CAPÍTULO 1

Um homem que cometeu um crime tem de esconder o seu rasto, ainda que o tenha deixado com os melhores sapatos que o dinheiro pode comprar.

Para esconder o seu, Lord Elliot Rothwell voltou a entrar na casa da sua família em Londres entre os últimos convidados do baile do seu irmão e comportou-se como alguém que saíra apenas por breves momentos para apanhar ar nesta noite gloriosa e fresca de Maio.

Mal dera um passo além da soleira da porta, já não estava a entrar mas sim a saudar os convivas. O alto e bem-parecido irmão mais novo do quarto marquês de Easterbrook – o irmão Rothwell considerado mais afável e normal – concedia sorrisos a todos e, a determinadas senhoras, sorrisos deveras calorosos.

Um quarto de hora depois, Elliot embrenhou-se numa conversa com Lady Falrith tão habilmente como havia regressado ao salão de baile. Retomou um tópico interrompido duas horas antes e adulou a senhora de forma tão astuta que esta se esqueceu que ele se havia retirado há muito. Passados minutos, Lady Falrith perdeu toda e qualquer noção da passagem do tempo.

Enquanto Elliot brindava Lady Falrith com o seu charme, esquadrinhava a multidão no salão de baile à procura do seu irmão. Não procurava Hayden, que, em conjunto com a sua nova esposa, Alexia, era o anfitrião do baile. Ele buscava o rosto do seu outro irmão, Christian, o marquês de Easterbrook.

O olhar de Christian nunca se cruzou com o dele, mas o regresso de Elliot ao baile não lhe passou despercebido. Christian afastou-se de um círculo de lordes do reino no canto oposto do salão e caminhou na direcção da porta.

Elliot dançou uma valsa com Lady Falrith antes de prosseguir com a missão da noite. Fê-lo em jeito de penitência por ter usado a senhora e agradecimento silencioso pela sua ajuda involuntária. A noção de tempo de Lady Falrith podia ser fluida, e a sua memória muito optimista. Na manhã seguinte, estaria plenamente convencida de que Elliot a cumulara de atenções a noite inteira e que possuía todas as intenções de lhe fazer a corte. A confiança dela no seu próprio poder de atracção iria revelar-se útil se se desse algum desenvolvimento inconveniente relacionado com as suas actividades na City1 naquela noite.

Quando a valsa terminou, ele desculpou-se mais uma vez por a deixar. Ao invés de Christian, que caminhara solitária e propositadamente até à porta, Elliot deambulou ao longo do salão de baile de forma sociável, cumprimentando e trocando impressões até se aproximar despercebidamente da sua nova cunhada, Alexia.

– Está a correr bem, não concordais? – inquiriu ela. O olhar dela vagueou pela assembleia, procurando uma confirmação empírica.

– É um triunfo, Alexia – afirmou ele. E era-o, para ela. Um triunfo de espírito e carácter e, porventura, um triunfo de amor.

Alexia não era o tipo de mulher com a qual a sociedade esperaria que Hayden se casasse. Não tinha família nem fortuna. Era tão sensata que nunca aprendera sequer a arte da dissimulação, quanto mais a da afectação. No entanto, aqui estava ela na qualidade de anfitriã de um grande baile na casa de um marquês, com o cabelo negro impecavelmente arranjado e a usar um toucado e vestido de um estilo irrepreensivelmente actual, obedecendo ao último grito da moda feminina. A órfã sem um tostão casara-se com um homem que a amava como nunca amara antes.

Elliot acreditava que este seria um bom casamento. Alexia encarregar-se-ia disso. A história já uma vez provara que o amor era uma emoção perigosa para os homens Rothwell. A sensata e prática Alexia saberia, porém, como utilizar o amor para manter o perigo controlado. Elliot suspeitava que ela já teria amansado a fera em mais do que uma ocasião.

Ele imitou-a na admiração do sucesso da noite. No canto oposto do salão, uma mulher pequena e loira era o centro de um círculo de convivas. Um número considerável de plumas brotava do toucado que adornava o seu cabelo loiro. Esta mantinha um olhar vigilante sobre a atenção masculina que uma jovem rapariga recebia perto de si.

