CAPÍTULO 24
– Jamais irei perdoar a Hayden. Quem podia imaginar que ele seria tão rígido e caprichoso?
A vexação da tia Henrietta penetrou finalmente na concentração de Elliot. Ele conseguira não ouvir a maior parte das suas queixas. Virou a última página do seu manuscrito e concedeu-lhe relutantemente a sua atenção.
Ela recusara-se a regressar a Aylesbury no mês passado e mantivera igualmente a filha em Londres ao seu lado. Christian limpara as pistolas de duelo todas as noites até Suttonly deixar a cidade. Agora, mãe e filha exibiam permanentemente expressões carrancudas que punham de parte qualquer hipótese de perdão.
– Não precisais de ficar aqui, tia Hen. Voltai para a vossa casa no Surrey. Se ele for um pretendente legítimo, não terá qualquer dificuldade em vos encontrar a ambas lá. Só tendes de dar o vosso consentimento e o assunto está resolvido.
– Abandonar esta casa? Easterbrook não consegue passar sem mim. Ele é completamente indiferente a todos os assuntos domésticos e a sua governanta e mordomo andavam a roubar. Tenho o dever de permanecer nesta casa.
Com o final do drama em torno da figura de Suttonly, Christian regressara aos seus velhos hábitos. Raramente descia para as refeições e passava todo o tempo nos seus aposentos. Por norma, Elliot também desapareceria, deixando a casa ao cuidado de Hen, mas não se atrevia a aventurar-se novamente na sala de leitura do museu.
Se ele visse Phaedra ali, ia abandonar todo e qualquer bom senso. Ia implorar-lhe o seu perdão e concordar com tudo o que ela quisesse, independentemente da infelicidade que isso lhe trouxesse. A seguir, ia despi-la, deitá-la, erguer-lhe as ancas e pôr a boca…
Maldição.
A biblioteca de Easterbrook tinha tudo o que ele necessitava. O livro correspondera às suas expectativas. Já estaria terminado há pelo menos uma semana se não fossem as intrusões frequentes da tia Hen.
– Esperava que Alexia me tivesse apoiado mais – anunciou Hen, com um trejeito irritado. – Ela, melhor do que ninguém, compreende a importância de um bom casamento.
– Bem, Hen, podemos fazer com que Caroline tente o método da Alexia. Podemos deixá-la sem um tostão, obrigá-la a aceitar um lugar de governanta e esperar que um homem como o meu irmão se apaixone por ela.
Hen podia ser um pouco oca e dada a devaneios, mas não era estúpida. O sarcasmo das suas palavras fê-la erguer as sobrancelhas.
– O que é que anda a perturbar o vosso estado de espírito? Ultimamente, começais a ficar cada vez mais parecido com Easterbrook.
O seu estado de espírito estava a ser perturbado por muitas coisas. Noites sem dormir e dias inquietos. Desejos ardentes do corpo e iras persistentes no coração. Uma outra reunião dois dias antes com o advogado de Phaedra não ajudara em nada a situação.
A fúria de Christian perante a recusa do seu próprio irmão em tomar posse da editora de Phaedra enquanto o casamento entre ambos permanecesse ambíguo criara um fosso entre os dois que talvez nunca viesse a ser colmatado.
A nuvem negra do seu estado de espírito provinha sobretudo do facto de não ver Phaedra desde aquele dia na biblioteca de Alexia, há um mês, dois dias e vinte horas.
Depois de todo este tempo, já deveria ter começado a recuperar qualquer que fosse o poder que ela detinha sobre si. Ele não era completamente desprovido de bom senso. Mas também não era nenhum poeta, diabos. Irritava-o saber que se tinha apaixonado estúpida e intensamente pela única mulher em Inglaterra que não compreendia as vantagens de um bom casamento e que abominava a própria instituição do casamento.
Ele tinha esperanças de que a sua tia o deixasse em paz com o seu mau humor. Ela era o tipo de mulher que acreditava ser o seu dever ajudar o próximo a ser feliz. Se ela se lançasse nesse género de empresa neste momento, ele não teria outro remédio senão estrangulá-la.
Felizmente, um lacaio entrou na biblioteca no preciso momento em que ela começava a persuadi-lo a adoptar uma visão mais risonha das coisas. O homem transportava um pacote que colocou em cima do manuscrito de Elliot.
