Só para constar: eu não pretendia mandar minhas duas meias-irmãs para o pronto-socorro.

O que aconteceu foi o seguinte: Rosie – minha irmã inteira – e eu estávamos em Los Angeles para o nosso Natal de Mentirinha. O Natal de verdade já tinha sido comemorado em Vancouver com a mamãe. O Natal de Mentirinha aconteceu no dia 27 de dezembro com o papai. Eu o chamava assim porque tudo nele – da data à árvore, e até mesmo os peitos da Jennica – era falso.

Mas os presentes, não. Eram de verdade, e eram muitos. Rosie ganhou uma boneca, uma fantasia de fada, jogos de computador e o supermercado do Playmobil que ela tanto queria, mas que mamãe não podia comprar. Ele veio com pepinos, maçãs e bananas, tudo pequenininho e de plástico, que você colocava numa banquinha, e também tinha quatro pessoas de plástico. Até eu gostei, e olha que já sou praticamente uma adolescente.

Ganhei um iPod Touch e dois pares de Converse de cano alto. O primeiro era um modelo Chuck Taylor, com rosas e caveiras estampadas no tecido; o segundo era de couro preto. Eram demais. Também ganhei uma saia da Jennica, que jamais usaria, pois nunca uso saia – só jeans e camiseta –, coisa que ela já deveria ter descoberto a essa altura da vida.

Lola e Lucy também ganharam um monte de presentes, embora já tivessem recebido uma tonelada de coisas no Natal de verdade. Jennica não queria que as duas se sentissem excluídas.

Não vou mentir: a parte da visita de abrir os presentes foi legal. O lado esquisito foi a tal da surpresa.

 

Meu pai foi pegar a gente no aeroporto naquela manhã, um gatão todo bronzeado.

– Tenho uma surpresa pra vocês, meninas – disse ele assim que pegamos a rodovia.

Por um segundo maluco, tipo Poliana, pensei que fosse dizer pra gente que estava dando o fora na Jennica e que ia voltar para Vancouver. Mas, em vez disso, ele nos levou para Santa Monica, um lugar bonito perto do mar. Entrou com o carro no jardim exuberante de uma casa espaçosa, estilo rancho moderno.

– Gostaram? É nossa.

Entendi que por nossa ele não queria realmente dizer nossa.

– Puxa! – Rosie falou com todas as letras, aquela pessoinha de cinco anos mal conseguindo esconder como estava maravilhada.

– O que aconteceu com o apartamento de Burbank? – perguntei.

Papai deu de ombros.

– Estava ficando meio apertado para nós quatro. E era alugado.

A casa nova era bonita e grande. O piso da varanda não cedia, as calhas não estavam quebradas e eu tinha certeza absoluta de que o telhado não precisava de conserto.

Nada a ver com a nossa casa em Vancouver.

Pensava em algo maldoso pra dizer quando a Esposa Número Dois saiu correndo da casa e nos abraçou.

– Meninas, que delícia ver vocês! – disse Jennica, e me lembrei de novo de como ela era péssima atriz. Jennica continuou: – Adorei seu cabelo, Violet. Quando está comprido ele fica bonito.

Em silêncio, fiz uma promessa íntima de pedir a mamãe que o cortasse novamente quando voltasse.

As gêmeas estavam dormindo. Papai e Jennica levaram-nos para conhecer a casa. Todos os cômodos ficavam em um andar, mas era um andar imenso. Não reconheci nada da velha mobília.

– As coisas antigas não combinavam com este lugar – informou-nos Jennica, passando a mão pelo cabelo loiro. – Além do mais, esta casa é muuuito maior que o apartamento.

Mostraram a sala pra gente, com sofás modernos em tons café e castanho-acinzentados, e a cozinha clara e arejada, com eletrodomésticos em inox. Depois apresentaram os quartos, na outra extremidade da casa. A suíte principal era enorme, com uma cama king size e um closet do tamanho do quarto que eu dividia com a Rosie em casa, mas sem o teto inclinado. As roupas do meu pai ocupavam um oitavo do espaço – o resto do closet estava atulhado com coisas da Jennica, que tinha mais roupas do que minha mãe, Rosie e eu juntas.

As gêmeas dormiam no quarto ao lado. Jennica abriu a porta devagar para darmos uma olhada lá dentro.

– Queria que fosse igual a um conto de fadas – ela sussurrou.

As gêmeas dormiam a sono solto, bem à vontade em duas camas iguais de dossel, com a grade levantada para não caírem. Os dosséis e os edredons eram de um tecido rosa brilhante. Acima de uma das camas estava escrito “Princesa Lola” com letras prateadas e, sobre a outra, “Princesa Lucy”. Um banco perto da janela estava cheio de almofadas rosa e prata. Estrelas e luas haviam sido pintadas pelo teto inteiro. Os brinquedos ficavam em prateleiras.

– E aqui é o quarto de vocês – informou Jennica, fazendo um gesto grandioso com o braço como se anunciasse uma atração. As paredes em cor bege estavam nuas, a não ser por uma aquarela sem graça de um pôr do sol pendurada entre duas camas bem simplesinhas.

Quando as gêmeas acordaram, abrimos os presentes na sala nova, sentadas no chão, perto da árvore artificial. Eram só três horas quando acabamos, então papai nos levou lá fora. O quintal nos fundos era ainda maior que o da frente. Tinha um balanço, uma caixa de areia e uma piscina em forma de feijão, cercada.

Nosso quintal em Vancouver tinha uma cama elástica enferrujada com uma das pernas quebradas. E lama.

– Não sabia que Jennica gostava de jardinagem – falei pro meu pai, ao ver todas aquelas flores coloridas e várias plantas.