– O triunfo é vosso, Alexia, mas creio que a minha tia pretende levar para casa o maior prémio nesta temporada de caça.

– A vossa tia Henrietta está compreensivelmente feliz com a primeira temporada de Caroline. Dois titulares fizeram-lhe a corte. Contudo, ela está aborrecida comigo esta noite porque não convidei um desses titulares para o baile, apesar da sua ordem nesse sentido.

Elliot tinha muito pouco interesse nos aborrecimentos da sua tia, mas um grande interesse na lista de convidados.

– Não vi Miss Blair no baile, Alexia. Nada de hábitos negros ou cabelos soltos no salão. O Hayden proibiu-vos de a convidar?

– Claro que não. Phaedra está no estrangeiro. Embarcou há mais de uma quinzena de dias.

Ele não queria parecer demasiado curioso, mas…

– No estrangeiro?

Os olhos violeta de Alexia refulgiram, repletos de humor. Concedeu-lhe toda a sua atenção, a qual, tendo em conta o assunto em causa, ele preferia não ver dirigida a si.

– O primeiro destino é Nápoles, e a seguir, fará uma viagem pelo Sul. Afiancei-lhe que achais imprudente visitar Itália no pico do Verão, mas ela falou-me do desejo que tinha em investigar os rituais e festas próprias da estação – afirmou, e inclinou a cabeça antes de prosseguir num tom mais confidencial. – Acho que o falecimento do pai a afectou mais do que ela quer admitir. A última ocasião em que esteve com ele foi muito emotiva. Fê-la sofrer. Creio que decidiu fazer esta viagem para melhorar o seu estado de espírito.

Ele não duvidava que uma despedida no leito da morte do próprio pai podia ser emotiva. A sua marcara-o de forma indelével. Hoje, porém, estava mais interessado no paradeiro de Miss Blair e em assuntos que teriam sido discutidos com o pai dela antes de se ter dado esse último adeus.

– Se souberdes onde ela estava a pensar alojar-se em Nápoles, far-lhe-ei uma visita quando viajar até lá, caso ela ainda se encontre na cidade.

– De facto, ela deixou uma morada que esperava poder utilizar. Tomou conhecimento dela através de um amigo. Se ela não regressar antes da vossa viagem, ficar-vos-ia agradecida se a visitásseis. A sua independência é por vezes conducente a uma certa falta de cuidado, e isso deixa-me preocupada.

Ele duvidava que Phaedra Blair visse com bons olhos o facto de alguém se preocupar com ela. Alexia tinha um bom coração por, ainda assim, continuar a fazê-lo.

– Céus – murmurou Alexia.

Ele viu o que provocou o suspiro que se seguiu. Henrietta aproximava-se de ambos, com as plumas a dançar sobre a cabeça e os olhos etéreos e cintilantes raiados de determinação.

– Acho que é a vós que ela quer – sussurrou Alexia. – Misturai-vos no meio da multidão ou ela encher-vos-á os ouvidos com queixas acerca da forma como Easterbrook me autorizou a dar um baile sem a consultar. Ela acha que o facto de residir aqui a torna a senhora da casa.

Elliot conseguia misturar-se no meio da multidão como ninguém. Quando a tia chegou, ele já havia desaparecido há muito.

*

Depois de uma passagem rápida pelo corredor dos serviçais e de uma subida apressada pelas escadas das traseiras, Elliot aproximou-se dos aposentos de Christian. Ao entrar na sala de estar, encontrou o irmão reclinado de forma lânguida num cadeirão no canto da sala.

O olhar atento que Christian lhe dirigiu denotou que a mente de Easterbrook não estava tão descontraída como o corpo.

– Não o encontrei – disse Elliot, respondendo à pergunta que os olhos escuros lhe faziam. – Se está nos escritórios ou em casa dele, está muito bem escondido.

Christian soltou um suspiro ruidoso. O som veiculava a irritação que sentia por este assunto ter interrompido recentemente a sua liberdade de passar os dias a fazer seja o que for que fazia normalmente. Elliot não fazia ideia em que consistiam essas actividades. Ninguém sabia ao certo como Christian passava os seus dias.

– Pode tê-lo queimado quando se deu conta que a morte estava próxima – sugeriu Elliot.

