Algumas singularidades do pensamento de Eugene P. Wigner
1 Introdução
Já se tornou lugar comum nos estudos históricos dos fundamentos da mecânica quântica (MQ) a afirmação de que as interpretações dadas ao formalismo da Teoria Quântica estão atreladas a certos valores epistêmicos. Porém, um mapeamento dos posicionamentos que influenciaram os personagens centrais neste campo ainda está sendo feito. Entre os anos de 1960 e 1963, o reconhecido físico húngaro-americano Eugene Wigner endossou (ou re-significou) uma estranha interpretação para um problema específico nos fundamentos da mecânica quântica. Uma figura quimérica1 é como esta interpretação wigneriana para o problema da medição na Teoria Quântica, pode nos parecer atualmente. Apesar de ela ter estado na ordem do dia dos debates em fundamentos durante a década de 1960, atualmente pode causar algum desconforto a muitos físicos. Longe, porém, de ter sido um delírio criativo de um grande físico do século passado, considerado místico por alguns (BAPTISTA, 2002, p. 63-74 apud FREIRE JR., 2007, nota 1; MARIN, 2009; PATY, 1995, p. 199), tal abordagem partiu de três pontos de fuga filosóficos que, no passado, construíram certo estilo de se fazer epistemologia.
Wigner foi um físico com uma formação curiosa. Ele fez seu mestrado e doutorado2 na área de Química Orgânica na Technische Hochschule, em Berlin, na primeira metade da década de 1920, com o objetivo de ajudar a seu pai na fábrica de curtume em Budapeste, Hungria. Esta era uma escola técnica voltada a formar engenheiros e quase todo seu doutorado foi feito no laboratório.3 Porém, curiosamente, Wigner se torna mais conhecido por suas contribuições em Física Teórica, formação que ele buscou de forma autodidata. (MEHRA, 2001) Ele fez parte da segunda geração de físicos que deram grandes contribuições ao desenvolvimento formal e conceitual da Teoria Quântica. Foi um período posterior às discussões filosóficas travadas entre os físicos da primeira geração. Era uma época voltada à aplicação e desdobramento da mecânica quântica que já estava à disposição para ser utilizada. Porém, várias mudanças começam a ocorrer no período pós-guerra; dentre elas, um interesse voltado aos Fundamentos da Mecânica Quântica se reacende aos poucos. Wigner está bem atento a tais mudanças, pois no momento em que este escreve o artigo The problem of measurement, em 1963, ele apresenta, no seu início, uma boa revisão bibliográfica de artigos anteriores ao dele que tratam especificamente do problema da medição na Teoria Quântica. Foi um momento em que alguns físicos e filósofos (tais como, Henry Margenau, Bernard d'Espagnat, Paul Feyerabend e Abner Shimony) se voltaram mais uma vez a questões relacionadas à Filosofia da Física e com Wigner não foi diferente. A seguir, identificaremos alguns dos temas que estiveram no centro dos seus interesses.
Apresentaremos quatro importantes eixos com os quais se pode construir um esquema geral da visão de Wigner sobre os fundamentos da Física. Estes eixos são constituídos por: simetrias e princípios de invariância; um uso conveniente e pragmático dos conceitos físicos; um tipo de idealismo (que ele chamou de “dualista” em Two kinds of reality) derivado da interpretação-padrão da Teoria Quântica levada as suas últimas conseqüências4 e o problema da objetividade na MQ. Apesar de o primeiro eixo ser um tópico central no pensamento de Wigner, somente os três últimos eixos estão relacionados ao problema da medição. Nosso trabalho não passará de sugestões sobre a maneira como ocorreram estas relações, pois nosso foco central não está em apresentar como Wigner lidou com os problemas ligados à Teoria da Medição na MQ. De fato, nosso objetivo central é a busca de uma maior compreensão das ideias wignerianas centrais sobre epistemologia, que têm recebido pouca atenção na corrente literatura filosófica.
