CAPÍTULO 22

Phaedra pousou o lápis e esfregou os olhos. O manuscrito do pai precisava de uma revisão mais atenta do que ela antecipara. A sua caligrafia ficara pior no final e tão má que era muito pouco provável que os compositores conseguissem reconhecer as letras. Ela calculou que tivesse pelo menos mais uma semana de trabalho à sua frente.

Olhou em volta na sala de leitura do Museu Britânico. Ou­tras cabeças e costas estavam igualmente curvadas sobre volumes noutras mesas. A maior parte eram homens, mas havia algumas mulheres. A sua atenção concentrou-se nos primeiros, um por um.

Elliot não estava ali. Procurá-lo tinha-se tornado um hábito. Eles não se podiam encontrar em privado, mas um encontro públi­co não possuía qualquer perigo. Se por acaso ele trabalhasse aqui ao mesmo tempo que ela…

Não precisava de haver qualquer reconhecimento de parte a parte. Nenhuma saudação ou conversa. Ela só queria vê-lo novamente. Podia limitar-se a retirar prazer do mero facto da sua existência nesta sala, mesmo que ele se sentasse no canto mais distante e nunca voltasse a cabeça na sua direcção.

Ela fechou os olhos e imaginou-o. Sentiu o sabor daquele último beijo e inalou o seu cheiro. A mão dele deslizava pelo seu corpo, acariciando-o. Ela saboreou as memórias, revivendo-as na­quele preciso momento.

Quando tempo passaria até estas se desvanecerem? Ela temia que isso acontecesse, e que o mesmo destino coubesse às emoções que instigavam a sua alma. Ela evocava demasiadas vezes as memórias porque receava que estas já tivessem começado a fugir-lhe entre os dedos.

– Phaedra, estais a dormir?

Ela abriu os olhos, sobressaltada. Um chapéu chique e elegante inclinara-se por cima da mesa. Uma mulher fitava-a, curiosa, e falara num murmúrio.

– Alexia, o que fazeis aqui?

– Disseram-me que passais os vossos dias aqui.

Ela olhou em volta na sala. Os murmúrios elevaram-se no ar e alguns olhares carrancudos foram lançados na direcção de ambas.

– Vamos sair. Preciso de apanhar ar – pediu Phaedra.

Alexia aguardou enquanto ela atava o manuscrito. De seguida, levou-o até ao bibliotecário que o guardou numa estante.

As duas amigas abandonaram a sala de leitura e a Montague House4.

– Podemos dar um passeio na praça Bedford – sugeriu Phaedra.

– Então aquele é que é o tal manuscrito infame – disse Alexia enquanto caminhavam na direcção da praça.

O coração de Phaedra ensombrou-se.

– Já sabeis de tudo.

– Hayden e eu guardamos poucos segredos um do outro. Não precisais de ficar tão aflita, minha querida amiga. Não vim ter convosco para implorar a vossa misericórdia. Easterbrook quer que eu o faça, mas eu finjo que não ouço as suas insinuações a esse respeito.

– Fostes a primeira pessoa em que pensei. Quando li aquilo, não me preocupei com os sentimentos do vosso marido ou dos irmãos, mas com os vossos…

– Isso é muito amável da vossa parte e estou-vos grata por isso. Todavia, eu compreendo a lealdade que devemos à família. Se o vosso pai vos incumbiu de um dever, não podeis seleccionar e escolher que parte dessa promessa ireis cumprir.

Phaedra mantinha uma compostura periclitante desde aquele jantar. Neste momento, a generosidade de Alexia fê-la estremecer de novo, de forma assustadora. A amiga olhou-a de relance e esboçou um sorriso tranquilizador.

– Quem foi que vos disse que eu estava a trabalhar no manuscrito na Montague House?

Mais um olhar de relance. Mais um sorriso. Um sorriso repleto de compaixão.

– Não foi ele. O visconde Suttonly regressou a Londres e a tia Hen seguiu-o insensatamente com Caroline de volta para a cidade. Hayden está furioso e instituiu regras extremamente rigorosas. Encarregou Easterbrook de as aplicar.

– Não consigo imaginar o marquês a pregar um sermão a uma jovem acerca da sua virtude.

– Ele não disse uma palavra sobre o assunto, segundo a deveras perturbada tia Hen. Em vez disso, faz questão de limpar todos os dias as pistolas de duelo na biblioteca, mesmo à frente de Caroline.

Phaedra soltou uma gargalhada ao imaginar a cena.

– Eu compreendo a perturbação de Henrietta. Casar a filha com um titular está ao alcance dos seus dedos, afinal de contas.

