Capítulo 1

A pequena cidade de Vezza fica na confluência de duas torrentes que, dos montes Apuan, descem por dois vales profundos. Turbulentamente — porque ainda trazem na memória suas nascentes na montanha —, os rios, unidos, atravessam a cidade; em Vezza, o silêncio é o som contínuo das águas. Depois, aos poucos, o pequeno rio muda de caráter; o vale se alarga, as montanhas são deixadas para trás e as águas, plácidas como as de um canal holandês, deslizam suavemente pelas campinas da planície costeira e se misturam ao calmo Mediterrâneo.

Dominando Vezza, um íngreme promontório se projeta como uma cunha entre os dois vales. Próximo ao topo e instalado em meio aos azinheiros e aos altos ciprestes, que sombriamente se destacam acima das oliveiras envoltas pela bruma, há uma grande casa. A fachada solene e irregular, com vinte amplas janelas, mira a cidade do alto, por sobre os ciprestes e as oliveiras. Atrás e além, como que escalando os taludes posteriores, vê-se um conjunto de construções irregulares. Tudo isso é dominado por uma torre alta e estreita que, à maneira das torres italianas, se alarga no topo, formando balestreiros ameaçadores. É o palácio de verão dos Cybo Malaspina, outrora príncipes de Massa e de Carrara, duques de Vezza e marqueses, condes e barões de outros povoados vizinhos.

A estrada que vai de Vezza ao palácio dos Cybo Malaspina é íngreme, empoleirada na montanha sobre a cidade. O sol da Itália é capaz de brilhar mais poderosamente mesmo em setembro, e pouca sombra podem proporcionar as oliveiras. O jovem com chapéu em ponta e sacola de couro pendurada no ombro empurra lenta e fatigantemente sua bicicleta montanha acima. A todo instante para, enxuga o rosto e suspira. Foi um dia maldito, vai pensando ele, um dia muito, muito negro para os pobres carteiros de Vezza aquele em que a velha inglesa louca, com um nome impossível, decidiu comprar o palácio; ainda pior foi o dia em que ela escolheu viver nele. Antigamente o lugar ficava quase vazio, não fosse pelas poucas famílias de camponeses que habitavam as casas externas; era só isso. Nada além de uma carta por mês entre todas aquelas famílias, e quanto aos telegramas... jamais houvera um único telegrama para o palácio de que ele se lembrasse. Mas esse tempo feliz havia terminado, e eram cartas, eram pacotes de jornais e encomendas, eram correspondência expressa e telegramas — não passava um único dia, nem mesmo uma hora em todo o dia, sem que alguém do correio estivesse subindo para aquela amaldiçoada casa.

É bem verdade, seguia pensando o jovem, que há sempre uma boa gorjeta por um telegrama ou uma carta expressa. Mas, sendo um jovem sensato, preferia o ócio, se pudesse escolher, ao dinheiro. A energia despendida não valia os três francos que receberia no final da subida. O dinheiro não traz satisfação quando é preciso trabalhar por ele; porque quando se trabalha para ganhá-lo não há tempo para gastá-lo.

O ideal, refletia ele, ao recolocar o chapéu e mais uma vez retomar a subida, o ideal seria ganhar um grande prêmio na loteria. Um prêmio realmente grande.

Tirou do bolso um pedaço de papel que lhe fora dado naquela mesma manhã por um mendigo em troca de alguns tostões. Nele estavam impressas rimas proféticas de boa fortuna — e que fortuna! O mendigo fora bastante generoso. O jovem casaria com a moça que amava, teria dois filhos, tornar-se-ia um dos mais prósperos comerciantes da cidade e viveria até os oitenta e três anos. Nesse oráculo ele pouco acreditava. Somente a última estrofe lhe parecia — embora fosse difícil explicar por quê — digna de atenção. Ela dava especificamente um bom conselho:

Para quem quer fazer

Um belo terno na Loto,

Jogue o sete e o dezesseis,

Unidos ao cinquenta e oito.[1]

O jovem releu várias vezes até decorar; depois dobrou o papel e tornou a guardá-lo. Sete, dezesseis e cinquenta e oito — havia nesses números algo de realmente atraente.

Jogue o sete e o dezesseis,

Unidos ao cinquenta e oito.

Ele estava bastante disposto a fazer o que aconselhava o oráculo. Era um encantamento, uma fórmula mágica para agarrar a fortuna: não havia como perder com aqueles três números. Ele pensava no que faria quando ganhasse. Decidia-se quanto ao carro que compraria — um dos novos Lancias com motor 14/40 cavalos seria mais elegante, do que um Fiat e menos caro (mesmo diante de sua grande fortuna ele mantinha a sensatez e os hábitos de economia) do que um Isotta Fraschini ou um Nazzaro — quando chegou às escadarias do palácio. Encostou a bicicleta ao muro, subiu e, soltando um longo suspiro, tocou a campainha. Dessa vez o mordomo deu-lhe apenas dois francos em vez de três. Assim é a vida, pensou o jovem, descendo a encosta pela floresta de oliveiras prateadas em direção ao vale.