2 O papel heurístico dos princípios de invariância ou a lei empírica da epistemologia
Olhando para o histórico dos seus textos filosóficos e de divulgação científica, podemos concluir que este seria um dos seus temas mais discutidos. Afinal, parte de sua fama na Física foi devido aos seus trabalhos que colocaram as leis de invariância ainda em maior evidencia.5
Dois marcos históricos da Física são recorrentes em diversos textos de Wigner. São relatados momentos em que as investigações físicas seguiram uma abordagem inspirada num determinado princípio de invariância. Estes marcos são o surgimento da Cinemática galileana e o da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein. E, de acordo com o que se encontra no artigo The unreasonable effectiveness of mathematics in the natural science (1960), podemos extrair da história da Física diversos exemplos que
[...] deverão ilustrar a conveniência e precisão da formulação matemática das leis em termos de conceitos escolhidos para sua manipulação, as “leis da natureza” são de precisão quase fantástica, mas de alcance bem limitado. Partindo desta observação, pretendo me remeter a estes exemplos como ilustrativos de uma lei empírica da epistemologia. Junto com as leis de invariância das teorias físicas, este é um fundamento indispensável destas teorias. Sem as leis de invariância não se poderia dar fundamento de fato às teorias físicas; se a lei empírica da epistemologia não estivesse correta, nós não teríamos o encorajamento e a segurança que são emocionalmente necessários, sem os quais as “leis da natureza” não poderiam ser exploradas com sucesso. (WIGNER, 1995m, p. 233, grifo nosso)
Estas ideias são uma tentativa de ampliar ainda mais o significado de uma declaração feita por Einstein e citada por Wigner (1995m p. 230), onde aquele teria dito que os conceitos da Matemática - que são o resultado de muita perspicácia - possuem grande beleza.
Além dessa apropriação utilitarista dos conceitos da Matemática nas teorias físicas, Wigner passa a tomar o princípio de invariância como uma linha de prumo para as leis físicas. Este princípio está no topo da hierarquização formal das teorias físicas:
[...] a progressão de eventos para leis naturais, e de leis naturais para simetrias ou princípios de invariância, é o que, para mim, significa a hierarquia do nosso conhecimento do mundo que nos rodeia. (WIGNER, 1995l, p. 313)
Então, Wigner extrai de exemplos históricos a ideia de que tal princípio foi usado em alguns momentos tacitamente e em outros, conscientemente, como uma das formas de se testar a consistência de uma determinada lei física.6 E é dentro desta perspectiva e destes pressupostos que Wigner olhará para as teorias Físicas de sua época, tanto à Teoria Quântica quanto à Cosmologia - mas principalmente a primeira.
3 O papel dos princípios de invariância na construção da “nossa ciência”
Wigner recorre a uma metáfora ao querer definir aquilo que ele entende por Ciência7: “[...] é nosso estoque de conhecimento dos fenômenos naturais”. (WIGNER, 1995d, p. 213) Porém, estoque não é visto aqui como o simples acúmulo de conhecimento ou uma mera série de livros e artigos empilhados com informações e teorias sobre o mundo natural. Ciência é como um edifício que está em constante construção e reforma. E para chamá-la de “nossa ciência” nós devemos ter pessoas capazes de aprender a se tornarem especialistas e a construírem cada parte deste edifício, utilizando sua respectiva área de conhecimento, acreditando que seu projeto não está em contradição com os outros de outras áreas, isto é, seguros de que todos esses projetos fazem uso de um todo coerente.
Esta confiança se faz necessária porque ninguém é capaz de conhecer completamente os projetos de todos os setores. Incoerências podem aparecer, mas o fato é que “[a] seção de elasticidade deve usar a mesma imagem da estrutura de aço sobre o qual a seção sobre magnetismo está baseada.” Esta estrutura é composta pelas partes do mundo vivo e inanimado (a matéria e suas interações) estudados pela Química, pela Física moderna, pela Biologia, pela Psicologia, entre outras. Apesar disso, podemos esperar certa coerência dentro de cada projeto disciplinar (uma teoria formada por um conjunto de leis físicas) e, na exigência desta coerência interna para o caso das teorias que têm a matemática como linguagem, é que Wigner utilizará o princípio da simetria ou algum princípio de invariância como parâmetro principal. Tais conceitos são utilizados da seguinte forma: “Ser a pedra de toque para as leis da natureza é provavelmente a função mais importante dos princípios de invariância.” (WIGNER, 1995a, p. 330). Em outro artigo posterior ele afirma que:
Digo mais uma vez, se alguém vier com outra lei da natureza e disser, “Sua lei natural está errada”, talvez eu poderia, com maior propriedade, contradizê-lo ao lembrar-lhe, “Bem, sua lei natural não obedece um reconhecido princípio de simetria.” (WIGNER, 1995j, p. 384)
