Medo e culpa

 

 

I

 

 

 

 

Na noite de 10 de março de 1941, uma menina de 15 anos foi repentinamente acordada por um barulho em outra parte do apartamento em que morava com a família em um bairro de trabalhadores de Düsseldorf. “Ouvi meu padrasto brigando com minha mãe”, ela disse posteriormente para a Gestapo. “Ele estava bêbado, e eu o ouvi dizer: ‘Agora não faz mais diferença. A Inglaterra vai ganhar de qualquer jeito. A Alemanha não tem mais munições disponíveis’. Ao ouvir isso, minha mãe contestou: ‘Quando você fala desse jeito, você não é alemão, e vou denunciar você para a polícia’.” Naquela altura, a menina tinha se levantado e estava observando a briga através da porta da cozinha. “Eu vi”, prosseguiu ela, “que meu padrasto pegou uma faca e a apontou para minha mãe, dizendo: ‘Antes que você me traia, vou matar você’. Fui lá para ajudar minha mãe, mas, quando meu padrasto me viu, ele colocou a faca de lado e tentou me atingir com uma cadeira [...] Depois, foi levado pela polícia1.” Sua esposa disse à Gestapo que ele tinha falado, entre outras coisas: “Hitler é o responsável por estarmos passando fome e pela guerra” e “Hitler queria enforcar os judeus, mas deveriam enforcá-lo em primeiro lugar”. O homem negou as acusações e disse que não conseguia se lembrar de ter pronunciado nenhum tipo de afirmação traiçoeira, já que estava completamente bêbado na hora. Assim como em outros incidentes parecidos (talvez não tão emocionantes), havia nele algo além da simples reprovação de uma esposa em relação às opiniões de seu marido. Os membros da Gestapo designados para cuidar do caso perceberam que, como havia dito a enteada, o homem ficava com frequência bêbado e violento, e concluíram que falta de harmonia doméstica, e não uma oposição política acirrada, se encontrava no centro do problema. Decidiram que não havia provas suficientes para abrir um caso e mandaram o homem embora depois de confiscar a faca. Em tais casos, em geral, ficavam do lado do marido: esposas maltratadas não estavam no topo da lista de prioridades da Gestapo2.

Em outros casos, a Gestapo acolhia as queixas das mulheres com maior seriedade. Em março de 1944, por exemplo, uma mulher de Düsseldorf que perdeu a casa em um bombardeio foi buscar refúgio na casa da irmã. Esta, Frau Hoffmann, era casada com um policial desde 1933 e, na ocasião, não estava em casa, pois visitava a mãe na Bavária. Assim que entrou na casa, a mulher ficou chocada ao descobrir que o policial estava compartilhando o leito conjugal com uma mulher da Estônia. Ela entrou em contato com a irmã na Bavária para lhe contar o que vira. Ao voltar, Frau Hoffmann tentou fazer que seu marido terminasse o relacionamento com a amante. Mas foi tudo em vão. O casamento fracassou rapidamente, com frequentes e acaloradas brigas e altercações cheias de gritos. Desesperada, Frau Hoffmann descobriu algumas cartas que o marido lhe enviara quando ele estava fora. Nelas, o homem havia escrito, entre outras coisas, que a Alemanha nunca iria vencer a guerra. Ela também relatou que ele andava fazendo afirmações derrotistas no serviço. Seu marido foi devidamente preso e interrogado. Pressionado pela Gestapo, foi incapaz de refutar o conteúdo das cartas e confessou que as acusações de sua esposa eram verdadeiras. Foi julgado por debilitar o estado de espírito da população, condenado à morte no começo de 1945 e executado logo em seguida3.

Nesse caso, também, a denúncia surgiu a partir de circunstâncias pessoais, mas o motivo realmente não importava na opinião da Gestapo. Na verdade, apenas cerca de 30% das denúncias apresentadas à polícia eram feitas por mulheres. Na maior parte dos casos, as mulheres tinham sofrido maus-tratos ou violência por parte dos homens. Desde 1933, o Estado nazista havia se intrometido com intensidade cada vez maior na vida familiar e privada, e as mulheres que passavam por dificuldades em seu relacionamento reagiam cruzando as fronteiras entre o privado e o público em outra direção, desse modo permitindo que o regime as cooptasse de modo eficaz no combate aos estados de espírito derrotistas ou de oposição. Com frequência, na atmosfera agressivamente masculina do Terceiro Reich, as mulheres parecem ter sentido que não havia alternativa. Uma trabalhadora que sofresse assédio sexual de seu empregador, ou uma esposa que fosse espancada e maltratada por seu marido, dificilmente conseguiria uma audiência a não ser que ela o denunciasse por algum tipo de crime político4. O Estado estava particularmente inclinado a manter a esposa dos soldados na linha quando seus maridos estavam no front, e não iriam ouvi-las se elas reclamassem. Na propaganda e na mídia de massas, a esposa dos soldados, dos marinheiros e dos aviadores (Kriegerfrauen) era retratada como pura, assexuada, pronta para se sacrificar, trabalhadora e, acima de tudo, fiel. Então, supervisores de quarteirão, membros locais do Partido e empregadores, todos eles mantinham um olhar vigilante quanto à conduta delas. Como resultado, houve inúmeras denúncias de mulheres que não conseguiam alcançar os parâmetros de uma imagem santificada à qual deveriam se adequar. Um caso típico foi relatado pela seção de Düsseldorf da Gestapo em novembro de 1941, quando certa Frau Müller foi questionada pelo capataz na fábrica de embalagens onde trabalhava a respeito do relacionamento dela com um trabalhador belga. Uma disputa acalorada aconteceu em seguida, ela esbofeteou o capataz e ele a denunciou à polícia. Interrogada pela Gestapo, ela contou que seu marido, um soldado, se relacionara com outras mulheres e até tivera filhos com algumas delas. Não obstante, a Gestapo admoestou-a oficialmente que ela deveria se comportar e terminar seu relacionamento com o belga, caso contrário seriam tomadas medidas muito mais severas contra ela5.

Apesar da pressão exercida sobre as esposas para que seguissem uma vida casta enquanto seu companheiro servia as Forças Armadas, o Estado nazista estava longe de ser o regime sexualmente repressivo e pudico descrito por seguidores exilados da Escola de Frankfurt de sociologia, ou pelos seguidores do marxista freudiano Wilhelm Reich. Durante a guerra, as pessoas, naturalmente, pensavam muito antes de ter filhos. De qualquer maneira, com os maridos no front, havia menor oportunidade para a concepção, e muitas mulheres relutavam em se tornar o que era, na verdade, uma mãe solteira. Os nascimentos caíram de mais de 1.413.000 em 1939 para apenas pouco mais de um milhão em média em cada um dos anos posteriores, enquanto o número de novos casamentos caiu de quase 775 mil para menos de 520 mil6. À medida que o número de perdas relacionadas à guerra aumentava, Hitler ficou cada vez mais preocupado com o futuro demográfico da Alemanha. Em 15 de agosto de 1942, emitiu uma ordem chamando das linhas de frente o último filho sobrevivente de cada família em que mais de um filho tivesse morrido, porque, disse, tendo em vista o óbvio forte caráter hereditário de bravura e de sacrifício pessoal em tais famílias, “a nação e o Estado têm interesse na continuidade de sua família7”. Heinrich Himmler já havia ordenado aos homens da SS que tivessem filhos, quer dentro dos laços matrimoniais, quer “além dos limites das leis e das convenções burguesas8”. Tinham, é claro, de ser relações racialmente puras, e, de fato, as restrições quanto ao casamento para tais fins foram controladas em 1941, talvez como resposta ao grande número de trabalhadores estrangeiros que estavam então na Alemanha9. Também em janeiro de 1944, fazendo referência ao posicionamento pessoal de Hitler a respeito desse tópico, Martin Bormann escreveu um memorando advertindo a respeito da posição “catastrófica” em que a Alemanha se encontraria depois da guerra, com a “perda de sangue” decorrente da morte maciça dos mais bravos dos homens jovens nas linhas de frente. Ele sugeriu uma série de providências, incluindo educar as mulheres quanto aos benefícios da maternidade e abrandando as leis sobre a ilegitimidade em uma situação em que houvesse um número muito maior de mulheres do que de homens10.