– Na verdade, não lamentei o seu regresso. Permite-me ficar igualmente na cidade. E ela é um íman para a melhor má-língua de Londres e arredores. Foi ela quem me disse onde vos podia encontrar, por exemplo.

– Lord Elliot recomendou-me que entregasse o manuscrito à guarda dos bibliotecários do museu. Foi mais sensato do que eu. Tenho a certeza de que alguém esteve em minha casa ontem à noite, sem dúvida à procura dele.

Ela não ouvira qualquer ruído enquanto dormia, mas de manhã, quando entrou na sala de estar, algo lhe parecera errado e ligeiramente alterado, com os xailes venezianos dispostos de forma diferente e as estantes dos livros demasiado ordenadas.

– Não foi nenhum de nós – disse Alexia. – Não teríamos qualquer razão para isso. Easterbrook e Hayden sabem onde guardais essas páginas.

As duas amigas deram uma volta no pequeno parque da praça Bedford. As casas que a circundavam pareciam modestas, mas confortáveis. De construção similar, eram o tipo de casas que escritores bem-sucedidos, causídicos e diplomatas estrangeiros habitavam. As suas fachadas elegantes alinhavam-se num estilo uniforme, com telhados que não eram excessivamente elevados. As casas coadunavam-se lindamente com as pequenas proporções da praça.

– Elliot tenciona deixar Londres em breve – afirmou Alexia, como se estivesse a responder a uma pergunta. Talvez tenha ouvido a que estava na ponta da língua de Phaedra.

Elas caminharam um total de dez passos antes de Phaedra lhe responder.

– O que é que sabeis, Alexia?

– Sei quase mais do que desejaria. Não concordo com a vossa filosofia, Phaedra. Nunca fingi concordar. Agora temo que estejamos prestes a descobrir a calamidade que pode causar. No entanto, uma vez que nunca me tentastes converter, eu também não farei qualquer tentativa nesse sentido – declarou Alexia. Ela conduziu ambas ao parque e deixou-se sentar num banco de pedra. – Elliot envolveu-se numa discussão com Easterbrook ontem.

– Foi uma grande discussão?

– Nas palavras da tia Hen, foi uma discussão épica.

Phaedra sentou-se ao seu lado.

– Henrietta conseguiu ouvir o que diziam?

– Henrietta jamais perderia a oportunidade de ouvir uma discussão atrás de uma porta. No entanto, consegui convencê-la de que a ouviu mal desta vez. Ela afirmou que esta discussão era a respeito de um casamento.

– Um mal-entendido, sem dúvida – replicou Phaedra, fitando com toda a atenção a gavinha de uma folha de hera que se enrolava em espiral perto do seu sapato.

– Ela disse que esta altercação girou em torno dos direitos de um marido e a necessidade dos maridos de exercer esses direitos. Em suma, Christian estava a dizer a Elliot que se algo semelhante a um casamento existisse entre ele e vós, ele devia tomar posse daquela editora que recebestes em herança.

– Se Elliot não concordou com ele, isso foi muito nobre da sua parte.

– Que resposta estranha, Phaedra. Pensei que iríeis desatar às gargalhadas com a mera ideia de existir algo semelhante a um casamento entre ambos – anunciou ela, inclinando a cabeça de forma irónica. – Qual é a dimensão desta calamidade, Phaedra?

Phaedra preferia que Alexia não tivesse utilizado a palavra «calamidade». Embora talvez esta tivesse sido uma escolha apropriada. A situação podia ter destruído algo valioso e era possível que viesse a causar mais mágoa.

Ela contou a verdade à amiga. A expressão de Alexia reflectiu um assombro crescente.

– Estou de acordo que esses votos não deviam ser válidos – disse ela. – Hayden não partilhou tudo comigo, afinal de contas. Porém, a vossa história explica este bilhete.

Ela pousou a bolsinha no colo, abriu-a e tirou um pedaço de papel dobrado.

– Ele pediu-me para vos dar isto. Na altura, não percebi porquê, uma vez que reparei que são todos advogados.

Phaedra leu os três nomes que estavam escritos no papel. Ela reconheceu um deles. Este tinha representado uma condessa que pretendia separar-se do marido. Todos os pormenores relativos ao caso apareceram nos jornais. Ela anteviu que os pormenores respeitantes à sua acção judicial seriam igualmente publicados.

– Não posso pagar os honorários deste tipo de homens.

– Quem me deu esse papel foi Hayden e disse-me para vos dizer que ele faria contas com eles. Agora que compreendo as circunstâncias, estou certa de que ele queria dizer que se encarregaria de pagar os respectivos honorários.