– Lord Easterbrook pediu-me para vos trazer isto, senhor.
Um bilhete de Christian acompanhava o pacote. Parabéns.
Assim que os seus dedos tocaram no papel que o envolvia, Elliot adivinhou o que era. O aparente elogio do seu irmão não passava da expressão de uma fúria cínica.
Elliot rasgou o papel. Este revelou páginas soltas, ainda sem qualquer encadernação. A primeira folha impressa exibia um título extenso. Memórias de um Membro do Parlamento durante os Reinados dos Reis Jorge III e IV: As reminiscências de Richard Drury com respeito a acontecimentos políticos e culturais em Londres e arredores, com comentários consideráveis acerca de pessoas famosas e infames.
Ele já sabia que a distribuição do livro aconteceria mais dia, menos dia. Christian devia ter dado ordens aos lacaios para rondarem as livrarias e adquirirem o primeiro exemplar que saísse da tipografia.
– O que tendes aí, Elliot? Um livro?
– Sim. Um ensaio político extremamente insípido – redarguiu. Ele pegou no monte de papéis, levando o seu próprio manuscrito ao mesmo tempo que o livro de Drury.
– Por favor, permiti que me retire agora. Tenho de tratar de uns assuntos.
Ele deixou Henrietta na biblioteca e levou a pilha de papéis para a saleta do pequeno-almoço para ter alguma privacidade.
As páginas já tinham sido cortadas. Christian já o lera antes de o mandar entregar. Parabéns, sua amostra inútil e desleal de um filho.
Elliot virou a primeira página. Ver este livro despertara mais ira em si do que a que esperava sentir. Não tinha qualquer direito a sentir essa ira. Não se arrependia de não a ter impedido. Elliot ficara apenas profundamente ressentido com o facto de ser obrigado a escolher entre uma atitude pouco correcta por uma boa causa e a atitude correcta por uma causa sem qualquer esperança.
Ele colocou de parte as emoções evocadas por este livro, o dever de Phaedra e o seu próprio amor. Lidaria com estas mais tarde. Com o passar do tempo, tudo isso acabaria por fazer parte de uma outra vida.
Elliot começou a ler.
Phaedra escrevinhou alguns números no seu livro de contabilidade nos escritórios da Merris Langton, Editora. De seguida, somou os resultados. O valor final trouxe-lhe um novo alento ao coração. Se as coisas continuassem assim, era bem possível que a editora conseguisse sobreviver. As dívidas podiam ser suficientemente abatidas para pelo menos manter os oficiais de diligências longe da sua porta.
Jenny entrou na divisão, trazendo outro maço de papéis na mão.
– Hatchard vai levar mais quarenta e Lindsell outros vinte.
Phaedra apontou as encomendas. Alguns destes livreiros tinham ficado surpreendidos com a perspectiva de fazer negócios com uma mulher, mas o sucesso das memórias de Richard Drury tornara esse tipo de juízos de valor insignificantes. Se o facto de serem recebidos por Jenny, uma mulher escriturária, os deixara igualmente surpresos, esse pormenor ainda menos importância tinha.
– Está a correr muito bem, não está, Miss Blair? – perguntou Jenny.
– Bastante bem, Jenny. À medida que as pessoas forem falando, deverá haver um aumento de vendas nos dias que se avizinham. Creio que teremos de mandar imprimir mais exemplares.
Jenny retirou-se e Phaedra regressou às suas contas. Ela recordou-se do pai, deitado na cama, a colocar aquele manuscrito nas suas mãos, exigindo a promessa que provocaria tantos problemas desde essa data.
Será que ele soubera desde o início que iria ser assim? Será que incluíra a parte que se referia a «comentários consideráveis acerca de pessoas famosas e infames» para garantir que o livro se vendesse bem e lhe proporcionar mais segurança financeira? Ele não possuía muito mais para lhe deixar e as cerca de cem libras do legado do seu tio tinham de ser utilizadas com bastante parcimónia.
Era provável que pudesse ficar com algum dinheiro para ela própria em breve. Se escolhesse bem o próximo livro, este negócio podia garantir-lhe um rendimento regular. Mergulhou a pena em tinta, matutando no que podia comprar com as primeiras libras. Talvez um divã novo…
Uma pontada abaixo do coração não deixou o devaneio ir mais longe. Não, não seria um divã. Tudo indicava que surgissem em breve outras necessidades para esse dinheiro.
