, na parte inferior do Volga. A repartição do Grupo de Exércitos do Sul e a ordem para o lançamento das duas ofensivas simultaneamente, ao mesmo tempo que enviava várias divisões rumo ao norte para ajudar no ataque a Leningrado, refletiram a contínua subestimação do Exército soviético por Hitler. O chefe do Estado-Maior Geral do Exército, Franz Halder, ficou desesperado, e seu ânimo não melhorou com o desprezo óbvio de Hitler pela liderança do Exército alemão7.

Entretanto, fosse o que fosse que pensassem em particular, os generais não viam alternativa a não ser tocar adiante os planos de Hitler. A campanha começou com uma investida do Grupo de Exércitos A sobre a Crimeia, na qual o marechal de campo Erich von Manstein derrotou 21 divisões do Exército Vermelho, matando ou capturando 200 mil dos 300 mil soldados que enfrentaram suas forças. O comando do Exército Vermelho percebeu tarde demais que os alemães haviam abandonado, pelo menos temporariamente, a ambição de tomar Moscou e estavam concentrando esforços no sul. A principal cidade da Crimeia, Sebastopol, ofereceu rija resistência, mas caiu após um cerco de um mês, com 90 mil soldados do Exército Vermelho tomados como prisioneiros. Entretanto, o conjunto da operação havia custado quase 100 mil baixas ao Exército alemão, e, quando as forças alemãs, húngaras, italianas e romenas deslocaram-se para o sul, encontraram os russos adotando uma nova tática. Em vez de combater em cada centímetro do terreno até serem cercados e destruídos, as tropas russas, com a concordância de Stálin, engajaram-se em uma série de recuos táticos que negaram aos alemães a vasta quantidade de prisioneiros que haviam esperado fazer. Eles pegaram entre 100 mil e 200 mil em três batalhas de larga escala, bem menos que antes. Indômito, o Grupo de Exércitos A ocupou os campos de petróleo de Maykop, apenas para descobrir que as refinarias haviam sido sistematicamente destruídas pelos russos em retirada. Para marcar o sucesso da investida, tropas de montanhismo da Áustria escalaram o monte Elbrus, a 5.630 metros, o ponto mais alto do Cáucaso, e colocaram a bandeira alemã no pico. Em particular, Hitler enfureceu-se com o que viu como uma distração dos verdadeiros objetivos da campanha. “Eu vi Hitler furioso com frequência”, relatou Albert Speer, mais tarde, “mas raras vezes sua raiva eclodiu como no momento em que esse relatório chegou. Ele esbravejou contra ‘esses alpinistas malucos, que mereciam uma corte marcial’. Ficavam tratando de seus passatempos idiotas em meio a uma guerra, exclamou indignado8.” A reação sugere um nervosismo a respeito da investida que se revelaria plenamente justificado.

Ao norte, Leningrado (São Petersburgo) estava sitiada pelas forças alemãs desde 8 de setembro de 1941. Com mais de 3 milhões de pessoas vivendo na cidade e seus arrabaldes, a situação logo ficou extremamente difícil, à medida que os suprimentos minguavam a quase nada. Em breve, os habitantes da cidade passavam fome, comendo gatos, cães, ratos e até uns aos outros. Uma estreita e precária linha de comunicações manteve-se aberta através do gelo do lago Ladoga, mas os russos não conseguiam levar mais do que uma fração do necessário para alimentar a cidade e manter seus habitantes aquecidos. No primeiro inverno do cerco, houve 886 detenções por canibalismo. Foram evacuadas 440 mil pessoas, mas, de acordo com estimativas alemãs, um milhão de civis morreram de frio e fome durante o inverno de 1941-42. A situação da cidade melhorou ao longo de 1942, com todo mundo plantando e estocando vegetais para o inverno seguinte, além da evacuação de mais meio milhão de pessoas e o envio de imensas quantidades de mantimentos e munição pelo lago Ladoga, armazenados para quando o frio começasse. Uma nova tubulação colocada no fundo do lago bombeou óleo para o aquecimento. Cento e sessenta aviões de combate da Força Aérea alemã foram perdidos na vã tentativa de bombardear a linha de comunicação soviética, enquanto bombardeios sobre a cidade causaram estrago generalizado, mas fracassaram em destruí-la ou abater o moral dos cidadãos remanescentes. Por fim, a sorte também chegou em socorro da população de Leningrado: o inverno de 1942-43 foi bem menos severo que o calamitoso predecessor. O gelo chegou tarde, em meados de novembro. Quanto tudo começou a congelar outra vez, a cidade ainda resistiu em desafio ao cerco alemão9.

Mais ao sul, um contra-ataque soviético à cidade de Rjev em agosto de 1942 ameaçava causar grave dano ao Grupo de Exércitos de Centro. Halder pediu a Hitler para permitir uma retirada para uma linha mais facilmente defensável. “Você sempre vem cá com a mesma proposta, a de retirada”, gritou Hitler para seu chefe do Estado-Maior Geral do Exército. Halder carecia da mesma dureza que suas tropas, disse Hitler. Halder perdeu a paciência. “Mas, lá fora, bravos mosqueteiros e tenentes tombam aos milhares e milhares em um sacríficio inútil numa situação irremediável simplesmente porque seus comandantes não têm permissão para tomar a única decisão razoável e têm as mãos atadas às costas10.” Em Rjev, Hans Meier-Welcker notou uma melhora alarmante nas táticas dos soviéticos. Eles agora começavam a coordenar tanques, infantaria e apoio aéreo de uma forma que não haviam logrado antes. As tropas do Exército Vermelho eram muitíssimo mais capazes que as alemãs de encarar condições de tempo extremas, avaliou Meier-Welcker. “Estamos pasmos”, escreveu ele em abril de 1942, “com o que os russos estão conseguindo na lama!11” “Nossas colunas de veículos”, escreveu um oficial, “estão irremediavelmente empacadas no atoleiro de estradas insondáveis, e já está difícil de organizar os próximos abastecimentos12.” Em tais condições, os blindados alemães com frequência eram inúteis. No verão, as tropas tinham de lutar com temperaturas de 40 graus à sombra e com as nuvens maciças de poeira lançadas pelas colunas motorizadas que avançavam. “As estradas”, escreveu o mesmo oficial ao irmão, “estão envoltas em uma espessa nuvem única de pó, através da qual homens e animais abrem caminho. É incômodo para os olhos. A poeira com frequência rodopia em largos pilares que então sopram pelas colunas, tornando impossível ver qualquer coisa durante minutos13.”

Impaciente com tais problemas práticos, ou talvez ignorando-os, Hitler exigiu que seus generais prosseguissem rapidamente com o avanço. “As discussões com o Líder hoje”, registrou Halder em desespero no fim de agosto de 1942, “foram mais uma vez caracterizadas por graves acusações lançadas às lideranças militares do alto escalão do Exército. Elas são acusadas de arrogância intelectual, incorrigibilidade e incapacidade de reconhecer o básico14.” Em 24 de setembro de 1942, Hitler enfim demitiu Halder, dizendo na cara deste que ele havia perdido a fibra. O substituto de Halder foi o major-general Kurt Zeitzler, previamente a cargo das defesas costeiras no oeste. Nacional-socialista convicto, Zeitzler tomou posse exigindo que todos os membros do Estado-Maior Geral do Exército reafirmassem sua crença no Líder, uma crença que Halder evidentemente perdera havia tempos. No fim de 1942, contabilizou-se 1,5 milhão de soldados de várias nacionalidades mortos, feridos, inválidos ou feitos prisioneiros na frente oriental, quase metade da força invasora original. Havia 327 mil alemães mortos15. Era cada vez mais difícil substituir essas perdas. A campanha do leste empacou. Para tentar romper o impasse, o Exército alemão avançou sobre Stalingrado, não só um importante centro industrial e ponto-chave de distribuição de suprimentos do e para o Cáucaso, mas também uma cidade cujo nome concedia-lhe um significado simbólico que durante os meses seguintes viria a adquirir uma importância muito além de qualquer coisa que sua situação pudesse garantir16.

 

 

II

 

O jovem piloto de caça Heinrich Graf von Einsiedel, bisneto do chanceler do Reich Otto von Bismarck por parte de mãe, voava sobre Stalingrado em uma manhã clara e quente de 24 de agosto de 1942 à procura de sinais de atividade inimiga. “Uma leve névoa repousava sobre as estepes”, ele escreveu, “enquanto eu voava alto em círculos no meu Me109. Meus olhos esquadrinharam o horizonte, que se desvanecia em névoas informes. O céu, as estepes, os rios e os lagos, que só podiam ser vistos vagamente à distância, repousavam em paz, elos com a eternidade.” Einsiedel, que acabara de completar 21 anos de idade, compartilhava plenamente a imagem romântica do piloto de caça como um cavaleiro do ar que atraía rapazes aristocratas como ele para esse setor das Forças Armadas. A excitação pelo combate excedia de longe as dúvidas que ele tinha a respeito da justiça da causa. Todavia, seu relato transmitiu também a força pura dos números da Força Aérea russa, contra os quais bravura e habilidade no fim foram inúteis. Quando o inimigo veio na direção deles, escreveu Einsiedel,

 

cada Stuka alemão, cada aeronave de combate foi cercada por enxames de caças russos [...] Lançamo-nos a esmo para dentro do tumulto. Um avião russo cruzou minha rota. O russo me viu, mergulhou e tentou se safar voando baixo. O medo pareceu incapacitá-lo. Ele voou a 3 metros do chão em linha reta e não tentou se defender. Minha máquina vibrou com o coice das armas. Uma raia de chamas disparou do tanque de gasolina do avião russo. Ele explodiu e rolou sobre o solo. Uma tira larga e comprida de estepe chamuscada foi tudo que restou17.