O próprio irmão de Elliot oferecera-se para pagar os custos resultantes da sua petição. O seu outro irmão até podia querer que ele exercesse os seus direitos maritais enquanto ainda fossem ambíguos, mas Easterbrook ficaria igualmente feliz por livrar a família de Phaedra no final.

Talvez Elliot tenha chegado à mesma conclusão. No mínimo, a ajuda de Hayden provavelmente também queria dizer que Elliot não iria contestar as suas declarações.

O nó de desapontamento que envolvia o seu coração era uma reacção ridícula. Os corações não pensam com clareza suficiente para tomar decisões. Entregam-se ao sentimento e não prevêem o futuro. O arrependimento pleno de nostalgia não esmoreceria facilmente, mas isso não significava que ela devia permitir que esta emoção traiçoeira a dominasse.

Guardou o papel no bolso e desviou a conversa para assuntos que a distraíssem de Elliot.

Mr. Pettigrew batia incessantemente com as pontas dos dedos no seu queixo papudo. O hábito deixara há muito de impressionar Phaedra como um sinal de concentração pensativa. Ela começava a pensar que o homem passara todo aquele tempo a sonhar acordado.

– O que me dizeis, senhor? A minha petição terá uma audiência justa?

A pergunta demorou igualmente uma quantidade apreciável de tempo a penetrar na sua concentração. Por fim, os dedos grossos abandonaram o queixo flácido e a cabeça inclinada e grisalha endireitou-se.

– Este é um caso muito interessante, Miss Blair. Deveras interessante. Estou fascinado pelas potenciais ramificações e implicações que uma sentença neste caso irá ter.

– Nada me dá mais prazer do que proporcionar-vos essa estimulação mental. Porém, esperava algum tipo de corroboração da vossa parte de que estou correcta na minha forma de ver o assunto em causa.

A sua atenção fixou-se nela. Mr. Pettigrew era um homenzinho corpulento cujo plastrão parecia estar a estrangulá-lo. Os seus olhos azuis conseguiam tornar-se extremamente penetrantes quando queria.

– Se optardes por este caminho, o percurso será moroso. Quan­to a provas, o melhor será obterdes cartas ajuramentadas de terceiros que estiveram presentes e só essa tarefa demorará meses. As testemunhas dessa cerimónia de casamento estarão dispostas a dizer que fostes coagidos?

– A mulher sim. Também creio que o padre estava consciente da inexistência de um consentimento verdadeiro. Não me parece que ele estivesse à vontade enquanto realizava a cerimónia.

– Reparai, o problema reside precisamente aí. Nas vossas próprias palavras. Consentimento verdadeiro. Esse é o busílis da questão. Destes o vosso consentimento, mas não foi, afirmais, um consentimento verdadeiro. O tribunal não receberá com agrado uma declaração dessa natureza. Quantos outros não diriam então que não existiu um consentimento verdadeiro? E, no entanto, contais uma história que pode possivelmente corroborar essa reivindicação. Fascinante.

– É suficientemente fascinante para me representardes?

Pettigrew não era o primeiro nome da lista. Ela já tinha sido recusada pelos outros dois.

Ele perscrutou o rosto dela de forma crítica.

– Estais certa de que Lord Elliot irá contar a mesma história? É essencial que ele não conteste isto. Se ele o fizer, nenhum tribunal o anulará. Afinal de contas, ele é o filho de um lorde.

– Ele não fez nada para reivindicar os direitos que aqueles votos lhe dão. Não vivemos como homem e mulher e não tomou quaisquer providências no sentido de se apoderar dos meus bens.

– Ah, bem, se ele deixou em paz os bens… As coisas passar-se-ão da seguinte forma, Miss Blair. O tribunal ficará desconfiado de que isto se trata de uma tentativa de desfazer um casamento realizado à pressa numa estadia no estrangeiro. Esse género de casamentos impulsivos não é inédito quando os nossos conterrâneos são estimulados pelo contacto com climas mais quentes e respectivos povos de temperamentos mais arrebatados. O bom senso muitas vezes regressa demasiado tarde.

– Não estais a descrever o que sucedeu connosco. Os votos foram meramente proferidos para que eu não fosse sujeita a acusações de crimes que não cometi. Tratou-se de uma tentativa desesperada para me salvar e nada mais do que isso.

Ele aceitou as palavras dela sem qualquer comentário, mas Phaedra detectou uma ponta de cepticismo na sua expressão diplomática.

– Depois, temos a questão da noite na torre – disse ele. – Irão inquirir-vos e a Lord Elliot a propósito da ocorrência de um encontro de índole sexual nesse local. Se se confirmar, todo o seu caso ficará comprometido – explicou, para, de seguida, fazer uma pausa e contrair os lábios. – Se esse tipo de actividade continuou após terdes deixado Positano, bem… E se porventura esta ligação amorosa der frutos na forma de uma criança, será um caso perdido.