A pontada fez-se sentir novamente, assim como uma outra sensação, a de uma mão a apertar-lhe o coração.
Ela pousou a pena. Agora que o livro fora publicado, chegara a altura de falar com Elliot. Hoje era um dia tão bom como outro qualquer. O pensamento fez o seu coração disparar com temor à mistura com excitação. Isso não queria dizer que ela não recebesse com agrado a ideia de o ver. Quando muito, recebia-a com demasiado agrado, ainda que acreditasse que o encontro não iria correr muito bem.
Phaedra ergueu-se e respirou fundo, reunindo toda a sua coragem. De seguida, lançou uma capa negra sobre o pescoço. Pegou num exemplar embrulhado do livro do pai, avisou Jenny que já não voltava mais nesse dia e deu início a uma longa caminhada a pé.
Elliot contemplava a vista das janelas da saleta do pequeno-almoço. As árvores do jardim estavam a começar a mudar de cor e os botões das flores tardias estavam curvados em reacção ao frio que se fazia sentir nesse dia. Uma memória invadiu-o, de flores aveludadas que rodeavam um terraço em Paestum à noitinha.
Ele olhou para trás na direcção da mesa. As memórias de Richard Drury repousavam sobre ela numa pilha ordenada de páginas. Demorara cerca de três horas a ler o livro.
Uma coisa era certa: o livro ia causar sensação. Drury tinha olho para os pontos fracos dos seus conterrâneos. As suas observações eram incisivas, inteligentes e demasiado reveladoras.
Ele devia escrever a Phaedra e felicitá-la pelo sucesso da sua publicação. Ele devia também escrever-lhe a respeito de outras coisas. Não, o melhor seria visitá-la.
Um lacaio entrou na divisão.
– Senhor, uma mulher pede para ser recebida.
Elliot dedicou-lhe um décimo da sua atenção.
– Conduzi-a até a minha tia. Não estou em casa para visitas hoje.
– Ela foi bastante explícita ao afirmar que não pretende encontrar-se com a vossa tia, mas convosco.
Elliot concentrou toda a sua atenção no lacaio.
– Onde está o cartão dela?
– Não tem qualquer cartão, senhor. Eu tentei dissuadi-la, mas ela foi bastante insistente – declarou ele, com uma expressão de descontentamento. – Está vestida de uma forma assaz estranha. Quase como aqueles reformistas. Ou talvez, na verdade, se pareça mais com uma… Com uma…
– Com uma bruxa?
– Sim, senhor. Como é que sabíeis?
Ele não conseguiu evitar um sorriso.
– Trazei-a para aqui.
Elliot retomou o seu lugar à janela, mas agora já não via o jardim à sua frente. Imaginou Phaedra a caminhar na direcção desta divisão, com o hábito negro a flutuar à sua volta e o cabelo solto a cair livremente sobre os seus ombros.
Ela viera até si antes de ele poder ir ter com ela. Ele não sabia as razões que a tinham feito vir, nem tão-pouco lhe importavam. Fechou os olhos e sentiu a presença dela na casa. Depois, escutou o ruído dos seus passos, espantado pela alegria que se espalhava dentro dele.
O lacaio conduziu-a até à saleta do pequeno-almoço. A divisão não estava vazia.
Um homem estava de pé perto da janela com as costas voltadas para ela. Um homem suficientemente belo para emudecer qualquer mulher. Um homem suficientemente confiante para conquistar o direito a uma arrogância que ele optava por não alimentar. Bello. Elegante.
Ele voltou-se. Ela viu o calor do seu sorriso e olhos e suspirou de alívio.
– Phaedra. Estou feliz por vos ver aqui. Ia agora mesmo ao vosso encontro. Podíamos ter-nos cruzado na rua sem nos apercebermos.
Ela não sabia o que esperar. As suas boas-vindas encheram-lhe o coração de alento. O efeito que ele tinha sobre ela não esmorecera nem um pouco com o mês de separação. Ela deu por si sem fôlego.
Elliot convidou-a para se sentar à mesa do pequeno-almoço. Sentou-se na cadeira à sua frente.
Ela recuperou a voz. De seguida, colocou o embrulho que trazia em cima da mesa.