 

Avistando um grupo de caças soviéticos acima, Einsiedel saiu do mergulho e voou na direção deles. “O amor pela perseguição”, ele confessou, “e um senso de indiferença tomaram conta de minhas reações.” Voando em uma curva inclinada fechada, ele foi para trás de um e o abateu. Foi uma ação imprudente. “Ao me virar para procurar os caças russos”, escreveu ele no diário após o incidente, “eu os vi descarregando as armas 70 metros atrás de mim. Houve uma explosão terrível, e senti um golpe forte nos pés. Virei meu Messerschmitt e o forcei ao alto em uma subida íngreme. O russo deixou de me seguir”. Mas o avião de Einsiedel sofreu graves avarias, as armas ficaram fora de ação, e ele teve de se arrastar de volta à base18. Incidentes assim ocorreram todos os dias sobre Stalingrado durante o fim do verão e o outono de 1942, e inevitavelmente tiveram um preço. Os altos oficiais desaprovavam ações individuais espetaculares, que, diziam eles, desperdiçavam combustível. Dali em diante, a unidade de Einsiedel recebeu ordem de apoiar a infantaria alemã e evitar o combate com caças soviéticos. Era uma batalha perdida. “As panes atingiram proporções enormes [...] Um grupo de caças de 42 máquinas raramente tinha mais de dez aeronaves operacionais.” A probabilidade de sucesso era mínima. Em 30 de agosto, um projétil penetrou o refrigerador do motor enquanto Einsiedel voava baixo sobre as linhas russas, e ele colidiu com o solo. Milagrosamente, saiu ileso. Mas tropas soviéticas chegaram rapidamente ao local. E roubaram todos os pertences pessoais de Einsiedel antes de levarem-no para ser interrogado19.

Conforme Einsiedel havia notado, os aviões alemães fracassaram em estabelecer superioridade aérea total na região; tão rápido quanto perdiam aviões para os ases alemães, os soviéticos mandavam substitutos de outras frentes para a zona de combate. Por outro lado, contudo, a Força Aérea soviética tampouco conseguiu o domínio. Ao longo da primavera e do verão de 1942, enquanto os aviões alemães continuavam a disputar o domínio dos céus com pilotos de caça soviéticos, as forças alemãs em terra do Grupo de Exércitos B avançaram firme para a cidade de Stalingrado, portal para a parte inferior do rio Volga e para o mar Cáspio. Até ali, os alemães haviam fracassado tanto em tomar Moscou quanto Leningrado. Portanto, para Hitler em particular, era da maior importância que Stalingrado fosse capturada e destruída. Em 23 de agosto de 1942, uma onda atrás da outra de aviões alemães cobriram a cidade de bombas, causando enormes estragos e perdas de vidas. Ao mesmo tempo, os tanques alemães avançaram praticamente sem oposição, chegando ao Volga pelo norte. Enquanto o bombardeio continuava, Stálin autorizou o início da evacuação de civis da cidade, que desmoronava rapidamente em ruínas inabitáveis. Em 12 de setembro de 1942, tropas alemãs do VI Exército, do general Friedrich Paulus, apoiadas pelo IV Exército Panzer, do general Hermann Hoth, entraram em Stalingrado. Parecia que a cidade cairia em uma questão de semanas. Mas o comandante alemão era em alguns aspectos menos do que o ideal para a tarefa de tomar a cidade. Paulus havia sido subchefe do Estado-Maior Geral do Exército antes de receber o comando no início do ano. Nascido em 1890, havia passado quase toda a carreira, inclusive os anos da Primeira Guerra Mundial, em cargos de gabinete, e quase não tinha experiência em combate. Nessa situação, ele dependia pesadamente de Hitler, cujos feitos como comandante inspiravam-lhe grande reverência. Em 12 de setembro, enquanto suas tropas entravam na cidade, Paulus estava confereciando com o Líder em Vinnitsa. Os dois homens concordaram em que a captura de Stalingrado daria às forças alemãs o domínio de toda a linha ao longo dos rios Don e Volga. O Exército Vermelho não tinha mais recursos, entraria em colapso, deixando os alemães livres para dedicar esforços a acelerar a investida para o Cáucaso. A cidade, Paulus garantiu ao Líder, estaria em mãos alemãs dentro de poucas semanas20. Depois disso, Hitler já havia decidido, toda a população masculina adulta da cidade seria morta, e as mulheres e crianças seriam deportadas21.

Em 30 de setembro de 1942, os homens de Paulus haviam se espalhado por dois terços da cidade, incitando Hitler a anunciar publicamente que Stalingrado estava prestes a cair. O discurso de Hitler fortaleceu em muito a fé das tropas na vitória definitiva. “O magnífico discurso do Líder”, relatou Albert Neuhaus do front de Stalingrado para a esposa em 3 de outubro de 1942, “apenas fortaleceu nossa crença nisso em mais 100%22.” Mas discursos não sobrepujariam a resistência soviética, fosse qual fosse seu efeito sobre o moral. Generais seniores, inclusive Paulus e seu superior, Weichs, e o sucessor de Halder, Zeitzler, aconselharam Hitler a ordenar uma retirada, temendo as perdas em que incorreriam em um longo período de combate casa a casa. Mas para Hitler a importância simbólica de Stalingrado agora excedia de longe quaisquer considerações práticas. Em 6 de outubro de 1942, ele reafirmou que a cidade devia ser tomada23. Considerações semelhantes governavam o outro lado. Após um ano de derrotas quase contínuas, Stálin havia decidido lançar tantos recursos quanto possíveis na defesa do que sobrava. A cidade trazia seu nome, e seria um grande golpe psicológico se ela caísse. Ao mesmo tempo, sentindo-se arrasado pelas derrotas dos meses anteriores, ele decidiu dar carta branca ao chefe do Estado-Maior Geral, general Aleksandr Vasilevskii, e Georgi Jukov, o general que havia detido as forças alemãs diante de Moscou um ano antes, para organizarem o conjunto da campanha no sul. Stálin deu o comando das forças do Exército Vermelho na cidade em si ao general Vasili Chuikov, um enérgico soldado profissional com 40 e poucos anos de idade. Chuikov tivera uma carreira acidentada, sendo enviado em desgraça para a China como adido militar soviético em decorrência da derrota de seu IX Exército pelos finlandeses na Guerra de Inverno em 1940. Stalingrado, onde ele fora encarregado do LXII Exército, era sua chance de se colocar à prova. Chuikov entendeu que precisava “defender a cidade ou morrer na tentativa”, conforme disse ao chefe político regional, Nikita Khrushchev. Ele estacionou unidades armadas da polícia política soviética em cada vau do rio para interceptar desertores e executá-los na hora. Recuar era impensável24.

A aviação e a artilharia alemãs continuaram a atacar a zona de ocupação soviética de Stalingrado, mas as ruínas bombardeadas da cidade propiciaram condições ideais de defesa às tropas soviéticas. Escavando por detrás de montes de escombros, vivendo em porões e posicionando atiradores de elite nos pisos superiores de blocos de apartamento semidemolidos, os soviéticos conseguiam emboscar as tropas de avanço alemãs, romper seus assaltos maciços ou canalizar o avanço inimigo para avenidas onde este podia ser liquidado por armas antitanques e armamento pesado escondidos. Os soviéticos colocaram milhares de minas sob o manto da escuridão, bombardeavam posições alemãs à noite e montaram armadilhas explosivas para matar soldados alemães quando estes entrassem nas casas. Chuikov formou esquadrões de metralhadoras e arranjou o envio de suprimentos de granadas de mão para dentro da cidade25. Com frequência, o combate era corpo a corpo, com o uso de baionetas e adagas. A luta tornou-se rapidamente uma batalha de desgaste. O combate constante e ininterrupto cobrou seu preço, e muitos soldados adoeceram. Suas cartas para casa ficam cheias de amarga decepção ao serem informados de que terão de passar o segundo Natal consecutivo em campo. A despeito do perigo de serem descobertos pelo censor militar, muitos eram bastante francos: “Só me resta um único grande desejo”, escreveu um deles em 4 de dezembro de 1942, “e é que essa merda chegue ao fim [...] Estamos todos muito deprimidos26”. Todavia, seria pela retaguarda das forças de Paulus, e não na cidade em si, que viria a brecha soviética. Jukov e Vasilevskii persuadiram Stálin a trazer e treinar grande quantidade de tropas novas, inteiramente equipadas com tanques e artilharia, para tentar montar uma enorme operação de envolvimento. A União Soviética já estava produzindo mais de 2 mil tanques por mês contra os 500 da Alemanha. Em outubro, o Exército Vermelho havia criado cinco novos exércitos de tanques e 15 corpos de tanques para a operação. Mais de um milhão de homens estavam reunidos de prontidão para um assalto maciço às linhas de Paulus no início de novembro de 194227.

Jukov e Vasilevskii viram sua chance quando o superior de Paulus, general Maximiliam von Weichs, no comando do Grupo de Exércitos B, decidiu ajudar Paulus a concentrar forças na tomada da cidade. Tropas romenas assumiriam cerca de metade das posições alemãs a oeste de Stalingrado, liberando as forças alemãs para o assalto à cidade. Weichs pensava nelas como algo mais que uma retaguarda. Mas Jukov sabia que os romenos tinham um fraco antecedente militar, assim como os italianos, que estavam estacionados junto deles no noroeste. Jukov deslocou dois corpos blindados e quatro exércitos de campo para confrontar os romenos e italianos a noroeste das forças blindadas de Hoth, e outros dois corpos de tanques para encarar os romenos a sudeste, do outro lado dos blindados alemães. Foi mantido um rigoroso segredo, o tráfego de rádio foi reduzido ao mínimo, tropas e blindados deslocaram-se à noite e camuflados durante o dia. Paulus deixou de fortalecer suas defesas, preferindo manter os tanques perto da cidade, onde eram de pouca serventia. Em 19 de novembro de 1942, com os preparativos enfim concluídos e as condições climáticas favoráveis, as novas forças soviéticas atacaram em um ponto fraco das linhas romenas a quase 160 quilômetros a oeste da cidade. Em meio à névoa do amanhecer, 3,5 mil armas e morteiros pesados fizeram fogo, abrindo um caminho para os tanques e a infantaria. Os exércitos romenos estavam despreparados, carecendo de armas antitanque, e ficaram perdidos. Depois de oferecer um combate inicial, começaram a fugir em pânico e confusão. Paulus reagiu devagar demais e, quando enfim mandou tanques para tentar segurar as linhas romenas, era tarde. Eles não foram páreo para as colunas maciças de tanques T-34 que agora jorravam pela lacuna28.