Ela preparou-se para a rejeição que se seguiria. Estes não eram os únicos três advogados disponíveis. Ela teria de encontrar outros, um pouco menos fastidiosos. Um deles acabaria por ver a legitimidade da sua posição.

– Quer-me parecer que não considerais a minha petição merecedora do vosso tempo, senhor.

– Limitava-me a explicar-vos as dificuldades – afirmou. O seu rosto redondo enrugou-se num sorriso. A mão cortou o ar num arco longo e abrangente. O gesto abarcava a visão que tinha de Phaedra. – Normalmente, esta petição seria em vão. No entanto, vós não sois normal, pois não?

– Perdão?

– Miss Blair, a vossa antipatia em relação ao casamento é bem conhecida. A vida da vossa mãe é lendária e a vossa própria excentricidade e provável ausência de fidelidade não é algo a que um filho de um lorde se queira ver associado de livre vontade. Se qualquer outra mulher afirmasse que não dera o seu consentimento para se casar com Lord Elliot Rothwell, o tribunal expô-la-ia ao ridículo. Vós, porém… – declarou e repetiu o gesto com a mão. – O vosso comportamento e crenças virão em apoio da vossa afirmação. O tribunal estará predisposto a libertar Lord Elliot de quaisquer obrigações que tenha para convosco. Sim, aceitarei o vosso caso e certificar-me-ei de que tereis o melhor causídico a defender o vosso caso. Não tenho dúvidas de que iremos receber ambos convites para jantar durante anos a fio às custas da notoriedade desta petição.

A promessa de notoriedade não ajudou a melhorar o humor de Phaedra. Ela abandonou o escritório de Pettigrew no mesmo estado aturdido e triste no qual entrara. Como o dia estava bonito, decidiu ir a pé até ao Museu Britânico.

Ela enfiou a mão dentro do bolso e pousou-a sobre uma carta lá escondida. Elliot escrevera-lhe há dois dias, expressando a sua preocupação a respeito do intruso da outra noite.

O tom da carta era formal, quase distante. Será que fantasiara o facto de que, através daquelas expressões desprendidas de cautela e preocupação, ele estaria na realidade a dizer outra coisa? Desisti e vinde até mim, e nunca mais correreis qualquer perigo.

A carta não continha nada remotamente semelhante a isto. Não existiam quaisquer palavras de paixão ou alusões ao que haviam partilhado. A mensagem podia ter sido dirigida a um conhecido que não via há cinco anos.

Talvez ele não quisesse arriscar escrever uma carta que desmentisse as suas afirmações a respeito daquele casamento. Ou talvez já tivesse começado a vê-la de forma diferente.

Ela não podia censurá-lo por isso, se fosse esse o caso. Afinal de contas, ela escolhera a liberdade em detrimento dele. Ele convencera-se a si próprio a aceitar a validade daqueles votos e ela não tinha dúvidas que ele se sentira insultado pela sua recusa em fazer o mesmo. Ela não tinha esperanças que ele alguma vez compreendesse por que motivo não o podia fazer.

Ela própria começava a perguntar-se porque não o podia fazer.

O mero facto de tocar na carta dava-lhe algum conforto. Ela, que nunca antes se sentira sozinha nesta vida que escolhera, sentia agora o peso da solidão. Também nunca antes questionara essa vida na sua essência, mas agora, nas horas mais avançadas da noite, fazia-o com o coração repleto de tristeza e solidão. Phaedra não conseguia resignar-se à infelicidade que esta separação lhe causava. A dor era uma presença constante na sua alma, nunca esmorecendo.

Ela entrou na sala de leitura e foi buscar o manuscrito. Phaedra começara a odiar esta obrigação diária. Pegou nas páginas como se estas tivessem todo o peso do mundo. Deixou-as cair numa mesa e fulminou-as com o olhar.

O ar atrás de si moveu-se de uma forma subtil. Uma presença insinuou-se bem próximo dela. O seu coração deu um salto. Ela fechou os olhos e saboreou a felicidade que se espalhava por todo o seu ser como raios de sol a irromper através de nuvens negras.

Phaedra voltou-se para ver Elliot a depositar um volume encadernado e fólios de papel na mesa em frente à sua. Ele brindou-a com um sorriso, mas era o tipo de sorriso cortês oferecido a um conhecido, não a uma pessoa ao lado de quem já dormira.

– Miss Blair, é um prazer encontrar-vos aqui por acaso. Não sabia que o vosso trabalho ainda vos prendia aqui.

– Estou prestes a terminá-lo, Lord Elliot.

