CAPÍTULO 6

O CORONEL

vinheta_02.tif

A 2ª DIVISÃO DE EXÉRCITO — Divisão Presidente Costa e Silva — era um dos maiores centros de comando operacional do exército brasileiro. Era subordinada ao Comando Militar do Sudeste e sediada na capital paulista.

Esse gigantesco grupamento foi criado oficialmente em 1952 a partir da extinta 2ª Divisão de Infantaria, e sua sede mudou de endereço diversas vezes — Lorena, Osasco e São Paulo — até finalmente se instalar no bairro do Ibirapuera, na capital paulista, vizinho ao gigantesco parque, que era um dos cartões-postais da cidade.

A divisão foi rebatizada com o nome do presidente militar Costa e Silva na ocasião de sua morte por ele ter sido um dos comandantes do grupamento, quando era general. Com um contingente de centenas de homens, entre oficiais e soldados, era uma das maiores referências do exército na capital paulista, e por isso mesmo, quando a civilização desabou com a aproximação de Absinto e suas funestas consequências, soldados sobreviventes, vindos de todas as regiões da cidade, rumaram para o complexo, em busca de segurança e algum vestígio de comando.

O complexo, igual a todo o resto, fora tomado pelos mortos-vivos, mas, graças à liderança de um homem — o coronel Fernandes —, os sobreviventes conseguiram se organizar e trucidar os zumbis, isolando o centro de comando do caos que tomou a cidade de São Paulo.

O coronel Fernandes era um homem de feições duras e olhar frio. Era um oficial de carreira vindo de uma família com longa tradição militar. Tinha cinquenta anos, porte atlético, pele morena clara e bigode e cabelos grisalhos.

Fora um dos líderes nas operações militares do Brasil no Haiti, além de ter participado de missões na Floresta Amazônica e nas favelas cariocas. Conhecido pelo pulso firme e temperamento difícil, era muito mais odiado do que querido na caserna.

Porém, ele se mostrara o homem certo para enfrentar a ameaça dos mortos-vivos. Sem comando, sem comunicações, sem recursos, o coronel reuniu sobreviventes que também estavam encurralados por inúmeros zumbis, e organizou uma feroz resistência que brecou o avanço das criaturas que invadiram o complexo.

O coronel e seus subordinados disputaram, metro a metro, o controle da sede da divisão, em um enfrentamento que custou as vidas de dezenas de soldados e milhares de criaturas. Organizaram barricadas nos corredores, nas ruas, nos portões. Usaram tudo que tinham disponível, de fuzis a granadas de mão, de pistolas a porretes. Mas, ao final de semanas de luta incessante, enfim o complexo estava seguro.

E lá eles se instalaram, sem nenhuma outra opção, porque a cidade de São Paulo via-se dominada por milhões de zumbis enlouquecidos.

A cada semana, outros soldados e civis foram chegando — aqueles que conseguiram furar o gigantesco bloqueio das hordas de feras que vagavam pela Marginal Pinheiros, Marginal Tietê, avenida Vinte e Três de Maio e tantas outras grandes vias, que serviam para a locomoção pela cidade, e que agora mais se assemelhavam a cemitérios de carros, caminhões e ônibus abandonados e destruídos.

Até mesmo um helicóptero chegou ao centro depois de mais de um mês. O piloto, junto com um grupo de sobreviventes, tentava alcançar algum centro de comando que ainda estivesse operacional, quando chegou até o complexo e se uniu ao grupo do coronel Fernandes, que, com isso somava mais de uma centena de pessoas.

E esse mesmo helicóptero fora incumbido de procurar vestígios de civilização, quaisquer que fossem.

Como a 2ª Divisão do Exército contava com um heliporto com posto de reabastecimento de aeronaves, foi possível organizar diversas expedições de busca. A ordem, porém, era evitar a abordagem de sobreviventes, pois naqueles tempos incertos as pessoas estavam desesperadas demais e confiáveis de menos.

O AH-2 Sabre foi até Campinas, Sorocaba, todo o ABC Paulista, Guarulhos e finalmente chegou ao Vale do Paraíba. Ao longo de toda essa epopeia, só encontrou desolação. Avistou alguns poucos sobreviventes eventualmente, vagando pelas ruas ou no topo de algum prédio. Mas a tripulação não ousou arriscar nenhum resgate; sabia que isso seria suicídio.

Ele sobrevoou diversas cidades do Vale do Paraíba até deparar com a cena bizarra: milhares de zumbis cercando um gigantesco condomínio em São José dos Campos.

Quando a aeronave se aproximou para ver o que estava atraindo tamanho número de feras, o piloto se deu conta de que o condomínio era habitado.

— Vocês estão vendo aquilo? É praticamente uma cidade, está cheio de sobreviventes! — o piloto comentou, entusiasmado.

— Sim, estou vendo. Como conseguiram preservar tanta gente? Veja, tem moradores saindo de várias casas. Deve haver centenas de pessoas morando aqui. — O copiloto apontava para os diversos indivíduos que saíam às pressas de suas residências, atraídos pelo barulho ensurdecedor do rotor do helicóptero.

Mas quando se deram conta de que os moradores possuíam armamento de guerra, desde blindados até mesmo metralhadoras de grosso calibre, fugiram imediatamente. Era a primeira vez que encontravam algo similar, e não podiam correr o risco de um confronto.

Reportaram à base sua descoberta e retornaram sem demora a São Paulo. Quando aterrissaram no heliporto do complexo militar, o próprio coronel Fernandes os aguardava, com o olhar duro e taciturno de sempre.

— Sejam bem-vindos de volta. Quero que me expliquem com detalhes essa descoberta — o coronel advertiu, com voz de comando.

A equipe narrou em detalhes o que encontrara, explicando que era uma grande comunidade aparentemente bem organizada e fortemente armada. O oficial ouviu tudo com atenção, interessadíssimo.

Outras missões de reconhecimento foram organizadas para maior coleta de dados até, por fim, o coronel enviar aquela convocação através do rádio lançado nos arredores do condomínio.

— Senhor, a mando do senhor coronel Fernandes, o exército brasileiro ordena que os líderes desta comunidade apresentem-se na 2ª Divisão de Exército na cidade de São Paulo — o piloto falou sem rodeios. — Você é o responsável por este local?

— Boa tarde para você também, rapaz. Os responsáveis são Ivan e sua esposa, Estela, mas eles não poderão falar com você neste momento. Qual é o assunto a ser tratado? — Givaldo perguntou, incomodado com a empáfia do homem ao rádio.