– Merris Langton professava um carácter que tornava muito improvável o facto de pensar em poupar terceiros, mesmo quando estava às portas da morte – disse, enfiando um dedo sob o nó irrepreensível do plastrão, dando-lhe um pequeno puxão para o alargar.

Christian estava esplêndido esta noite, e tudo em si simbolizava um lorde do reino. Os casacos e roupas de linho anunciavam a sua qualidade superior em cada um dos seus fios. O seu gesto para com o plastrão aludia ao desconforto que sentira com a formalidade da noite, de forma tão evidente, porém, como a longa trança do seu cabelo escuro e longo fora de moda personificava a sua propensão excêntrica.

Elliot adivinhou o desejo do irmão de se libertar dos símbolos de alfaiataria da civilização para se envolver no robe exótico que envergava amiúde. Por norma, andava descalço nestes aposentos, e não a usar meias de seda e sapatos de cerimónia. Neste momento, o único indício da sua habitual apresentação desprendida em casa era uma sobrecasaca desabotoada e a forma indolente como o seu corpo alto se moldava aos estofos do cadeirão.

– Verificastes se havia tábuas soltas no chão e afins? – perguntou Christian.

– Arrisquei ser descoberto ao fazê-lo. Estive em ambos os edifícios demasiado tempo e estava a passar um guarda quando saí dos escritórios da City. Estava escuro e não existia nenhum candeeiro próximo da porta, todavia…

A descrição da sua aventura sugeria mais cautela do que aquela que tinha tido. Ele acreditava que existiam ocasiões nas quais não havia outra escolha senão infringir a lei, mas nunca esperara ser tão friamente indiferente quando uma dessas ocasiões se lhe apresentara.

– Estivestes neste baile a noite toda, se surgir alguma questão – declarou Christian. – Langton possuía uma pequena editora que dava preferência a textos radicais. Era igualmente um homem com uma predisposição para a chantagem, como ficámos a saber. Foi uma pena ele ter-se deixado morrer antes de eu lhe conseguir pagar. Agora, o manuscrito de Richard Drury está Deus sabe onde e a sua mentira sórdida a respeito do nosso pai ainda pode chegar a ver a luz do dia.

– Eu farei tudo para que isso não aconteça.

– Achais que alguém lhe deitou a mão antes de vós? É muito provável que não tenhais sido a única pessoa que Langton abordou.

– Não vi qualquer indício de que alguém já tivesse passado a pente fino os seus pertences. Nem sequer o seu procurador ou executor testamentário. Ele só foi a enterrar esta tarde. Na minha opinião, o manuscrito não estava em nenhum desses locais quando faleceu.

– Isso é deveras inconveniente.

– Inconveniente, mas não inultrapassável. Vou encontrá-lo e destruí-lo, se for necessário.

Christian olhou-o com atenção redobrada.

– Falais com uma grande confiança. Sabeis onde está aquele maldito manuscrito, não sabeis?

– Tenho um bom palpite. Se estiver certo, vamos ver-nos livres disto em breve. Ainda vos poderá custar uma boa maquia.

– Pagai-a. Richard Drury era um membro do Parlamento, e, apesar das suas opiniões radicais, um intelectual respeitado. Se as suas memórias incluem uma acusação desse calibre contra o meu pai, muitos irão acreditar nela.

Irão acreditar nela porque bate certo com aquilo que já pensam corresponder à verdade. Elliot não verbalizou a resposta, mas esta insinuara-se no seu íntimo quando ouviu pela primeira vez que Merris Langton planeava publicar as memórias póstumas de Richard Drury. O livro iria incluir segredos e maledicências que se reflectiam de forma negativa em muitos dos grandes e poderosos, quer do passado, quer do presente. A acusação que supostamente continha com respeito ao pai de ambos batia demasiado certo com o que a sociedade já presumia acerca do casamento dos seus pais.

A sociedade enganara-se a respeito de grande parte da história, no entanto. O seu próprio pai havia-lhe explicado isso num momento em que nenhum homem consegue mentir.

Éreis o seu filho preferido. Ela manteve-vos junto de si e eu permiti isso, sendo vós o mais novo. Era um alívio vê-la a lembrar-se de que era mãe, por vezes. Mas agora estou aqui a morrer e mal vos conheço. Não espero amor ou pesar da vossa parte, mas não morrerei convosco a pensar que sou o monstro que ela provavelmente vos disse que sou.