O olhar dele deteve-se fugazmente no manuscrito que tinha feito com que os seus caminhos se cruzassem. De seguida, gesticulou na direcção da sua própria mesa.

– Eu também estou prestes a terminar o meu. Não irei bloquear a luz da janela se me sentar ali, pois não? Há outras mesas disponíveis se a minha presença for inconveniente de alguma forma.

– Está um belo dia de sol e toda a luz que houver pode ser partilhada.

Ele não voltou a falar. Ocupou a cadeira, abriu o volume e os papéis e abstraiu-se nos seus exercícios mentais.

Ela sentou-se e dispôs o manuscrito à sua frente. Não desviou o olhar dele e fingiu estar a lê-lo. Na verdade, os seus olhos não viam os escritos do seu pai, apesar de Elliot não estar a bloquear minimamente a luz.

Ela não conseguia deixar de o sentir ali, tão próximo de si. Deleitou-se com a sua presença e com a forma como aliviava a sua dor. Saboreou o modo como o coração inchava de emoção. Maravilhou-se com a facilidade com que as lágrimas lhe assomaram aos olhos.

Ela tinha-se apaixonado por ele. Era isso que todas estas emoções significavam. A alegria, a dor, a paz, e a confusão – estas eram as reacções de uma mulher que tinha perdido o seu coração.

Ela não sabia por que razão essa verdade a alcançara agora, aqui, durante esta hora de intimidade distante. Ela pensava que estivera apaixonada antes, mas aqueles breves estados de entusiasmo não possuíam qualquer comparação com isto. Phaedra interpretara mal muitas coisas sobre si própria e sobre os vínculos que formara nesta amizade tão especial.

Ela perdeu a noção do tempo que permaneceu naquela posição, a sentir a presença dele e a maravilhar-se com o contentamento que esta lhe trazia ao coração. Quando ele se ergueu da cadeira, ela foi arrancada bruscamente ao seu doce alheamento. Ele dirigiu-se às estantes, retirou outro livro e caminhou de volta à sua mesa.

Ela não conseguiu evitar olhá-lo. Não teve forças para o libertar do seu olhar. Ele estava tão bonito no seu elegante casaco escuro, plastrão e gola engomados. O facto de os olhos continuarem a reflectir a absorção intelectual e de o cabelo parecer ligeiramente revolto só o tornava mais atraente. Não era só o corpo que fazia o homem.

Ele reparou na atenção dela e a sua emergiu dos seus pensamentos. Os seus passos pareceram abrandar. Ele avançava agora com os olhos pregados nos de Phaedra. O desejo ardia-lhe no olhar, tranquila e subtilmente, oculto a todos excepto ela.

Ela reagiu como sempre reagira. Como sempre reagiria. Imaginou-se já idosa e de cabelo branco a encontrá-lo por acaso na cidade após terem estado separados durante décadas. Se ele olhasse para ela desta forma nesse momento, ela recordar-se-ia num abrir e fechar de olhos do quanto ela sempre o desejara.

Desta vez, ele não se sentou. Aproximou-se tranquilamente da sua mesa, como um intelectual curioso acerca do trabalho de um dos seus semelhantes. Deixou-se ficar ligeiramente atrás dela e inclinou-se por cima do seu ombro. Ela sentiu-o a poucos centímetros do seu corpo de forma tão evidente, tão quente que cerrou os dentes para controlar o impulso de virar a cabeça e beijar-lhe o peito.

– Só vos faltam algumas páginas – disse ele.

– É possível que precise de revê-lo todo novamente. Ainda pode demorar algum tempo até estar em condições de ser entregue na tipografia – afirmou e ergueu o olhar para ele. – Confio que agora também preciseis de vos deslocar frequentemente até aqui, para verificar os pormenores do vosso livro.

– Por norma, existe muito trabalho de verificação na parte final.

– Então, é possível que partilhemos a luz do sol novamente, Lord Elliot.

– Creio que não. Amanhã abandonarei Londres e estarei fora pelo menos uma semana. Deveis dar por concluído o vosso trabalho muito antes da data do meu regresso.

Os olhos continuaram calorosos. Sabedores. Ela viu o seu afecto, ainda que mais ninguém o conseguisse ver. Os lampejos de aço também não lhe passaram despercebidos.

– Não vos alongueis demasiado na vossa tarefa, Miss Blair. A vossa vontade foi respeitada neste e noutros assuntos e eu não interferi. Porém, seria insensato da vossa parte confiar que me deixarei convencer para sempre de tão nobres sentimentos. Confesso que os pratos da balança da minha consciência têm pendido para o lado errado ultimamente.

O aviso dele fê-la corar intensamente.