— Este assunto diz respeito apenas ao coronel Fernandes. E ele advertiu que o não cumprimento dessa convocação será considerada desobediência civil. Vamos esperar o retorno em até quinze dias — o piloto afirmou com dureza. — Por favor, anote o endereço.

Givaldo memorizou o endereço e as rápidas explicações do piloto, que logo em seguida encerrou a conversa e se afastou, sem maiores esclarecimentos e sem sequer se despedir.

E assim o coronel Fernandes ficou no aguardo de seus visitantes. Com todo o aparato que aquele local possuía, eles não teriam problemas para chegar a São Paulo. E ele queria saber quem eram aquelas pessoas. Elas teriam de se submeter ao único poder restante na República, o das forças armadas.

Passaram-se dez dias desde que a mensagem fora entregue para Ivan e Estela, e não obtiveram nenhum tipo de contato.

O coronel Fernandes deixara seus soldados em alerta. Estava óbvio que aquelas pessoas haviam roubado do exército todo o equipamento descrito pelo time do helicóptero, e isso os tornava criminosos comuns. Todo o cuidado era pouco.

O coronel Fernandes já estava em vias de enviar uma nova advertência para o condomínio quando surgiu um sinal de vida. Um soldado encarregado de vigiar os arredores do topo do edifício entrou em contato, pelo rádio, com seu superior. Ele avistara algo.

— Senhor, estou vendo um caminhão do exército! Um veículo de transporte de tropas se aproxima pela avenida! — o soldado falou, empolgado.

— Mantenha sua posição, irei avisar o coronel imediatamente! — o oficial em serviço ordenou.

Em instantes, o coronel Fernandes saiu do prédio acompanhado de diversos combatentes. Por todos os lados foram surgindo soldados armados, prontos para um enfrentamento. Se por um lado eles não sabiam quais eram as intenções de quem estava naquele caminhão, por outro não podiam ignorar o fato de que se aproximavam em um veículo de combate.

Similar ao que fora feito no Condomínio Colinas, toda a entrada da 2ª Divisão estava cercada de arame farpado. No telhado, atiradores se posicionaram para obter a melhor visão possível. E em solo, o coronel Fernandes aguardava algum sinal de contato.

O caminhão avançava lentamente pela avenida Sargento Mário Kozel Filho, que se encontrava repleta de carros parcialmente destruídos. As carcaças estavam todas posicionadas nas laterais da via, fruto do trabalho dos homens da 2ª Divisão, que foram encarregados de liberar o entorno do prédio para que eles mesmos pudessem circular com seus veículos.

Como sempre perambulavam por ali diversos zumbis em busca de alimento, eles olhavam abobalhados o imenso veículo, como se fosse algum tipo de criatura de outro mundo.

O caminhão parou diante do portão e tranquilamente esperou. O coronel Fernandes fez sinal para seus homens aguardarem; não correria riscos à toa.

De repente, a janela da porta do passageiro se abriu. Todos ficaram em alerta, prontos para agir. E o que surgiu foi similar a um raio de sol numa manhã nublada. Uma bela morena apareceu, sorridente, balançando uma bandeira branca. Ela usava óculos escuros, e sua imensa cabeleira negra esvoaçava ao vento. Uma visão enlouquecedora para cerca de cem homens que estavam havia quase um ano confinados e com quase nenhuma mulher por perto.

— Oi, nós chegamos! Podemos entrar? — ela perguntou, alegre.

O coronel Fernandes ordenou que abrissem o portão imediatamente, e o caminhão entrou devagar, parando bem no meio do estacionamento. Apesar da empolgação inicial, ele mandou todos ficarem atentos, pois não sabia com quem estavam lidando.

Quando o caminhão estacionou, quem saiu primeiro não foi a bela morena, mas Gisele. E sua simples aparição fez as pernas de vários daqueles homens tremerem. De onde havia saído aquela deusa? Só podia ser um sonho.

Ela desceu com cuidado. Usava botas, calça jeans incrivelmente justa e uma blusa branca que evidenciava os seios fartos através dos botões semiabertos. Sobre o conjunto, um grosso casaco preto.

A morena veio em seguida; do mesmo modo estava com um casaco longo, porém completamente fechado. Ela também era muito bonita, e possuía um sorriso luminoso. Logo depois, veio Isabel, de vestido justo. Seus cabelos encaracolados se achavam cuidadosamente arrumados. E assim desceram diversas mulheres. Sandra também estava entre elas. Não era muito bonita, apesar do biotipo magro e os cabelos loiros naturais, mas também chamava a atenção.

E por último, surgiu Ivan, que dirigia o veículo.

O coronel Fernandes desejou naquele instante ter passado um perfume ou uma colônia. Não podia acreditar naquilo. Vários meses sem ver praticamente nenhuma mulher, e naquele momento estava diante de nove? E quem era aquele desgraçado sortudo?!

— Sejam todas bem-vindas, eu sou o coronel Fernandes. — Ele se aproximou, estendendo a mão para a morena sorridente.

— Olá, eu sou Fátima! Adorei este lugar! Fazia tanto tempo que não víamos nada tão organizado... Também, com todas essas coisas nojentas andando por aí! Aqui não tem essas criaturas, não é? É muito perigoso andar por aí, hoje em dia, espero que aqui estejamos seguras. Minha nossa, quantos homens! Duvido que algum desses monstros horríveis apareça por aqui!

O coronel gostou na hora da morena que falava pelos cotovelos.

— Sim, minha querida, vocês estão seguras, nós iremos protegê-las. São nossas hóspedes, está bem? — Fernandes respondeu, empolgado. — Baixem as armas, tenham educação! — ordenou a seus homens.

Os soldados em volta trataram de relaxar, e os demais, no telhado, desceram. Uns olhavam para Isabel, que sorriu de volta. Dezenas não conseguiam desviar o olhar de Gisele, que, tímida, tentava parecer simpática. A empolgação era geral com aquele grupo recém-chegado. Alguns até arriscavam cumprimentar algumas das mulheres, que acenavam de volta.

— Bom dia, meu nome é Ivan, sou o líder da comunidade de sobreviventes de São José dos Campos. Muito prazer. — Ivan estendeu a mão para o coronel, que quase já havia esquecido por que eles estavam ali.

— Ah, sim, claro. Sejam bem-vindos, fiquem à vontade. — Embora cumprimentasse Ivan, o coronel praticamente só olhava para Fátima. — Fui informado de que há outra líder na sua comunidade. Ela também veio?

— Minha esposa, Estela, está grávida, e concluímos que não seria uma boa ideia empreender uma viagem tão longa; ainda mais com o caos que se instalou nas nossas estradas — Ivan comentou, sorridente.