Quando Wigner propõe tal abordagem de ataque às leis naturais, não está apoiado somente em sua própria experiência, mas utiliza um caso crucial na história da Ciência, anterior ao seu próprio: o sucesso que Einstein teve ao criticar as leis do eletromagnetismo de Maxwell por uma quebra de simetria espacial, uma análise crítica que desembocou em um dos seus famosos artigos (Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento) de 1905, que estabelece a Teoria da Relatividade Restrita. Nesta citação, Wigner não somente dá o devido crédito a Einstein como também expõe sua visão empirista de tais conceitos:
O trabalho de Einstein estabeleceu os primeiros princípios de invariância de forma tão bem fundamentada que nós precisamos constantemente ser lembrados que eles são baseados somente na experiência. Parece-nos natural tentar derivar as leis da natureza e testar sua validade através das leis de invariância, ao invés de derivar as leis de invariância daquilo que nós acreditamos ser as leis naturais. (WIGNER, 1995b, 1995, p. 285, grifo nosso)
Na citação a seguir, Wigner é ainda mais claro e explícito: “Nossa ciência é, antes de qualquer coisa, uma exploração das regularidades que se obtêm através dos fenômenos, e uma incorporação destas regularidades - as leis da natureza - em princípios cada vez mais gerais (as teorias da física)” (WIGNER, 1995f, p. 122, grifo nosso). Ele nos leva a crer que dentro de seu quadro geral sobre a Física (ou as ciências formais) suas teorias ou princípios gerais se resumiriam às leis de invariância (manifestas na forma de leis de conservação). Assim, temos um movimento ascendente que parte, primeiramente, dos fenômenos e dos dados da experiência, de onde extraímos certas regularidades que nos levam para princípios mais gerais, ou seja, as teorias da Física.
A seguir, apresentaremos o fraco idealismo8 trazido pela interpretação ortodoxa da Teoria Quântica, segundo Wigner, e a necessidade de se usar pragmaticamente os conceitos físicos levando-os à “situações-limite”.
4 Tipos de realidade e os conceitos da Física
No verão de 1961, Wigner apresenta uma conferência na Universidade de Marquette que seria a primeira apresentação em inglês de suas ideias mais fundamentais sobre percepção e realismo na Física. Two kinds of reality foi escrito pouco antes do início de seu conturbado debate com diversos físicos proeminentes sobre o problema da medição na Teoria Quântica. Seu artigo posterior, Remarks on the mind-body question, aponta para a mesma postura pragmática e idealista presente na conferência de Marquette. Wigner diz que esta visão idealista sobre a realidade física é uma consequência direta da interpretação ortodoxa da MQ:
[...] a presente discussão emerge do desejo de explicar para uma audiência de não-físicos a epistemologia na qual alguém é forçado a chegar, caso leve a teoria quântica da observação até as suas últimas conseqüências. (WIGNER, 1995l, p.185)
Ele evoca alguns autores que, segundo ele, darão suporte para discorrer sobre este tema. Alguns deles são von Neumann (1955) e F. London e L. Bauer (1939) - o fim da objetividade no processo de medição na mecânica quântica -; W. Heisenberg - e sua forma de idealismo - e Henry Margenau (1950), – principalmente a ideia de construto.
Não apenas neste texto, mas aparentemente até o fim de sua vida9, Wigner se referia às entidades reais ou existentes da Física como construtos. Porém, curiosamente, ele não usa o sentido comum dos termos real e existente. Estes construtos seriam entidades teóricas (cada um com seu diferente grau de abstração), historicamente datadas, que se originaram de conceitos mais próximos dos dados imediatos da percepção e que exercem uma função necessária e vital a uma determinada teoria ou mesmo para a sobrevivência do próprio ser humano. Eles são elaborações abstratas e coletivas de nossa mente dentro de um contexto histórico e utilitarista. Assim, tais construtos não são criados do nada e ao acaso; eles estão lá para servirem utilitariamente às nossas reflexões e interações com o mundo natural, assim como, à nossa comunicação intersubjetiva. Alguns exemplos destes construtos seriam os planetas, as placas tectônicas, o campo elétrico e magnético, átomos, quarks, quasares, consciência etc. Com efeito, podemos graduar o nível de abstração destes construtos que partem daqueles que são construídos através de elaborações mais próximas dos dados de minhas sensações diretas, até aqueles que são mediados por diversos aparatos teórico-matemáticos e de medição. Wigner expõe sua filiação com Margenau em relação a estas ideias:
O que estou dizendo é que, com exceção de sensações imediatas e, em geral, o conteúdo da minha consciência, tudo é um construto, no sentido em que, por exemplo, Margenau10 usa este termo, mas alguns construtos estão um pouco mais próximos das sensações diretas. (WIGNER, 1995l, p.189)
Assim como Margenau, Wigner acredita que se pode conferir exterioridade aos dados de sensações/observações diretas. Devemos, no entanto, destacar a complexidade de nossas percepções, de modo que, quando entram nos processos cognitivos superiores da nossa consciência, elas já foram sofisticadamente traduzidas de nossas sensações primárias. O status de realidade que ele confere a estes construtos é o seguinte:
A realidade do campo magnético no vácuo consiste na utilidade do conceito de campo magnético em toda parte, a realidade é, neste caso, sinônimo da utilidade do conceito, tanto para o nosso próprio pensamento, quanto para nossa comunicação com outras pessoas (neste momento ele faz referência à BRIDGMAN, 1960). (WIGNER, 195l, p.188)