– Aguardo um último pedido relacionado com o conteúdo deste trabalho – afirmou ela.

– Quaisquer pedidos nesse sentido, se se confirmarem, chegarão até vós na próxima semana. Após essa data, tomai a vossa decisão. Ou seguis em diante ou não. Mas não proteleis este assunto, senão irei questionar a vossa determinação nesta e noutras matérias. Estou demasiado consciente, e sou demasiadas vezes lembrado, que uma palavra da minha parte iria resolver de modo assaz conveniente todas as questões pendentes a respeito da vossa pessoa de formas que seriam muito mais do meu agrado.

Ele caminhou até à mesa que ocupara, pousou o livro e reuniu os seus papéis.

– Foi um prazer desfrutar da vossa companhia hoje. Um prazer demasiado intenso. Não consegui fazer mais nada durante a última hora e meia que não fosse imaginar-vos nua nesta mesa, a implorar-me para vos possuir.

Ele olhou em volta na sala repleta de livros para os leitores com lunetas e os bibliotecários de semblante grave.

– Raios, Phaedra. Nunca mais vou olhar para esta biblioteca da mesma forma.

Elliot tencionava viajar até ao Suffolk para visitar Chalgrove como Hayden lhe pedira, mas tinha adiado a visita por uma multiplicidade de razões. Enquanto a sua carruagem o transportava através da região rural, ele admitiu a si próprio que a verdadeira razão fora Phaedra.

Ir à sua procura na sala de leitura fora uma cedência menor à melancolia que o atormentava. Ele jurara a si próprio que não se sentaria perto dela. Nem sequer pretendia ser visto por ela. Depois, mal ela entrara na sala, gravitou instantaneamente na sua direcção para poder absorver a sua presença como um alcoólico sóbrio há demasiado tempo.

O facto de saber que estava a agir de forma ridícula não conteve o ímpeto de se expor ainda mais ao ridículo. O amor era um inferno e não havia nada a fazer quanto a isso.

Ele fixou o olhar nas quintas que a carruagem ia deixando para trás, mas na realidade só conseguia vê-lo a ele com ela nos anos que se seguiriam. A visitá-la naquela casinha. Ela provavelmente nem sequer aceitaria o género de presentes normais que um amante oferecia à sua amada. Passariam dias a fio nos quais ele não a veria de todo. Independentemente da duração deste caso amoroso ou do facto de declararem um amor eterno um pelo outro, ela não faria verdadeiramente parte da sua vida.

O homem dentro de si revoltou-se contra essa perspectiva. Assim como o amante apaixonado. Ela podia ter crescido a aprender que uma relação dessa natureza era normal, mas a noção não fazia qualquer sentido quer para a sua cabeça, quer para o seu coração.

Pior, instalara-se-lhe a suspeita de que ela conseguia aceitar esse tipo de vida porque não desejava realmente que ele partilhasse a sua vida. O que levantava a questão da possibilidade de se ter apaixonado estupidamente por uma mulher que não retribuía esse amor.

Eles nunca tinham falado de amor. Ele tinha a desculpa da ignorância, mas ela podia ter uma razão muito diferente.

A carruagem desviou-se da estrada para um caminho secundário e ele concentrou os seus pensamentos no encontro que tinha à sua frente. Este seria o mais bem-vindo dos seus deveres enquanto estivesse fora de Londres, mas, ainda assim, Elliot não estava ansioso. Não podia influenciar Phaedra no que dizia respeito às memórias, e muito menos em nome do conde de Chalgrove.

A propriedade de Chalgrove dava mostras da permanência prolongada do seu senhor. Os campos pareciam produtivos e o solar bem cuidado. Hayden afirmara que as finanças de seu amigo não gozavam de boa saúde, porém. Dívidas herdadas e perdas de capital durante a recente crise bancária tinham obrigado Chalgrove a manter cuidadosamente um equilíbrio financeiro precário.

Este recebeu Elliot no seu escritório. Era uma divisão com um recheio irrepreensível. Se alguns volumes raros tivessem desaparecido e algumas paredes tivessem perdido alguns quadros, ninguém o adivinharia.

Chalgrove era um homem corpulento com um porte atlético. Nos seus anos de juventude, na qualidade de homem de sociedade, era conhecido por fazer parte de uma elite de desportistas amadores. Raramente vinha à cidade agora e estivera particularmente ausente na maior parte da última temporada.

Os dois homens estavam sentados no escritório, com bebidas na mão. Os olhos cinzentos encovados de Chalgrove quase não reflectiam as suas preocupações, mas a sua presença ostentava a circunspecção de um homem com mais responsabilidades do que desejaria.