– Trouxe-vos um exemplar do livro do meu pai.
– Obrigado, mas já o li – respondeu ele, apontando para um maço de páginas na outra extremidade da mesa.
Ela suspirou profundamente para controlar a compostura. E para absorver a sua presença, odor e realidade. Vê-lo aqui assemelhava-se demasiado aos sonhos que lhe haviam invadido a cabeça durante muitas noites seguidas. Mas nesses sonhos ele envolvia-a nos seus braços e eles caíam na cama e…
Ele parecia distante, ainda que estivesse suficientemente perto para lhe tocar. A sua postura indicava que ele fizera progressos no sentido de pôr um ponto final em qualquer que fosse o encantamento a que ambos haviam sucumbido.
Esta constatação gerou um profundo desapontamento. No peito, o seu coração ardia. Mas que outra coisa podia ela esperar?
Ele tocou no embrulho que ela lhe trouxera.
– Tendes um sucesso entre mãos, Phaedra.
Ela quis encostar os lábios à mão dele. Só tinha passado um mês. Parecia uma eternidade. O coração dela chorava e ria ao mesmo tempo.
– Reparei na ausência de qualquer menção a Chalgrove – disse ele.
– Ele convenceu-me de que o meu pai tinha exagerado essa parte. Ele foi a única pessoa cujos argumentos me conseguiram persuadir nesse sentido.
Ele assentiu com a cabeça.
– Reparei igualmente que incluistes alguns comentários no que diz respeito à vossa mãe.
– Odiais-me por isso? Eu sei o que ele significa para vós.
– Dessa forma, mais ninguém será ludibriado. Suspeito que aquelas estátuas e camafeus continuam a chegar a Inglaterra. Ele deve ter descoberto aquele círculo de falsificadores quando visitou o país após a guerra. Os artigos que ele trouxe consigo venderam-se facilmente, por isso decidiu mudar-se para lá e fazer disso vida – declarou e sorriu pesarosamente. – Eu próprio me ofereci para fazer parte da sua fraude com aquela estátua nova que nos mostrou.
– Ele não aceitou a vossa oferta, Elliot. Não permitiu que a vossa reputação fosse manchada por isso.
Matthias permitira que a reputação de outros ficasse manchada, porém. Abusara ignominiosamente da confiança de Artemis, da única vez que ela permitira a si própria apaixonar-se romântica e irremediavelmente.
– Na verdade, recebi uma carta dele na semana passada – replicou Elliot. – Deve tê-la escrito pouco tempo depois de abandonarmos Positano. Entre outras coisas, expressou interesse em aceitar a minha ajuda para encontrar um lar para a pequena deusa, afinal de contas.
– Lamento ouvir isso, Elliot. Tinha esperanças que ele tivesse escrúpulos pelo menos no que vos dizia respeito.
– Aparentemente não.
Ela imaginou um jovem Nigel Thornton a sofrer em silêncio, enquanto a mulher que ele amava era conquistada por Matthias Greenwood. Thornton pode ter visto o camafeu na posse de Artemis, mas esta não o recebeu das suas mãos.
– Eu podia nunca ter sabido que o homem que procurava era Matthias e não Thornton se não tivésseis aconselhado Chalgrove a vir ao meu encontro e feito com que eu me encontrasse com ele, Elliot.
O sorriso triste de Elliot confirmou as suas palavras.
– Escrevi-lhe de imediato e avisei Matthias que já sabíeis a verdade. Que tudo se ia saber.
– Eu fiz o mesmo – redarguiu Phaedra.
Ela fizera-o por Elliot. Não por Matthias.
Ele riu-se em silêncio.
– Bem, ele pode abandonar a Itália antes que as vossas acusações, presentes naquelas memórias, cheguem lá.
– Ele pode vir a ter um companheiro de fuga. Suspeito que Whitmarsh está envolvido no esquema. Ele tinha a obrigação de saber que aquela estatuazinha de bronze que Matthias nos mostrou não fora submetida a uma fundição apropriada para um trabalho antigo. Fingiu ignorar isso. Mr. Sansoni disse-me que as falsificações são feitas nas cidades das colinas situadas a sul. Creio que era isso que Whitmarsh fazia naquelas caminhadas matinais: visitas às oficinas. Só tenho pena que Tarpetta não precise igualmente de se pôr em fuga. Tenho razões para crer que aceitou subornos de Matthias para fechar os olhos.
