Fundamentações e perspectivas para a teoria quântica1
1 Introdução
Este trabalho é uma proposta epistemológica para a Física Quântica. Seu objetivo é o de construir uma definição do estado quântico, usando a ideia de perspectiva teórica, elaborada por nós e aplicada às ideias de três autores dedicados à interpretação da Teoria Quântica, Asher Peres, Leslie Ballentine e Michel Paty. Faz-se necessário introduzir a ideia de perspectiva do estado para destacar a presença de estudos históricos e críticas epistemológicas em sua enunciação e a maneira como essas práticas são essenciais na formulação ou apresentação da física quântica contemporânea. Os autores são casos particulares, mas a ideia de perspectiva é geral, generalidade que vem do formalismo físico quântico e suas predições, no sentido de que tal ideia leva em conta três problemas comuns no momento de definir a noção de estado, ou seja, o significado e sentido das observações experimentais, as leis físico-matemáticas e seus conceitos e relações. Como resultado, confirma-se que três autores contemporâneos se valem de uma perspectiva para definir o estado quântico, dando respostas a estes três problemas. Consideramos, finalmente, como a perspectiva implica no estatuto da “realidade física”, que pode ser atribuído, pelo menos de direito, à noção de estado quântico.
Este trabalho é uma leitura relacional dos problemas fundamentais da Teoria Quântica. Sua ênfase é epistemológica porque pergunta pelo sentido e significado do conceito físico-matemático de vetor de estado. Esse trabalho poderia chamar-se Epistemologia das fundamentações e seu objetivo é mostrar como certos físicos quânticos encontram um significado e um alcance para a teoria.
Escolhemos três físicos (um deles, além disso, é filósofo da ciência) que ao mesmo tempo levantavam (1) o problema da medição quântica sobre a relação ou interação entre o “sistema” mensurável e o “aparato” de medição; (2) o problema matemático que estabelece as relações entre vetores de um espaço vetorial complexo e operadores lineares autoadjuntos; e (3) o da interpretação da teoria, onde se questiona o sentido e significado físico dos conceitos envolvidos nos primeiros problemas. Nesse ponto de vista, a interpretação se refere à síntese conceitual entre observações experimentais e formulações matemáticas. Esses três físicos são Asher Peres, Leslie Ballentine e Michel Paty.
A noção de estado quântico, por exemplo, é um aspecto que aparece em um laboratório: tanto o sistema como o aparato são preparados; é um processo tecnicamente denominado de preparação de estados. Por sua vez, o estado é traduzido para o formalismo matemático, como vetor ou função de estado, em um espaço de Hilbert. Em ambos os casos, os estados evoluem e, ao final dessas evoluções, se tem novamente um estado observado na medição e um estado lido na linguagem matemática. Além disso, o estado é compreendido em uma certa interpretação e esta se refere aos fenômenos factuais e aos seguros enunciados matemáticos, à maneira que se legitimam ou se relacionam para legitimar o significado físico do estado observado e o sentido físico daquilo que pode ser lido, quer dizer, para compreender um conceito de estado quântico.
O conceito de estado quântico é essencial na teoria e, mais adiante, as referências ao significado e alcance que ela tem serão nele exemplificados. Mas os três problemas quânticos mencionados, observação, formalização e compreensão, tratam de outros aspectos quânticos, como função da probabilidade, separabilidade não-local ou emaranhamento, indistinguibilidade dos idênticos etc, bem como das relações entre eles. Na Física clássica, o estado de um sistema é o conjunto de quantidades físicas, cuja evolução é mapeada em uma função numérica. Uma lei ou princípio físico normalmente se enuncia para determinar esta função de estado. E por meio de um experimento e sua subsequente observação é possível medir o valor numérico das quantidades, precisamente os que eram preditos pela função do estado. Em física quântica, o estado também se remete ao formalismo matemático (o vetor de estado) e ao experimental (o estado de preparação), mas a correspondência entre eles já não é de um a um como no caso clássico. Além disso, o que de algum modo fez com que se formulasse uma teoria quântica foi que algumas correlações clássicas não relatavam o que ocorria na realidade, como a catástrofe ultravioleta. Quando Planck fez seu experimento, teve que modificar a maneira usual de se fazer os cálculos na física estatística, porque os fatos - e não a lei da física - exigiam. A noção de estado quântico também aparecerá em uma correspondência, mas como veremos, modificar-se-á segundo o ponto de vista de cada autor.