— Entendo. De qualquer forma, é um prazer recebê-los aqui. — O coronel queria muito saber se Fátima era solteira.

— O prazer é nosso. Ficamos felizes em saber que ainda existe comando aqui em São Paulo — Ivan afirmou, lisonjeiro.

— Sim, pode ficar tranquilo, ainda estamos de pé e na ativa. — O coronel Fernandes estufou o peito como um pavão.

— Antes de mais nada, coronel, estamos muito curiosos de saber por que o senhor nos convocou com tanta urgência até aqui — Ivan perguntou ali mesmo no estacionamento. — Esperamos que não tenha nada de errado acontecendo. Além da epidemia de zumbis, é claro.

— Sim, vamos conversar com calma, explicarei tudo. Na prática, temos informações de que vocês estão de posse de equipamento militar de uso exclusivo das forças armadas, o que é proibido pelas leis do país. Teremos que solucionar isso. — O coronel olhava para Fátima, que o encarava, sorridente.

— Sério mesmo? Eu não sabia! Teremos que devolver tudo, então? — Ivan se mostrava um tanto surpreso e envergonhado.

— Sim, meu rapaz, será necessário devolver tudo. Mas não se preocupe, iremos acomodá-los todos aqui conosco. São todos muito bem-vindos. — O coronel agora falava com ar quase paternal.

— Entendi. Isso significa que o disco voador vai ter que pousar agora mesmo — Ivan falou de forma corriqueira.

O que aconteceu em seguida foi muito rápido e incrivelmente embaraçoso.

Todas as simpáticas mulheres sacaram suas armas e apontaram para os homens em volta. Fátima, Gisele, Isabel, Sandra, todas ao mesmo tempo. Fátima, que era a mais próxima do coronel, apontou para o rosto dele a submetralhadora que trazia sob o grosso casaco longo que vestia. O único que não se mexeu, por ironia, foi Ivan, que permaneceu parado o tempo todo.

— Mas que diabos é isso?! — o coronel Fernandes trovejou ao ser pego de surpresa.

Vários homens se assustaram. Alguns mais próximos fizeram menção de apontar suas armas, e desistiram. Todas as mulheres ganharam, de um instante para o outro, um semblante feroz e perigoso.

— Mande-os soltar as armas, coronel. Estamos todos do mesmo lado, mas o senhor terá de confiar em nós — Ivan advertiu, em tom baixo, porém firme.

O coronel olhou em volta; havia pelo menos quatro armas apontadas na sua direção. O líder daquela divisão e seus soldados estavam em um número muito maior, mas bastaria um único vacilo para que ele fosse crivado de balas no mesmo instante.

— Fiquem calmos! Fiquem todos calmos! — o coronel gritou. — Você não tem coragem de enfrentar o exército, rapaz. Estamos em número dez vezes maior. Pare de infantilidade e mande-as baixar as armas — ele ordenou, ameaçador.

— Você é a segunda pessoa em dois meses que diz que eu não tenho coragem, estou quase acreditando. — Ivan simpatizara com o coronel, que lembrava seu pai. — Muito bem, podem se aproximar.

O coronel Fernandes não entendeu a princípio, mas então percebeu que Ivan usava um ponto eletrônico na orelha esquerda. Ele tinha um comunicador em algum lugar; havia mais gente participando daquela conversa.

O barulho estridente do som de diversos Urutus subiu pelos ares, e o grupo de soldados atônitos viu diversos tanques surgirem na rua. Dez veículos ao todo, com homens nas torres de artilharia empunhado metralhadoras de grosso calibre e fuzis.

Do caminhão do qual Ivan e as mulheres saíram desceram Zac, Oliveira, Silva, Souza e Dias, que se mantiveram escondidos dentro do veículo o tempo todo. Eles também empunhavam fuzis de assalto.

O coronel Fernandes olhava aquela cena, estupefato. Seu complexo estava sendo dominado sem que fosse disparado um único tiro.

Ao ver a investida dos tanques, os soldados imediatamente passaram a jogar as armas no chão e erguer as mãos, em sinal de rendição. Era impossível enfrentar vários blindados a pé.

O coronel se virou para Fátima, a bela morena de óculos escuros diante de si, que apontava a metralhadora para o seu rosto. Que decepção... Toda a simpatia e o encanto desapareceram: ela o encarava com aspecto intimidador.

— Até você, Fátima? — ele perguntou, decepcionado.

— Meu nome não é Fátima. Eu me chamo Estela. — Ela tirou os óculos escuros.

— Ah, mas que merda! Como eu sou burro! — E o coronel levantou as mãos também.

* * *

— Você joga sujo, rapaz, estou admirado. — O coronel Fernandes se deixou cair na cadeira do seu amplo escritório, com móveis de madeira maciça e um computador que já não funcionava havia meses. — Bravo! Bravíssimo!

— Peço desculpas pelo mau jeito, mas era necessário. Eu precisava saber onde estávamos nos metendo. O recado que recebemos não era exatamente cortês — Ivan falou com humildade.

— Nesse caso, liberte meus homens e estamos conversados — o coronel falou, seco.

— Em breve. Será uma visita bastante rápida. — Ivan se sentou numa cadeira diante do coronel, no que foi imitado por Estela. — Diga-me, senhor, como estão as suas condições aqui?

— Ótimas. Obrigado por perguntar. Por que você quer saber? — O coronel olhava de Ivan para Estela, e de novo para Ivan.

— Coronel, sei que não foi a melhor das abordagens. Mas olhe para mim, estou grávida de cinco meses! — Estela esboçou um sorriso maroto enquanto acariciava a barriga, que ela habilmente escondera sob o grosso casaco. — E sou casada. Não daria certo!

O coronel sorriu do comentário. Apesar de tudo, simpatizava com aqueles dois. Mas sentia falta de Fátima, o alter ego espevitado de Estela.

— Vocês nos pegaram pelo nosso ponto fraco! Se eu tivesse um superior para o qual precisasse responder, já estaria preso agora. — O coronel bateu a mão na testa.

— Não se culpe, coronel, nossa missão é de paz. Queremos cultivar uma parceria com vocês. Temos muitos recursos. Garanto que podemos nos ajudar mutuamente.

— Então você está me dizendo que quer colaborar conosco, Ivan? — O coronel Fernandes parecia cético.

— Sem dúvida alguma! Temos comida, armas, munição, e mais de dois mil sobreviventes com conhecimentos diversos. Aposto que podemos nos ajudar muito. Além disso, temos um problema em comum, e não são os zumbis.

— E do que se trata? Os desalmados já são uma preocupação constante. O que mais está acontecendo? — O coronel Fernandes se inclinou sobre a mesa, encarando Ivan.