Em outro artigo, Wigner expõe sua forma de interpretar a realidade física quando se refere à natureza destes conceitos. Em suas palavras:
A afirmação que isto “existe” significa somente que: (a) isto pode ser medido, por isso pode ser univocamente definido, e (b) que seu conhecimento é útil para o entendimento de fenômenos passados e nos ajuda a prever eventos futuros. Isto pode ser colocado como constituinte de uma Weltbild. (WIGNER, 1995h, p. 173)
5 O mito da objetividade e a Mecânica Quântica
No livro de 1932, Von Neumann e Wigner11 fazem uma breve discussão sobre a construção da objetividade, no processo de medição. Esta discussão ganha mais sentido quando refletimos dentro de sua visão idealista da realidade, que se dá de acordo com a descrição a seguir: “[...] deve ser possível, então, descrever os processos extra-físicos da percepção subjetiva como se estes estivessem, na realidade, no mundo físico”. (NEUMANN, 1955, p. 419, cap. 6, grifo nosso) Os autores nos fornecem um exemplo ao falar deste processo que, em verdade, trata de uma simples medição da temperatura. Muitas vezes se diz que “a temperatura é medida pelo termômetro”. Em realidade, o processo de medição se inicia na interação do termômetro com o sistema que se quer medir, porém em que momento nós podemos considerar este processo completo? Podemos falar de todo o processo termodinâmico e estatístico que leva o mercúrio a se expandir dentro do termômetro, devido à absorção de calor, provocando assim a obtenção de determinado valor dentro de um sistema de unidade térmica. Também podemos ainda descrever o caminho que os quanta de luz tomam ao se refletir no mercúrio e se dirigirem à retina do observador, momento em que a luz interage com as células nervosas que ativam circuitos cerebrais. Indo além nesta descrição, podemos tratar das reações químicas nas células nervosas no momento da apreensão desta informação. Finalmente, sempre é possível alguém afirmar que a medição só se deu realmente quando tomamos consciência da informação transmitida pela luz ao nosso sistema nervoso. Tudo isso foi evocado, entretanto, apenas no intuito de exemplificar como podemos traçar a fronteira entre o observador e o sistema a ser medido de forma arbitrária. Em dado momento de nossa descrição, tomamos a medição completada pelo termômetro. No entanto, o peso desta arbitrariedade pode ser minimizado pelo fato de que o observador não tem qualquer interferência no fenômeno medido, portanto, não é tão relevante saber em que ponto esta fronteira entre o observador e o objeto deve ser colocada, o fato é que a objetividade deste processo sempre poderá ser mantida. No caso da mecânica quântica, von Neumann e Wigner veem problemas no processo de construção desta objetividade, pois não há como separarmos o ponto de vista do observador do fenômeno observado e isto se dá porque sempre haverá a interferência deste no fenômeno observado. Por isso, mais tarde, Wigner se mostrou consciente do ônus implícito quando se estabelece o ato de observação como um conceito primitivo da Física:
[...] parece perigoso considerarmos o ato de observação como um ato humano, básico para a teoria dos objetos inanimados.É, no entanto, em minha opinião, uma conclusão inevitável. Se isto for aceito, temos que considerar o ato de observação como um ato mental, um conceito primitivo da física, nos termos do qual as regularidades e as correlações da Mecânica Quântica são formuladas. (WIGNER, 1995i, p. 4)
Desde o no início da década de 1960, provavelmente reanimado pelas leituras do texto de London e Bauer de 1939, Wigner retoma estas questões e passa a questionar ainda mais fortemente a objetividade no processo de medição na Teoria Quântica. Para ele, sua proposta interpretativa do formalismo desta Teoria nos ajudaria a entender melhor o porquê de não observarmos a ocorrência de sistemas mistos acoplados ad infinitum, todos sobrepostos, além de afastar resultados bizarros tirados do “paradoxo do amigo de Wigner”.12 O colapso das famílias (ou pacotes) de funções de onda e o afastamento da possibilidade de qualquer cadeia ad infinitum no processo de medição ocorreriam no momento em que o observador tomasse consciência dos resultados da medição. Assim, uma reflexão sobre as limitações da Teoria Quântica da medição nos levaria a crer que a não observação de estados sobrepostos ao nosso redor se explicaria pela destruição destas superposições ao interagirem com a mente do observador. O processo natural que leva a tal destruição deveria ser explicado pelo maior desenvolvimento do estudo da cognição e da consciência; e o incentivo a tais estudos e pesquisas seria uma obsessão que faria parte dos escritos e preocupações de Wigner por toda a vida13. O fato de a Teoria Quântica não abarcar o papel da mente no processo da medição leva-o a concluir que, para que a interpretação ortodoxa da Teoria Quântica seja considerada completa, é necessário trazer à tona uma importante abordagem interpretativa ao processo da medição, ou seja, a participação da consciência. Tal perspectiva permitiu à Física a possibilidade de trazer para seu interior um forte teor subjetivo.