Mas qual o procedimento comum para a determinação do sentido e significado do estado quântico? Quer dizer, como é que cada autor representa o que há de observável, legível e compreensível nos fenômenos quânticos?
Temos denominado como fundamentação teórica o procedimento comum a esses autores para a definição do estado quântico. Por meio de um fundamento é que os autores determinam os três níveis de estado quântico: visível, legível e conceitual. No entanto, o resultado da fundamentação é uma perspectiva. Uma perspectiva define o nível representativo dos conceitos: o estado quântico de Asher Peres remete ao laboratório, ao nível experimental. Aí é onde se encontra sua realidade objetiva. Por outro lado, o estado quântico de Ballentine aparece primeiro como uma construção matemática, com a qual é possível ler as propriedades do sistema, no estado estudado. Enquanto Paty se refere ao estado quântico como quantidade física e as relações que esta quantidade tem com suas propriedades físicas, como função de probabilidade ou indistinguibilidade. Isto é, para Paty, o estado quântico é primeiro um conceito relacional.
2 O método da fundamentação teórica
O termo fundamentação está inspirado na expressão em inglês foundations of quantum physics, no qual se inserem os textos comentados. Estes são antes de tudo textos de mecânica quântica, mas esta é uma denominação muito geral. Em particular, o campo de estudos Fundamentos da Física Quântica se dedica aos problemas de interpretação dos fundamentos da teoria. Dizer que os autores trabalham em fundamentos teóricos ou em fundamentações teóricas é dizer que se dedicam a buscar os conceitos fundamentais da teoria.
Bem, o primeiro gesto fundador dos autores é um estudo histórico. Na história da teoria se encontram as razões que permitem fazer uma nova fundamentação. Esta história é diferente segundo cada autor, mas os três se fazem essa pergunta: por que na teoria do passado não existe clareza em relação à noção de estado quântico? Então, comentam os textos-chave da história da teoria e identificam neles uma possível resposta.
Para Peres, experimentos como o do corpo negro, para o qual a análise de Planck de 1900 deu solução ao problema da catástrofe ultravioleta, e para os quais a física clássica não é capaz de dar uma explicação, são evidências de que a ideia de quantidade física, como são as variáveis canônicas clássicas p e q, dotadas de valores numéricos precisos, não tem sentido no mundo quântico. Ele mostrará que tentativas de definir uma quantidade quântica, para remediar a perda de objetividade sofrida por p e q, tal como a função de onda que sai da equação de Schrödinger, estão condenadas ao fracasso, já que não há evidência experimental para determinar um valor preciso da função de onda de um sistema quântico. A aleatoriedade essencial dos fenômenos, “mostrada” por Peres, permite somente falar de probabilidade nas medições quânticas, não de quantidade de valores precisos. E não tanto pela incerteza das medições, senão que é a própria ideia de quantidade física que é enganosa para o domínio quântico.
A história de Ballentine é a da evolução do formalismo matemático quântico e de como esta evolução permite falar “de maneira mais natural da teoria”. Na história da Matemática de Ballentine, para se alcançar o progresso deve-se filtrar. Quer dizer, os enunciados matemáticos, quando mudam, passam a um estado de maior abstração, são cada vez mais matemáticos. Desse modo é como Ballentine se autoriza para propor um novo espaço de Hilbert, em inglês, the rigged Hilbert space, como o representante mais geral do espaço matemático dos estados quânticos e, portanto, o melhor.