Ivan narrou os eventos em Taubaté, descrevendo como vinham tentando desentocar Emmanuel. O coronel ouviu tudo em silêncio.

— Essa é a situação. Precisamos de reforços. Com mais soldados e apoio aéreo poderemos encerrar esse assunto e libertar aqueles que ainda estão lá — Ivan finalizou sua história.

— Está falando sério? Vocês criaram uma verdadeira fortaleza, e agora armaram uma operação de guerra para libertar um grupo de prisioneiros civis das mãos de um bandido? — O coronel franziu o cenho.

— Sim, isso mesmo — Ivan afirmou com simplicidade, como se não entendesse a surpresa do seu interlocutor.

— Resumindo, estou diante de uma equipe de resgate, é isso? Vocês estão tentando salvar a humanidade e querem a minha ajuda?

— Sim, resumindo é isso, coronel — Estela respondeu.

— Preciso pensar a respeito. Confesso que estou surpreso pelo número de sobreviventes que você diz ter reunido. Se o que estou ouvindo é verdade, temo estar diante de um mal necessário. Não temos condições de receber todos aqui, e eu não posso, em sã consciência, pedir que vocês se desarmem. — O coronel respirou fundo.

— Por favor, seja rápido e nos mande uma resposta assim que possível. Há mulheres e crianças presas naquele lugar; precisamos encerrar essa operação o quanto antes. — Ivan fitava o coronel no fundo dos olhos.

Os três permaneceram em silêncio por alguns instantes. Logo em seguida, o olhar do coronel ganhou um brilho significativo.

— Já que vocês estão aqui, tenho uma surpresa para você, garoto. — O coronel se reclinou na cadeira, olhando para Ivan. — Tenho informações que, aposto, você ignora completamente.

Ivan olhou para ele, intrigado. A expressão altiva do coronel dava a entender que ele sabia mesmo de algo. E Ivan se perguntava se ia gostar do que estava por vir.

— São más notícias, não é, coronel?

— Nos tempos em que vivemos, não existem mais boas notícias. — O coronel esboçou um sorriso misterioso. — Venham comigo.

Fernandes se levantou e indicou a porta para Ivan e Estela, que o acompanharam um tanto cismados. Achavam-se prestes a ter algumas revelações que mudariam suas vidas para sempre.

* * *

Caminharam até fora do prédio, acompanhados por Isabel, Zac e Gisele, que esperaram do lado de fora da sala. Ivan fizera questão de trazer Isabel naquela campanha, apesar da inexperiência dela. Seu dom fazia da jovem uma arma mais perigosa do que qualquer outra que possuíam.

Avançaram por uma alameda muito agradável, com grama e árvores de ambos os lados. Eles rumavam para os fundos do complexo, na direção oposta ao estacionamento, onde os comandados de Ivan mantinham presos os soldados do coronel Fernandes.

— Seus homens são mesmo muito bons. Pregaram uma boa peça em todos nós. — O coronel continuava inconformado.

— Eles são muito disciplinados, e investimos pesado em treinamento. E já enfrentaram centenas de situações de perigo. Esse inferno embrutece um ser humano. — Ivan deu de ombros. — Mesmo que os zumbis desaparecessem amanhã da face da Terra, nenhum de nós voltaria a ser como antes. As pessoas que costumávamos ser morreram.

— Sei bem do que você está falando. Mas, diga-me, você pertenceu ao exército, certo, Ivan?

— Acho que está na cara, não é mesmo? — Ivan sorriu. — Sim, servi as forças armadas por dois anos.

— Foi o que imaginei. Bem, talvez tenhamos feito algo de bom por este país, afinal. — E isso era o máximo em termos de elogio que se poderia esperar do coronel. — Você, por acaso, se lembra de ter ouvido falar do IPCFEx durante o seu treinamento?

Ivan tentou puxar pela memória, mas nada lhe ocorreu. Na realidade, seria pedir demais. Durante o treinamento militar, os soldados aprendiam tanta coisa que era impossível assimilar tudo.

— Sinceramente, não, coronel.

— Poucas pessoas conhecem. IPCFEx é uma sigla que significa Instituto de Pesquisa da Capacitação Física do Exército. Esse era o departamento das forças armadas voltado para projetos e trabalhos de pesquisa em áreas como avaliação física, biomecânica, bioquímica, cardiologia, nutrição e tantas outras.

Ivan, Estela, Isabel, Zac e Gisele ouviam o coronel com grande interesse.

— Esse departamento foi responsável, durante anos, por todo tipo de pesquisa que envolvesse a melhor capacitação física dos nossos combatentes, inclusive estudos de neurociência — Fernandes prosseguiu. — Portanto, era composto basicamente por médicos e especialistas de diversas áreas, como fisioterapeutas e psicoterapeutas. E eles, por sua vez, coordenavam estudos conjuntos com grandes faculdades e universidades do Brasil e do exterior.

— Entendi. Era um braço científico do exército — Estela comentou.

— Exatamente, Fátima. Quer dizer, Estela! — o coronel consertou, rápido. — Pois bem, um dos coordenadores desse instituto conseguiu chegar aqui cerca de dois meses após o Dia Z. Ele está trabalhando, agora mesmo. É provável que nem saiba que vocês chegaram.

— Ele deve ser uma pessoa muito concentrada, não é mesmo? — Se havia um perfil do qual Isabel entendia era o dos pesquisadores, pois ela fora estudada por centenas ao longo de sua vida.

— Ele não é concentrado. É completamente maluco.

— Sim, coronel, dizem que de médico e de louco todos temos um pouco. — Ivan sorriu-lhe.

— Você não está me entendendo. Ele é literalmente maluco, e viciado em tranquilizantes. Passou mais de um mês escondido dentro de uma lanchonete após ver a mulher e os filhos se transformar em desalmados e tentarem matá-lo. — O coronel meneou a cabeça. — Começamos nossa pesquisa apenas porque eu queria mantê-lo ocupado antes que o pobre homem surtasse de vez. Mas de fato ele me surpreendeu.

— Pesquisa? Que tipo de pesquisa? — Gisele quis saber.

— Vocês verão — o coronel respondeu, misterioso.

Chegaram a um grande galpão de pé-direito duplo, nos fundos da 2ª Divisão, que estava com a porta entreaberta. O coronel puxou para o lado a pesada porta de correr, aumentando a passagem para o grupo adentrar o local. E o que eles viram os deixou pasmos.

Dentro do amplo espaço havia diversas jaulas improvisadas, feitas de tijolos aparentes, sem reboco. E dentro delas, dezenas de zumbis, que resmungavam e rosnavam o tempo todo, como animais selvagens enjaulados.