– O vosso irmão escreveu-me. Foi muito amável da vossa parte ter vindo – disse ele.

– Não sei se vos poderei vir a ser útil. Eu não li o manuscrito.

– Não tenho dúvidas que a pessoa que o vai publicar o leu. Aquela mulher, Miss Blair – redarguiu ele. Ele pousou as botas num banco e adoptou uma posição descontraída, beberricando a sua bebida. As botas exibiam pedaços de lama seca, como se o conde tivesse saído para os campos que vira lá fora hoje. – Fui abordado por Merris Langton antes da sua morte. Aparentemente, Richard Drury incluiu o meu nome naquelas memórias de forma incorrecta.

Elliot suspeitou que todos aqueles que fossem referidos, mas não elogiados, insistiriam que Richard Drury se equivocara.

– Trata-se de um assunto pessoal?

– Político. Drury exagerou grandemente as minhas ligações com determinadas facções radicais quando eu era mais novo. Não há nada de ilegal ou sequer sedicioso no seu relato dos factos, e eu não passava de um rapaz quando isso aconteceu, mas seria embaraçoso se se soubesse. Preferia que o erro não fosse impresso de modo indelével. Estou certo de que me compreendeis.

– Receio que seja pouco provável que eu vos possa ajudar. Miss Blair prometeu ao seu pai publicar o manuscrito na sua forma original e integral. Fazeis parte de uma longa fila de pessoas que querem alterações e ela não está a tomar em consideração quaisquer pedidos nesse sentido.

– Maldição – lançou Chalgrove. As sobrancelhas escuras baixaram para dar forma a um olhar furioso e zangado. – Isto foi um acto de vingança daquele homem. Todas as memórias postumamente publicadas não passam disso, geralmente. De uma oportunidade de ajustar contas a partir do túmulo sem sofrer quaisquer consequências perniciosas.

– Nunca ouvi o vosso nome a ser ligado ao dele. Chegastes a co­nhecê-lo suficientemente bem para dar azo a este ajuste de contas?

Chalgrove franziu o sobrolho sobre o copo que tinha na mão enquanto bebia um longo gole. De seguida, pousou o copo vazio no chão e lançou à sua visita um olhar longo e duro.

– Mal o conhecia, mas tivemos uma conversa que não acabou bem. Foi há cerca de oito anos. Eu era jovem e estava apaixonado e, apesar das minhas perspectivas e nascimento, a família da senhora não me aceitou. Não tenho dúvidas de que o pai dela conhecia as limitações dessas perspectivas de formas até então desconhecidas para mim.

Ele gesticulou na direcção da sala, da casa e de tudo que a circundava. A sua exasperação abatida expunha melhor as responsabilidades financeiras do que qualquer explicação verbal.

– Fui ocasionalmente incluído no círculo de Artemis Blair. Por isso, era óbvio que conhecia Richard Drury. Uma noite, ao jantar, ele obsequiou-me com uma prelecção a respeito do meu desapontamento.

– Isso foi uma atitude muito insensata da parte dele. Um homem desapontado não lhe ficaria grato por isso.

Este homem não, asseguro-lhe. Ele brindou-me com uma longa e aborrecida explicação do quanto era melhor para mim assim, da forma como o casamento destruía o amor, do quão preferível era amar livremente, etc.

– Era a filosofia pela qual regia a sua vida.

– Para o diabo com a sua filosofia! Fiquei zangado com o modo como arengava de modo altivo as suas opiniões superiores e iluminadas. Por isso, disse-lhe que ele era um mau exemplo do que pregava, uma vez que Artemis Blair havia arranjado outro amante – explicou. O seu rosto contorceu-se fugazmente num esgar de descontentamento e encolheu os ombros. – Como eu disse, era muito jovem.

– Ele não gostaria que lhe atirásseis isso à cara, mas não éreis o único que sabia. Não creio que tenhais dado azo…

Ele ainda não sabia na altura. Foram as minhas palavras que o tornaram consciente desse facto. Tenho a certeza absoluta. Ele ficou chocado. Zangado. Cheguei a pensar que me ia desafiar para um duelo por fazer tal sugestão. Pouco depois, porém, tornou-se claro que ele tinha saído da vida dela. Depois de os seus olhos terem sido abertos, não teve qualquer dificuldade em descobrir a identidade do homem, suponho eu. Ou talvez ele lhe tenha simplesmente perguntado.

– Sabíeis de quem se tratava?

– Creio que sim. Penso que se tratava de um indivíduo com o qual fiz uns negócios. Era um patife. Um ladrão. Vendia antiguidades que eram fraudes. Gostava de fazer propostas de venda de artigos dessa natureza a jovens ricos e inexperientes como eu.