Por sua vez, Paty interrogará as teorias clássicas, pela maneira como elas têm compreendido suas quantidades físicas. Em particular, pela maneira que legitimam o uso de quantidades matemáticas para descrever fenômenos físicos. É, portanto, uma história epistemológica, que busca a maneira em que o sentido e o significado do conceito de quantidade física evoluem nas teorias clássicas. Bem, Paty encontra que as quantidades matemáticas na descrição de um fenômeno correspondem um a um com as observações experimentais relacionadas com o fenômeno; mas que fazem algo mais: as quantidades também se relacionam com suas propriedades e dessas relações é possível fazer uma síntese conceitual, com a qual se compreende ou se entende o fenômeno. Apoiado nessas considerações sobre as quantidades clássicas, ele propõe o estado quântico como representante conceitual do domínio quântico, ou seja, as relações que estabelece com suas propriedades físicas, as quais são uma representação da realidade do fenômeno.
Estas são mais ou menos as linhas gerais dos estudos históricos dos autores. Notem que, já através delas, se sugerem perspectivas como a observação experimental de Peres, o formalismo axiomático de Ballentine e o realismo conceitual ou crítico de Paty.
Pois bem, de considerações históricas segue uma crítica epistemológica com a qual se decide qual é o estatuto do estado quântico, na representação dos fenômenos, e as razões que sustentam essa decisão. Deste modo, completa-se a fundamentação, apresentados os postulados ou princípios que formam o corpo teórico que descreve exatamente os fenômenos quânticos e, em particular, apresentado o significado do estado quântico.
Voltemos aos autores. Peres assume que a noção de quantidade física não é apropriada para descrever o micromundo porque não existe evidência experimental que respalde esta hipótese. Realmente, a função de onda não é física, no sentido que não existem provas experimentais que informem quantas unidades de função de onda se observam. O que se nota são distribuições de probabilidades. Observa-se que, quando um sistema segue uma preparação experimental, os resultados de uma medição sobre esse sistema fornecerão as mesmas probabilidades cada vez que se repita e deve repetir-se muitas vezes, pois é isso que se espera do cálculo das probabilidades. Por isso, Peres irá propor que as noções primitivas ou fundamentais da teoria são as preparações e as provas experimentais que permitem observar probabilidades. E dirá que o alcance da teoria é o de calcular as probabilidades observadas em provas que seguem preparações específicas. Seus postulados são, portanto, fatos empíricos observáveis. Por essa razão, a primeira definição de estado é observacional: “Um estado é caracterizado pelas probabilidades dos vários resultados de todo teste concebível”. (PERES, 1995, p. 24)2 No entanto, Peres também tem que fazer postulados matemáticos e quando dizemos que ele antes de tudo se fixa no aspecto observacional dos fenômenos, referimo-nos ao seguinte: (1) antes da matemática estão os experimentos e desta hierarquia resulta (2) que o formalismo matemático reflete a peculiaridade de tais experimentos. Em que sentido? Encontrando o significado físico dos vetores: “Qualquer vetor complexo, exceto o vetor nulo, representa um estado puro realizável.” (PERES, 1995, p. 50)3 Quer dizer, em princípio, é possível que qualquer vetor matemático seja preparado experimentalmente. Do mesmo modo, as propriedades matemáticas dos vetores, como mudança de base, remeterão a situações experimentais. O que enfatizamos é a dominância do nível observacional na definição do sentido e significado do estado quântico. Peres sustenta uma epistemologia de laboratório e seu “gosto” operacional ou instrumental está presente nos enunciados matemáticos e, como veremos, na ideia de realidade física do estado.