– Se isso for verdade, Carmelita Messina fará tudo o que puder para que toda a cidade de Positano fique ao corrente – afirmou ele. Os seus olhos exibiam admiração. – Conseguistes juntar todas as peças, verdade? Sentis que a vingastes agora? Sentis-vos mais conformada com as vossas últimas memórias dela?
Era uma boa pergunta. Todas as suas memórias de Artemis haviam-se modificado nas últimas semanas. Era como se Phaedra se tivesse finalmente libertado dos últimos vestígios da sua infância e conseguido ver Artemis sob um olhar mais honesto.
Ela continuava a reverenciá-la e a respeitá-la. Mas já não sentia a obrigação de a defender pelos erros de discernimento que cometera. E tal como qualquer pessoa, Artemis cometera alguns.
– Sinto-me mais em paz com tudo isso, Elliot.
A mão dele fechou-se sobre a sua.
– Podeis ter incluído anotações em algumas partes, mas eliminastes outras, minha querida.
Ela fitou a mão que pousara sobre a dela. Em comparação com a sua, era uma mão mais escura, forte e indubitavelmente masculina. Ela adorava as mãos dele. Adorava tudo o que tinha a ver com elas, mas adorava especialmente o toque delas contra a sua pele, na forma de abraços e carícias firmes mas suaves. Uma mulher podia aprender muito acerca de um homem a partir das suas mãos.
– Porque não me dissestes que íeis eliminar a passagem sobre aquela morte da Colónia do Cabo, Phaedra?
– Foi uma decisão bastante tardia, Elliot. Os compositores já estavam numa fase avançada do trabalho do livro – explicou. Ela descreveu a sua corrida impulsiva à tipografia com a sua exigência de última hora para fazer uma derradeira alteração. – Não tinha perdido a esperança que me trouxésseis provas de que aquilo não era verdade. O mais pequeno indício nesse sentido teria sido suficiente. Mesmo depois da forma como nos despedimos na última vez que nos vimos, estava certa de que ainda iríeis tentar saber a verdade.
A prova de que precisava não viera até si. Nem ele. Ela teve de decidir sozinha, sem quaisquer desculpas ou racionalizações excepto aquelas que o seu coração lhe ditava.
Ele fitou a mão dela enquanto deslizava o polegar sobre ela. A carícia subtil provocou-lhe arrepios ao longo do braço.
– Não tenho nenhuma prova para vos dar, Phaedra. Encontrei-me com o homem. Procurei-o ainda antes de vos ver na casa de Alexia. Coloquei-lhe essa pergunta. É uma coisa diabólica, isto de perguntar a um homem se o nosso próprio pai lhe pagou para matar uma pessoa.
– Ele negou-o?
– Claro que sim.
– Então, porque é que não me dissestes isso, Elliot? Eu ficaria aliviada por ter tido qualquer razão que fosse para…
– Não acreditei nele, Phaedra.
Ela não sabia o que dizer a isso. Bastar-lhe-ia uma única palavra para eliminar aquela parte. Uma, mesmo que aquele homem tivesse mentido. Elliot decidira que não iria utilizar a mentira dessa forma, porém. Ele tinha sido honesto com ela. Mais honesto do que ela desejaria.
– Talvez seja melhor decidirdes que acreditais nele, Elliot.
– Não consigo continuar a mentir tanto a mim mesmo. No entanto, começo a compreender melhor o meu irmão Christian. Começo a concluir que eu não quero ter a certeza. Em breve, até é possível que concorde com Hayden e me dê conta de que a verdade pouco me importa.
– Hayden possui uma boa forma de olhar para as coisas. Se de facto aconteceu, foi o pecado e as escolhas dele, não dos seus filhos.
– Sangue é sangue e a mácula que deixa é indelével – afirmou Elliot. De seguida, encolheu os ombros, pondo de parte as ambiguidades da sua frase, como se não quisesse pensar mais nelas. – Christian ofereceu-vos cinco mil libras se eliminásseis aquelas páginas. Aconselhava-vos a aceitá-las agora. Iria ajudar-vos a estabilizar a vossa editora.