Provavelmente o leitor já deve ter se questionado como um físico que tinha uma visão pragmática e idealista da descrição da realidade física poderia se preocupar com o problema da medição. Uma primeira resposta seria: porque o formalismo utilizado para o processo da medição tem nos levado a isso. A entrada da consciência neste processo tem sido uma exigência necessária e natural que garantiria maior coerência interna dentro do corpus teórico da mecânica quântica. O que se exemplifica pela seguinte citação:
Dar a razão para o crescente interesse dos físicos contemporâneos em problemas de epistemologia e ontologia poderia ser útil, apesar de não ser algo estritamente relevante. A razão é, em poucas palavras, que os físicos têm achado impossível dar uma satisfatória descrição dos fenômenos atômicos sem referência à consciência. Pouco pode ser feito com o freqüentemente requentado problema da dualidade onda e partícula e aludir, certamente, ao processo chamado 'redução do pacote de onda'. Este ocorre sempre que o resultado de uma observação entra na consciência do observador – ou, para ser ainda mais exageradamente preciso, minha própria consciência, desde que seja eu o único observador, todas as outras pessoas são somente objetos das minhas observações. Alternativamente, alguém poderia dizer que a Mecânica Quântica provê somente conexões de probabilidade entre o resultado de minhas observações como eu as percebo.14 Seja qual for a formulação que alguém adote, a consciência tem evidentemente um papel indispensável. (WIGNER, 1995a, p. 186)
Esta citação foi extraída da introdução do artigo Two kinds of reality, o mesmo onde Wigner apresenta suas ideias sobre os construtos físicos, realidade e idealismo. Portanto, para ele, mais importante que nos preocuparmos com uma representação realista (no sentido comumente usado na epistemologia) das teorias físicas, seria nos preocuparmos em assumir a utilização da teoria-padrão, que tem funcionado dentro de certo domínio com sucesso e, em seguida, levá-la às situações-limite, ou seja, desdobrá-la até as suas últimas consequências, tal como foi feito por ele através do paradoxo que levou o seu nome.
6 Conclusão
Podemos perceber através deste texto que uma avaliação mais refinada da visão epistêmica de Wigner é possível. Este nos sugere uma imagem bem menos bizarra do que parece. A imagem incoerente de uma quimera se dispersa no ar. Sua proposta no início dos anos de 1960 para o problema da medição na mecânica quântica traz todos os seus pressupostos e exigências de coerência às teorias físicas. Ele não as aplicou somente à Teoria Quântica e mesmo sua proposta para a solução do problema da medição foi temporária. Suas argumentações filosóficas alimentavam suas críticas ao materialismo15 (que para ele era indissociável do determinismo laplaciano) e sua propaganda para o investimento intelectual em pesquisas voltadas ao estudo da mente e da consciência. Finalmente, os quatro eixos destacados aqui e que foram evocados por Wigner na construção de sua filosofia da Física podem parecer incomuns para alguns físicos.
Por fim, em momento algum Wigner demonstrou ter abandonado seu interesse por temas epistemológicos, mesmo quando se distanciou de sua interpretação mentalista para o problema da medição no início da década de 1980. (cf. WIGNER, 1995c, p. 136)16 Tal afirmação está em acordo com um comentário feito por Jagdish Mehra em seu livro The golden age of theoretical physics:
A preocupação de Wigner com questões de interpretação, epistemologia e filosofia da teoria física permaneceu contínua e profunda, e uma prova clara de que sua preocupação sobre estas questões esteve significativamente presente em seu pensamento é que elas ocuparam toda a sua obra. (MEHRA, 2001, p. 940)
Referências
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