A expressão de Chalgrove manteve-se plácida. Se os seus olhos reflectiam alguma ira, esta estava voltada para dentro. Elliot pensou em deixar morrer o assunto, mas parecia que ele e Phaedra haviam sido demasiado generosos ao interpretar as actividades de Thornton.

– Falais como se tivésseis comprado algumas dessas fraudes.

– Não tenho provas de que ele sabia que eram fraudes, embora acredite que sim. Seja como for, não irei difamar o nome dele através da má-língua. Optei por não tornar a história pública há anos, quando tudo aconteceu, e fazê-lo agora…

– Sem dúvida. Na verdade, creio que sei de quem se trata. Procurava apenas uma confirmação.

Chalgrove parecia estar a ponderar sobre algo. A seguir, ergueu-se da cadeira, decidido.

– Tende a bondade de me acompanhar. Vou mostrar-vos uma coisa.

O conde conduziu Elliot para fora da divisão rumo à parte dianteira da casa.

– Sempre me julguei um coleccionador, mesmo quando ainda frequentava a universidade. Comecei por coleccionar moedas romanas. A seguir, passei para alguns fragmentos do passado. Foi isso que me atraiu para o círculo de Miss Blair e levou à minha breve inclusão nele. Por isso, perante a oferta privada da jóia da coroa para a minha colecção da parte de alguém que seria um perito nesse tipo de coisas e que gozava da amizade de Miss Blair, senti-me seguro ao pagar uma grande soma de dinheiro.

Chalgrove virou na direcção de um salão de baile. As botas de ambos ecoavam na enorme divisão. A mobília estava tapada com lençóis e uma camada espessa de pó cobria os castiçais da parede. Esta sala já não era utilizada há anos.

– Quando o meu pai adoeceu, confidenciou-me finalmente os problemas da propriedade. Tinha andado a viver como se o dinheiro não tivesse fim e fiquei a saber que o fim, afinal, estava bem à vista. Por isso, comecei a vender a colecção. Foi nessa altura que fiquei a saber que a jóia da coroa era uma falsificação.

– Estais certo disso?

– Nada mais nada menos do que quatro peritos diferentes asseguraram-me o mesmo. Após cada resposta negativa, procurava ou­tro na esperança de que discordasse dos demais, sem sucesso.

– Confrontastes o homem com a vossa descoberta?

Os dois homens entraram num corredor que percorria uma das partes laterais da casa. Chalgroves de séculos passados observavam-nos do cimo das suas molduras ornamentadas.

– Sim. Ele insistiu que os meus peritos estavam errados. Por isso, dirigi-me a Miss Blair com as minhas provas. Não acredito que ela fosse sua cúmplice, mas não aceitou imediatamente que eu tinha razão. A sua reacção, a própria expressão do seu rosto… Ela mostrou-se consternada, mas continuou a defendê-lo. É por essa razão que penso que ele era o seu novo amante.

Chalgrove deteve-se à frente de um mostruário de vidro e apontou para a prateleira do meio.

– Aqui está ela. Impressionante, não? Tento dizer a mim mesmo que não fui demasiado crédulo, mas guardo-a aqui para me lembrar de que fui crédulo quanto baste. Asseguraram-me que é uma falsificação muito boa, identificável em grande parte devido ao facto de terem utilizado um método mais moderno de fundição de metal que apenas um punhado de arqueólogos conseguiria reconhecer.

– Sim, é bastante impressionante.

– Descoberta no mar ao largo de Itália, afirmou ele. Diabos o levem, ele sabia exactamente como tirar partido da minha vaidade.

Os dois homens ficaram parados lado a lado em frente do mostruário de vidro. Chalgrove sorria pesarosamente perante a prova do seu erro de juventude. Um novo vazio abriu-se no peito de Elliot.

– Sugiro que faleis com Miss Blair pessoalmente, Chalgrove. Ide até à cidade e pedi à esposa de Hayden para combinar um en­contro em vosso nome. Contai a Miss Blair a história que acabastes de me contar. Tenho razões para crer que ela possui um interesse especial no homem que vos vendeu isto e, por conseguinte, poderá ouvir o vosso pedido a respeito daquelas memórias com uma mente aberta.

– Não me agrada a perspectiva de o denunciar, Rothwell. Não depois de todos estes anos e nem sequer numa conversa privada com Miss Blair.

– Não tereis de o fazer. Basta levardes aquilo convosco.

Ele apontou para o mostruário e para a pequena estátua de bronze de uma deusa nua idêntica àquela que vira recentemente no escritório de Matthias em Positano.

4 Nome do primeiro edifício londrino no qual o Museu Britânico se veio a instalar. (N. da T.)