Cinco mil libras. Esse valor liquidaria todas as dívidas e deixaria o negócio numa posição razoavelmente segura. Phaedra perguntou-se se Easterbrook investigara o valor que ela precisava antes de fazer com que Elliot lhe oferecesse o suborno.
– Confesso que me sinto tentada, Elliot – replicou Phaedra. Ela sentia-se tão tentada que um esgar de sofrimento lhe assomou ao rosto. – Não o fiz por dinheiro, porém, e não irei aceitá-lo.
– Então porque o fizestes?
Ela engoliu em seco.
– Fi-lo porque as suspeitas de Merriweather podiam estar erradas. Fi-lo por causa da amizade que tenho com Alexia – anunciou. Uma ligeira ferroada ardeu na sua garganta. – Mas, sobretudo fi-lo por vós, Elliot. Quando cheguei ao ponto em que tudo se tornaria irreversível, de repente pareceu-me uma pequena cedência a fazer no meu dever para com o meu pai.
Por um momento, ela pensou que ele a ia beijar. Os olhos dele traíram esse impulso.
– Agradeço-vos de todo o coração, Phaedra. Mostrastes mais generosidade do que aquela que eu mereço. A vossa decisão poupou inocentes de serem alvo de olhares acusatórios e os nomes dos meus pais de serem vítimas dos piores dos rumores.
– Estou contente com a minha escolha, Elliot. Não tenho dúvidas de que foi a mais acertada.
Ele olhou em volta na saleta do pequeno-almoço, detendo o olhar nas janelas e na mesa. De seguida, agarrou-lhe novamente a mão.
– Vinde comigo. Temos de falar e a biblioteca é um local mais confortável.
Ele sentou-se ao lado dela no sofá da biblioteca. Suficientemente perto para a tocar. Ela tentou reorganizar os pensamentos. Eles precisavam de falar, mas agora, chegado esse momento, todas as suas frases ensaiadas lhe fugiam da memória.
Ele não olhou para ela durante um bom bocado e não falou. Quando voltou de novo o rosto para ela, porém, o seu olhar era finalmente o de um amante há muito ausente.
Ele despertou de imediato o corpo dela, da mesma forma de sempre, mas agora a tristeza e a saudade acumuladas de um mês intensificavam cada uma das sensações e emoções.
– É um inferno ver-vos e não vos beijar, Phaedra.
– Eu não disse que não me podíeis beijar.
A sua expressão endureceu.
– Enquanto a vossa petição estiver em vigor, não vos posso beijar. Isso não mudou. Assim como as minhas intenções.
– Preferis que eu me vá embora, Elliot? Ver-vos trouxe o sol de volta à minha vida, mas não quero fazer com que vos zangueis.
– Eu não estou zangado. Estou feliz por estardes aqui ao meu lado, mas sinto-me mais tentado do que esperava a submeter-me aos vossos planos.
Ela queria que ele trancasse a porta, a tomasse nos braços e desse rédea livre aos seus piores impulsos. Em vez disso, ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, de sobrolho carregado. A seguir, voltou-se para ela e cruzou os braços.
Teria de lhe dizer para não fazer mais isso de futuro.
– Passei um mês a tentar lutar contra aqueles grilhões, Phaedra. Em vão. O que devo dizer ou fazer para vos convencer de que devemos estar juntos?
– Tudo o que quiserdes, Elliot. Vim aqui para escutar o que tendes para me dizer. Vim aqui para ser convencida, se ainda me quiserdes dessa forma.
Ele desfez a distância entre ambos com duas passadas e puxou-a para cima, para os seus braços. Finalmente, o abraço pelo qual ela ansiava. Por fim, o contacto e a reiteração que o seu coração tanto precisava.
– Não sou nenhum Richard Drury, mas também não sou o meu pai. Se tendes medo que eu me torne igual a ele, não tenhais – declarou com determinação, como se tivesse feito uma escolha e agora efectuasse um juramento.
– Todos os homens têm esse potencial dentro deles, Elliot, mas eu não tenho medo disso. Se alguma vez um homem me aprisionasse ou me submetesse a ele contra a minha vontade, eu libertar-me-ia. Mas já deveis saber que isto não tem nada a ver com o vosso carácter. Não fostes vós que eu rejeitei.