Como já mencionamos, Ballentine inicia sua fundamentação partindo das matemáticas. E no desenvolvimento da teoria, quando os fenômenos começam a ser lidos em tais matemáticas, percebemos que a observação encontra seu sentido sempre que pode fazer-se corresponder com uma figura matemática. No entanto, à primeira vista parece igual ao que fez Peres - relacionar os experimentos com o formalismo -, mas, em primeiro lugar, Peres parte do laboratório ao formalismo e Ballentine, o inverso; em segundo lugar, a correspondência de Ballentine é abstrata, enquanto que a de Peres é instrumental. Para esse último, as matemáticas refletem observação; para o primeiro, o que é observável necessita de uma contrapartida formal sem a qual não pode ser estudado. Por essa razão, o sentido físico observável e o significado físico legítimo do estado quântico de Ballentine é uma correspondência abstrata:
O vetor de estado não é um objeto físico. Seu significado é duplo. Primeiro, ele é objeto matemático abstrato do qual as distribuições de probabilidades das quantidades observadas pode ser calculada. Segundo, afirmar que o vetor de estado é Ψ pode ser considerado como implicando que o sistema sofreu um correspondente procedimento de preparação do estado, o qual poderia ser descrito em mais detalhes mas toda a informação relevante está contida na especificação de Ψ. (BALLENTINE, 1986, p. 885)4
Note-se a ordem de uma definição: primeiro matemática, segundo observável. E não se trata de níveis excludentes, o observacional e o formal são, antes de qualquer coisa, coexistentes, o que difere é a perspectiva ou a ênfase. Na perspectiva é que diferenciamos as fundamentações.
Por outro lado, o que dizer do terceiro nível de Peres e Ballentine? Ou seja, o que dizer da síntese conceitual da qual se deriva a realidade objetiva do estado quântico? Antes de responder a essa pergunta, apresentamos as fundamentações de Paty, porque é precisamente nesse nível da compreensão dos fenômenos quânticos que Paty fundamenta sua perspectiva: o conceito relacional de estado quântico provê conhecimento que ao mesmo tempo se verifica em um texto matemático e se reconstitui na observação experimental. E isto é possível porque Paty faz uma extensão do uso e do significado na noção de estado quântico de maneira tal que se possa referir a ele como uma quantidade física. Isso quer dizer que o estado não é só uma distribuição de resultados em uma medição (Peres), tampouco uma mera correspondência entre o experimento e suas matemáticas (Bellentine), mas sim, o estado quântico é o sistema mesmo ou objeto físico, isto é, o puro fenômeno compreendido ou entendido e não somente observado e calculado. A maneira como Paty sustenta esta compreensão direta do fenômeno é um litígio epistemológico que basicamente afirma que, estendendo o uso e significado do vetor de estado, é possível relacionar coerentemente o vetor a suas propriedades. Esta rede relacional é precisamente a estrutura teórica cujos resultados são a compreensão dos fenômenos. Nas palavras de Paty (2000, p. 186-187, grifo do autor):
Essa interpretação é uma afirmativa do significado físico relativo ao nosso entendimento dos fenômenos e não uma metáfora. Ela corresponde a uma modificação do pensamento usual sobre tanto os estados físicos quanto as quantidades físicas. Nós não mais confinamos estas na definição restrita de ter de corresponder a valores numéricos singulares como aqueles dados como resultados de medidas clássicas: nós ampliamos e estendemos seu significado para entidades matematicamente mais complexas expressando relações que não são restritas a tais atribuições numéricas. Pois, acima de tudo, a função essencial das quantidades físicas é expressar relações. Estas entidades são dadas como vetores de um espaço de Hilbert, invariante em mudanças de base, representando estados físicos, e operadores hermitianos lineares agindo sobre eles, expressando as quantidades com a ajuda do que se define como o sistema da base do vetor de estado. As atribuições numéricas das medidas são apenas parciais (elas são projeções) com respeito ao sistema como um todo, condicionais e contextuais (devido à preparação que escolhe a base) e devem ser relacionais através da leitura teórica delas.5
Note-se na declaração anterior a importância que Paty atribui à compreensão dos fenômenos e como esta compreensão é uma justiça que se faz entre a observação e o cálculo.