O apoio do regime nazista ao crescimento populacional, que chegava até mesmo a encorajar mulheres racialmente adequadas a ter filhos fora do casamento, levou-o a publicar manuais populares a respeito de como alcançar uma vida sexual feliz. Uma dessas obras foi escrita pelo doutor Johannes Schultz; seu livro Geschlecht-Liebe-Ehe [Sexo-amor-casamento], publicado em 1940, dava instruções detalhadas tanto para o homem quanto para a mulher sobre, entre outras coisas, o melhor modo para alcançar o orgasmo durante a relação sexual. Ao mesmo tempo, a atitude entusiasmada de Schultz no tocante ao sexo heterossexual tinha um lado oposto deprimente, já que ele advogava o extermínio dos deficientes na Aktion T-4 e conduzia “exames” no Instituto Göring de Pesquisa em Psicologia e Psicoterapia, durante os quais homens acusados de homossexualidade eram forçados a ter relações sexuais com prostitutas e mandados para campos de concentração se não conseguissem um desempenho satisfatório. No que diz respeito ao sexo heterossexual, o encorajamento dos nazistas se combinou com as circunstâncias da guerra para produzir o que muitos estudiosos descreveram como um enfraquecimento da moral sexual entre 1939 e 194511. A assistente social de Hamburgo Käthe Petersen reclamou em 1943 que o comportamento das mulheres sofrera uma deterioração acentuada durante a guerra; moral enfraquecida, devassidão e até mesmo a prostituição haviam se tornado comuns:

 

Muitas esposas que antes eram respeitáveis tinham ficado cientes da existência de outros homens por irem trabalhar. Em muitas empresas – a empresa de bondes é um exemplo particularmente bom –, os trabalhadores homens parecem ter adquirido o hábito de ir atrás da esposa dos soldados. Em muitas fábricas também, as esposas têm sido desencaminhadas por causa da influência corrosiva de algumas de suas colegas mais grosseiras. As mulheres que antes se dedicavam às tarefas domésticas, e eram boas mães, têm sido levadas por tais influências a negligenciar seu trabalho doméstico e seus filhos, e a se interessar apenas por aventuras noturnas e pela busca de companhia masculina12.

 

O Serviço de Segurança da SS relatou em 13 de abril de 1944 que os soldados no front estavam começando a ficar preocupados com as histórias de infidelidade das mulheres casadas que estavam na Alemanha. Havia um crescimento acentuado da imoralidade feminina, afirmava o relatório, e era particularmente preocupante que as mulheres jovens não vissem nada de errado em se satisfazer tendo relações sexuais com trabalhadores estrangeiros ou com prisioneiros de guerra racialmente inferiores. Denúncias frequentemente levavam à prisão de tais mulheres e, como Himmler havia instruído em janeiro de 1940, seu envio para campos de concentração por um período mínimo de um ano se o comportamento delas ofendesse “sentimentos populares13”.

O relatório do Serviço de Segurança da SS de 1944 responsabilizava a ociosidade feminina, e não o trabalho da mulher, pela imoralidade, particularmente

 

os relativamente altos benefícios familiares dados às esposas e viúvas dos soldados [...] Essas mulheres não precisam procurar emprego, já que, em muitos casos, o nível dos benefícios familiares garante a elas um padrão de vida até mais alto do que o que tinham antes da guerra. O tempo e o dinheiro que estão à sua disposição levam-nas a passar as tardes e as noites em cafés e em bares; não precisam pensar duas vezes antes de se regalar com bebidas e vinhos caros e, acima de tudo, têm condições de pagar aos homens – na maior parte, soldados – tudo isso também14.

 

Outros fatores incluíam a erotização da vida pública, por meio de canções de sucesso e de filmes e teatros de revista populares, e o sentimento encontrado entre algumas mulheres de que, se os soldados estavam, como provavelmente era o caso, “pulando a cerca”, as mulheres “tinham os mesmos direitos e também podiam se divertir15”. O sexo estava até mesmo se tornando uma mercadoria, com as mulheres jovens de modo particular trocando-o por alimentos difíceis de encontrar e luxos, como chocolates, meias de seda ou cigarros. Principalmente durante os últimos ataques aéreos, havia um sentimento generalizado de que a vida não valia muita coisa e poderia facilmente ser interrompida, então as mulheres e as moças decidiram vivê-la ao máximo enquanto podiam16.

Entretanto, pode ser colocado em dúvida se tudo isso fazia parte de um aumento geral do poder e da liberdade de ação da mulher, como alegaram algumas historiadoras feministas. É certo que, durante a guerra, as mulheres tinham de cuidar de si mesmas, tomar conta de sua família sem a presença controladora de seu marido e ter mais desenvoltura e iniciativa para administrar sua vida cotidiana. Mas fizeram isso em circunstâncias cada vez mais difíceis, com falta de combustível e de alimentos criando preocupações e ansiedades; ataques aéreos ou evacuação forçada virando sua vida de ponta-cabeça e a luta geral para sobreviver levando ao cansaço e à exaustão. As esposas que abandonavam ou denunciavam o marido era a minoria. A maioria mantinha correspondência regular com eles; pedia-lhes conselhos em suas cartas e estava ansiosa pela volta deles: “Ah”, como escreveu uma delas para seu marido em 17 de abril de 1945, “se você estivesse aqui conosco, então tudo seria muito, muito melhor e mais fácil17.” Os homens voltavam para casa em licença em intervalos cada vez mais irregulares na parte final da guerra. As mulheres casadas costumavam manter fotografias do marido em destaque em casa para que as crianças se lembrassem de sua existência, falavam regularmente a respeito dele e tentavam o máximo possível fazer dele uma presença na vida familiar. Por sua vez, os pais, frequentemente, davam conselhos e incentivos, ou mandavam censuras e críticas, do front, controlando sua família tanto quanto lhes fosse possível daquela distância. Eles até mesmo discutiam os boletins escolares. “A nota de inglês do Karl caiu por causa da preguiça”, escreveu um pai no front, reconhecidamente um professor, para sua esposa. “Ele sente falta da influência disciplinadora de um pai18.” “Estou devolvendo seu livro de exercícios”, escreveu outro pai que estava no front para seu filho de nove anos, em 1943. “Continue assim tão estudioso e você vai deixar seus pais muito orgulhosos. Seu trabalho sobre a história local está muito bom19.”

 

 

II

 

Um motivo para a relativa falta de sucesso da tentativa de Himmler de produzir mais crianças para a nação por meio do encorajamento de nascimentos ilegítimos se encontra no fato de que a maioria esmagadora dos alemães ainda regulava sua vida moral sobretudo pelos ditames da religião cristã. Em 1939, 95% dos alemães se descreveram ou como católicos ou como protestantes; 3,5% eram “deístas” (gottgläubig) e 1,5% ateus: quase todas as pessoas nas duas últimas categorias eram nazistas convencidos de que haviam abandonado sua Igreja a pedido do Partido, que estava tentando, desde a metade da década de 1930, reduzir a influência do cristianismo na sociedade20. Sobretudo nas áreas rurais e entre as gerações mais velhas, a presença predominante do cristianismo encorajava atitudes mais conservadoras em relação à moral sexual, reforçada pela pregação dos pastores e dos padres. Esse fato não era bem recebido pela hierarquia nazista. Durante a década de 1930, Hitler havia limitado, tanto quanto possível, a autonomia da Igreja Católica, que contava com mais seguidores no sul e no oeste da Alemanha, e, como consequência, as relações entre o Terceiro Reich e a Igreja tinham se deteriorado seriamente. No centro e no norte protestante da Alemanha, a tentativa de criar uma fusão da ideologia nazista e de uma Igreja expurgada de seus elementos “judaicos” no movimento cristão alemão tinha falhado claramente, e a oposição ferrenha dos pastores fundamentalistas na assim chamada Igreja Confessional não era a menor das causas. Um ministro da Igreja, Hans Kerrl, entusiasmado defensor dos cristãos alemães, morreu como um homem desapontado aos 54 de idade em 12 de dezembro de 1941. Quando a guerra começou, a situação interna do protestantismo alemão era algo parecido com um beco sem saída, já que nenhum dos lados realmente venceu a batalha, e a grande massa de protestantes comuns tentava encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois21.

A hostilidade de Hitler em relação ao cristianismo atingiu novas alturas, ou profundidades, durante a guerra. Esse era um tema frequente de seus monólogos na hora das refeições. Depois que a guerra acabasse e a vitória estivesse assegurada, ele dizia em 1942, a Concordata que assinara com a Igreja Católica em 1933 seria formalmente abolida, e a Igreja seria encarada como qualquer outra associação voluntária não nazista. O Terceiro Reich “não admitiria a intervenção de nenhuma influência estrangeira”, tal como o papa, e o núncio papal teria de, finalmente, voltar para Roma22. Os padres, ele dizia, eram “insetos negros”, “aberrações em sotainas23”. Hitler enfatizava repetidas vezes sua crença de que o nazismo era uma ideologia secular baseada na ciência moderna. A ciência, ele declarou, destruiria com facilidade os últimos vestígios da superstição. “Coloquem um pequeno telescópio em um vilarejo e vocês destruirão um mundo de superstições24.” “O melhor a fazer”, ele declarou em 14 de outubro de 1941, “é deixar o cristianismo morrer de morte natural. Há algo reconfortante em uma morte lenta. O dogma do cristianismo desaparece perante os avanços da ciência25.” Ele tinha um olhar particularmente crítico em relação ao que considerava uma violação da lei da seleção natural e da sobrevivência do mais apto. “Levado a sua lógica mais extrema, o cristianismo significaria o cultivo sistemático da falha humana26.” O cristianismo era indelevelmente judaico em sua origem e constituição. Era “um protótipo do bolchevismo: a mobilização, por parte dos judeus, das massas de escravos com o intuito de debilitar a sociedade27”. O cristianismo era uma droga, um tipo de doença. “Sejamos o único povo que é imune a essa doença28.” “A longo prazo”, ele concluiu, “o nacional-socialismo e a religião não poderão mais existir conjuntamente.” Não perseguiria as igrejas: elas simplesmente feneceriam. “Mas, nesse caso, não devemos colocar no lugar da Igreja algo semelhante. Isso seria apavorante!29” O futuro era nazista, e o futuro seria secular.