– Onde achais que o manuscrito está? Exijo que me mantenhais a par de cada passo, Elliot. Se não estiverdes a fazer progressos, tratarei disto pessoalmente.

Não era clara a forma como Christian trataria do assunto. Essa ambiguidade levara Elliot a assumir esta responsabilidade. O irmão podia ser assaz impiedoso a silenciar estes ecos do passado.

– Embora não tenha encontrado o manuscrito, descobri papéis relativos a finanças no escritório de Langton. Aquela editora está numa situação precária. Mais interessantes ainda foram os documentos que diziam respeito à propriedade da firma. Richard Drury foi um dos sócios com uma participação passiva desde o início. Não restam dúvidas de que foi por causa disso que Langton recebeu aquelas memórias para publicação.

Christian recebeu os novos dados com interesse.

– Teremos de entrar em contacto com o procurador de Langton para saber quem fica com tudo agora.

– Os documentos indicavam que a participação de Drury foi legada à sua única filha. Ainda existe uma sócia viva com a qual teremos de nos entender, e que provavelmente foi conivente no esquemazinho de chantagem desde o início.

– A sua única filha? Raios! – exclamou Christian. De seguida, empurrou a cabeça contra os estofos do cadeirão, fechou os olhos e emitiu um queixume exasperado. – Não a Phaedra Blair. Maldição.

– Sim, a Phaedra Blair.

Christian murmurou outra praga.

– É tão típico de Mr. Drury, com as suas opiniões radicais e vida pouco convencional, legar a parceria de um negócio a uma mulher, e à sua filha ilegítima, ainda para mais – declarou e fechou as pálpebras. – Claro que ela pode ficar satisfeita com o dinheiro se a editora está em dificuldades. Pode até receber de bom grado uma razão para não publicar as memórias do pai. Não tenho qualquer dúvida de que estarão pejadas de assuntos privados a respeito dela e da sua mãe.

– É possível que sim.

Elliot não se sentia tão optimista no que dizia respeito à simplicidade das negociações. Miss Blair era uma complicação indesejada. Ela podia ver nessas memórias e nos seus segredos um potencial êxito de vendas que salvaria a editora. Pior ainda, podia acreditar que faria jus às suas noções de justiça social ao revelar os podres da alta sociedade.

– A sua própria obra foi publicada por Langton, não foi? Está aqui na biblioteca algures. Confesso que nunca a li. Nutro pouco interesse por mitologia e folclore, e muito menos por estudos sincretistas a respeito disso – assegurou Christian.

– Ouvi dizer que o trabalho académico foi mais do que respeitável – afirmou. Aparentemente, Elliot praticava a máxima de reconhecer a seja quem for o seu mérito. – Ela herdou a inteligência dos pais, assim como a indiferença de ambos a respeito de regras de conduta e observância.

– Atendendo às circunstâncias, nenhum dos seus legados representa uma boa notícia para nós – afirmou Christian, erguendo-se. Abotoou o casaco e inspeccionou a gola, preparando-se para regressar ao baile.­ – É melhor não comentardes nada com Hayden acerca disto. Ele é muito protector da sua nova esposa e Miss Blair faz parte do círculo de amizades de Alexia. Se fordes obrigado a ser desagradável, é melhor que ambos permaneçam ignorantes desse facto.

– Miss Blair partiu para Nápoles há duas semanas. Entender-me-ei com ela antes que ela e Alexia possam ter outro tête-à-tête.

– Ides partir no seu encalço?

– Pretendia viajar para lá este Outono, seja como for. Quero estudar as escavações recentes em Pompeia para o meu próximo livro. Limitar-me-ei a antecipar a minha partida.

Os dois irmãos caminharam lado a lado até à escadaria. A cada passada, as toadas da música soavam mais alto e o suave burburinho de vozes inundava as alas majestosas. Enquanto desciam em direcção à alegre assembleia, Elliot reparou na expressão impenetrável e distraída de Christian.

– Não fiqueis apreensivo, Christian. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que a acusação contra o nosso pai nunca seja impressa.