Ele deu risada.

– Ela não gosta. O jardim já existia quando compramos a casa. Ainda bem que a babá tem dedo verde.

Tinha esquecido a babá.

– Está um pouco frio para nadar – disse papai. – Por que não vão brincar na areia?

Sendo uma quase adolescente, a ideia não me atraiu, mas Rosie e as gêmeas adoraram, por isso tiramos a tampa da caixa de areia e elas entraram. Lola e Lucy eram tão gracinhas que até doía. Tinham quase dois anos e haviam herdado os melhores genes dos pais: o cabelo loiro e farto, os grandes olhos castanhos de Jennica, o furinho no queixo e o sorriso radiante de papai.

Rosie e eu não havíamos tido a mesma sorte na loteria genética. Apesar de termos o mesmo pai e uma mãe atraente, só tínhamos herdado o cabelo cor de rato e a miopia do meu pai. Ele usava lentes de contato; nós usávamos óculos. Dele, também, eu ganhara pés e orelhas grandes, além de joelhos protuberantes, bem masculinos. Tudo isso ficava bem no meu pai, mas, transplantado para uma garota magrela como eu, era o maior desastre.

Brincamos um tempão com as gêmeas na caixa de areia. Elas adoravam ficar comigo e com Rosie, e eu as amaria com todo o meu coração se não as odiasse tanto.

Depois do jantar, ficamos na sala íntima, que era tão grande quanto a sala de estar, só que mais despojada. Papai lia o jornal no sofá, mas, quando Lucy e Lola engatinharam pra perto dele, ele largou o jornal e pegou as duas no colo, chamando-as de “minhas estrelinhas” e fazendo cócegas nas duas, que riam sem controle, balançando freneticamente bracinhos e perninhas.

Rosie ficou olhando, os lábios apertados.

Quando Jennica levou as gêmeas para tomar banho, Rosie saltou na direção dele.

– Papai! – gritou ela, pulando em seu colo.

Papai exclamou:

– Ai! Puxa vida, Rosie, você está grande. Sente a meu lado, tá bom? Está pesada demais pra ficar no colo.

Ele a levantou e a colocou ao lado dele. Depois, pegou o jornal e recomeçou a ler. O lábio inferior de Rosie tremeu, mas ela não disse uma palavra.

– Violet, já ia me esquecendo – falou papai por trás da seção de esportes. – Você pode ir lá fora tampar a caixa de areia? Os vizinhos dos dois lados têm gatos.

– Pode deixar – respondi. Levantei e saí da sala. Só que não fui lá fora; eu me esgueirei até o banheiro gigante da suíte de papai e Jennica e fiz xixi. E não dei descarga.

Quando fomos dormir, Rosie me obrigou a vigiar a porta enquanto punha uma fralda por baixo do pijama.

– Não conta pra ninguém, tá? – ela pediu, pondo o polegar na boca.

Puxei o polegar.

– Jamais.

– Jura por Deus e por tudo que é mais sagrado?

– Juro.

 

Na manhã seguinte, após o café, as gêmeas quiseram brincar na areia de novo. Peguei aquelas mãos gordinhas e as levei lá fora, Rosie nos acompanhando alguns passos atrás. Papai e a Esposa Número Dois ficaram na cozinha, tomando café.

Tínhamos começado a brincar quando Lola perguntou:

– Que icho? – e apontou para dois cocôs de gato meio enterrados na areia.

Só para constar: não me orgulho do que fiz a seguir. Mas também não acho que justifique a piração que veio na sequência.

O que aconteceu foi o seguinte: quando Rosie fez menção de responder, tapei sua boca com a mão:

– É chocolate. Acho que foi o Papai Noel que deixou aqui. Olha, tem um pra cada uma.

As gêmeas enterraram a mão na areia e pegaram os cocôs, que enfiaram na boca. Mastigaram. Engoliram.

E abriram um berreiro.

Papai e Jennica chegaram numa fração de segundo. Quando descobriram o que tinha acontecido (graças a Rosie, que não sabia mentir nem para salvar a própria vida), Jennica quis chamar a polícia. Sério. Papai a fez recuperar a razão – mais ou menos –, e os dois levaram as gêmeas para o hospital mais próximo. Não me pergunte o que ela achava que um médico de pronto-socorro pudesse fazer. Talvez receitasse um megabochecho para as meninas.

Rosie e eu ficamos sozinhas em casa por mais de duas horas. Fomos para a sala íntima e ligamos a TV de tela fininha.

Sabia que estava na maior encrenca. Sabia que mamãe ficaria sabendo. E sabia que deveria me sentir mal com o que tinha feito.

Mas não me sentia. Eu me sentia vazia – tipo assim, se você olhasse dentro de mim naquela hora, não ia ver nada. Só um grande espaço em branco.

Depois de uns 15 minutos de uma reprise de Arthur, Rosie falou, sem tirar os olhos da tela:

– Você nunca me fez comer cocô.

– Não, Rosie – falei com delicadeza, tirando o polegar dela da boca e pegando sua mão. – E nunca faria.

 

Jennica nem me olhou quando voltaram. À noite, ouvi papai conversando com mamãe pelo telefone, contando a ela sobre meu “contínuo comportamento problemático”. Na manhã seguinte, anunciei que queria voltar para Vancouver. Ninguém discordou. Rosie não queria ir, mas era muito pequena para viajar sozinha, então tinha de ir comigo. Arrumei nossas roupas e os presentes novos, menos a saia, que joguei embaixo da cama.

Estávamos em Vancouver na hora do jantar. O Natal de Mentirinha havia durado pouco mais de 24 horas.