Todavia, quando a guerra eclodiu, Hitler, preocupado com o fato de que uma deterioração nas relações Igreja-Estado pudesse enfraquecer a solidariedade nacional no prosseguimento da guerra, a princípio amenizou sua política anticristã. O regime exerceu pressão sobre os líderes eclesiásticos de ambas as igrejas para que apoiassem publicamente o esforço de guerra, o que eles fizeram. Uma ordem de suspensão de encontros religiosos, estabelecida pela Gestapo nas primeiras semanas da guerra, logo foi cancelada. Capelães militares foram rapidamente designados para as unidades das tropas e demonstraram que eram populares entre os soldados. Mas a trégua não durou muito. À medida que Hitler e os nazistas mais proeminentes ficaram mais confiantes quanto ao futuro da guerra, voltaram a atacar as igrejas. Relatórios de visitas feitas a igrejas protestantes na Francônia na primavera de 1941 começavam afirmando que “a luta contra a Igreja foi retomada de modo marcante”. Publicações anticristãs estavam sendo distribuídas pelo Partido uma vez mais30. Martin Bormann passou uma circular para os líderes regionais do Partido em junho de 1941, relembrando-os de que o nacional-socialismo era incompatível com o cristianismo e instando-os a fazer tudo que pudessem para reduzir a influência das igrejas31. Muitos dos líderes regionais, como Arthur Greiser em Wartheland, por exemplo, já eram furiosamente anticristãos e precisavam de pouco encorajamento para seguir a iniciativa de Bormann. Logo, estavam sendo permanentemente fechadas as igrejas que ficavam muito distantes dos abrigos antiaéreos, os sinos das igrejas eram derretidos para utilizar o metal para a produção de armamentos, jornais das igrejas eram fechados devido à escassez de papel, e Hermann Göring, o líder nazista encarregado geral de um braço das Forças Armadas, baniu os capelães da Força Aérea. Mencionando a necessidade de um esforço de guerra intensificado, o Estado aboliu alguns feriados religiosos e mandou transferir outros dos dias úteis para os domingos. Os últimos vestígios de educação religiosa foram formalmente abolidos na Saxônia. Propriedades da Igreja em todo o território alemão foram confiscadas para serem transformadas em maternidades, em escolas para crianças evacuadas, ou em hospitais para soldados feridos. Em setembro de 1940, foi estabelecida uma proibição geral para que noviços se juntassem a qualquer ordem religiosa. Então, a partir de dezembro de 1940, os mosteiros e conventos foram desapropriados e os monges e freiras, expulsos. Em maio de 1941, cerca de 130 tinham sido apreendidos pelo Partido ou pelo Estado32.

Desapropriações desse tipo foram, como já vimos, o estopim para a denúncia feita pelo bispo Von Galen do programa de “eutanásia” em 1941. E, na verdade, tais medidas despertaram grande inquietação entre os fiéis. Em 31 de maio de 1941, por exemplo, relataram no distrito rural de Ebermannstadt, na Bavária, que as pessoas estavam simplesmente ignorando a injunção para trabalhar em feriados religiosos:

 

A maior parte da população rural ainda está se mantendo fiel a sua comunidade religiosa. Todas as tentativas para destruir essa lealdade se confrontaram com uma rejeição glacial, e despertaram, parcialmente, descontentamento e ódio. O feriado (legalmente abolido) da Ascensão foi apenas uma séria manifestação contra a interdição do Estado, tanto na comunidade protestante quanto na católica. A supressão do Dia da Ascensão, assim como a interdição à organização de procissões, de peregrinações etc., em dias úteis, é vista como uma simples desculpa para a gradual e contínua remoção de festas da Igreja de modo geral, bem como parte do extermínio completo das comunidades religiosas cristãs33.

 

Cerca de 59 padres foram presos apenas na Bavária por protestarem contra a supressão dos dias sagrados. Essa oposição era séria o suficiente. Mas nenhuma medida anticristã foi sentida com maior intensidade do que um decreto emitido pelo ministro da Educação da Bavária, Adolf Wagner, em 23 de abril de 1941, ordenando que as orações feitas nas escolas fossem substituídas por canções nazistas e que os crucifixos e as pinturas religiosas fossem removidos das paredes das escolas. Multidões de mães indignadas se reuniram fora das escolas onde os crucifixos tinham sido retirados, exigindo a recolocação deles. Abalado por essa oposição pública, Wagner revogou seu decreto depois de apenas duas semanas. Ele não tornou isso público porque não desejava passar vergonha. Exaltados nazistas locais continuaram com a ação, dando origem com isso a protestos ainda mais generalizados dos pais e a manifestações quando o novo ano escolar começou no outono de 1941. Mulheres recolheram milhares de assinaturas em abaixo-assinados exigindo que os crucifixos fossem recolocados. Como poderiam apoiar o marido na luta contra o bolchevismo ateu, perguntaram retoricamente, se a religião estava sendo atacada na pátria? Tiveram o apoio de uma poderosa carta pastoral escrita pelo cardeal Faulhaber, que foi lida em púlpitos de igrejas em 17 de agosto de 1941. Estava claro que a oposição não iria ceder. Humilhado, Wagner teve de emitir uma revogação pública do decreto, libertar os 59 padres, ordenar que todos os crucifixos fossem recolocados nas escolas e permitir que uma oração (com fraseado oficialmente aprovado) fosse lida em voz alta na assembleia matutina. Hitler repreendeu Wagner depois desse fiasco, e lhe disse que seria mandado para Dachau se fizesse alguma coisa tão idiota outra vez34.

O sucesso dos manifestantes era uma prova da profundidade de suas convicções. Ele também foi um produto da natureza gradativa das medidas. Se Wagner as tivesse implementado em uma ação rápida e conjunta, elas teriam maior chance de sucesso. Hitler, Goebbels e até mesmo Bormann perceberam então que a solução final da questão da Igreja teria de esperar até que a guerra terminasse. Era perturbador demais e muito pernicioso para a unidade nacional e para o moral lançar tais ataques, acima de tudo depois que a guerra começou a não dar muito certo. Em 1942, relatórios da Igreja Protestante na Francônia diziam que tudo estava em paz novamente35. A pressão exercida sobre membros do Partido para que abandonassem a Igreja continuava, mas poucos prestavam atenção ao comando. Por outro lado, a situação da Alemanha, que se deteriorava durante a guerra, parece não ter levado muita gente a redescobrir a religião. “A seriedade de nossa época”, segundo o mesmo relatório, “fez que apenas alguns poucos membros da paróquia que se afastaram da Igreja voltassem aos serviços religiosos. De modo geral, é possível perceber apenas uma apatia generalizada na maior parte da população [...] Lamentavelmente, há entre os jovens uma grande inclinação a considerar a Igreja uma quantité négligeable36.” Isso sugeriu que Hitler tinha certa razão ao pensar que, se o Terceiro Reich tivesse uma longa duração no futuro, o cristianismo iria fenecer. A educação nazista e a doutrinação estavam afastando a geração mais jovem dele.

A perseguição, como foi sofrida acima de tudo em 1941, fez que a hierarquia da Igreja Católica ficasse extremamente receosa de se engajar em protestos públicos contra o regime. Os bispos que se preocupavam com problemas como “a questão dos judeus, o tratamento dos prisioneiros de guerra russos, atrocidades da SS cometidas na Rússia etc.”, como dizia um memorando anônimo descoberto posteriormente nos arquivos do cardeal Faulhaber, decidiram se aproximar da liderança nazista para tratar de seus problemas apenas em particular, e se limitando a, publicamente, protestar em termos gerais a respeito da perseguição à Igreja e dos ataques do regime contra os direitos básicos, a propriedade, a liberdade e a vida dos cidadãos alemães. Um protesto público com essa finalidade, datado de 15 de novembro de 1941, foi, entretanto, cancelado por ordem do mais alto membro da hierarquia católica na Alemanha, o cardeal Bertram37. Bertram estava mais preocupado do que a maioria em manter a cabeça baixa, mas, durante os anos de guerra, bispos católicos mostraram publicamente pouco interesse em relação ao extermínio em massa dos judeus ou dos prisioneiros de guerra soviéticos. Até mesmo Clemens von Galen permaneceu em silêncio. Em seu famoso sermão de 3 de agosto de 1941, que condenava a campanha da eutanásia, ele também se referiu aos judeus, mas apenas perguntando retoricamente se Jesus havia chorado unicamente por Jerusalém, ou se também chorara pela terra da Vestfália. Era um absurdo pensar, deu a entender, que Jesus se lamentara unicamente pelo povo “que havia rejeitado a verdade de Deus, que repudiou a lei de Deus e, assim, condenou a si próprio à ruína38”. Embora tivesse realmente sido abordado por pelo menos um judeu na esperança de que fizesse alguma coisa para ajudar os judeus, ele nada disse ou fez, nem mesmo de modo particular39.