3 Conclusões: perspectivas e realidade objetiva
Uma perspectiva não é uma opinião, ainda que os autores expressem ou comentem opiniões. Do mesmo modo, uma interpretação não se refere ao traço filosófico da teoria, embora as escolhas filosóficas possam ser rastreadas nesses autores. Como teoria física, a Quântica remete principalmente a medições experimentais e a predições teóricas dessas medições, as quais podem ser lidas no formalismo matemático. Não obstante a interpretação, à medida que ela procura conciliar estes dois domínios diferentes, o visível e o legível, remeterá legitimamente às considerações epistemológicas, por meio das quais se dobram os níveis ou, em outras palavras, definem-se o sentido e o significado de observações e fórmulas. Assim, temos mostrado que Peres julgava o conceito de estado quântico partindo do laboratório, Ballentine da correspondência entre matemáticas e observações e Paty do caráter relacional do conceito.
No entanto, nós ainda não apresentamos explicitamente as interpretações do vetor de estado dos dois primeiros autores. A de Paty, como vimos, aparece primeiro porque ele se instala no nível da compreensão. Mas, como é de se esperar, a de Peres invocará primeiro a observação. E assim é. Peres negou a existência da quantidade física vetor de estado, por isso o que se faz necessário compreender desta noção remeterá ao conhecimento de regularidades estatísticas. Se há algo para se interpretar são as marcas visíveis em um aparato de medição e como estes aparatos são todos macroscópicos ou clássicos, a interpretação então será a de um modelo clássico ou de um parcialmente clássico. Do outro aspecto, o quântico, diz Peres que é ilusório ou fictício. Serve, no entanto, de contexto imaginário, mas o importante está no aparato macroscópico, onde, justamente, os fenômenos quânticos ocorrem.
Um pouco antes, lemos a afirmação de Ballentine segundo a qual o vetor de estado não é um objeto físico, mas sim uma correspondência entre matemáticas e preparações. É que para ele a física do estado quântico é outra correspondência, desta vez entre um teorema da medição (o qual por sua vez, note-se, é uma correspondência entre um objeto formal - o teorema - e um observacional - a medição) e uma interpretação crítica do conceito. Deste modo, Ballentine afirma que o estado quântico representa uma coleção de sistemas quânticos identicamente preparados. Não se deve subestimar a simplicidade do enunciado, primeiramente porque Ballentine faz uma crítica teórica à interpretação ortodoxa ou de Copenhague, segundo a qual o vetor de estado representa as propriedades de um sistema físico individual; em segundo lugar, porque para chegar a ela temos que enunciar diversas correspondências entre os níveis, formal e experimental, todas as quais justificam o teorema de medição. Aqui o importante está na edificação teórica, que se sustenta na firmeza abstrata com que as matemáticas se relacionam às observações. Isto é admirável em Ballentine, o uso variado e repetido de correspondências que tornam legível o que no experimento somente é visível.
De Paty já mencionamos que sua interpretação de estado quântico remete primeiramente à característica relacional de quantidade física com suas propriedades, mas mencionemos, então, por último, a maneira como as observações se fazem legíveis. Para este fim, Paty propõe o conceito de reconstrução. Embora o vetor de estado não seja diretamente observável, porque não é uma quantidade no sentido clássico, com valores numéricos precisos, pode-se pensá-lo como uma quantidade relacional, relações que se reconstituem em uma observação. A reconstrução é uma maneira de conciliar as observações com as predições teóricas e consiste em conceber uma observação experimental como o resultado de contribuições quânticas individuais. Quer dizer que em um aparato de medição, antes de uma observação, há uma reconstrução dos constituintes quânticos que interagem com ele. A ideia mesma de reconstrução é conceitual, isto é, não é diretamente observável, mas critica a ideia segundo a qual o domínio quântico carece de realidade, pois é apenas classicamente (em aparatos clássicos) observável.