— Que diabos é isso? — Ivan perguntou, perplexo.

— Prefiro deixar as explicações para nosso amigo ali. — O coronel apontou para um homem de jaleco alvíssimo logo à frente, que conversava com um soldado, e olhou para eles curioso.

Ao se aproximar dele, o grupo viu uma mesa logo à sua frente, e sobre ela, um zumbi amarrado com grossas tiras de couro. Tratava-se de um homem de uns sessenta anos, amordaçado e completamente nu. Seu corpo estava limpo; pelo jeito, deram um banho nele. A criatura tentava se debater, buscando uma forma de se soltar.

O coronel fez as apresentações:

— Amigos, eu lhes apresento o doutor Oscar. Doutor, esses são os visitantes que aguardávamos.

Eles avaliaram Oscar por alguns instantes. Ele aparentava cerca de quarenta anos, usava óculos grossos e desproporcionais ao seu rosto. Seus cabelos desgrenhados eram um contraste com os dos militares, tão curtos, em estilo recruta. E Oscar tinha, de fato, feições de louco.

— Muito prazer. Que bom ver gente nova. Não nos deixam sair muito daqui, sabe? — Oscar apertou a mãos de um por um.

Todos perceberam que ele tinha uma espécie de tique nervoso. Enquanto cumprimentava com a mão direita, a mão esquerda permanecia tremendo de leve.

Ao tentar cumprimentar Gisele, ela nem se moveu; ficou olhando para mão dele parada no ar, com expressão de poucos amigos.

— Gisele não gosta de tocar, e muito menos de ser tocada por homens; não repare. — Ivan tentava consertar a situação diante do médico, que além de tudo era incrivelmente tímido.

— Tudo bem, tudo bem, eu sei como é isso. Conheci um cara uma vez que só gostava de tomar banho de meias, isso acontece sempre.

O comentário de Oscar fez com que Ivan e Estela trocassem olhares. Eles começavam a achar que o coronel Fernandes não exagerara.

— Oscar, por favor, sem esquisitices — o Coronel Fernandes falou, com grande dose de impaciência na voz. — Eu gostaria que você mostrasse o trabalho que vem fazendo aqui.

— Claro, será um prazer. Não tenho muitas oportunidades de mostrar minhas pesquisas, sabe? É uma pena. Sinto saudade da época em que participava dos congressos do exército. Era muito bom trocar experiências, fazer apresentações... Às vezes eu apresento minhas conclusões para mim mesmo diante do espelho. Isso me ajuda muito a tirar minhas dúvidas. E, claro, é sempre bom manter a prática; afinal de contas, a gente perde o jeito, com o tempo... — Oscar falava praticamente sem respirar.

O coronel Fernandes se irritou.

— Foco, Oscar, foco! Pelo amor de Deus!

— Sim, senhor, sim, senhor. — Oscar ajustou os óculos no rosto. — Muito bem, o que vocês sabem sobre os desalmados?

— Não muito, para falar a verdade. Sabemos que eles só morrem quando o cérebro é destruído. Nem mesmo um tiro no coração é capaz de detê-los. Por isso, nos acostumamos a chamá-los de mortos-vivos. Acreditamos que eles já estão de fato mortos — Ivan afirmou.

— E já vimos que eles só comem carne. Pode ser humana ou de qualquer outro animal, mas tem que ser carne, em geral fresca — Estela complementou.

— O que mais? — Oscar parecia mais concentrado agora.

— Eles não têm medo de absolutamente nada, mas se dispersam com o fogo — foi a vez de Zac contribuir.

— E são completamente irracionais. Não entendem nada — Gisele complementou.

— Mesmo quando se trata de uma pessoa que o ama muito. Nada é capaz de devolvê-los à razão. — Isabel sentiu um calafrio ao se lembrar da imagem de Josué alucinado, tentando matá-la.

— Muito bem, mas ninguém até agora falou o ponto central: o que vocês sabem sobre o surgimento deles? — Oscar indagou.

— Absinto. — A afirmação de Ivan foi acompanhada de comentários e anuências de todos os demais. — Essa praga começou no dia em que aquele planeta desgraçado chegou mais perto da Terra.

— Sim, isso mesmo. E alguém tem algum palpite do que houve naquele dia?

Ninguém soube responder ao doutor Oscar. Todos se lembravam do calor insuportável, seguido pelas multidões de pessoas desmaiando nas casas, nas ruas, batendo os carros, em toda parte. E, quando acordaram, simplesmente não eram mais humanos.

— Afinal de contas, eles são humanos ou não? — Ivan perguntou, desviando um pouco do tema da conversa; mas essa era sempre uma dúvida.

— O que você acha?

— Eu me acostumei a pensar que não, doutor. Mas realmente não sei — Ivan foi sincero.

— Eles têm aparência humana, mas por todos os parâmetros médicos disponíveis, não são humanos — disse Oscar. — O metabolismo é diferente, os batimentos cardíacos são três vezes mais rápidos, a respiração, duas vezes mais lenta. Eles enxergam muito melhor no escuro, o que explica por que são mais ativos à noite. E seu exame de sangue apresenta elementos simplesmente indecifráveis.

Todos prestavam total atenção às suas palavras. Oscar continuou:

— Qualquer médico do mundo, diante dessas informações e sem ver a origem dos dados, diria com certeza de que não se trata dos exames de um ser humano. Eu só não tenho equipamento para fazer o sequenciamento do DNA, mas sou capaz de apostar que até esse estaria alterado.

— Então o que eles são? — Ivan observava a criatura presa à mesa.

— Zumbis, é claro. — A expressão de Oscar dava a entender que Ivan devia ter um parafuso a menos na cabeça por fazer uma pergunta tão idiota.

— Oscar... — O coronel Fernandes encarou o doutor com dureza.

Oscar se encolheu ligeiramente.

— Eu sei, desculpe. —Ele meneou a cabeça, contrariado.

— E, afinal de contas, essas criaturas estão vivas ou mortas? — Estela quis saber.

— O termo mortos-vivos que vocês usaram se aplica perfeitamente bem. Eles não podem ser considerados mortos, por terem atividade motora. Por outro lado, eis os resultados dos eletroencefalogramas de várias criaturas estudadas. — Oscar indicou a tela do computador, que mostrava algumas imagens. — São exames de pessoas com morte cerebral. Não há quase nada lá. Nenhum indivíduo é considerado clinicamente vivo apresentando um quadro desses. Eles estão congelados em um meio-termo.

— Calma, aí. Você disse quase nada. — Ivan deu ênfase à palavra que chamara sua atenção. — Então existe algo.