Em breve, o veloz avanço soviético estava empurrando igualmente as linhas alemãs, impelindo os homens de Paulus para trás, na direção da cidade. Nenhum dos generais alemães havia cogitado um ataque soviético de tamanho vigor, e só depois de um tempo é que perceberam que o que estava em andamento era uma manobra clássica de envolvimento. Assim, não trataram de movimentar as tropas para impedir que as arremetidas de tanques soviéticos se encontrassem umas com as outras. Em 23 de novembro de 1942, as duas colunas de tanques encontraram-se em Kalach, interceptando por completo Paulus e suas forças pela retaguarda e deixando os blindados de Hoth abandonados do lado de fora da área envolvida. Com 20 divisões, seis delas motorizadas, e quase 250 mil homens no total, o primeiro pensamento de Paulus foi tentar irromper pelo oeste. Mas ele não tinha um plano definido e hesitou mais uma vez. A ideia de uma ruptura teria significado uma retirada, abandonando a muito alardeada tentativa de capturar Stalingrado, e Hitler não estava disposto a sancionar um recuo porque já havia anunciado em público que Stalingrado seria tomada29. Speer relatou que em novembro de 1942, no Berghof, Hitler reclamou privadamente de que os generais haviam superestimado consistentemente a força dos russos, que ele achava que estavam esgotando suas últimas reservas e em breve seriam subjugados30. Agindo conforme essa crença, Hitler organizou uma força de socorro sob o comando do marechal de campo Von Manstein e do general Hoth. A crença de Manstein em que teria êxito em romper o envolvimento reforçou a recusa de Hitler a permitir que Paulus recuasse. Em 28 de novembro, Manstein enviou um telegrama às forças sitiadas: “Aguentem firme – Estou indo arrancar vocês daí – Manstein”. “Isso causou uma impressão em nós!”, exclamou um tenente alemão no bolsão de Stalingrado. “Isso vale mais que um carregamento de munição e um Ju[nkers] cheio de gêneros alimentícios!31

 

 

III

 

As forças de Manstein, duas divisões de infantaria, junto com três divisões panzer, todas sob o comando de Hoth, avançaram sobre o Exército Vermelho a partir do sul em 12 de dezembro de 1942. Em reação, Jukov atacou o VIII Exército italiano a noroeste, devastando-o e dirigindo-se ao sul para interceptar as forças de Manstein pela retaguarda. Em 19 de dezembro de 1942, os blindados de socorro alemães estavam imobilizados a 56 quilômetros das linhas de retaguarda de Paulus. Nove dias depois, estavam praticamente cercados, e Manstein foi forçado a permitir que Hoth recuasse. A operação de socorro havia fracassado. Nada restava a Paulus a não ser tentar uma brecha, conforme Manstein disse a Hitler em 23 de dezembro. Mas a impressão que isso causava era de desistência da operação de tomada da cidade, de modo que Hitler disse não mais uma vez. Mas Paulus disse a ele que o VI Exército só dispunha de combustível para seus blindados e veículos de transporte avançarem 20 quilômetros antes de acabar. Göring havia prometido mandar para o bolsão 300 toneladas de suprimentos por avião todos os dias para manter os homens de Paulus, mas na prática havia conseguido enviar pouco mais de 90, e mesmo a intervenção pessoal de Hitler não conseguiu elevá-los para qualquer coisa acima de 120, e isso apenas durante cerca de três semanas. Os aviões tinham dificuldade em pousar e decolar na neve pesada, e os campos de aviação estavam sob ataque constante dos russos32. Os suprimentos estavam escasseando, e a situação dos soldados alemães na cidade era cada vez mais desesperadora. Àquela altura, eles pouco faziam além de tentar se manter vivos. A maioria vivia em porões, ou bunkers subterrâneos, ou trincheiras individuais a céu aberto, que tentavam forrar e cobrir com tijolos e madeira o melhor que podiam. Com frequência, eles as mobiliavam e decoravam na tentativa de recriar um ambiente caseiro. Conforme um soldado relatou à esposa em 20 de dezembro de 1942:

 

Estamos acocorados aqui, 15 homens em um bunker, isto é, um buraco no chão mais ou menos do tamanho da cozinha em Widdershausen [sua casa na Alemanha], cada um com seu equipamento. Você pode muito bem imaginar por si o apinhamento terrível. Agora a situação é a seguinte. Um homem está se lavando (na medida em que haja água), um está catando seus piolhos, outro está comendo e um está fazendo uma fritada, um dorme etc. O ambiente aqui é mais ou menos esse33.

 

Em buracos subterrâneos desse tipo, os alemães aguardavam os ataques soviéticos regulares, conservando munição e mantimentos o máximo que podiam34.

15EasternFrontStalingrad.jpg

Mapa 15. O front oriental, 1942

Quando a temporada das festas chegou, o exército de Paulus estava efetivamente condenado. O Natal propiciou a oportunidade para uma enorme avalanche de emoção nas cartas dos soldados para casa, à medida que eles traçavam o contraste entre sua situação desesperadora e a paz e o sossego que haviam conhecido em seu círculo familiar no passado. Eles acenderam velas e usaram galhos quebrados para fazer ávores de Natal. A carta de um jovem oficial para sua mãe em 27 de dezembro de 1942 é típica:

 

A despeito de tudo, a arvorezinha tem tanto da magia do Natal e do ambiente caseiro que de início eu não pude aguentar a visão das velas acesas. Fiquei realmente comovido, de tal maneira que vim abaixo e tive de dar as costas por um minuto antes de conseguir sentar com os outros e cantar músicas natalinas diante da vista maravilhosa da árvore iluminada com velas35.

 

Os soldados reconfortavam-se com transmissões de rádio de casa, especialmente quando tocavam canções sentimentais, que às vezes eles sabiam de memória e cantavam. “Há uma canção que cantamos com frequência aqui”, um soldado escreveu para a família em 17 de dezembro de 1942. “O refrão diz: ‘Logo tudo estará acabado/ um dia vai acabar/ depois de cada dezembro vem maio’ etc.36” Escrever cartas para casa era uma forma de manter vivas as emoções humanas; o pensamento de voltar para a Alemanha e para a família mantinha o desespero sob controle. Quase 3 milhões de cartas saíram do exército envolvido rumo à Alemanha durante os meses do conflito, ou foram encontradas, não postadas, com os soldados mortos em ação ou levados para o cativeiro37.

Os soldados não morreram congelados como no inverno anterior. “A propósito”, escreveu Hans Michel de Stalingrado em 5 de novembro de 1942, “estamos bem abastecidos de coisas de inverno; também me apoderei de um par de meias, de um belo cachecol de lã, de um segundo pulôver, de uma pele, de roupa de baixo quente etc. Tudo isso é da coleção de inverno. Dá vontade de rir quando você encontra um homem usando um blusão feminino ou coisa parecida.” Os que ficavam de guarda, além disso, eram supridos com botas de feltro e casacos de pele. Os veteranos da campanha de Moscou também notaram que de início o inverno foi muito mais ameno em 1942-43 que no ano anterior38. Mas o calor gerado pelas camadas de roupas eram um campo de cultura ideal para os piolhos. “Seu pulôver vermelho”, escreveu um soldado para a esposa em 5 de novembro de 1942, “é uma perfeita armadilha para piolhos; já catei alguns nele (desculpe a digressão, mas um acaba de me picar agora).” Outro escreveu que, embora ele não fosse o mais infestado, “já esmaguei alguns milhares”. Alguns tentavam não dar bola para o problema em cartas para casa (“na verdade, pode-se dizer que todo mundo tem seu próprio zoo”, gracejou um), mas a longo prazo a irritação e o desconforto físicos que causavam somavam-se à crescente desmoralização das tropas alemãs. “Eles conseguem deixá-lo louco”, escreveu um soldado de infantaria em 28 de dezembro de 1942. “Não dá mais para dormir direito [...] Com o tempo você fica cheio de nojo de si mesmo. Você não tem nenhuma oportunidade de se lavar direito e trocar a roupa íntima.” “Os malditos piolhos”, reclamou outro em 2 de janeiro de 1943, “comem você inteiro. O corpo é totalmente consumido39.”

Bem pior, porém, era a escassez cada vez mais grave de comida, que enfraquecia a resistência dos homens ao frio, por mais agasalhados que estivessem. “Estamos nos alimentando basicamente com carne de cavalo”, escreveu um soldado alemão em 31 de dezembro de 1942, “e eu mesmo comi carne de cavalo crua, de tão faminto que estava40.” Todos os cavalos foram comidos em poucos dias, relatou o oficial do Estado-Maior Helmuth Groscurth em 14 de janeiro de 1943, acrescentando com amargura: “No décimo ano de nossa gloriosa era estamos diante de uma das maiores catástrofes da história41”. “Embora eu esteja exausto”, escreveu outro soldado no mesmo dia, “não consigo dormir à noite, mas sonho de olhos abertos o tempo todo com bolos, bolos, bolos. Às vezes rezo, e às vezes me amaldiçoo. Em todo caso, nada tem sentido ou significado42.” “Peso apenas 42 quilos. Nada mais que pele e osso, um morto vivo”, escreveu outro em 10 de janeiro de 194343. A essa altura, o tempo havia se deteriorado agudamente, e os soldados enfraquecidos não tinham condições de resistir ao frio. Lutar em tais circunstâncias era praticamente impossível, e os soldados ficavam cada vez mais deprimidos. “Já não passamos de uns cacos. Estamos todos completamente desesperados44.” “O corpo vai perdendo gradativamente a capacidade de resistência”, foi a observação em outra carta, escrita em 15 de janeiro de 1943, “porque não consegue aguentar muito tempo sem gordura ou comida adequada. Isso já dura oito semanas, e nossa situação, ou triste apuro, ainda não mudou. Em momento algum de minha vida até hoje o destino havia sido tão duro, nem a fome jamais havia me atormentado tanto quanto agora45.” Um jovem soldado relatou que sua companhia havia recebido apenas um pão para seis homens, para durar três dias. “Querida mamãe [...] não consigo mais mover as pernas, e acontece o mesmo com outros, por causa da fome; um de nossos companheiros morreu, ele não tinha mais nada no corpo e saiu em uma marcha, e sofreu um colapso de fome no caminho e morreu de frio, o frio foi a gota d’água para ele46.” Em 28 de janeiro de 1943, foi emitida a ordem de que doentes e feridos deveriam ser deixados a morrer de fome. Com efeito, as tropas alemãs estavam padecendo do mesmo destino que Hitler havia planejado para os eslavos47.