– Eu sei por que motivo não acreditais no casamento. Eu compreendo isso. Não espero que mudeis. Eu apaixonei-me por Phaedra Blair e não quero que ela mude. Não vos vou pedir isso e é óbvio que não o irei exigir – anunciou e olhou de relance para o seu corpete. – É-me indiferente se continuardes a usar os vossos hábitos negros. Podeis manter a vossa editora – acrescentou. Fez uma pausa e encolheu os ombros. – Não irei interferir com os vossos estranhos amigos, desde que os homens não queiram mais do que isso.
Ela encostou a palma da mão à face dele. O contacto parecia fazer todo o sentido do mundo.
– É-me indiferente se eles quiserem mais do que isso. Eu nunca quererei mais. Já vos tinha dito que não precisava de um casamento para isso.
Ele suspirou ruidosamente. Ela não sabia se o suspiro se devia ao alívio que sentira com o seu toque ou à frustração face à sua resistência.
– Quero este casamento, Phaedra. Preciso dele para saber que sois minha. Amo-vos ainda mais do que vos desejo. Quero-vos comigo para sempre. Quero regressar a uma casa que também seja vossa. Nunca sonhais com isso?
Ele beijou-a devagar. Era o primeiro beijo depois de muitas semanas separados e subiu-lhe à cabeça, como um excesso de vinho.
As palavras dele tocaram o coração de Phaedra. Não só a declaração de amor, embora esta a comovesse ao ponto das lágrimas. Ele não podia ter tomado uma atitude mais honrada para com ela. Concordara com esta petição, ainda que não a desejasse. Não tirara partido da vantagem que os votos de casamento lhe concediam no passado e ela sabia que também não o faria no futuro.
Ele tinha sido justo e honesto. As escolhas que fizera foram baseadas no amor. Escolhas altruístas. Tantas escolhas…
– É bom saber que continuais a querer que este casamento se mantenha em vigor, Elliot, porque existe uma boa probabilidade de a minha petição não ser bem-sucedida. É possível que se tenha dado outro desenvolvimento inesperado.
– Então, retirai-a, meu amor. Não vos sujeiteis a ela se o vosso advogado vos dá poucas hipóteses de sucesso. Prometo que nunca vos ireis arrepender… – ele interrompeu-se, inclinou a cabeça e franziu o sobrolho. – Que desenvolvimento?
– O meu advogado advertiu-me que a minha petição não receberia uma sentença favorável se surgisse alguma questão, fruto deste casamento.
– Existem muitas questões, por isso… – redarguiu Elliot. O sobrolho franziu ainda mais. De seguida, a expressão de dúvida dissipou-se. – Referis-vos a frutos do casamento, como, por exemplo, filhos?
Ela assentiu com a cabeça.
– E surgiu algum? Ou irá surgir? Estais…
– Ainda não tenho a certeza absoluta. No entanto, aparentemente, é um cenário possível.
– Quão possível?
– É mais possível a cada dia que passa. Complicou muitas coisas, como é óbvio.
– E não me dissestes nada? Não faz mal. Isso não tem qualquer importância. Phaedra, esta é uma das razões pelas quais vos disse que não podíamos fazer as coisas à vossa maneira. Uma criança merece melhor do que isso e mais tarde ou mais cedo, iríeis ficar de esperanças. Isto não complica nada. Simplifica tudo.
A aceitação dele encheu-a de alento, ao contrário do seu raciocínio.
– Eu não tive melhor do que isso e saí-me bem, Elliot. Sou a mulher que sou devido à forma como a minha mãe me educou. Richard continuou a ser um pai para mim. E a rejeição de um tribunal não significa que devamos morar juntos.
– Claro que iremos morar juntos. Vamos começar já a procurar uma casa. Diabos me levem se vou fazer visitas matinais à minha própria mulher. Tendes de desistir disto agora. Decerto vedes que tendes de o fazer.
Sim, tinha. Ela via isso. Ela vira isso mesmo antes de reconhecer os sinais que indicavam uma possível gravidez. A ideia não a horrorizara. Na verdade, um risinho de felicidade borbulhou dentro dela quando pensou num lar e numa família com Elliot. O medo de que pudesse ter destruído a oportunidade de tornar este casamento num casamento feliz apoderara-se dela.
Não era teimosia nem uma devoção cega a uma crença que provocava esta última rebelião contra a aceitação deste casamento acidental. Ou sequer a certeza de que o mundo a veria como uma derrotada e a Elliot como apanhado numa armadilha.