Conrad, conde Preysing, bispo de Berlim, foi talvez o mais persistente defensor, na Igreja Católica, de uma política que condenasse publicamente os maus-tratos impostos pelo regime aos judeus. Em agosto de 1943, ele tinha o esboço de uma petição ao regime, a qual esperava que fosse assinada por todos os bispos da Alemanha. Condenando a brutal evacuação dos judeus da Alemanha, ela, no entanto, não mencionava o extermínio deles, e apenas solicitava que as deportações fossem conduzidas de modo a respeitar os direitos humanos dos degredados. Mas os bispos católicos rejeitaram a petição, optando, pelo contrário, por uma carta pastoral que pedia a seu rebanho que respeitasse o direito à vida de pessoas de outras raças. Preysing interpelou o núncio papal, apenas para ouvir: “É muito certo e muito bom amar o teu próximo, mas o amor mais fraterno consiste em não causar nenhuma dificuldade para a Igreja40”. O relativo silêncio da Igreja Católica na Alemanha refletia sobretudo a crescente preocupação do papa Pio XII a respeito da ameaça do comunismo, uma preocupação que se tornou ainda maior quando as forças alemãs ficaram em uma situação difícil no front oriental e o Exército Vermelho começou a avançar. O papa nunca conseguira esquecer sua experiência como núncio papal em Munique durante as revoluções comunista e anarquista de 1919, acontecimentos aos quais ele se referiu ao receber o novo embaixador alemão para o Vaticano, Ernst von Weizsäcker, em julho de 1943. À medida que a guerra prosseguia, Pio XII chegou a considerar o Reich alemão como a única defesa da Europa contra o comunismo, sobretudo depois da queda de Mussolini e tendo em vista a força crescente dos grupos guerrilheiros no norte e no centro da Itália, e reservadamente condenou a exigência aliada de uma rendição incondicional. Direcionou seus esforços para usar o status de neutralidade internacional do Vaticano para trabalhar por um tratado de paz que deixasse intacta a Alemanha anticomunista. A fim de alcançar seu objetivo, o papa considerou melhor não erguer sua voz contra o extermínio dos judeus, com medo de comprometer a neutralidade do Vaticano. No entanto, isso não o impediu de lançar uma série de condenações contundentes ao programa de “eutanásia” em cartas escritas a seus bispos na Alemanha; e também não o impediu de fazer declarações públicas, em maio e em junho de 1943, manifestando sua solidariedade em relação ao sofrimento do povo polonês, como ele já fizera em dezembro de 193941.

Como demonstrou ao escrever para Preysing em abril de 1943, o papa temia que os protestos públicos levassem a uma perseguição renovada à Igreja na Alemanha. Ele não se sentia inclinado a interferir para ajudar os judeus. Um posicionamento público contra a matança não a interromperia, ele pensou, e na verdade poderia simplesmente torná-la mais rápida. Além disso, com a presença alemã em Roma, críticas abertas poderiam trazer tropas alemãs para o Vaticano. O máximo que poderia fazer, disse ele a Preysing, era rezar pelos “católicos não arianos ou meio-arianos [...] no colapso de sua existência exterior e em sua privação espiritual”. Ao contrário do que alguns de seus críticos têm alegado, não há provas convincentes de que Pio XII fosse um antissemita ou de que tivesse concluído, baseado em sua experiência em Munique em 1919, que o comunismo fazia parte de uma conspiração judaica mundial42. Mas, por outro lado, ele tinha plena consciência, em abril de 1943, de que os judeus, incluindo os católicos de origem judaica, não estavam sofrendo apenas espiritual e materialmente, mas estavam sendo mortos em grande quantidade pelos alemães. Pio XII sabia, é claro, que muitos padres católicos na Itália, incluindo alguns na Cidade do Vaticano, estavam acolhendo os judeus, depois que os alemães começaram a ameaçar a existência deles a partir do outono de 1943. Ele nada fez para impedir tais ações, mas não participou delas pessoalmente, nem proferiu uma única palavra que encorajasse os padres a agir. Sempre um cauteloso diplomata de carreira, Pio XII fez o que considerou melhor para os interesses da Igreja Católica, tanto na Itália quanto em outros lugares43.

As coisas estavam apenas um pouco diferentes entre os protestantes alemães. Em 4 de abril de 1939, os cristãos alemães fizeram uma declaração em Bad Godesberg afirmando que a Igreja tinha “responsabilidade em manter nosso povo racialmente puro” e insistindo que não havia “contradição maior” que a existente entre o judaísmo e o cristianismo. No mês seguinte, a Igreja Confessional respondeu com um documento parecido concordando que “a preservação da pureza de nosso povo requer uma política racial enérgica e responsável”. Poucas pessoas terão percebido grande diferença entre as duas posições44. Em uma ocasião, a Igreja Confessional realmente ergueu sua voz em protesto. Quando a Chancelaria da Igreja, que era formalmente a liderança da Igreja Evangélica, juntamente com três bispos, lançou uma carta aberta exigindo “que não arianos batizados se afastassem das atividades da Igreja da congregação alemã”, os líderes da Igreja Confessional perguntaram diretamente se, nesse caso, Cristo e os apóstolos teriam sido expulsos da Igreja por motivos raciais, caso tivessem vivido no Terceiro Reich. E quando a perseguição se converteu em extermínio em massa, um protestante proeminente tentou parar a perseguição aos judeus. O bispo Theophil Wurm escreveu para Goebbels em novembro de 1941 avisando-o que a campanha contra os judeus estava ajudando a propaganda inimiga. Goebbels jogou a carta em sua cesta de lixo. Outra carta, que Wurm tentou fazer chegar às mãos de Hitler por intermédio de um funcionário público de alto escalão, retomou o assunto mencionando o que ele chamava de “a crescente dureza do tratamento dado aos não arianos45”. Em 16 de julho de 1943, Wurm tentou outra vez. Nessa ocasião, como ele observou, havia perdido tanto seu filho quanto seu genro no front oriental. Escrevendo pessoalmente para Hitler, declarou que as “medidas de aniquilação” direcionadas contra os “não arianos” eram sustentadas pela “mais contundente contradição ao mandamento de Deus e violavam a base de toda a vida e de todo o pensamento ocidental: o direito fundamental dado por Deus à vida e à dignidade humana em geral”. Embora fosse ostensivamente uma carta particular, Wurm mandou fazer cópias dela e as distribuiu na Igreja. Em 20 de dezembro de 1943, Wurm repetiu seus pontos principais em uma carta endereçada a Hans-Heinrich Lammers, chefe da Chancelaria do Reich. “Por meio desta, ponho o senhor de sobreaviso enfaticamente”, respondeu Lammers, “e peço-lhe que no futuro seja mais escrupuloso, permanecendo dentro dos limites de sua profissão.” Política não era assunto para bispos. Ninguém além de Wurm tentou tamanha intervenção e, logo depois de seu protesto, ele foi proibido de escrever ou de falar em público durante o resto da guerra, embora continuasse a pregar e a conduzir os ritos religiosos apesar da proibição46.

 

 

III

 

Se as igrejas não condenavam abertamente o genocídio dos judeus praticado pelo nazismo, ou não tentavam fazer nada para detê-lo, qual era, então, a atitude da massa de alemães comuns a esse respeito? Descobrir algo a respeito da matança não era difícil. Logicamente, as notícias corriam com rapidez aos poucos judeus que permaneciam na Alemanha47. Em janeiro de 1942, Victor Klemperer relatava os boatos de que “os judeus evacuados eram baleados em Riga, em grupos, assim que saíam do trem48”. Em 16 de março de 1942, seu diário citava pela primeira vez “Auschwitz (ou algo parecido com isso), perto de Königshütte, na Alta Silésia, mencionado como o mais pavoroso dos campos de concentração49”. Em outubro de 1942, Klemperer estava se referindo a Auschwitz como um “matadouro que trabalha rápido50”. “O desejo de exterminar está crescendo o tempo todo”, ele observou no fim de agosto de 194251. O extermínio em massa em Auschwitz e em outros lugares estava, notou, “sendo relatado com muita frequência, e por muitas fontes arianas fidedignas, para ser uma lenda52”. Como essa observação sugere, não era difícil ter conhecimento do extermínio em massa de judeus, de poloneses e de outros no leste. Essa informação poderia ser conseguida em diversas fontes. O Serviço de Segurança da SS relatou em março de 1942 que os soldados que voltavam da Polônia estavam falando abertamente a respeito do modo como os judeus estavam sendo mortos lá em grande quantidade53. A Chancelaria do Partido Nazista reclamou em 9 de outubro de 1942 que “discussões” a respeito de “‘medidas muito rígidas’ contra os judeus, particularmente nos Territórios do Leste” estavam “sendo divulgadas por soldados em licença das diversas unidades estacionadas no leste, os quais tiveram pessoalmente a oportunidade de testemunhar tais medidas54”. Funcionários públicos de vários escalões da administração central do Reich liam os relatórios das forças-tarefa ou estavam em contato com administradores no leste55. Funcionários encarregados dos horários nas ferrovias, maquinistas e condutores de trem, e outros funcionários em estações e em depósitos de mercadorias, todos eles podiam identificar os trens e sabiam para onde se dirigiam. Os policiais que capturavam os judeus ou que lidavam com os arquivos ou com as propriedades deles também sabiam. Funcionários do setor imobiliário que transferiam os imóveis dos judeus para os alemães, administradores que lidavam com as propriedades dos judeus – a lista era quase interminável.