Agora, até a fé em Hitler começava a desvanecer-se. “Nenhum de nós ainda está abandonando a crença ou a esperança”, escreveu o conde Heino Vitztbum, um oficial aristocrata, em 20 de janeiro de 1943, “de que o Líder achará um jeito de preservar os muitos milhares que aqui estão, mas infelizmente já ficamos amargamente decepcionados muitas vezes48.” Não só a comida estava acabando, mas a munição também. “Os russos”, queixou--se um soldado em 17 de janeiro de 1943, “fabricaram armas adequadas para o inverno; pode-se ver o que quiser: artilharia, lança-granadas, lança--foguetes e aviões. Eles atacam sem parar dia e noite, e nós temos de poupar cada tiro porque a situação não nos permite. Como queríamos poder abrir fogo de forma adequada outra vez49.” Os homens começavam a se perguntar se não seria melhor ser levado como prisioneiro do que continuar a luta inútil, embora, conforme um deles observou em 20 de janeiro de 1943, não seria tão ruim “se fossem franceses, americanos, ingleses, mas com os russos realmente não dá para saber se não seria melhor você se matar”. “Se der tudo errado, meu amor”, escreveu um outro para a esposa, “não espere que eu seja feito prisioneiro.” Como outros, ele começou a usar suas cartas para dizer adeus aos entes queridos50. Uma quantidade suficiente de cartas desse tipo foi aberta pelo Serviço de Segurança da SS para proporcionar um quadro realista de seu efeito sobre o moral na Alemanha. Já em meados de janeiro, os relatórios confidenciais do Serviço de Segurança da SS sobre o moral na frente doméstica notavam que o povo não acreditava na propaganda divulgada a partir de Berlim. As cartas postadas do front eram vistas como a única fonte de informação confiável. “Se a situação no leste atualmente é vista com uma preocupação desproporcionadamente maior do que semanas atrás por grandes camadas da população, isso se explica pelo fato de que a maioria esmagadora das cartas postadas do front que estão chegando agora soam muito sérias e em certa medida extremamente soturnas51.”

A essa altura, o marechal Konstantin Rokossovskii, oficial experimentado que sofrera expurgo e fora aprisionado por Stálin na década de 1930, mas reintegrado em 1940, tendo recebido o comando das tropas do Exército Vermelho a oeste de Stalingrado, começara a avançar pelo bolsão de oeste para leste, capturando o último campo de aviação em 16 de janeiro de 1942. Bombardeio aéreo, fogo de artilharia e tanques, apoiados por infantaria maciça, esmagaram as enfraquecidas defesas alemãs. No setor sul, as tropas romenas simplesmente fugiram, deixando um enorme buraco na linha defensiva, através do qual o Exército Vermelho despejou seus tanques T-34. O tempo virou e esfriou, muitos soldados alemães colapsaram de exaustão e morreram congelados no terreno ao bater em retirada. Outros puxavam os feridos em trenós, percorrendo estradas com gelo e atravancadas de equipamento militar abandonado ou destroçado. As forças alemãs ofereceram combate em alguns poucos setores, mas logo foram empurradas para as ruínas da cidade, onde 20 mil feridos foram apinhados em hospitais subterrâneos improvisados e porões pelos quais entrava-se passando por pilhas de cadáveres congelados. Ataduras e medicamentos acabaram, e não havia chance de livrar os pacientes dos piolhos que rastejavam por cima deles. Mesmo aqueles que não estavam hospitalizados estavam doentes, esfomeados, com gangrenas causadas pelo frio e exaustos52.

Oito dias antes, o Alto Comando soviético fizera a Paulus uma oferta de rendição honrosa. Até ali 100 mil soldados alemães haviam sido mortos em batalha. A situação do resto ficara claramente irremediável desde o fracasso da tentativa de ajuda de Manstein. Oficiais de alta patente estavam começando a se render ao inimigo. Mas Hitler mais uma vez mandou Paulus seguir em combate. O general ordenou que no futuro todas as aproximações soviéticas deveriam ser recebidas à bala. Ainda assim, em 22 de janeiro de 1943, Paulus sugeriu que a rendição era a única maneira de salvar o que restava das tropas. Hitler mais uma vez rejeitou seu pedido. Enquanto isso, o avanço de Rokossovskii ia adiante, dividindo o bolsão em dois e empurrando os 100 mil soldados alemães restantes para duas pequenas áreas da cidade53. A máquina de propaganda de Goebbels agora abandonava a conversa anterior de vitória. Cada vez mais, as histórias de jornal e cinejornal enfatizavam o heroísmo dos soldados envolvidos, uma lição para todos sobre a glória de continuar lutando sem jamais desistir, mesmo quando a situação parecia sem esperança. O telegrama enviado por Paulus na noite anterior ao décimo aniversário da nomeação de Hitler como chanceler do Reich em 30 de janeiro de 1933 veio a calhar para a propaganda: “No aniversário de sua tomada do poder, o VI Exército saúda o Líder. A bandeira da suástica ainda tremula sobre Stalingrado. Possa nossa luta ser um exemplo para as gerações presentes e futuras de que jamais devemos capitular, mesmo quando perdemos a esperança. Então a Alemanha vencerá. Salve, meu Líder. Paulus, coronel-general54”. No mesmo dia, Hermann Göring proferiu um discurso, transmitido por rádio, no qual comparou o VI Exército aos espartanos que morreram defendendo o desfiladeiro das Termópilas contra as hordas invasoras persas. Essa, disse ele, “permanecerá como a maior luta heroica em nossa história”. Não escapou à atenção de muitos soldados agachados ao redor dos rádios nos bunkers espalhados por Stalingrado e arredores que todos os espartanos das Termópilas haviam sido mortos. Para sublinhar a mensagem, Hitler promoveu Paulus a marechal de campo em 30 de janeiro de 1943, uma medida projetada – e entendida claramente pelo agraciado – como um convite para cometer suicídio55.

Mas, no derradeiro fim, Paulus voltou-se contra o mestre. Em 31 de janeiro de 1943, em vez de cometer suicídio, rendeu-se, junto com todas as tropas restantes na parte de Stalingrado que ele ainda ocupava. Rokossovskii chegou para aceitar a rendição formal acompanhado de um fotógrafo e um intérprete, policiais secretos, oficiais do Exército e do marechal Voronov, do Estado-Maior Geral Supremo soviético. O cabelo escuro e a barba incipiente de Paulus haviam começado a ficar brancos sob a tensão dos meses anteriores, e ele havia desenvolvido um tique nos músculos da face. Os generais soviéticos pediram-lhe para ordenar a todas as tropas restantes que se entregassem, para evitar mais derramamento de sangue. Em um resquício de deferência a Hitler, Paulus recusou-se a mandar o outro bolsão de resistência cessar fogo. Os remanescentes de seis divisões ficaram encalacrados ali; Hitler ordenou que lutassem até o fim. Mas os russos bombarderam sem piedade, e eles renderam-se em 2 de fevereiro de 1943. No total, cerca de 235 mil soldados alemães e aliados de todas as unidades, incluindo a malfadada força de socorro de Manstein, foram capturados durante a batalha; mais de 200 mil haviam sido mortos. Vestidos em andrajos, imundos, barbudos, infestados de piolhos e com frequência mal conseguindo andar, os 91 mil soldados alemães e aliados deixados em Stalingrado foram enfileirados e levados em marcha para o cativeiro. Já fracos, famintos e enfermos, desmoralizados e deprimidos, eles morreram aos milhares a caminho dos campos de prisioneiros. Os russos não estavam preparados para números tão grandes de prisioneiros, o abastecimento de comida era inadequado e mais de 55 mil prisioneiros estavam mortos até metade de abril de 1943. Entre eles Helmuth Groscurth, cujos diários de 1939--40 deram a historiadores posteriores dados importantes sobre o desenrolar inicial da resistência militar-conservadora a Hitler; capturado no bolsão que se rendeu em 2 de fevereiro de 1943, ele sucumbiu ao tifo e morreu em 7 de abril de 1943. No total, menos de 6 mil dos homens feitos prisioneiros em Stalingrado conseguiram voltar para a Alemanha56.

 

 

IV

 

Era impossível dar uma explicação para uma derrota daquelas dimensões. A retirada de Moscou no inverno anterior pôde ser apresentada como uma medida temporária, um recuo tático que seria reparado mais adiante. Mas era quase impossível adotar essa posição no caso de Stalingrado. O envolvimento e a destruição totais de todo um exército alemão não podia ser dissimulado. Privadamente, Hitler zangou-se com a fraqueza das tropas romenas e italianas, mas acima de tudo ficou furioso com o que viu como covardia de Paulus e seus altos oficiais, que preferiram perder a honra ao se render do que salvá-la suicidando-se. O pior estava por vir, pois, quase imediatamente após a invasão, os russos deram início a tentativas de “reeducar” prisioneiros de guerra alemães como “antifascistas”, começando com os suboficiais e depois passando para os oficiais. Uma mistura criteriosa de morde e assopra conquistou um número crescente de prisioneiros para a causa, sendo que a maioria a aceitou porque era a coisa mais fácil de fazer. Entre eles, um pequeno número de nacionalistas alemães convictos foi persuadido de que Hitler estava destruindo a Alemanha e que se juntar ao inimigo era o jeito mais rápido de salvar o país. Uns poucos oportunistas, muitos deles ex-nazistas, eram especialmente loquazes no apoio ao “antifascismo”. Em julho de 1942, a polícia secreta soviética havia obtido sucesso suficiente para começar a montar uma organização de prisioneiros convertidos, transformando-a no ano seguinte no Comitê Nacional Alemanha Livre. O jovem piloto Friedrich von Einsiedel tornou-se uma das figuras de liderança, gravitando rumo à ala comunista da organização junto com uns poucos outros que nutriam sérias dúvidas quanto à causa nazista antes mesmo de serem feitos prisioneiros. Entretanto, a adesão mais espetacular ao Comitê Nacional foi a do marechal de campo Friedrich von Paulus, persuadido pelos russos a fazer uma série de transmissões de propaganda para a Alemanha em favor deles. As transmissões provavelmente tiveram pouco efeito, mas o simples fato de Paulus estar fazendo-as era um profundo constrangimento para a liderança nazista, e proporcionou mais uma prova para Hitler – se é que ele precisava de alguma – de que a liderança do Exército não era de confiança57.

Goebbels já havia começado a preparar o povo alemão para as más notícias antes mesmo da rendição final em Stalingrado. De todos os meios de comunicação coordenados jorraram os elementos de um novo mito: “Eles morreram para que a Alemanha pudesse viver”, conforme afirmou o Observador Racial em 4 de fevereiro de 1943. O autossacrifício das tropas seria um modelo para todos os alemães no futuro. O que exatamente o sacrífico havia alcançado, porém, era difícil dizer. A jovem estudante Lore Walb, por exemplo, aceitou a imagem da propaganda oficial de “heroísmo” das tropas em Stalingrado e a necessidade de “aguentar firme”. Mas isso não a impediu de anotar em 3 de fevereiro de 1943: “Hoje é o dia mais negro para a Alemanha na história de nossa guerra58”. E muita gente escarneceu da retórica divulgada pelo Ministério da Propaganda59. O Serviço de Segurança da SS relatou uma “sensação geral de choque profundo” entre os alemães em casa. As pessoas falavam sobre as enormes perdas e discutiam se a ameaça soviética ao VI Exército fora reconhecida cedo o bastante:

 

Acima de tudo, o povo está dizendo que a força do inimigo deve ter sido subestimada, do contrário não se teria corrido o risco de continuar a ocupação de Stalingrado mesmo depois de a cidade estar cercada. Os compatriotas não conseguem entender como não foi possível socorrer Stalingrado, e alguns não estão exatamente informados o bastante sobre todo o desenrolar dos acontecimentos no setor sul da frente oriental para ter o entendimento correto sobre o significado estratégico dessas batalhas [...] Há uma convicção geral de que Stalingrado significa um momento decisivo da guerra60.