— Sim, existe sim. Mas, antes de falar disso, preciso voltar ao começo da nossa conversa. — Oscar esboçou um sorriso vitorioso; havia conquistado sua plateia. — O que vocês imaginam que aconteceu quando Absinto se aproximou a pouco mais de um milhão de quilômetros da Terra?

— Só Deus sabe! — Isabel deu de ombros. — É impossível para qualquer um de nós saber.

— Não é, não. Vocês só precisavam ter à mão uma das maiores invenções do século XX — Oscar falou, matreiro.

— E qual seria essa invenção fantástica? — Ivan franziu a testa.

— A internet.

— A internet? Como assim, doutor, o que você quer dizer? — Gisele parecia perplexa.

— Quero dizer que a NASA soltou um comunicado aberto na internet pouco tempo depois de o mundo enlouquecer. Claro que pouca gente viu, porque quem sobrou estava correndo dos zumbis, e a internet no Brasil parou de funcionar menos de seis horas após a catástrofe. Mas acredito que alguns poucos leram o comunicado, e eu sou um deles. — Oscar, vitorioso, apontou o polegar para si mesmo.

Todos se entreolharam, chocados. Aquilo era algo com que nenhum deles contava: a possibilidade de existir alguma explicação para aquela catástrofe.

— E o que dizia esse comunicado? — Ivan se mostrava vivamente interessado.

Oscar narrou em detalhes o conteúdo da mensagem emitido naquela data fatídica, que explicava sobre os bilhões de pontos luminosos avistados deixando a Terra e rumando direto para o planeta intruso, no mesmo momento em que o apocalipse zumbi fora deflagrado.

— E o comunicado dizia que eram almas humanas? Foi exatamente essa palavra que eles usaram? — Zac o encarou, cético.

— Sim, exatamente essa palavra; mas claro que era apenas uma teoria. Pelo visto, Deus tem veia poética. — Oscar sorriu, como se fosse possível achar graça daquele assunto.

— Sinceramente, eu acho que todos precisamos manter a mente aberta. Afinal de contas, apenas um ano atrás ninguém imaginava que poderiam surgir zumbis matando pessoas por aí. Mas parece tão absurdo... Não poderiam ser cometas? — Estela sugeriu.

— Impossível. O comunicado dizia que os pontos luminosos se deslocavam a cerca de um décimo da velocidade da luz. Não existe nenhum tipo de corpo celestial que se desloque tão rápido. Sua velocidade era quinhentas vezes maior, em média, do que seria esperado de um cometa ou meteoro — Oscar foi categórico.

— Agora entendi por que você os chama de desalmados; faz sentido. — Ivan o fitava, pensativo.

Então, segundo aquela teoria, a alma de fato existia. Era irônico um dos maiores mistérios da humanidade ser respondido daquele jeito. Mas ainda assim havia furos naquilo tudo.

— Oscar, eu acho que está claro que algo deixou a Terra naquele dia, e também que era um grande número dessas... coisas. E pelo visto não poderiam ser cometas. Mas ainda assim não há provas de que fossem almas — Ivan ponderou.

— Ivan, você já ouviu falar da glândula pineal? — Oscar perguntou à queima-roupa.

Os demais não entenderam nada, mas Ivan e Estela se sobressaltaram. Aquilo era absurdo. Havia limites para tantas teorias fantásticas.

— Sim, e eu não acredito nessas conversas esotéricas — Ivan afirmou, contundente.

— Alguém pode me explicar o que é isso? — Gisele pediu. — Eu nunca ouvi falar dessa coisa.

Oscar se voltou para ela.

— A glândula pineal fica no cérebro, e é minúscula. Por muito tempo se pensou que ela não possuía nenhuma utilidade, mas hoje já se sabe que ela tem algumas funções, como por exemplo o desenvolvimento sexual.

— Bom, está bem, e qual é o problema? Cadê o esoterismo, doutor? — Gisele perguntou.

— A questão é que muitas correntes religiosas, esotéricas e os hindus defendem que a glândula pineal é a ligação do corpo com a alma. — Oscar meneou a cabeça, afirmativamente. — Seria, segundo algumas linhas de pensamento, o órgão mais importante do corpo.

— Eu nunca ouvi falar disso! — Isabel franziu o cenho. — E olha que eu entendo muito desse tipo de coisas.

— Pois é, eu já li sobre isso, alguns livros falavam a respeito. Mas nunca acreditei; acho um tremendo delírio. Seria teoricamente a explicação para os fenômenos da mediunidade. — Ivan suspirou.

— Delírio ou não, até mesmo o grande filósofo René Descartes defendeu que a glândula pineal era a sede do espírito, a chave para explicar como o corpo e alma se conectavam — Oscar explicou. — E como a glândula pineal tem cristais de apatita, ela funcionaria como uma antena que emite e recebe ondas eletromagnéticas. Seria a explicação para fenômenos como telepatia, clarividência e até mesmo a capacidade que algumas pessoas supostamente possuem de mover objetos com o poder da mente. Para alguns, trata-se de um órgão poderoso, caso alguém tivesse a capacidade de usá-lo de maneira correta.

Instintivamente Ivan, Estela, Gisele e Zac olharam para Isabel, que por sua vez arregalou os olhos, surpresa. Aquela história toda de repente parecia menos absurda.

— Oscar, por que você começou a falar da glândula pineal? O que ela tem a ver com os zumbis? — Ivan quis saber. — Você disse que havia algo nos eletroencefalogramas dos zumbis. Está relacionado com essa glândula?

— Acertou em cheio, Ivan. Vejam isso. — Oscar se dirigiu a um armário que ficava próximo da mesa na qual estava amarrado o zumbi. Abriu a porta e pegou dois frascos de vidros cheios de líquido. — Senhores, esta aqui é a glândula pineal removida do cérebro de um indivíduo comum.

Ele mostrou para todos. Era um pedaço de tecido amarronzado do tamanho de uma ervilha, que flutuava naquele líquido levemente amarelado.

— E esta aqui é a glândula pineal removida do cérebro de um desalmado. — No outro frasco que Oscar segurava havia um fragmento fibroso de cérebro dez vezes maior do que aquele que eles viram antes.

O formato era o mesmo — lembrava vagamente uma pinha —, mas a pineal do desalmado era gigantesca, do tamanho de um limão.

— Eu fiz vários testes com os cérebros dos zumbis. Removi o lobo frontal, o temporal, o parietal, e nada; isso só os deixou mais irritados. Adivinha o que aconteceu com todos eles quando removi a glândula pineal.

— Eles morreram.