O sorriso fugaz de Christian não dissipou a sua expressão.

– Não duvido das vossas capacidades ou determinação. Não era nisso que pensava há pouco.

– O que era então?

– Estava a pensar em Phaedra Blair e a perguntar-me se algum homem consegue, como afirmastes, entender-se com ela.

Elliot caminhava na escuridão, alumiado pela chama do peque­no candeeiro que transportava.

Os convidados tinham abandonado a casa e os serviçais dormiam. Hayden e Alexia estariam provavelmente a desfrutar do leito matrimonial na casa de ambos em Hill Street. Christian ainda poderia estar acordado, mas não abandonaria os seus aposentos durante alguns dias.

A luz ténue reflectia-se nas molduras douradas da galeria. A lua irradiava um pouco mais de luz através das longas vidraças que atravessavam a parede oposta. Elliot deteve-se em frente de dois dos retratos. Não viera à procura desta ala, mas o seu propósito tinha tudo a ver com o homem e a mulher imortalizados nestas imagens.

O artista utilizara cenários de fundo similares para os dois corpos, e parecia que um dos quadros continuava o cenário e mundo do outro. Era bom ver os seus pais juntos assim, duas metades de um todo, ainda que a unidade implícita fosse uma mentira. Ele podia contar o número de vezes que os vira sequer juntos na mesma sala enquanto ainda eram vivos.

Não morrerei convosco a pensar que sou o monstro que ela provavelmente vos disse que sou.

O pai incorrera num erro. Com excepção de uma explosão emocional, a mãe nunca falara com ele a respeito da separação ou das razões que a motivaram. Na verdade, raramente falara seja do que for durante aquelas horas que ele passara com ela na biblioteca em Aylesbury.

Ele temia o pai pelas suas próprias razões, sem a ajuda da sua mãe. Acolhera com prazer os raros momentos de atenção por parte de um pai que parecia não se recordar que tinha três e não dois filhos.

Retomou o caminho que o levaria à biblioteca a pensar naquela longa conversa com o pai, a única e última que alguma vez tiveram. Aprendeu verdades importantes naquele dia, a respeito de pessoas e paixões, orgulho e alma, e a respeito das formas através das quais uma criança não consegue ver o mundo em seu redor com muita clareza.

Ele emergira dessa conversa sem qualquer temor. Depois dessas confidências, sentiu que era verdadeiramente filho do seu pai pela primeira vez na vida.

Com o candeeiro, iluminou as encadernações de pele da biblioteca. Procurou a prateleira mais baixa das estantes do canto. Depois da morte da mãe, trouxera os seus livros privados para lá, aqueles que a tinha observado a ler em Aylesbury durante o seu exílio.

Ele não sabia por que motivo levara esses livros para Londres. Talvez porque dessa forma uma parte dela perduraria no local onde a família se reunia mais amiúde. Cedera a este impulso muito antes daquela conversa com o pai, naquele que podia classificar-se como um acto rebelde de subterfúgio para tentar acabar finalmente com a forma como ela havia sido tão separada das suas vidas.

Ninguém reparara no seu aditamento às centenas de volumes existentes. Aqui em baixo neste canto obscuro, o facto de as suas encadernações não condizerem com as demais não levantava questões.

Ele deslizou o dedo por um grupo que nem sequer estava encadernado. Eram panfletos estreitos e finos que a sua mãe possuíra. Tirou-os da estante, espalhou-os em forma de leque no chão e passou o candeeiro em cima dos títulos.

Viu aquele que pretendia. Era um ensaio radical que se opunha ao casamento, escrito há trinta anos por uma famosa intelectual. Após a sua publicação, a autora vivera fiel aos seus princípios. Chegara ao ponto de rejeitar a perspectiva do casamento quando deu por si de esperanças do seu amante de sempre, Richard Drury.

Ele pegou no panfleto e, juntamente com o candeeiro, dirigiu-se à estante onde Easterbrook depositava as aquisições mais recentes da biblioteca. Retirou uma dissertação mitológica que ainda cheirava a pele nova.

Levou as duas obras consigo para os seus aposentos e começou a lê-los, para se preparar para se entender com Phaedra Blair.

1 Centro financeiro e histórico de Londres. (N. da T.)