 

O relatório foi forçado a admitir que algumas pessoas de fato viram em Stalingrado “o começo do fim”, e dizia-se que nos gabinetes de governo de Berlim havia “em certa medida uma nítida atmosfera de desespero iminente61”.

Diz-se que, na Francônia, as pessoas estavam dirigindo “as mais graves críticas à liderança do Exército” e perguntando por que o VI Exército não havia recuado enquanto ainda havia uma chance. Além disso, “as pessoas estão dizendo com base nas cartas [do front] que muitos soldados morreram simplesmente de exaustão, e que outros apresentam um aspecto irreconhecível de tanto peso que perderam. Circulam rumores”, concluiu o relatório, “que de fato deprimem o moral da população muito profundamente62”. Relatórios de outras regiões sugeriram um “estado de espírito visivelmente grave, se não desesperado”, como resultado da derrota63. No distrito rural de Ebermannstadt, na Bavária, onde muita gente tinha filhos, irmãos ou marido no VI Exército, foi dito que a desaprovação era de “um grau muito duro e forte, ainda que as pessoas sejam cuidadosas na escolha das palavras, de modo a não se tornar passíveis de processo criminal”. Assim, as pessoas estavam criticando Hitler sem realmente citá-lo, embora a implicação do que dissessem fosse clara: ele não descansaria enquanto tudo não estivesse destruído, ele havia superestimado a força da Alemanha, ele devia ter tentado fazer a paz64. Pela primeira vez, conforme o diplomata descontente Ulrich von Hassell anotou em seu diário em 14 de fevereiro de 1943, os “rumores críticos” eram dirigidos ao próprio Hitler65. As pessoas perguntavam por que ele não havia salvado a vida dos homens restantes do VI Exército, mandando-os capitular66. Os poucos judeus perseguidos e arrasados que restavam na Alemanha extraíram esperança da derrota. Em 5 de fevereiro de 1943, Victor Klemperer ficou sabendo que “dizem que a derrocada na Rússia é real e decisiva”. O choque público foi tão grande, disse-lhe um conhecido não judeu, que havia toda a possibilidade de um levante interno contra os nazistas67.

A crise no moral provocada pela derrota em Stalingrado não acabou logo. “O ânimo popular não está mais bom”, registrou um oficial local da Bavária em 19 de março de 1943. “A palavra Stalingrado ainda está no primeiro plano68.” Outros relatórios observaram que “muitos agora estão condenando a guerra”. Muitos queriam que ela chegasse ao fim e opinavam que ingleses e americanos não deixariam os russos tomarem a Alemanha; mesmo que deixassem, apenas os homens do Partido sofreriam69. Em meados de abril, o Serviço de Segurança da SS registrava que as pessoas exigiam ver Hitler mais vezes. “Uma imagem do Líder a partir da qual as pessoas pudessem certificar-se de que ele não ficou com os cabelos completamente brancos – conforme afirma um boato – teria um efeito mais positivo sobre a atitude dos compatriotas do que muitos lemas agressivos70.” O carisma de Hitler começava a se desvanecer. Funcionários regionais do Partido relataram que começavam a circular piadas sobre ele. “Qual é a diferença entre o sol e Hitler?”, perguntava uma, e a resposta era: “O sol nasce no leste, Hitler se põe no leste71”.

Em julho de 1943, o Serviço de Segurança da SS notava que “os mais disparatados e mal-intencionados boatos sobre os homens da liderança do Partido ou do Estado estão circulando muito depressa e podem durar semanas e meses72. Assim, por exemplo, dizia-se muito erroneamente que Baldur von Schirach havia fugido com a família para a Suíça. Pior ainda:

 

Contar piadas maldosas e nocivas sobre o Estado, piadas até mesmo sobre a pessoa do Líder, tornou-se cada vez mais comum desde Stalingrado. Quando os compatriotas conversam em estabelecimentos públicos, lojas ou outrais locais onde se encontram, eles contam uns aos outros as “últimas” piadas políticas, e ao contá-las com frequência não fazem distinção entre aquelas de conteúdo relativamente inofensivo e aquelas de nítida oposição. Mesmo compatriotas que mal se conhecem estão trocando piadas políticas. Evidentemente, estão presumindo que qualquer um pode contar qualquer piada hoje em dia sem ter de levar em conta ser mal recebido, que dirá denunciado à polícia73.

 

De modo semelhante, prosseguiu o relatório, as pessoas agora criticavam o regime abertamente, declarando que era ineficiente, mal organizado e corrupto. Estava claro também “que escutar rádios estrangeiras havia se tornado muito mais comum nos últimos meses”. O Serviço de Segurança da SS encontrou nesse fato uma explicação para o pessimismo disseminado que as pessoas mostravam sobre o desfecho da guerra. Como um claro sinal simbólico da distância crescente entre o povo e o regime, “o uso da saudação alemã, conforme lojistas e funcionários que lidam com o público estão relatando, declinou de modo impressionante nos últimos meses. Também deve ser confirmado que muitos membros do Partido não usam mais o distintivo partidário74.

 

 

V

 

O ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, estava agudamente ciente da necessidade de se fazer algo dramático para levantar o moral e reverter a situação. Ele sabia, como todo o resto da liderança nazista, que o fator decisivo subjacente na curva descendente dos sucessos militares e navais da Alemanha era o fracasso da economia em produzir equipamento suficiente, tanques suficientes, armas suficientes, aviões suficientes, submarinos suficientes, munição suficiente. Antes mesmo de a plena extensão da catástrofe de Stalingrado ficar clara, ele estava começando a declarar que “apenas um processo civil mais radical da guerra nos colocará em posição de conquistar vitórias militares. Todos os dias fornecem provas adicionais”, disse ele em sua reunião ministerial de 4 de janeiro de 1943, “de que somos confrontados no leste por um oponente brutal que só pode ser derrotado pelos métodos mais brutais. A fim de atingir isso, faz-se necessário o comprometimento total de todos os nossos recursos e reservas75”. Goebbels agora pressionava Hitler repetidamente para que declarasse “guerra total”, incluindo a mobilização das mulheres para o trabalho, o fechamento das “lojas de luxo” e dos “cafés luxuosos” e muito mais. Insatisfeito com o lento progresso obtido após a decisão inicial de Hitler de apoiar a ideia, ele decidiu elevar a pressão com uma grande manifestação pública.

Em 18 de fevereiro de 1943, Goebbels proferiu um importante discurso em transmissão nacional no Palácio de Esportes de Berlim diante de uma plateia escolhida a dedo de 14 mil fanáticos nazistas representando, conforme ele disse, “um apanhado do conjunto da nação alemã no front e em casa. Estou certo? [gritos estridentes de “sim!”. Aplauso demorado] Mas os judeus não estão representados aqui! [Aplauso ensandecido, gritos]76”. Depois de expor as medidas tomadas contra luxos e divertimentos, ele declarou que os alemães agora queriam “um estilo de vida espartano para todos”, de fato, o tipo de vida levado pelo próprio Líder. Todo mundo tinha de redobrar esforços para se alcançar a vitória. No clímax do discurso, ele apresentou uma série de dez perguntas retóricas para a plateia, àquela altura inteiramente atiçada, entre as quais estavam as seguintes:

 

Vocês e o povo alemão estão determinados, caso o Líder ordene, a trabalhar dez, 12 e, se necessário, 14 e 16 horas por dia e dar o máximo pela vitória? [Gritos estridentes de “sim!” e aplauso demorado] [...] Eu pergunto: vocês querem guerra total? [Berros estridentes de “sim!”. Aplauso ruidoso] Vocês querem, se necessário, uma guerra mais total e mais radical do que podemos imaginar hoje? [Gritos estridentes de “sim!”. Aplauso]

 

Juntando a ideia de guerra total com a lealdade a Hitler, o ministro da Propaganda fez a multidão gritar com entusiasmo pela mobilização até o último recurso, inclusive de mulheres operárias, na luta final pela vitória. Ele foi interrompido mais de 200 vezes por gritos selvagens e refrões, lemas (“Salve, Vitória!”, “Comando do Líder – nós o seguimos!”) e aplausos histéricos. O evento foi subsequentemente descrito como “um feito de hipnose de massa”. O discurso foi ouvido por milhões de pessoas que vinham esperando por um tipo de direção do regime. Para sublinhar sua importância, foi publicado pelos jornais na manhã seguinte e transmitido de novo no domingo seguinte. Foi apresentado como uma demonstração imponente da vontade do povo alemão de lutar até o fim77.

É bem provável que Hitler tenha dado sua aprovação à iniciativa de Goebbels em termos gerais de antemão. Mas não foi consultado sobre o conteúdo do discurso em detalhes, de modo que lhe enviaram uma cópia imediatamente, e ele declarou aprovação total78. Mas o que “guerra total” realmente significava em termos concretos? Entre a liderança nazista, era vista antes de mais nada como uma cartada de Goebbels, auxiliado e apoiado por Speer, para se apoderar do controle da frente doméstica. A reação inicial de Hitler à crise havia sido criar um Comitê de Três, consistindo de Martin Bormann, Hans-Heinrich Lammers e Wilhelm Keitel, para dar início às medidas da “guerra total”; entre outras coisas, o discurso de Goebbels foi uma tentativa de enfraquecer esse grupo, e em seguida ele tramou com Hermann Göring para reaver o gerenciamento da “guerra total”. Mas, a essa altura, Göring havia perdido muito de sua antiga energia, enfraquecido por pesadas doses de morfina, na qual agora estava viciado. Hitler recusou-se a dar a Goebbels e Speer ou ao grupo de Lammers a autoridade sobre a frente doméstica pela qual todos competiam. No outono de 1943, o Comitê de Três havia efetivamente deixado de funcionar. Suas iniciativas para simplificar a administração civil do Reich reduzindo a duplicação, por exemplo, entre os ministérios das Finanças do Reich e da Prússia (defendendo a abolição deste último), não deram em nada, e o comitê passou muito tempo discutindo trivialidades como banir ou não as corridas de cavalos79. Quanto às realidades econômicas da “guerra total”, era difícil ver o que podia ser feito. O problema, conforme ficou evidente em todo o leque de derrotas e reveses na guerra durante 1943, não era que as pessoas não estivessem dando duro o bastante, era a falta de matérias-primas. Não adiantava exigir um aumento na produção se não havia carvão e aço suficientes para fabricar aviões e tanques, ou gasolina bastante para abastecê-los. E a escassez de mão de obra, como vimos, só podia ser resolvida em grau muito limitado pela mobilização das mulheres; no fim, isso foi enfrentado com a expansão brutal da mão de obra estrangeira. Em termos puramente práticos, a “guerra total” ficou reduzida a uma tentativa de reprimir o consumo doméstico a fim de se desviar os recursos para a produção bélica. Também nisso as possibilidades eram reduzidas.