Alguns alemães reagiam com entusiasmo declarado à discriminação contra os judeus. Depois de colocar sua estrela amarela, Victor Klemperer pela primeira vez passou pela experiência de ouvir membros da Juventude Hitlerista gritando com ele nas ruas56. Em seu muito minucioso relato da vida cotidiana como judeu na Alemanha nazista durante a guerra, Klemperer anotou uma grande variedade de reações dos alemães comuns na rua quando deparavam com ele usando a estrela amarela. Se uma vez alguém lhe perguntou bruscamente: “Por que você ainda está vivo, seu criminoso?”, outros, completos estranhos, se aproximavam dele e lhe apertavam a mão, sussurrando: “Você sabe o motivo!”, antes de se afastarem rapidamente57. Tais encontros ficaram mais perigosos depois do fim de outubro de 1941, quando o Gabinete Central de Segurança do Reich decretou a prisão de qualquer alemão que demonstrasse algum tipo de atitude amigável em relação a um judeu em público, juntamente com a prisão e o encarceramento em um campo de concentração do judeu em questão58. Entretanto, alguns persistiam. Às vezes, Klemperer conseguia identificar trabalhadores amigáveis como “velhos membros do PSD no mínimo, provavelmente antigos membros do Partido Comunista da Alemanha”, mas ele era maltratado por outros trabalhadores também59. Em uma visita ao Ministério da Saúde, Klemperer ouviu o seguinte de um trabalhador que havia percebido sua estrela de Davi: “Deveriam dar uma injeção neles! Então seria seu fim!60”. Por outro lado, em abril de 1943, um trabalhador que retirava os pertences de um “evacuado” da Casa dos Judeus em Dresden, onde Victor Klemperer morava, murmurou para ele: “Esses porcos malditos – as coisas que estão fazendo na Polônia –, eles me deixam louco de ódio também61”. As rações de alimentos dos judeus eram mais que inadequadas, mas, enquanto alguns lojistas aderiam friamente às regras, outros mostravam certa tendência a não as cumprir seriamente62.

Quando obrigaram os judeus a usar a estrela amarela em suas roupas, para facilitar sua identificação pelo povo, muitos alemães não judeus não reagiram do modo como Goebbels esperava. Há relatos de judeus sendo cumprimentados nas ruas com educação além do normal, pessoas que se aproximavam deles e lhes pediam desculpas ou lhes ofereciam um assento no bonde. Diplomatas estrangeiros, entre eles o embaixador da Suécia e o cônsul-geral dos Estados Unidos em Berlim, observaram demonstrações de simpatia semelhantes por parte da maioria da população, particularmente das pessoas mais velhas. O anúncio público da condição dos judeus como pessoas perseguidas produziu sentimentos de vergonha e de culpa quando foi atribuído a seres humanos vivos e visíveis63. Reações populares à introdução da estrela de Davi foram majoritariamente negativas, e aqueles que a usaram para maltratar e atacar os judeus foram uma minoria64. Quando, não muito tempo depois, a polícia começou a capturar judeus nas cidades alemãs e a levá-los até a estação de trem local para serem deportados para o leste, as reações públicas negativas suplantaram as positivas outra vez. Sobretudo os alemães mais idosos consideraram as deportações chocantes. O Serviço de Segurança da SS relatou, em dezembro de 1941, que as pessoas em Minden estavam dizendo que era “incompreensível como seres humanos podiam ser tratados de modo tão brutal; quer fossem judeus ou arianos, todos eles, no fim das contas, eram pessoas criadas por Deus65”. As pessoas mais voltadas para a religião tinham uma postura particularmente crítica em relação às deportações66. Em Lemgo, uma multidão se reuniu para testemunhar o último transporte de judeus no fim de julho de 1942. Muitos cidadãos, sobretudo os das gerações mais antigas, criticavam, e até membros do Partido Nazista disseram que era muita crueldade com os judeus, que estavam vivendo na cidade por muitas décadas, às vezes, séculos67.

“No trem”, observou Luise Solmitz em Hamburgo em 7 de novembro de 1941, “as pessoas estão demonstrando muita curiosidade; aparentemente, um novo grupo de não arianos que serão mandados embora está sendo reunido em Logenähs68.” Não muito tempo depois, ela ouviu um passante comentar, enquanto uma velha judia estava sendo retirada de um lar para idosos judeus, “levados juntos em tamanho sofrimento”: “Que bom que a canalha está sendo eliminada!”. Mas outra testemunha do acontecido se sentiu incomodada com esse comentário: “O senhor está falando comigo?”, ele perguntou. “Faça o favor de calar a boca69.” Durante todo o verão de 1942, Luise Solmitz testemunhou as repetidas deportações de judeus idosos para Theresienstadt. “Há deportações até mesmo das pessoas mais idosas por toda Hamburgo”, ela observou. Uma pessoa conhecida relatou que “crianças haviam acompanhado a remoção fazendo algazarra”, embora a própria Solmitz nunca tivesse testemunhado tal comportamento. “Uma vez mais, os judeus foram para Varsóvia”, ela comentou em 14 de julho de 1942. “Encontro a confirmação disso nas latas de lixo fora da casa deles, que estavam cheias até as bordas com os ínfimos restos de suas poucas posses, com latas de metal coloridas e velhos abajures, bolsas rasgadas. As crianças estavam vasculhando-as, comemorando, fazendo uma bagunça indescritível70”.

Um novo e inesperado desafio foi oferecido à família Solmitz quando a filha de Friedrich e Luise, Gisela, se apaixonou por um belga que estava trabalhando em uma fábrica de Hamburgo e eles resolveram se casar. No Registro Civil, um funcionário informou para Luise que o Ministério da Justiça do Reich havia revogado o pedido do casal para o casamento, acrescentando:

 

“Os pais do jovem sabem que sua filha é uma mestiça de primeiro grau? Tenho certeza de que deram o consentimento, mas, eles sabem disso?” – “A Bélgica não reconhece tais leis ou pontos de vista.” – “O que a senhora quer dizer com ‘Bélgica’? Atualmente, não usamos nem mais o termo ‘Alemanha’. Nós pensamos: ‘Europa’. Nenhum judeu deve permanecer na Europa. Este é meu ponto de vista pessoal – não o oficial, mas eu percebo por alguns sinais que os judeus serão tratados com severidade ainda maior do que antes.” Ele me disse isso duas vezes. E fiquei lá sentada, indefesa. “Veja”, ele continuou a fazer o sermão para mim, “o que os judeus fizeram na Rússia, nos Estados Unidos. Agora nós estamos reparando nisso pela primeira vez.”

 

Quando Luise Solmitz foi ousada a ponto de mencionar seu marido judeu, o funcionário ficou assombrado. “Seu marido ainda está aqui?!”, exclamou ele, descrente71.

 

 

IV

 

Algumas poucas pessoas tentaram salvar os judeus do jeito que puderam. A história do empresário Oskar Schindler é muito conhecida: tcheco de origem alemã e membro do Partido Nazista, ele se tornou proprietário de uma fábrica de esmalte em Cracóvia quando o dono judeu perdeu a posse dela, e empregou 1.100 trabalhadores forçados judeus, além de ter se engajado em inúmeras atividades do mercado negro, comerciando objetos de arte provenientes de saques e se envolvendo em outras formas de corrupção. À medida que o tempo passou, contudo, Schindler começou a se sentir ultrajado pelo tratamento imposto a judeus poloneses e conseguiu usar seu dinheiro e suas conexões para proteger os que estavam trabalhando para ele. Quando o Exército Vermelho começou a se aproximar, Schindler obteve permissão para evacuar seus trabalhadores para uma fábrica de armamentos nos Sudetos, embora ela nunca tivesse produzido nenhuma arma. Os judeus sobreviveram à guerra, mas Schindler havia perdido quase toda sua fortuna para protegê-los, e não conseguiu prosperar no mais organizado mundo dos negócios do pós-guerra. Mudou-se para a Argentina em 1948, mas foi obrigado a abrir falência uma década depois, e voltou para a Alemanha, vivendo primeiro em Frankfurt e depois em Hildesheim. Schindler morreu como um homem relativamente pobre em 1974, aos 66 anos de idade72.