Estas são, portanto, as três perspectivas da teoria. Uma instrumental, outra matemática e a outra conceitual. E notem que as três percorrem os três níveis e isso é feito, justamente, segundo o ponto de vista de cada autor. Peres, partindo do laboratório, negará a existência de quantidades quânticas, porque não são observáveis, e a Matemática será usada para refletir as propriedades das observações. Ballentine, por sua vez, tratará de demonstrar ou justificar porque suas correspondências são legítimas. De uma observação não dirá nada se não pode ser lida em um formalismo solidamente construído e, por esta razão, sua interpretação se sustenta nas correspondências do teorema da medição. O que difere da de Peres que, antes de tudo, observa. Talvez a controvérsia seja mais notada entre Peres e Paty porque precisamente o que o primeiro nega é a potência do segundo. Peres não vê a necessidade de um modelo teórico estritamente quântico, já que a observação é sempre em aparatos clássicos, enquanto Paty critica esta ideia porque com ela se perde o caráter físico quântico que o formalismo matemático exige. Por essa razão propõe uma nova quantidade para a Física, o vetor de estado, justamente.
Mas a controvérsia das perspectivas não se refere apenas à noção de estado quântico. Por exemplo, os três afirmam que a teoria é probabilística, mas com razões diferentes. Para Peres é suficiente ver os resultados que apresentam regularidades estatísticas para afirmá-lo; Ballentine primeiro demonstra que os fenômenos quânticos cumprem os axiomas da teoria abstrata da probabilidade e então que esses fenômenos têm funções de probabilidade correspondentes. Paty por sua vez, compreenderá que a função de probabilidade é uma nova propriedade física, a qual se relaciona com a quantidade física vetor de estado.
A controvérsia aparece, por vezes, na diferença no que o vetor de estado representa dos fenômenos (observável, legível, compreensível), mas também aparece quando se dão razões diferentes para uma mesma declaração e, seguramente, de muitas outras formas. Faltaria relacionar as perspectivas com as implicações filosóficas e inclusive políticas como fez Freire Jr. (2003).
Finalizando este trabalho, comentemos apenas o que há de real no estado quântico, segundo cada autor. Então, o que é o real de um fenômeno quântico?
Peres é direto: a única realidade é a das marcas em um aparato de medição; para Ballentine o real se expressa na pura correspondência entre observações e cálculos; e para Paty, a realidade é uma construção simbólica ou estrutural da quantidade vetor de estado e suas propriedades físico-quânticas, realidade crítica que legitima, entretanto, a ideia de uma crítica epistemológica.
Terminamos este trabalho com uma paráfrase do parágrafo 57 da Monadologia de Leibniz (2003). É de onde buscamos a ideia de perspectivas:
E, assim como a mesma cidade parece outra e se multiplica perspectivamente sendo observada de diversos lados, o mesmo sucede quando, pelas múltiplas “controvérsias” dos sistemas simples que descreve, parece haver outras tantas teorias quânticas diferentes que, no entanto, são apenas as perspectivas de uma só, segundo os diferentes pontos de vista de cada autor.6
Referências
BALLENTINE, L. Probability theory in quantum mechanics. American Journal of Physics, v. 54, p. 883-889, 1986.
______. Quantum mechanics: a modern development. Singapore: World Scientific, 1988.
FREIRE JR. O. A story without an ending: the quantum physics controversy 1950-1970. Science & Education, v. 12, p. 573-86, 2003.
LEIBNIZ, G. W. Monadología. Trad. Esp. de R Torreti. In: OLASO, E. Escritos filosóficos (§57). Madrid: Machado Libros, 2003. Original de 1721.
______. A monadologia. Trad.de M. Chauí Berlinck. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores).
PATY, M. The concept of quantum state: new views on old phenomena. In: Ashtekar, A. et al. (Ed.). Revisiting the foundations of relativistic physics: John Stachel Festschrift. Dordrecht: Kluwer, 2003. p. 451-478.
______. The quantum and the classical domains as provisional parallel coexistents. Synthese, Boston: Kluwer, v. 125, n. 1-2, p. 179-200, 2000. Editores: S. French, D. Krause and F. Doria. In honor of Newton da Costa.
______. Are quantum systems physical objects with physical properties? European Journal of Physics, v. 20, p. 373-388, 1999.
PERES, A. Quantum theory: concepts and methods. Dordrecht: Kluwer, 1995.