Uma série de decretos emitidos no início de 1943 por certo arrocharam a produção e o consumo não relacionados à guerra. Em 30 de janeiro de 1943, o Comitê de Três ordenou o fechamento das empresas não essenciais. Essa medida levou ao encerramento de 9 mil negócios, a maioria pequenos, apenas na região de Brandemburgo, causando ressentimento disseminado na classe média baixa, uma vez que agora os proprietários independentes de oficinas eram obrigados a se tornar operários assalariados nas fábricas de armas. Muitos temiam não poder reabrir depois da guerra. Em poucos meses, a implementação da política teve de cessar, por insistência do Ministério da Propaganda, devido à resistência e à evasão generalizadas80. Em Berlim, foi registrado que o Bar Melodia, na Kurfürstendamm, havia fechado apenas para reabrir imediatamente como restaurante, com os mesmos garçons. O Bar Gongo foi rebatizado de Café Gongo e seguiu em atividade com café e bolos em vez de cerveja e drinques. A medida também criou problemas para operários de fábricas de munição e outras relacionadas à guerra que eram forçados a passar a semana longe da família e com isso dependiam de restaurantes para jantar. Nessa época, muitos bares e pequenos restaurantes eram geridos por pessoas que haviam atingido a idade da aposentadoria e dificilmente podia esperar-se que fossem convocadas para as fábricas de munição. O que suscitou amplo ressentimento foi que, enquanto os bares da classe operária eram fechados, hotéis de alta categoria, como o Quatro Estações, com seu restaurante caro, e restaurantes finos como o Porão das Ostras do Schumann, na mesma cidade, permaneciam ativos81. Em todo caso, o arrocho no consumo conspícuo foi apenas simbólico. Ficava muito bem dizer que os alemães tinham de viver como espartanos, mas em 1943 muitos achavam que já estavam fazendo isso.

A guinada para a produção e o investimento relacionados à guerra em detrimento do consumo de fato tivera início na década de 1930, mas, quando a guerra eclodiu, acelerou-se ainda mais. No fim do primeiro ano da guerra, a despesa militar havia aumentado de um quinto da produção nacional para mais de um terço. Na esperança de evitar dar ao público alemão a sensação de que estava sendo sangrado até o último centavo, o Ministério da Economia do Reich abandonou a ideia inicial de impor uma pesada alta nos impostos e optou em vez disso por controlar o gasto dos consumidores por meio do racionamento. No fim de agosto de 1939, o consumo per capita havia caído 11%; caiu outros 7% no ano seguinte82. Quase tão logo a guerra começou, alimento e vestuário foram racionados. Claro que, em princípio, isso não era nenhuma novidade. Já na década de 1930, alguns gêneros alimentícios e outros artigos com oferta reduzida haviam sido racionados83. Em outubro de 1939, foi estabelecida uma ração oficial de comida de 2.570 calorias diárias para os civis, com 3,6 mil calorias alocadas a cada membro das Forças Armadas e 4.652 aos operários engajados em trabalho braçal especialmente pesado. Os civis tinham de apresentar seus carnês de racionamento em lojas, com um código de cores para diferentes itens (vermelho para pão, por exemplo), e suas compras eram assinaladas, de modo que não podiam adquirir mais do que o máximo prescrito. Esses carnês de racionamento duravam um mês, para que pudessem ser emitidos novos com diferentes valores máximos caso necessário84.

Em termos concretos, no começo da guerrra isso significou, por exemplo, pouco menos de 10 quilos de pão por mês para um adulto normal, 2,4 quilos de carne, 1,4 quilo de gorduras, incluindo manteiga, 320 gramas de queijo, e assim por diante. Com o avançar da guerra, essas cotas começaram a ser reduzidas. A ração de pão manteve-se mais ou menos constante, mas a carne baixou para 1,6 quilo por mês em meados de 1941, e por volta dessa época começou a ser introduzido o racionamento de frutas, e pouco depois de vegetais e batatas. No início de 1943, as cotas situavam-se em nove quilos de pão por mês, 600 gramas de cereais, 1,85 quilo de carne e 950 gramas de gorduras. No geral, esses níveis foram mais ou menos mantidos, com flutuações para cima e para baixo, até a fase final da guerra, quando a cota de pão caiu de 10,5 quilos por mês em janeiro de 1945 para 3,6 quilos em abril, a ração de cereal de 600 para 300 gramas, a carne despencou abruptamente para meros 550 gramas, e as gorduras, de 875 gramas para 325 gramas. Apenas as batatas, com uma cota regular em torno de 10 quilos por mês ao longo da guerra pareceram manter-se em oferta abundante. Mas essas quantidades não só eram insuficientes para as necessidades da maioria das pessoas, como frequentemente era impossível obtê-las por causa da escassez. O racionamento também cobriu um leque de artigos maior que na Grã-
-Bretanha, e restrições rigorosas no vestuário reduziram o consumo médio alemão em outubro de 1941 a um quarto dos níveis dos tempos de paz; muitas roupas eram feitas de materiais sintéticos inferiores, e as pessoas com frequência tinham de usar tamancos de madeira devido à escassez de couro. “Um homem cansado da vida tenta em vão enforcar-se”, dizia uma piada em abril de 1942, “mas é impossível: a corda é de fibra sintética. Então tenta pular no rio – mas ele flutua, porque está vestindo um traje feito de madeira. Finalmente, ele consegue tirar a própria vida. Passou dois meses vivendo com nada além do que o que obtinha com seu carnê de ração85.”

Mesmo cortes relativamente pequenos na ração de comida podiam levar a descontentamento. Em março de 1942, por exemplo, o Serviço de Segurança da SS relatou que o anúncio de futuros cortes de ração equivalentes a cerca de 250 calorias diárias para civis normais e de 500 para trabalhadores braçais havia sido “devastador”; de fato, “em um grau maior do que praticamente qualquer outro acontecimento na guerra”. Os operários em particular não entendiam a necessidade dos cortes, visto que já consideravam as rações atuais muito reduzidas. “O estado de ânimo nesses setores da população”, advertiu o relatório, “atingiu um ponto mais baixo que qualquer outro anteriormente observado ao longo da guerra.” E havia ressentimento generalizado com o que muitos viam como a capacidade dos mais abastados de usar suas conexões para conseguir comida acima e além da quantidade racionada86. Se foi evitada uma situação de fome como a ocorrida na Primeira Guerra Mundial – praticamente uma obsessão do regime, uma vez que Hitler considerava que ela havia sido um dos principais fatores por trás da mítica “punhalada nas costas” em 1918 –, isso deveu-se em parte às importações maciças do exterior, principalmente de 1940 em diante, dos territórios ocupados. Essas foram especialmente vitais para a manutenção da ração de pão em um nível aceitável, dado que o pão era a base da dieta de muitos alemães, e que seu corte em abril de 1942 havia sido “particularmente sentido em todos os setores da população87”.

As importações de grãos para pão subiram de 1,5 milhão de tonelada em 1939-40 para 3,6 milhões em 1942-43, permanecendo quase no mesmo nível no ano seguinte. Todavia, não dava para negar que a grande maioria das pessoas continuava a achar as rações de comida mal e mal suficientes para se sobreviver e, cada vez que o regime fazia que apertasssem o cinto, havia resmungos e descontentamento generalizados. As remessas de comida de parentes e amigos do Exército na França ou na Europa ocidental ajudavam, mas jamais foram decisivas, e, em algumas situações, particularmente em Stalingrado e na frente oriental, as remessas de comida tendiam a seguir na direção oposta. No total, a contribuição das economias dos países ocupados a leste e a oeste para a economia alemã ao longo da guerra provavelmente não foi muito maior do que 20% do conjunto. Não foi o bastante para fazer as pessoas sentir que estivessem vivendo bem. “Qual é a diferença entre a Índia e a Alemanha?”, perguntava uma piada popular relatada na primavera de 1943. “Na Índia, uma pessoa [Gandhi] passa fome por todo mundo, e na Alemanha, todo mundo passa fome por uma [Hitler]88.”

A retórica de sofrimento e sacrifício de Goebbels fracassou em convencer porque o padrão de vida já fora gravemente rebaixado muito antes de 1943. Na verdade, a retórica não era sequer nova. Goebbels havia divulgado um apelo de “guerra total” no começo de 1942, após a derrocada diante de Moscou89. Já em março de 1939, Hitler havia declarado: “Qualquer mobilização deve ser total”, incluindo a economia. No afã do rearmamento, o padrão de vida já fora rebaixado até mesmo antes disso. Há poucas lendas históricas mais duradouras do que a de que a Blitzkrieg foi uma estratégia econômica planejada para travar a guerra de forma barata e rápida, sem colocar a economia em ritmo de guerra90. A economia estava em ritmo de guerra bem antes de a guerra começar91. O consumo privado baixou de 71% da renda nacional em 1928 para 59% em 1938, e os salários reais não haviam conseguido voltar aos níveis pré-Depressão na época em que a guerra estourou. Os salários reais na Alemanha haviam crescido 9% em 1938 comparados aos níveis de 1913, mas o número equivalente nos Estados Unidos foi de 53% e no Reino Unido, de 33%. A qualidade de muitas mercadorias na Alemanha, de vestuário a alimentos, caiu sob o impacto das restrições às importações durante a década de 1930. Quando a guerra começou, o Ministério das Finanças e o Plano de Quatro Anos concordaram em que o consumo pessoal deveria ser limitado, basicamente por meio do racionamento, para não mais do que o mínimo necessário para se ficar vivo. Os impostos sobre cerveja, tabaco, cinema, teatro, viagens e outros aspectos do consumo foram aumentados, e todos os contribuintes tiveram de pagar uma sobretaxa de emergência para a guerra. Como resultado, os impostos aumentaram em média 20% para as pessoas, na maioria da classe operária, que recebiam entre 1,5 mil e 3 mil reichsmarks por ano entre 1939 e 1941, e 55% para quem ganhava entre 3 mil e 5 mil. A taxação proporcionou metade da renda necessária para os gastos militares, e a outra metade foi coberta por extorsões dos territórios ocupados e empréstimos do governo92.