— Isso mesmo, Ivan. Foi como desligar um interruptor. Essa glândula é a chave. Os zumbis infectados por mordida têm a pineal muito mais desenvolvida que um ser humano, e os desalmados a possuem ainda maior do que os infectados. E isso de alguma forma os mantêm vivos quando deveriam estar mortos. Um bom tiro na cabeça e pronto, assunto encerrado. — Oscar sorriu. — Legal, não é mesmo?

— E você acha que a glândula seria a ligação do corpo com a alma, portanto... — Ivan ignorou o último comentário de Oscar. Aquele assunto o incomodava.

— Ao ser arrancada a alma, a glândula sofreu uma mutação e fez os mortos andarem. Como isso acontece, que papéis ela começou a desempenhar a ponto de substituir partes inteiras do cérebro que estão completamente mortas, eu não sei. Mas ela muda totalmente o funcionamento do corpo dos desalmados, e em parte o funcionamento dos corpos dos infectados — Oscar garantiu.

Um silêncio pesado pairou sobre aquele grupo. Era tudo estranho demais, absurdo demais. E por algum motivo fazia sentido.

— Por que os chama ora de desalmados ora de infectados... como se fossem coisas diferentes?

— Ótima pergunta. Essa é a parte que mais interessará a todos vocês. — Oscar abanou a mão. — Venham comigo.

Eles seguiram até uma das jaulas improvisadas. Lá dentro havia um morto-vivo, um homem nu de cabelos e barba longos e desgrenhados que aparentava uns cinquenta e cinco, talvez sessenta anos.

Ao vê-los se aproximando, ele cambaleou contra a grade e enfiou o braço entre as barras de ferro, tentando alcançá-los a qualquer custo. Ele urrava, furioso, e um fio grosso de saliva escorria pelo canto da boca.

O morto-vivo estava tão alucinado que começou a bater a cabeça contra as grades de frustração quando não alcançou Ivan e seus companheiros. O rosto se distorcia numa expressão de ódio. Seus dentes eram podres, e a pele, ressecada e cinzenta.

— Indivíduo número um; trata-se de um desalmado. — Oscar apontou o zumbi feroz, que tentava escapar. — Ele foi transformado no dia do evento, não foi contaminado por outra criatura.

— Como sabe disso? — Ivan perguntou, intrigado.

— Nós o examinamos inteiro, não há nenhum sinal de mordida. Ter essa certeza era fundamental para nossos estudos. Estão reparando que ele está cheio de energia? Esse infeliz seria capaz de correr a maratona desse jeito!

— Sim, Oscar, e daí?

— Calma, Ivan, eu chego lá. Indivíduo número dois, reparem bem neste aqui. — Oscar apontou para o zumbi dentro da cela ao lado.

Aquele exemplar era diferente. Uma mulher de uns vinte e cinco anos, cabelos ruivos e pele branca. Ela também estava nua e esquelética. Parecia uma das mulheres que se viam em matérias falando sobre bulimia e anorexia. Estava deitada no chão da jaula, e ao vê-los começou a se arrastar até a grade.

A criatura enfiou o braço, que era apenas pele e osso, pelas barras e tentava alcançá-los. A mão tremia como se sofresse do Mal de Parkinson, e ela gemia de forma dolorosa. Era um ser que aparentava estar no limite de suas forças. Seu rosto fora destruído pelos ataques que sofrera — não havia nariz nem lábios; faltava um dos olhos, e parte da pele da face fora também arrancada. Viam-se lacerações nos ombros, nos braços e no torso.

Todos do grupo se compadeceram daquela criatura, cuja existência se reduzira àquele monte de escombros. Sem dúvida, uma visão muito triste. Era comum aos sobreviventes esquecer que eles foram pessoas um dia.

— Essa zumbi foi infectada. Reparem que ela sofreu muitas mordidas. Apesar dos ferimentos, nada seria grave o suficiente para matá-la, mas o próprio contágio causa a morte cerebral — Oscar falou. — Qual é a grande diferença entre os dois?

Todos olharam com atenção, mas as discrepâncias entre os seres eram gritantes; era muito fácil enxergar as diferenças entre eles.

— O primeiro está cheio de gás, mas o segundo está caindo pelas tabelas — Zac se pronunciou.

— O primeiro mostra-se saudável, o segundo parece estar morrendo — Ivan traduziu a seu modo.

— Sim. E querem saber a outra grande diferença existente?

Ninguém se manifestou, mas todos estavam bastante ansiosos pela resposta de Oscar.

— O indivíduo número um não come nada há seis meses. O número dois comeu há apenas dois. — Oscar os encarou, confiante.

Aquilo era uma revelação e tanto.

— Os desalmados, os zumbis originais transformados pela aproximação do planeta Absinto, são muito mais resistentes e numerosos que os infectados — Oscar concluiu. — Já matamos de inanição meia dúzia de seres similares ao indivíduo número dois, mas nenhum desalmado. Não importa o que se faça com eles, são resistentes à fome, ao frio, à sede, ao fogo, a gases venenosos, tudo. E quanto mais fome passam, mais agressivos ficam, como nosso indivíduo número um aqui.

Todos estavam admirados.

— De fato o fogo os confunde e dispersa, e eu acredito que o calor próximo ao cérebro causa um incômodo bem real. Também temos evidências de que, em caso de dores muito intensas, eles chegam a sentir algum desconforto, o que pode ajudar a distraí-los. Mas, tirando isso, é muito difícil fazer mal a um desalmado. — Oscar respirou fundo.

— Minha nossa, eu imaginei que com o tempo eles fossem se extinguir, mas desse jeito... — Ivan suspirou, desanimado.

— Os infectados vão mesmo. Com o passar dos anos teremos cada vez menos desses. Na realidade, hoje a população desses zumbis já deve estar diminuindo naturalmente, e deve até acabar. Mas os desalmados são perfeitos, uma obra de arte da Natureza.

— Você parece admirar esses desgraçados, doutor! — Zac apontava para o indivíduo número um.

— Claro que admiro. Os desalmados são mais fortes, mais resistentes e mais numerosos. O mundo pertence a eles agora. Não passamos de gado esperando pelo abate — respondeu Oscar.

Antes que Zac perdesse a paciência, Ivan se adiantou com a questão que mais o incomodava:

— Oscar, você consegue supor por quanto tempo essas criaturas vão continuar caminhando por aí? Será que essas coisas têm prazo de validade? Ao que me consta, nada é eterno. Em algum momento as baterias vão ter que se esgotar, certo?