Outro resgatador, o oficial do Exército alemão, e antigo professor, Wilm Hosenfel, católico, também começou empregando poloneses e judeus na administração da escola de esportes do Exército em Varsóvia, para protegê-los da prisão. “Quantos eu já ajudei!”, ele escreveu para sua esposa em 31 de março de 1943, acrescentando uns meses depois: “Não tenho uma consciência tão pesada que deva ter medo de alguma retaliação73”. Em 17 de novembro de 1944, Hosenfeld deparou com um judeu faminto que havia sobrevivido ao gueto e vivia em uma casa abandonada que Hosenfeld planejava usar como o novo quartel-general do comando do Exército74. Ele descobriu que o homem era um conhecido pianista profissional, Wladyslaw Szpilman, cujos recitais de rádio tinham-lhe garantido fama nacional na Polônia antes da guerra. Hosenfeld o escondeu no sótão, enquanto o comando do Exército alemão se mudava para os andares de baixo, e forneceu-lhe comida e roupas de inverno até que os alemães abandonaram a cidade. Nunca disse seu nome para Szpilman, nem, por óbvias questões de segurança, fez nenhuma menção em seu diário ao que havia feito. Não foi senão em 1950 que o pianista, que nessa época tinha retomado sua carreira na Polônia, descobriu a identidade de seu resgatador75.

Houve outros, menos conhecidos, que ajudaram a manter um total de muitos milhares de judeus escondidos em Berlim, em Varsóvia, em Amsterdã e em muitas outras cidades ocupadas. Estavam aí incluídos grupos estimulados por crenças socialistas ou religiosas ou às vezes simplesmente humanitárias, como escoteiros, organizações de caridade, clubes de estudantes e uma grande variedade de grupos preexistentes. Muitos judeus, especialmente na França, conseguiram se esconder no interior, com a ajuda de amáveis ou compadecidos fazendeiros e de habitantes dos vilarejos. Um dos muitos grupos dedicados ao salvamento era a Organização para o Resgate de Crianças e Proteção da Saúde de Populações Judias, fundada na Rússia em 1912. Sua seção francesa escondeu centenas de crianças judias, muitas delas refugiadas da Alemanha e da Áustria, dando-lhes documentos de identidade falsos, mandando-as para famílias não judias dispostas a correr o risco, ou levaram-nas às escondidas para a Espanha e para a Suíça. No total, grupos clandestinos como esse conseguiram esconder muitos milhares de judeus ou mandá-los em segurança para fora da Europa ocupada pela Alemanha76. Mas, é claro, esses milhares devem ser colocados em contraste com os milhões que não sobreviveram.

Um pequeno número de pessoas também tentava transmitir notícias do extermínio para o mundo além da Europa dominada pela Alemanha. No fim de julho de 1942, o industrial alemão Eduard Schulte, que mantinha bom relacionamento com membros destacados do regime, viajou para Zurique, onde contou a um amigo de negócios judeu que Hitler havia planejado a aniquilação total dos judeus da Europa até o fim do ano. Cerca de 4 milhões de judeus seriam transportados para o leste para serem mortos, provavelmente com uso de ácido sulfúrico, ele disse. A informação chegou até Gerhart Riegner, do Congresso Mundial Judaico, que tomou as providências necessárias nas embaixadas britânica e americana para transmiti-la por telegrama para seu quartel-general em Nova York. Tais relatos eram frequentemente recebidos com ceticismo entre as pessoas às quais eram dirigidos. A monstruosidade do crime parecia inacreditável. O governo dos Estados Unidos aconselhou o Congresso a classificar o relatório de Riegner como confidencial até ser verificado por fontes independentes77. Informações mais confiáveis e precisas poderiam ser obtidas apenas por uma testemunha ocular. Uma das mais extraordinárias delas era Kurt Gerstein, um especialista em desinfecção no Instituto de Higiene da SS Militar. Gerstein foi enviado pelo Escritório Central de Segurança do Reich, no verão de 1942, para entregar 100 quilos de Zyklon-B em Lublin para um propósito não divulgado. Em 2 de agosto de 1942, ele estava em Belzec e viu quando chegou um trem repleto de judeus vindos de Lvov; eles foram forçados a tirar as roupas e levados por auxiliares ucranianos para as câmaras de gás, onde, segundo lhes disseram, seriam desinfetados. Lá dentro, tiveram de aguardar duas horas e meia, chorando e se lamentando, enquanto os mecânicos que estavam fora tentavam fazer que o motor a diesel funcionasse. Assim que o motor começou a funcionar, Gerstein observou meticulosamente, foram necessários apenas 32 minutos para matar as pessoas que estavam dentro da câmara. Protestante devoto, Gerstein ficou chocado com o que testemunhou. Na viagem de volta de Varsóvia a Berlim, expôs tudo isso a Göran von Otter, um diplomata sueco, que relatou os detalhes em um despacho para o Ministério das Relações Exteriores da Suécia depois de verificar discretamente as credenciais de Gerstein. O despacho ficou parado lá até o fim da guerra, mantido em segredo por funcionários que temiam que ele pudesse ofender os alemães. De volta a Berlim, Gerstein importunou o núncio papal, os líderes da Igreja Confessional e a embaixada da Suécia com sua história, mas sem conseguir nada. Entretanto, Gerstein não pediu demissão ou transferência de seu cargo, como seria de esperar. Continuou a entregar remessas de Zyklon-B para o campo, enquanto redobrava seus inúteis esforços para divulgar informações a respeito do que estava acontecendo. Por fim, escreveu três relatos separados a respeito do que havia visto, acrescentando informações obtidas com outras pessoas envolvidas. Ele os manteve em segredo, contudo, e foi somente no fim da guerra que os tornou públicos, entregando-os aos americanos. Preso como suposto criminoso de guerra, Gerstein se enforcou em sua cela em 25 de julho de 1945, provavelmente por remorso de ter falhado ou por culpa de não ter feito mais78.

Foi da Polônia que vieram os esforços mais determinados para contar ao mundo a respeito do programa de extermínio. Membros da resistência mandaram informações sobre as mortes nas câmaras de gás em Treblinka, assim que elas começaram, para o governo polonês exilado em Londres. Em 17 de setembro de 1942, o governo polonês no exílio deu sua aprovação para um protesto público contra os crimes que os alemães estavam cometendo contra os judeus, mas não organizou nenhuma ação concreta, não encorajando os poloneses a abrigar os judeus, nem os judeus a buscar proteção com os poloneses. Chamar muito a atenção para os judeus iria, de acordo com o ponto de vista do governo polonês exilado, desviar a opinião do mundo quanto ao sofrimento dos poloneses, enfraquecendo a tentativa do governo de lutar contra o programa de Stálin de fazer que os aliados reconhecessem a fronteira nazista-soviética estabelecida antes da divisão da Polônia em setembro de 1939. Alguns políticos no governo exilado acreditavam que havia influência judaica não apenas por trás de Stálin, mas também de Churchill e de Roosevelt. Ela poderia ser exercida a favor do reconhecimento da Linha Curzon79. A situação se alterou somente quando, em 1942, Jan Karski, membro da clandestinidade polonesa, foi designado pela resistência para ir a Londres e relatar as condições na Polônia. A morte dos judeus ocupava um lugar bem baixo na lista de prioridades que lhe fora dada. Ao saber de sua missão, contudo, dois membros da resistência judaica persuadiram-no a visitar o gueto de Varsóvia e, mais provavelmente, também o campo em Belzec. Karski relatou o que vira quando finalmente chegou a Londres80.

Seu relato teve um efeito surpreendente. Em 29 de outubro de 1942, o arcebispo de Canterbury presidiu um grande protesto público no Albert Hall em Londres, com representantes das comunidades judaica e polonesa presentes. Em 27 de novembro de 1942, o governo polonês no exílio em Londres por fim reconheceu oficialmente o fato de que os judeus da Polônia e de outras partes da Europa estavam sendo mortos no território que ele pleiteava ser seu. Representantes do governo informaram Churchill, e, em 14 de dezembro de 1942, o secretário de Estado Eden entregou um relatório oficial a respeito do genocídio para o Gabinete do Reino Unido. Três dias depois, os governos aliados lançaram uma declaração conjunta prometendo a retaliação aos responsáveis pelo extermínio em massa dos judeus na Europa81. Os aliados concluíram que o melhor jeito de interromper o genocídio era se concentrar em vencer a guerra o mais rapidamente possível. Bombardear as linhas ferroviárias que conduziam a Auschwitz e a outros campos daria apenas uma folga temporária aos judeus, e desviaria recursos e atenção do propósito maior de derrubar o regime que os estava matando82. O que os aliados realmente fizeram, contudo, foi direcionar uma campanha maciça de propaganda contra o regime nazista. Começando em dezembro de 1942, os sistemas de propaganda britânicos e aliados bombardearam os cidadãos alemães com informações escritas e transmitidas via rádio a respeito do genocídio, prometendo retaliação83. Em Berlim, confrontados com essas acusações, os propagandistas nazistas nem se deram ao trabalho de emitir uma declaração negando tudo. Em termos de contrapropaganda, disse Goebbels,

 

nem se deve pensar em uma negação completa ou parcial dessas alegações de atrocidades contra os judeus, mas simplesmente uma ação alemã que vai se relacionar com atos ingleses e americanos de violência no mundo todo [...] Deve ser assim, que cada grupo acuse cada grupo de cometer atrocidades. Esse clamor geral vai, no fim, fazer que esse tópico seja removido do programa84.