Hitler vetou quaisquer outros aumentos no imposto de renda por temer a hostilidade popular que poderiam suscitar. Em vez disso, fundos adicionais foram angariados mediante um ataque à poupança do povo. O governo estava muitíssimo ciente de que, a partir de 1940, cada vez mais dinheiro afluía para as contas em bancos locais de poupança e fundos de seguro da Alemanha. Depois de um ano, os investidores estavam colocando mais de um bilhão de reichsmarks na poupança anualmente. O governo extraiu esse dinheiro na surdina para pagar pelas armas, ao mesmo tempo que forçou retrações severas no tipo de programa que a verba normalmente teria financiado, como obras habitacionais, que caíram de pouco mais de 320 mil novas moradias em 1937 para meras 40 mil cinco anos depois. Já em 1940, 8 bilhões de reichsmarks jorraram dos bancos de poupança para a fabricação de armas, número que subiu para 12,8 bilhões no ano seguinte. Esse sistema de financiamento da guerra era bem preferível a apelos públicos de empréstimos, que tiveram um efeito desastroso na Primeira Guerra Mundial, quando investidores patrióticos perderam todas as economias na inflação do pós-guerra. A poupança não significou, como às vezes afirmou-se, confiança pública no governo ou certeza de vitória. À medida que se apertavam as restrições do governo a outras formas de investimento, as pessoas ficavam sem alternativa. Em vez de investimentos de longo prazo, elas preferiam tanto quanto possível colocar o dinheiro onde fosse mais fácil apoderar-se dele quando precisassem – depois que a guerra acabasse93. Com exceção disso, havia pouca coisa que pudessem fazer com o dinheiro. Conforme Mathilde Wolff-Mönckeberg, de uma família proeminente de Hamburgo, escreveu em 25 de março de 1944, todo mundo havia aderido ao escambo:

 

Troquei a mesa por gordura, carne e um bom número de outros petiscos, que a nova proprietária trará de sua cantina. Mas o que mais se pode fazer hoje em dia? O estômago exige o que lhe cabe, e dinheiro não compra nada. Todo mundo tem montes de dinheiro [...] Você consegue convencer um operário a ir à sua casa se colocar cigarros na mão dele ou oferecer um cálice de conhaque. O homem do gás, a quem tentei engambelar para que nos deixasse ter um novo fogão, teve de ser amaciado com um caneco de cerveja, dois sanduíches de salsicha e um charuto para encerrar94.

 

Dois meses antes, o Serviço de Segurança da SS havia dedicado um relatório especial à disseminação do escambo. Havia escassez de tantos produtos e serviços essenciais que “o mercado negro de pequenas quantidades de mercadorias tornou-se um meio de vida para muita gente, que na sua maioria menospreza quaisquer reservas a esse respeito com o comentário: ‘Quem não fizer por si nunca vai melhorar sua situação’”. Apenas o comércio e o escambo visando o lucro deparavam com desaprovação popular. A despeito disso, foi um pequeno passo do pequeno escambo para o surgimento de um mercado negro em escala muito substancial95.

O rápido aumento da poupança na parte inicial da guerra refletiu o fato de que o gasto dos consumidores caiu mais abruptamente até 1942, e então manteve-se relativamente estável dali em diante até os últimos meses da guerra. O consumo per capita na Alemanha (em suas fronteiras pré-guerra, incluindo Áustria, Sudetos e Memel) caiu em um quarto entre 1939 e 1942, e então estabilizou-se. Se a incorporação de novas áreas relativamente pobres da Polônia ao Reich for levada em conta, o consumo per capita real então caiu a 74% de seu nível de 1938 em 1941, a seguir nivelou-se em 67%-68% nos dois anos seguintes, ao passo que as vendas per capita no varejo baixaram em proporções bastante semelhantes. A produção real per capita de todos os bens de consumo caiu 22% de 1938 a 1941. Depois de uma alta inicial causada pelas compras movidas por pânico, as vendas de produtos têxteis, metálicos e domésticos em junho de 1940 foram 20% menores que no ano anterior, e as vendas de mobília foram 40% mais baixas96. Esses números ocultam o fato de que a prioridade sobre os bens de consumo era das Forças Armadas. Em 1941--42, por exemplo, o consumo per capita de carne nas Forças Armadas foi mais de quatro vezes superior que entre os civis, e o consumo de grãos para pão foi 2,5 vezes maior. Soldados podiam beber café de verdade, enquanto os civis precisavam se contentar com substitutos, e tinham suprimento abundante de cigarros e álcool. Era uma questão política. A ração de carne dos soldados era 3,5 vezes maior que a dos civis, e eles tinham direito ao dobro da ração diária de pão. A maior parte dos setores não armamentistas da economia estava trabalhando principalmente para as Forças Armadas, e, em janeiro de 1941, 90% da mobília manufaturada foi para o setor militar, e em maio de 1940 metade de todas as vendas de têxteis foram para as forças armadas, SS e outras organizações uniformizadas. Oitenta por cento dos produtos de consumo da indústria química iam para as Forças Armadas (inclusive pasta de dente e cera para sapato)97. Reservava-se tanto carvão para a produção industrial que as pessoas não tinham o suficiente para aquecer sua casa durante o inverno. “Na Alemanha”, dizia uma piada bastante contada em 1941, “a temperatura ainda é medida de acordo com os padrões estrangeiros de Celsius e Réaumur. Hitler ordena que no futuro as medidas sejam feitas pela escala alemã de Fahrenheit. Desse modo, a temperatura sobe 65 graus, e a escassez de carvão se resolve automaticamente!98

O esforço de Goebbels para agitar as massas inspirou alguns em casa e no front. “São duas da manhã”, escreveu o paraquedista Martin Pöppel em seu diário da frente oriental em 19 de fevereiro de 1943. “Não consigo tirar o discurso de Goebbels sobre a guerra total de minha cabeça. O discurso foi tão tremendo e fantástico que sinto que preciso escrever para casa com minha resposta. Todos foram arrebatados pelas palavras dele, todos nós sucumbimos ao encanto dele. Ele nos falou com sinceridade99.” Goebbels obteve louvor geral por deixar clara a gravidade da situação militar. Muitos, aparentemente, não haviam percebido antes. Eles ficaram impressionados por pensar que o regime estava sendo honesto, embora outros fossem mais céticos. Uns poucos consideraram que Goebbels “pintou uma situação mais negra do que ela é para garantir ênfase às medidas totalizadoras”. Alguns acharam que o discurso conteve pouca novidade em termos concretos. O Serviço de Segurança da SS registrou: “Por certo o povo em geral reconheceu a efetividade das dez perguntas, mas compatriotas e membros do Partido de todos os níveis sociais expressaram o pensamento de que o propósito de propaganda dessas perguntas e respostas ficou totalmente óbvio para leitores e ouvintes100”. Pôde-se ouvir pequenos fazendeiros reclamando que “já tinham sido coagidos a trabalhar em um nível sobre-humano há muito tempo”, de modo que julgaram as exigências feitas no discurso mais ou menos incompreensíveis101. Em Würzburg, de fato, relatou-se que algumas pessoas “estão caracterizando o fecho do discurso com suas perguntas como uma comédia, uma vez que os presentes no encontro não eram o povo [em geral], mas grupos mandados, que obviamente gritavam sim para tudo102”. Evento de propaganda claramente encenado, o discurso no Palácio de Esportes fracassou amplamente em convencer porque as pessoas sabiam que a mobilização econômica já tinha ido tão longe quanto poderia. O impulso dado pelo discurso dissipou-se amplamente em ataques a estabelecimentos “de luxo” cujo impacto na economia de guerra como um todo era mínimo. Entretanto, em poucos meses o discurso de Goebbels se abateria sobre a frente doméstica em um sentido que nem o Ministério da Propaganda nem ninguém mais havia previsto. E seu impacto, em termos tanto econômicos quanto humanos, seria devastador.

 


 

1 Sven Erichson (ed.), Abschied ist immer: Briefe an den Bruder im Zweiten Weltkrieg (Frankfurt am Main, 1994), p. 78; mais genericamente, Weinberg, A World at Arms, p. 408-17.

2 David M. Glantz e Jonathan M. House, When Titans Clashed: How the Red Army Stopped Hitler (Lawrence, Kans., 1995), p. 98-107.

3 Bock, Zwischen Pflicht und Verweigerung, p. 445 (15 de junho de 1942).

 

4 Elmshäuser e Lokers (eds.), “Man muss hier nur hart sein”, p. 181 (carta a Frieda, 20 de julho de 1942).

5 Weinberg, A World at Arms, p. 296-8, 412; Mawdsley, Thunder in the East, p. 118-48; Glantz e House, When Titans Clashed, p. 105-19; Bock, Zwischen Pflicht und Verweigerung, p. 470 (13-15 de julho de 1942).

6 Kershaw, Hitler, II, p. 526-8.

7 Halder, Kriegstagebuch, III, p. 489 (23 de julho de 1942).

8 Speer, Inside the Third Reich, p. 332.

9 Bellamy, Absolute War, p. 351-408; David Glantz, The Siege of Leningrad 1941-1944: 900 Days of Terror (Londres, 2004); Harrison E. Salisbury, The 900 Days: The Siege of Leningrad (Londres, 1969).

10 Citado em Kershaw, Hitler, II, p. 531-2.

11 Meier-Welcker, Aufzeichnungen, p. 159 (9 de abril de 1942).

12 Erichson, Abschied, p. 27 (carta ao irmão, 28 de julho de 1942).

13 Ibid., p. 77 (carta de 18 de agosto de 1942).

14 Halder, Kriegstagebuch, III, p. 513 (30 de agosto de 1942).

15 Ibid., p. 517 (4 de setembro de 1942), p. 528 (24 de setembro de 1942).

16 Weinberg, A World at Arms, p. 408-17, 420-8; Kershaw, Hitler, II, p. 531-4; Bernd Wegner, “Vom Lebensraum zum Todesraum: Deutschlands Kriegführung zwischen Moskau und Stalingrad”, em Förster (ed.), Stalingrad, p. 17-38; Bernd Wegner, “The War against the Soviet Union, 1942-1943”, GSWW VI, p. 843-1.203, nas p. 843-1.058.