— Não tem um único dia em que eu não me faça essa mesma pergunta. Fiz a autópsia de vários zumbis também, desalmados e infectados. Os órgãos dos desalmados são muito conservados; na maioria dos casos, o fígado ou o coração de um desalmado se assemelha ao de uma pessoa de vinte anos, mesmo que ele aparente cinquenta ou sessenta. Eles foram feitos para durar muito.

Ivan franziu a testa.

— O lado bom... e não deem risada, mas foi uma preocupação nossa... é que eles parecem não se reproduzir. Ao contrário de todos os outros animais conhecidos, eles não acasalam e não procriam. O estrago em seu cérebro, pelo visto, é grande demais — Oscar explicou. — Por isso a possibilidade de a população de zumbis aumentar é muito pequena, está restrita ao número de sobreviventes. Mas eu diria que os desalmados irão durar várias décadas ainda. Talvez séculos.

— Procriar? Quer dizer que vocês juntaram duas dessas coisas e tentaram...

— Exato, Ivan, não funcionou. Não rolou um clima entre eles. — Oscar deu risada.

— Meus Deus, isso é doentio — Ivan murmurou.

Aquelas notícias eram simplesmente desoladoras. Todos ali sonhavam com a possibilidade de um dia ver o mundo voltar ao normal. Agora sabiam que isso jamais aconteceria. Nem eles, seus filhos ou netos poderiam viver em paz novamente. A guerra contra os zumbis atravessaria gerações inteiras. Se tivessem êxito, muitas crianças nasceriam, cresceriam e morreriam escondidas das feras.

Ivan observava o zumbi que se arrastava dentro da jaula, o tal indivíduo número dois. Uma criatura infeliz que mal tinha forças para gemer, e que, como ele, foi poupada em um primeiro momento, para depois ser jogada naquele inferno, e agora se transformar em cobaia de laboratório. Oscar tinha razão: no fundo os desalmados eram os mais afortunados.

Parecia que aquela criatura entendia que Ivan pensava nela, pois começou a gemer ainda mais alto. Um gemido triste e doloroso.

— Oscar, eu peço desculpas, mas não aguento mais. — Em seguida Ivan sacou a pistola e deu um tiro certeiro na têmpora do zumbi, e seu cérebro se esparramou contra a parede da cela.

A criatura tombou, inerte.

— Não! Você enlouqueceu?! Eles são meus! — Oscar se ajoelhou, desesperado, ao lado do ser que jazia no chão com o crânio despedaçado.

As demais criaturas do galpão começaram a gemer e urrar ainda mais alto por causa do barulho do disparo.

— Você é um louco, selvagem, ignorante... — Oscar bradava.

— Cala a boca, Oscar! Chega! — o coronel interveio. — Eu também já estava de saco cheio dos resmungos dessa coisa. Pelo menos agora acabou.

Oscar olhou com ódio para o grupo, e se afastou pisando duro. Ivan suspirou e guardou a pistola no coldre. Já sabia tudo que precisava, não fazia questão da amizade daquele maluco. Apesar das circunstâncias, ninguém merecia viver como uma cobaia, condenado a morrer lentamente.

— Eu avisei que as notícias não eram boas. — O coronel deu de ombros. — Vocês fizeram a coisa certa. Quem quiser sobreviver terá que se preparar para uma nova vida. A antiga está perdida para sempre. Não existem armas nem balas suficientes para matar tantas criaturas, e o tempo está ao lado delas.

— É, não eram as notícias que esperávamos... — Ivan concluiu, desanimado.

Todos saíram em silêncio do galpão, deixando para trás os resmungos e lamentos dos zumbis trancados dentro das jaulas.

* * *

— Muito bem, Ivan, como ficamos? — Fernandes tornou a se sentar na cadeira da sua sala.

— Agradeço muito a hospitalidade, coronel, mas vamos embora.

— E eu imagino que você não vai devolver os equipamentos roubados, certo?

— Não, coronel, precisamos deles. Vocês estão bem protegidos aqui. Mas serão bem-vindos em São José dos Campos, se quiserem recomeçar a vida conosco.

— Eu agradeço muito, mas não. Esta é nossa cidade, e iremos lutar por ela.

— Esta cidade é um grande cemitério, coronel. Chegamos ontem à tarde, e antes de virmos para cá passamos no bairro onde a minha mãe morava. Sabe o que encontramos lá? Somente morte. Zumbis para todos os lados. É isso o que São Paulo se tornou, uma terra de mortos-vivos.

— Eu sei disso tudo, Ivan. Mas não podemos desistir. Abrir mão de São Paulo seria assumir que os zumbis venceram.

Conversaram durante mais alguns instantes. Ao final, Ivan e Estela se levantaram para se despedir, quando receberam uma notícia interessante.

— Nós não somos os únicos, Ivan. O helicóptero conseguiu chegar a dois postos de comando paranaenses que também estão seguros. Não temos como nos comunicar constantemente com eles, pois nosso sistema de rádio está arruinado, mas mesmo assim é um alento. Tanto o 3º Regimento de Carros de Combate de Ponta Grossa como a 5ª Companhia de Polícia do Exército de Curitiba sobreviveram a essa catástrofe. E acreditamos que há outros focos de resistência espalhados por aí.

— Essa é uma ótima notícia, coronel, nos ajudará na nossa próxima empreitada. — Ivan o pôs a par, rapidamente, da tentativa de resgate de Jezebel, que seria realizada tão logo conseguissem resgatar os últimos reféns de Emmanuel.

— Perfeito. Passarei as frequências em que eles estão operando. Precisamos providenciar com urgência um sistema de rádio, está fazendo falta.

— Não seja por isso. — Em seguida, Ivan abriu a porta e pediu para Zac trazer o equipamento.

Zac empurrou para dentro da sala uma mesinha com rodas na qual estava instalada uma unidade GMR, o super-rádio do exército usado para coordenar ações táticas.

— Não acredito! Tínhamos uma dessas, mas a perdemos num incêndio. Assim poderemos manter contato constante com vocês e com as divisões do Paraná. — O coronel sorriu largo.

Encerraram a conversa com a promessa de se falarem com frequência. Quando foi se despedir do coronel, Ivan fez uma pergunta:

— Vejo que o senhor mudou completamente de atitude conosco. O que o fez mudar de opinião?

— Vocês estão cuidando de duas mil pessoas; é muito mais do que estamos fazendo aqui. — Fernandes fitava Ivan com genuína admiração.

— Mesmo assim, as armas são roubadas.

— Não, as armas pertencem ao povo. Foram adquiridas com o intuito de servi-lo. Elas estão cumprindo seu propósito, estão no lugar certo.

Ivan e Estela se despediram do grande soldado prometendo voltar a vê-lo em breve.