O telegrama era para a sra. Aldwinkle; mas na ausência da dona da casa, que viajara de carro com todos os seus outros convidados à marina de Vezza para passar o dia na praia, o mordomo entregou-o à srta. Thriplow.

A srta. Thriplow estava na pequena e sombria sala gótica, na parte mais antiga do palácio, compondo o décimo quarto capítulo do seu novo romance numa máquina de escrever Corona. Ela usava uma túnica de algodão estampada — de um enorme xadrez azul sobre fundo branco, no estilo escocês —, longa e bastante ampla; uma túnica que era ao mesmo tempo fora de moda e tremendamente contemporânea, juvenil e avançada, recatada e mais liberada que as das moças de Chelsea. O rosto que ela voltou em direção ao mordomo, quando ele entrou na sala, era muito suave, redondo e pálido, tão suave e redondo que ninguém o atribuiria a ela, com seus trinta anos de idade. As feições eram delicadas e regulares, os olhos, castanho-claros; e as sobrancelhas arqueadas pareciam desenhadas em uma máscara de porcelana por um pincel oriental. Os cabelos eram quase negros, e ela os usava esticados para trás desde a testa e amarrados num grande coque na nuca. As orelhas descobertas eram alvas e pequenas. O rosto era inexpressivo como o de uma boneca, mas o de uma boneca extraordinariamente inteligente.

Ela pegou o telegrama e abriu-o.

— É do mr. Calamy — explicou ao mordomo. — Ele diz que chegará às três e meia e virá para cá. Acho bom preparar o quarto dele.

O mordomo retirou-se; mas, em vez de continuar seu trabalho, a srta. Thriplow recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro.

A srta. Thriplow desceu às quatro horas, depois da sesta, vestida não com a túnica azul e branca que usava pela manhã, mas com sua melhor túnica de noite — de seda preta, debruada de branco na extremidade da saia e das mangas. Suas pérolas, contra o fundo negro, pareciam especialmente brilhantes. Elas estavam também nas alvas e pequenas orelhas, e as mãos encontravam-se cobertas de anéis. Depois de tudo o que a dona da casa lhe contara a respeito de Calamy, ela sentira necessidade de todos esses preparativos, e estava feliz de que sua chegada inesperada acontecesse quando não houvesse mais ninguém na casa; desse modo teriam a oportunidade de se conhecer melhor. Seria mais fácil para ela fazer o que fosse certo, pois uma primeira impressão favorável é sempre muito importante.

Pelo que a sra. Aldwinkle dissera a respeito dele, a srta. Thriplow tinha certeza de já saber que tipo de homem era. Rico, bonito e muito galante! A sra. Aldwinkle se estendera, é claro, ampla e admiravelmente quanto à última qualidade. As damas mais requintadas o haviam perseguido; era bastante conhecido nas melhores e nas mais brilhantes rodas sociais. Mas não se tratava meramente de uma dessas mariposas, insistira a sra. Aldwinkle. Ao contrário, ele era inteligente, basicamente sério, interessado em artes e assim por diante. Mais do que isso, havia saído de Londres no auge de seu sucesso e viajara pelo mundo para enriquecer seus conhecimentos. Sim, Calamy era mesmo uma pessoa séria. A srta. Thriplow ouvira tudo isso com reservas; conhecia a fraqueza da sra. Aldwinkle de se fazer parecer íntima de grandes homens e seu hábito, quando estes estavam reconhecidamente em falta, de promover seus amigos comuns à categoria de celebridades. Abatendo os habituais setenta e cinco por cento de elogios, a srta. Thriplow imaginava um Calamy que era um dos Guardiões da Natureza, dotado, como o são em geral os Guardiões, daquele respeito e da simples reverência pelos mistérios da arte que fazem esses aristocratas autodidatas frequentarem os salões em que se pode encontrar intelectuais, convidarem poetas para jantares caríssimos, comprarem quadros cubistas e até tentarem, secretamente, escrever versos ou pintar suas próprias telas. Sim, sim, pensou a srta. Thriplow, conhecia muito bem o tipo. Foi por isso que se preparara daquela maneira — vestindo aquela obra-prima de elegância, aquelas pérolas, aqueles anéis. Por isso procurara ao mesmo tempo parecer extravagante, como as mulheres brilhantes, bem-nascidas e de olhar ambíguo à custa das quais, segundo a sra. Aldwinkle, ele conseguira seus maiores triunfos amorosos. Porque a srta. Thriplow não queria dever nenhum de seus sucessos com esse jovem — e ela gostava de ser bem-sucedida com todo mundo — ao fato de ser uma romancista de reputação muito boa. Queria, já que ele era um Guardião da Natureza com uma fraqueza fortuita por artistas, apresentar-se como uma Guardiã da Natureza cujo talento para escrever era igualmente fortuito e superficial. Queria mostrar a ele que estava à altura de todo aquele ambiente da alta sociedade, apesar de um dia ter sido pobre e mesmo uma governanta (e, conhecendo-a, a srta. Thriplow tinha certeza de que a sra. Aldwinkle não deixara de contar isso a ele). Ela iria recebê-lo em igualdade de condições, de Guardiã para Guardião. Depois disso, quando ele a tivesse apreciado por essas qualidades, poderiam falar de arte e ele teria a chance de admirá-la pelo seu estilo, assim como uma jovem brilhante de sua própria classe.