17 Heinrich von Einsiedel, The Shadow of Stalingrad: Being the Diary of a Temptation (Londres, 1953), p. 7-8 (24 de agosto de 1942).

18 Ibid., p. 8-9.

19 Ibid.; Antony Beevor, Stalingrad (Londres, 1998), p. 92-5.

20 Ibid., p. 102-31.

21 Halder, Kriegstagebuch, III, p. 514 (31 de agosto de 1942).

22 Reddemann (ed.), Zwischen Front und Heimat, p. 631 (para Agnes, 3 de outubro de 1942).

23 Kershaw, Hitler, II, p. 536-8.

24 Beevor, Stalingrad, p. 127-33, 166-77.

25 Ibid., p. 291-310.

26 Jens Ebert (ed.), Feldpostbriefe aus Stalingrad: November 1942 bis Januar 1943 (Munique, 2006 [2000]). Ver também Katrin A. Kilian, “Kriegsstimmungen: Emotionen einfacher Soldaten in Feldpostbriefen”, DRZW IX/II, p. 251-88, para o declínio do moral e da esperança no fim da guerra, conforme expressos nas cartas dos soldados.

27 Beevor, Stalingrad, p. 189-235.

28 Ibid., p. 236-65; ver também Mawdsley, Thunder in the East, p. 159-73, e Bellamy, Absolute War, p. 497-53.

29 Beevor, Stalingrad, p. 266-90.

30 Speer, Inside the Third Reich, p. 343.

31 Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 81.

32 Beevor, Stalingrad, p. 333-6.

33 Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 170.

34 Beevor, Stalingrad, p. 311-30.

35 Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 216; mais genericamente, ibid., p. 186-222.

36 Ibid., p. 163.

37 Ibid., p. 49.

38 Ibid., p. 27, 29; a legenda da ilustração na p. 307, afirmando que os soldados não estavam trajados de modo adequado para o inverno, é desmentida pelas numerosas menções em contrário nas cartas (p. 43, 159, 176, 205).

39 Ibid., p. 16, 38, 180, 236, 262.

40 Anatoly Golovchansky et al. (eds.), “Ich will raus aus diesem Wahnsinn”: Deutsche Briefe von der Ostfront 1941-1945 (Wuppertal, 1991), p. 164 (31 de dezembro de 1942).

41 Groscurth, Tagebücher, p. 532.

42 Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 242.

43 Golovchansky et al. (eds.), “Ich will raus”, p. 205 (10 de janeiro de 1943).

44 Ibid., p. 202 (10 de janeiro de 1943).

45 Ibid., p. 223 (15 de janeiro de 1943).

46 Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 304, 316; de modo semelhante nas p. 270, 274, 281, 296, 305.

47 Rolf Dieter Müller, ‘‘‘Was wir an Hunger ausstehen müssen, könnt Ihr Euch gar nicht denken’: Eine Armee verhungert”, em Wolfram Wette e Gerd R. Ueberschär (eds.), Stalingrad: Mythos und Wirklichkeit einer Schlacht (Frankfurt am Main, 1992), p. 131-45; Beevor, Stalingrad, p. 335-8.

48 Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 209; de modo semelhante nas p. 124, 143, 161, 186.

49 Ibid., p. 306.

50 Ibid., p. 318, 322-4.

51 Boberach (ed.), Meldungen, XII, p. 4.698 (18 de janeiro de 1943).

52 Beevor, Stalingrad, p. 352-73.

53 Citado em Ebert (ed.), Feldpostbriefe, p. 341-2.

54 Citado em ibid., p. 343.

55 Ibid., p. 342-4.

56 Beevor, Stalingrad, p. 374-431; Kershaw, Hitler, II, p. 543-57; Groscurth, Tagebücher, p. 95; para um relato detalhado, ver Wegner, “The War against the Soviet Union”, GSWW VI, p. 1058-72.

57 Karl-Heinz Frieser, Krieg hinter Stacheldraht: Die deutschen Kriegsgefangenen in der Sowjetunion und das Nationalkomitee “Freies Deutschland” (Mainz, 1981), p. 55, 144-82, 188-9, 193-5; Kershaw, Hitler, II, p. 550-1.

58 Walb, Ich, die Alte, p. 260 (3 de fevereiro de 1943).

59 Wolfram Wette, “Das Massensterben als ‘Heldenepos’: Stalingrad in der NS-Propaganda”, em Wette e Ueberschär (eds.), Stalingrad, p. 43-60; Heinz Boberach, “Stimmungsumschwung in der deutschen Bevölkerung”, em ibid., p. 61-6; Bernhard R. Kroener, ‘‘‘Nun Volk, steh auf...!’ Stalingrad und der ‘‘totale’’ Krieg 1942-1943”, em Förster (ed.), Stalingrad, p. 151-70; Marlis Steinert, “Stalingrad und die deutsche Gesellschaft”, em ibid., p. 171-88.

60 Boberach (ed.), Meldungen, XII, p. 4.750-1 (4 de fevereiro de 1943) (itálicos no original).

61 Ibid.

62 Broszat et al. (eds.), Bayern I, p. 633 (Bericht der SD-Hauptaussenstelle Würzburg, 1o de fevereiro de 1943).

 

63 Ibid. (Bericht der SD-Aussenstelle Friedberg, 8 de fevereiro de 1943).

64 Ibid., p. 164-5 (Monatsbericht des Landrats, 2 de fevereiro de 1943).

65 Hassell, The von Hassell Diaries, p. 284.

66 Broszat et al. (eds.), Bayern, I, p. 633 (Bericht der SD-Hauptaussenstelle Würzburg, 1o de fevereiro de 1943).

67 Klemperer, To the Bitter End, p. 189-92 (5 e 14 de fevereiro de 1943).

68 Broszat et al. (eds.), Bayern I, p. 170 (Monatsbericht der Gendarmerie-Station Muggendorf, 19 de março de 1943).

69 Ibid., p. 170 (Monatsbericht der Gendarmerie-Station Waischenfeld, 19 de março de 1943).

70 Boberach (ed.), Meldungen, XIII, p. 5.146 (19 de abril de 1943).

71 Citado em Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 548.

72 Boberach (ed.), Meldungen, XIV, p. 5.445 (8 de julho de 1943) (itálicos no original).

73 Ibid., p. 5.446 (itálicos no original); também Hassell, The von Hassell Diaries, p. 294 (março de 1943).

74 Ibid., p. 5.447 (itálicos no original).

75 Willi A. Boelcke (ed.), “Wollt Ihr den totalen Krieg?” Die geheimen Goebbels-Konferenzen 1939-1943 (Munique, 1969 [1967]), p. 414.

76 Essa versão do discurso, que difere do texto publicado, foi monitorada ao vivo pela BBC e retirada de Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 490-4. Ver também Iring Fetscher, Joseph Goebbels im Berliner Sportpalast 1943: “Wollt Ihr den totalen Krieg?” (Hamburgo, 1998) (discurso reproduzido em ibid., p. 63-98); e Günter Moltmann, “Goebbels” Speech on Total War, February 18, 1943, em Hajo Holborn (ed.), Republic to Reich: The Making of the Nazi Revolution: Ten Essays (Nova York, 1973 [1972]), p. 298-342.

77 Boberach (ed.), Meldungen, XII, p. 4833 (22 de fevereiro de 1943); Moltmann, “Goebbels” Speech’, p. 337 (para a “hipnose de massa”).

78 Ibid., p. 309-16.

79 Kershaw, Hitler, II, p. 561-77.

80 Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 238-40; Boberach (ed.), Meldungen, XIII, p. 5136-40 (1o de abril de 1943).

81 Boberach (ed.), Meldungen, XII, p. 4826-30 (18 de fevereiro de 1943).

82 Tooze, The Wages of Destruction, p. 353-6.

83 Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 510-8.

84 Ibid.

85 Overy, “Guns or Butter?”, p. 284-6; Josef Wulf, Presse und Funk im Dritten Reich: Eine Dokumentation (Gütersloh, 1964), p. 374.

86 Boberach (ed.), Meldungen, IX, p. 3504-5 (23 de março de 1942).

87 Ibid.

88 Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 521, 548.

89 Herbst, Der totale Krieg, p. 171-241.

90 Overy, “Guns or Butter?”, p. 259-64 (p. 263 para a citação), criticando Alan S. Milward, “Hitlers Konzept des Blitzkrieges”, em Andreas Hillgruber (ed.), Probleme des Zweiten Weltkrieges (Colônia, 1967), p. 19-40, e Burton H. Klein, Germany’s Economic Preparations for War (Cambridge, Mass., 1959); ver também Evans, The Third Reich in Power, p. 322-36, 349-50, 477-92.

91 Carroll, Design for Total War, p. 190.

92 Overy, “Guns or Butter?”, p. 264-71.

93 Ibid., p. 272; Tooze, The Wages of Destruction, p. 353-6; Aly, Hitler’s Beneficiaries, p. 295--300; Philipp Kratz, “Sparen für das kleine Glück”, em Götz Aly (ed.), Volkes Stimme: Skepsis und Führervertrauen im Nationalsozialismus (Frankfurt am Main, 2006), p. 59-79; Angelika Ebbinghaus, “Fakten oder Fiktionen: Wie ist Götz Aly zu seinen weitreichenden Schlussfolgerungen gekommen?”, Sozial.Geschichte, 20 (2005), p. 29-45, na p. 32; ver também Christoph Buchheim, “Die vielen Rechenfehler in der Abrechnung Götz Alys mit den Deutschen unter dem NS-Regime”, Sozial.Geschichte, 20 (2005), p. 67-76.

94 Mathilde Wolff-Mönckeberg, On the Other Side: To My Children from Germany 1940-1945 (Londres, 1982 [1979]), p. 96.

95 Boberach (ed.), Meldungen, XVI, p. 6.260-5 (citação na p. 6.262).

96 Overy, “Guns or Butter?”, p. 272-84.

97 Ibid., p. 285-91.

98 Hassell, The von Hassell Diaries, p. 173.

99 Pöppel, Heaven and Hell, p. 101.

100 Boberach (ed.), Meldungen, XII, p. 4.831 (22 de fevereiro de 1943) (itálicos no original).

101 Broszat et al. (eds.), Bayern, I, p. 169 (Landrat Ebermannstadt, Monatsbericht, 2 de março de 1943).

102 Ibid., p. 635 (Bericht der SD-Hauptaussenstelle Würzburg, 22 de fevereiro de 1943).