A emoção que fazia o seu coração disparar provinha do espanto, da admiração e de uma surpresa genuínos. O desejo abrira o seu coração ao amor, e de seguida, o amor levara-a mais longe do que alguma vez achou possível um coração poder ir. Agora, dava por si num equilíbrio precário, no abismo que anunciava o término do mundo que sempre conhecera.
O próximo passo que desse obrigá-la-ia a caminhar sobre nada mais do que o ar da esperança, confiança e amor. Aqui estava ela, Phaedra Blair, filha da famosa Artemis, uma mulher que, tal como sua mãe, construía o seu próprio destino, a encolher-se de medo como uma criança face ao imenso desconhecido.
Esse passo empolgava-a. Mas também a apavorava.
Ele sentiu esse medo. Ela apercebeu-se de que ele a compreendia e sentia compaixão por ela.
– Sois uma mulher forte, Phaedra. Forte e orgulhosa e eu amo-vos por causa disso. Mas e se a nossa filha não for assim tão forte? E se ela sentir a dor de lhe serem negadas amigas e ouvir as provocações que a apelidarão de bastarda? – perguntou. Ele segurou-lhe na cabeça com ambas as mãos e olhou-a profundamente nos olhos. – Conseguistes superar tudo isso, mas muitas almas não conseguem fazer o mesmo. E sereis feliz, Phaedra. Eu certificar-me-ei disso, custe o que custar, porque vos amo mais do que ao meu próprio orgulho.
Ela inclinou o rosto para cima para o fitar. Phaedra nunca olhara tão profundamente nos olhos de uma pessoa como fazia agora com este homem, neste momento. Nunca tinha tido tanta certeza de que via a verdade no coração de uma pessoa como nesse momento. Eu sei. É uma das poucas coisas na vida sobre a qual tenho a mais absoluta das certezas.
Sim, querida Alexia, minha sábia amiga. Uma mulher pode saber isso.
Ela tocou na sua mão e apertou-a contra o rosto.
– Concordo convosco, Elliot. É assim que deve ser. Sinto-me afortunada e aliviada por continuar a querer isto. Acredito que me ameis mais do que é preciso para sermos felizes. Confio que ambos saibamos que eu vos amo mais do que é preciso para esta amizade durar uma vida inteira.
Phaedra fá-lo-ia pelo bebé. Por ele também. Porém, fá-lo-ia principalmente por si própria, pela oportunidade de amar e ser amada e deixar-se envolver pelo vínculo de intimidade que unia ambos. Ela fá-lo-ia para não deixar partir a única coisa boa sobre a qual tinha a mais absoluta das certezas.
Nem tão-pouco estaria só nesse percurso enquanto caminhasse sobre o ar. Elliot estaria com ela, a ajudá-la a encontrar um apoio firme.
Ela não disse mais nada, mas ele sabia todos os pensamentos que corriam no seu coração. Os olhos dele diziam-lhe isso. Assim como o beijo que ele lhe deu.
Ela não se importou quando viu um brilho triunfante e fugidio no olhar de alegria terno e afectuoso que lhe lançou e sentiu uma carícia possessiva a acompanhar esse beijo.
Ele era um homem, afinal de contas.
Phaedra sentiu o vestido a cair. Ele deitou-a no sofá para o abraço ser completo. Desta vez, ia ser intenso e rápido. Ela ficou contente por isso. Eles tinham estado separados demasiado tempo e a sua impaciência igualava a dele.
Ela apertou-o contra si enquanto o prazer e o amor a transportavam para o mundo de ambos. Respirou o ar que ele exalava e gemeu quando ele a preencheu, gritando o seu amor por ele enquanto a febre de ambos alcançava o clímax.
Na paz que se seguiu, numa beatitude tão repleta de uma unidade tranquila que o seu coração não conseguia conter por completo, ouviu uma palavra ser murmurada.
Minha.
Ela já não a temia. Ela compreendia que significava partilhar amizade e um amor eterno. Prometia felicidade e o final da solidão. Prenunciava um novo todo criado pela união de ambos numa posse mútua.
A palavra foi murmurada uma e outra vez com uma satisfação plena de confiança e uma intensa gratidão.
Não foi proferida por Elliot.
Foi proferida pelo seu próprio coração.
Meu.