 

O extermínio em massa dos judeus então se tornou um tipo de segredo conhecido por todos na Alemanha desde o fim de 1942 até o último momento, e Goebbels sabia que seria inútil negá-lo.

A evidência, portanto, não sustenta a alegação feita por muitos alemães imediatamente depois da guerra de que nada tinham sabido a respeito do extermínio dos judeus. Contudo, ela também não sustenta o argumento de que os alemães de modo geral eram defensores fanáticos do antissemitismo assassino do regime, ou a alegação de que o ódio aos judeus era uma força significativa na manutenção de uma “comunidade do povo” ou antes da guerra ou durante85. Surpreendentemente, os volumosos relatórios de vigilância do Serviço de Segurança da SS tinham relativamente pouco a dizer a respeito do assunto. Havia boas razões para isso. Como observou um serviço de informações clandestino do Partido Social-Democrata em março de 1940:

 

O terror disseminado leva os “camaradas nacionais” a disfarçar seu real estado de espírito, a deixar de expressar suas verdadeiras opiniões e, pelo contrário, a fingir otimismo e aprovação. Na verdade, ele está de modo óbvio forçando cada vez mais pessoas a aceitar as exigências do regime mesmo quanto ao modo de pensar; elas não ousam mais censurar. A camada exterior de lealdade que se forma dessa maneira ainda pode durar muito tempo86.

 

A discussão franca relacionada à perseguição e à matança dos judeus era, então, relativamente rara, e poucas vezes relatada até mesmo pelo Serviço de Segurança da SS87. Não obstante, as evidências disponíveis sugerem que, no conjunto, os alemães comuns não as aprovavam. As campanhas de propaganda de Goebbels produzidas na segunda metade de 1941 e outra vez em 1943 não haviam conseguido convertê-los. Mas, se não era possível fazer que as pessoas aprovassem a matança dos judeus, então talvez o evidente conhecimento por parte delas pudesse ser usado para persuadi-las a continuar a lutar por medo do que os judeus poderiam lhes fazer como vingança, particularmente se, como alegava a propaganda nazista, os judeus controlavam os inimigos da Alemanha: Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética88.

Os dois últimos anos da guerra estavam repletos de propaganda sobre as atrocidades vinda da mídia de massas de Goebbels: o Exército Vermelho, de modo particular, era retratado, e não de modo totalmente incorreto, como determinado a violentar e a matar os alemães à medida que avançava. No entanto, os efeitos dela não foram os projetados por Goebbels. Longe de levar a um fortalecimento da determinação entre os alemães comuns, essa propaganda apenas servia para revelar sentimentos de culpa profundamente enraizados por nada terem feito para impedir que os judeus fossem mortos. Tal sentimento era um subproduto inesperado das persistentes convicções cristãs da grande maioria de cidadãos alemães. Em junho de 1943, por exemplo, relatou-se que “grupos clericais” na Bavária estavam reagindo desse modo à campanha de propaganda de Goebbels centrada no massacre dos oficiais poloneses pelos soviéticos em Katyn. Segundo a Chancelaria do Partido em Munique, eles diziam:

 

A SS usou métodos similares de carnificina em sua luta contra os judeus no leste. O tratamento pavoroso e desumano dos judeus pela SS praticamente exige a punição do Senhor Deus para nosso povo. Se esses assassinatos não forem vingados, então não há mais nenhuma justiça divina! O povo alemão fez recair uma culpa tão grande sobre si mesmo que ele não pode contar com nenhum tipo de piedade ou de perdão. Tudo é vingado de modo implacável aqui na Terra. Por causa desses métodos bárbaros não há mais possibilidade de uma condução humana da guerra por parte de nossos inimigos89.

 

Quando a catedral de Colônia foi bombardeada no mês seguinte, as pessoas disseram que isso acontecera como retaliação pelo incêndio de sinagogas em 193890. Em 3 de agosto de 1943, um agente do Serviço de Segurança relatou que as pessoas na Bavária estavam dizendo “que Würzburg não tinha sido atacada por aviação inimiga porque lá nenhuma sinagoga fora incendiada. Outras disseram que os aviadores iriam atacar Würzburg também porque o último judeu deixara Würzburg pouco antes”. Em 20 de dezembro de 1943, o bispo protestante de Württemberg, Theophil Wurm, escreveu para Hans-Heinrich Lammers, o funcionário público que era o líder da Chancelaria do Reich de Hitler havia muito tempo, relatando que em muitos casos o povo alemão considerava

 

o sofrimento que tinha de enfrentar por causa dos ataques aéreos inimigos uma retaliação pelo que fora feito aos judeus. Incêndios de casas e de igrejas, o som das bombas caindo e despedaçando tudo em noites de bombardeio, a fuga das casas que tinham sido destruídas levando apenas algumas poucas posses escassas, a perplexidade ao buscar um lugar para poder se refugiar, tudo isso fazia que a população se lembrasse da maneira mais dolorosa possível o que os judeus tiveram de sofrer em ocasiões anteriores91.

 

Apenas pouco mais de um ano depois, em 6 de novembro de 1944, um relatório do Serviço de Segurança da SS em Stuttgart disse que a propaganda de Goebbels, que mostrava com clareza os saques, as mortes e os estupros cometidos pelas tropas do Exército Vermelho em Nemmersdorf, na Prússia Oriental,

 

em muitos casos produzia um efeito oposto ao pretendido. Compatriotas dizem que é uma vergonha falar tanto deles na imprensa alemã [...] “O que a liderança tenciona com a publicação de fotos como aquelas do Jornal Nacional-Socialista no sábado? Eles deveriam perceber que ver aquelas vítimas vai fazer que toda criatura consciente se lembre das atrocidades que nós temos cometido no território inimigo, até mesmo na própria Alemanha. Nós não matamos milhares de judeus? Os soldados não contam uma vez depois da outra que os judeus na Polônia têm de cavar sua própria cova? E como tratamos os judeus no campo de concentração na Alsácia? Os judeus são seres humanos também. Fazendo tudo isso, mostramos ao inimigo o que eles podem fazer conosco se vencerem”. (Opinião de inúmeras pessoas de todas as camadas da população92.)

 

“Os próprios judeus vão se vingar de nós pelos crimes que cometemos contra eles”, predisse uma carta anônima enviada ao editor de notícias no Ministério da Propaganda em 4 de julho de 194493. O temor e a culpa estavam levando a maioria dos alemães a temer a retaliação dos aliados. A partir de 1943, eles estavam se preparando mentalmente para evitar essa retaliação tanto quanto lhes fosse possível, negando completamente terem conhecimento do genocídio assim que a guerra fosse perdida.

 


 

1 Citado em Vandana Joshi, Gender and Power in the Third Reich: Female Denouncers and the Gestapo, 1933-45 (Londres, 2003), p. 60.

2 Ibid., p. 59-61.

3 Rita Wolters, Verrat für die Volksgemeinschaft: Denunziantinnen im Dritten Reich (Pfaffenweiler, 1996), p. 59-61.

4 Joshi, Gender, p. 168-97.

5 Ibid., p. 152; de modo mais geral, consultar Birthe Kundrus, Kriegerfrauen: Familienpolitik und Geschlechterverhältnisse im Ersten und Zweiten Weltkrieg (Hamburgo, 1995).

6 Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 374.

7 Ibid.; consultar também Michelle Mouton, From Nurturing the Nation to Purifying the Volk: Weimar and Nazi Family Policy, 1918-1945 (Nova York, 2007), p. 224-32.

8 Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 368-9.

9 Ibid., p. 373.

10 Ibid., p. 375-84.

11 Dagmar Herzog, “Hubris and Hypocrisy, Incitement and Disavowal: Sexuality and German Fascism”, in eadem (ed.), Sexuality and German Fascism, p. 1-21, nas p. 18-9.

12 Citado em Stibbe, Women, p. 155.

13 Noakes, Nazism, IV, p. 385-90.

14 Boberach (ed.), Meldungen, XVI, p. 6487 (em itálico no original); Mouton, From Nurturing the Nation, p. 186, 193-4.

15 Boberach (ed.), Meldungen, XVI, p. 6487.

16 Ibid.; também Stibbe, Women, p. 159.

17 Wirrer (ed.), Ich glaube an den Führer, p. 324 (Inge para Fred, 17 de abril de 1945).

18 Gerwin Udke (ed.), “Schreib so oft Du kannst”: Feldspostbriefe des Lehrers Gerhard Udke, 1940-1944 (Berlim, 2002), p. 73 (Gerhard para Dorothea Udke, 3 de abril de 1942).

19 Benedikt Burkard e Friederike Valet (eds.), “Abends wenn wir essen, fehlt uns immer einer”: Kinder schreiben and die Väter, 1939-1945 (Heidelberg, 2000), p. 240 (1o de novembro de 1943).

20 John S. Conway, The Nazi Persecution of the Churches 1933-1945 (Londres, 1968), p. 232-53; Evans, The Third Reich in Power, p. 220-60.

21 Ibid., p. 253, 220-60.

22 Hitler, Hitler’s Table Talk, p. 555-6 (4 de julho de 1942).

23 Ibid., p. 322 (20-21 de fevereiro de 1942).

24 Ibid., p. 323 (20-21 de fevereiro de 1942).

25 Ibid., p. 59 (14 de outubro de 1941).

26 Ibid., p. 51 (10 de outubro de 1941).

27 Ibid., p. 75-6 (19 de outubro de 1941).

28 Ibid., p. 145 (13 de dezembro de 1941).

29 Ibid., p. 6-7 (11-12 julho de 1941).

30 Broszat et al. (eds.), Bayern, I, p. 423 (Aus Visitationsberichten Dekanat Hof (Oberfranken), 1941).

31 Conway, The Nazi Persecution, p. 259-60, 383-6.

32 Ian Kershaw, Popular Opinion and Political Dissent in the Third Reich: Bavaria 1933-1945 (Oxford, 1983), p. 331-40.

33 Broszat et al. (eds.), Bayern, I, p. 148 (Aus Monatsbericht des Landrats, 31 de março de 1941).

34 Kershaw, Popular Opinion, p. 331-57.

35 Broszat et al. (eds.), Bayern, I, p. 424 (Aus Visitationsberichten Dekanat Hof (Oberfranken), 1942).

36 Ibid.

37 Friedländer, The Years of Extermination, p. 302-3.

38 Griech-Polelle, Bishop von Galen, p. 195.

39 Friedländer, The Years of Extermination, p. 303.

40 Citado em Michael Phayer, The Catholic Church and the Holocaust, 1930-1965 (Bloomington, Ind., 2000), p. 75.

41 Friedländer, The Years of Extermination, p. 559-74.

42 Em relação a esse ponto de vista, consultar John Cornwell, Hitler’s Pope: The Secret History of Pius XII (Londres, 1999).

43 Zuccotti, Under His Very Windows; Robert S. Wistrich, “The Vatican Documents and the Holocaust: A Personal Report”, Polin: Studies in Polish Jewry, 15 (2002), p. 413-43.

44 Friedländer, The Years of Extermination, p. 56.

45 Ibid., p. 300.

46 Heinrich Hermelink (ed.), Kirche im Kampf: Dokumente des Widerstands und des Aufbaus in der evangelischen Kirche Deutschlands von 1933 bis 1945 (Tübingen, 1950), p. 654-8, 700-2; Theophil Wurm, Aus meinem Leben (Stuttgart, 1953), p. 88-177; ele se aposentou em 1949, aos 80 anos de idade, e morreu em 1953.

47 Klemperer, To the Bitter End, p. 14 (15 de fevereiro de 1942).

48 Ibid., p. 5 (13 de janeiro de 1942).

49 Ibid., p. 27 (16 de março de 1942).

50 Ibid., p. 148 (17 de outubro de 1942).

51 Ibid., p. 127 (29 de agosto de 1942).

52 Ibid., p. 361 (26 de novembro de 1944).

53 Otto Dov Kulka e Eberhard Jäckel (eds.), Die Juden in den Geheimen NS-Stimmungsberichten 1933-1945 (Düsseldorf, 2004), p. 489 (NSDAP Meinberg, março de 1942).

54 Peter Longerich, “Davon haben wir nichts gewusst!” Die Deutschen und die Judenverfolgung 1933-1945 (Munique, 2006), p. 253-4.

55 Friedländer, The Years of Extermination, p. 294.

56 Klemperer, I Shall Bear Witness, p. 423 (1o de novembro de 1941).

57 Klemperer, To the Bitter End, p. 46 (8 de maio de 1942), p. 50 (15 de maio de 1942).

58 Friedländer, The Years of Extermination, p. 289.

59 Klemperer, To the Bitter End, p. 179 (8 de janeiro de 1943).

60 Ibid., p. 282 (7 de fevereiro de 1944).

61 Ibid., p. 204 (16 de abril de 1943).

62 Klemperer, I Shall Bear Witness, p. 404 (21 de julho de 1941).

63 Friedländer, The Years of Extermination, p. 251-5; David Bankier, The Germans and the Final Solution: Public Opinion under Nazism (Oxford, 1992), p. 124-30. Consultar também Frank Bajohr e Dieter Pohl, Der Holocaust als offenes Geheimnis: Die Deutschen, die NS-Führung und die Alliierten (Munique, 2006); Ian Kershaw, Hitler, the Germans and the Final Solution (Londres, 2008); e Bernward Dörner, Die Deutschen und der Holocaust: Was niemand wissen wollte, aber jeder wissen konnte (Berlim, 2007).

64 Longerich, “Davon”, p. 175-81.

65 Kulka e Jäckel (eds.), Die Juden, p. 476-7 (SD-Aussenstelle Minden, 6 e 12 de dezembro de 1941).

66 Ibid., p. 478 (SD-Hauptaussenstelle Bielefeld, 16 de dezembro de 1941).

67 Ibid., p. 503 (SD-Aussenstelle Detmold, 31 de julho de 1942), e p. 476-7 (SD-Aussenstelle Minden, 6 de dezembro de 1941).

68 Solmitz, Tagebuch, p. 691 (7 de novembro de 1941).

69 Ibid., p. 699 (5 de dezembro de 1941).

70 Ibid., p. 747-9 (14 de julho de 1942, 22 de julho de 1942).

71 Ibid., p. 768-9, 776, 780, 782, 788, 796 (25 de setembro de 1942, 26 de setembro de 1942, 9 de novembro de 1942, 24 de novembro de 1942, 21 de dezembro de 1942, 26 de janeiro de 1943).

72 David M. Crowe, Oskar Schindler: The Untold Account of His Life, Wartime Activities, and the True Story Behind The List (Cambridge, Mass., 2004). O relato foi filmado por Steven Spielberg com o título A lista de Schindler.

73 Hosenfeld, “Ich versuche”, p. 710 (carta à esposa, 31 de março de 1943), p. 739 (carta à esposa, 29 de julho de 1943).

74 Ibid., p. 108-11.

75 Wladyslaw Szpilman, The Pianist: The Extraordinary True Story of One Man’s Survival in Warsaw, 1939-1945 (Londres, 2002). O livro se tornou a base para o filme de Roman Polanski, O pianista.

76 Debórah Dwork e Robert Jan van Pelt, Holocaust: A History (Londres, 2002), p. 337-55.

77 Walter Laqueur, The Terrible Secret: Suppression of the Truth about Hitler’s “Final Solution” (Londres, 1980).

78 Saul Friedländer, Kurt Gerstein oder die Zwiespältigkeit des Guten (Gütersloh, 1968).

79 Friedländer, The Years of Extermination, p. 454-6.

80 David Engel, “The Western Allies and the Holocaust: Jan Karski’s Mission to the West, 1942-1944”, Holocaust and Genocide Studies, 5 (1990), p. 363-446.

81 Bernard Wasserstein, Britain and the Jews of Europe, 1939-1945 (Londres, 1979); trechos em Herf, The Jewish Enemy, p. 174-5.

82 William D. Rubinstein, The Myth of Rescue: Why the Democracies Could Not Have Saved More Jews from the Nazis (Londres, 1997), apresenta argumentos, de um modo um tanto descomedido, contra a alegação de que os aliados poderiam ter resgatado os judeus remanescentes da Europa.

83 Longerich, “Davon”, p. 201-62, 325.

84 Boelcke (ed.), “Wollt Ihr den totalen Krieg?”, p. 410-1 (14-16 de dezembro de 1942).

85 Conforme argumentado em Goldhagen, Hitler’s Willing Executioners.

86 Behnken (ed.), Deutschland-Berichte, VII, p. 157 (7 de março de 1940).

87 Kershaw, Hitler, the Germans and the Final Solution, p. 119-234.

88 Longerich, “Davon”, p. 290-1, 326-7.

89 Kulka e Jäckel (eds.), Die Juden, p. 525 (Parteikanzlei Munique, 12 de junho de 1943).

90 Ibid., p. 527 (SD-Berichte zu Inlandsfragen, 8 de julho de 1943); consultar também ibid., p. 531 (SD-Aussenstelle Schweinfurt, 6 de setembro de 1943).

91 Ibid., p. 528 (SD-Aussenstelle Würzburg, 3 de agosto de 1943).

92 Citado em Noakes (ed.), Nazism, IV, p. 652.

93 Citado em Wulf, Presse und Funk, p. 37 e p. 546.