A primeira visão que teve dele confirmou sua certeza de que acertara em usar todas as joias e o traje vistoso. Porque o mordomo fez entrar na sala decididamente um jovem daqueles que, nas capas das revistas, tocam com seus lábios vermelhos os da mulher que escolheram. Não, isso era indelicado. Ele não era nem tão incrivelmente bonito nem tolo como eles costumam ser. Era apenas uma dessas criaturas muito atraentes, bem-educadas e incultas que às vezes são um refrigério num grupo de intelectuais. Moreno, olhos azuis, alto e empertigado. Perigosamente superior e dono da gloriosa segurança dos que nasceram ricos, numa posição forte e privilegiada; um pouco insolente, talvez, na certeza de sua boa aparência, na lembrança de seus sucessos amorosos. Mas de uma insolência preguiçosa; as codornas assadas caíam em sua boca; qualquer esforço era desnecessário. Seus longos cílios se juntavam numa arrogância sonolenta. À primeira vista ela soube tudo sobre aquele homem; ah, soube, sim.

Ele parou diante dela, olhando-a no rosto, sorrindo, com as sobrancelhas erguidas inquisitivamente, completamente à vontade. A srta. Thriplow o fitou de modo quase igualmente atrevido. Ela também sabia ser insolente quando queria.

— É o mr. Calamy — finalmente ela lhe informou.

Ele inclinou a cabeça.

— Meu nome é Mary Thriplow. Todos estão fora. Farei o possível para entretê-lo.

Ele se curvou novamente e apertou a mão que ela lhe estendia.

— Lilian Aldwinkle já me falou muito a seu respeito — disse ele.

Que ela tinha sido governanta?, imaginou a srta. Thriplow.

— Muitas outras pessoas também me falaram a seu respeito — continuou ele. — Além de seus livros, é claro.

— Ah, não falemos deles — disse ela, movendo a mão, como que afastando o assunto. — São irrelevantes, são só velhos livros que alguém escreveu. Irrelevantes porque foram escritos por uma pessoa que cessou de existir. Deixe que os mortos enterrem seus mortos. O único livro que conta é aquele que está sendo escrito. E, no momento em que é publicado e as pessoas o leem, esse também se torna irrelevante. Portanto, não há qualquer livro escrito por alguém sobre o qual valha a pena conversar. — A srta. Thriplow falava langorosamente, arrastando um pouco as palavras, sorrindo enquanto as pronunciava e fitando Calamy com os olhos semicerrados. — Falemos de coisas mais interessantes — concluiu.

— Do tempo — sugeriu ele.

— Por que não?

— Bem, é um assunto sobre o qual posso falar neste momento com grande interesse, eu diria mesmo com um certo calor. — Ele tirou do bolso um lenço de seda colorido e passou-o pelo rosto. — Essas estradas poeirentas da planície são como o inferno. Nunca vi nada igual. Confesso que às vezes, sob o sol ofuscante da Itália, chego a ansiar pelo cinza melancólico de Londres, o guarda-sol de fumaça, a neblina que esconde um edifício a poucos metros de distância e faz desaparecer de vista qualquer vestígio de mosquitos.

— Lembro-me de ter conhecido um poeta siciliano — disse a srta. Thriplow, inventando irrefletidamente esse sucessor de Teócrito — que disse a mesma coisa. Só que ele preferia Manchester. Bellissima Manchester! — Ela revirou os olhos, juntando as palmas das mãos. — Ele era um espécime da gloriosa coleção de animais estranhos que costuma frequentar a casa de lady Trunion. — A casa de lady Trunion era um desses salões em que os Guardiões e Guardiãs da Natureza podiam encontrar o que havia de mais cômico e estranho; em outras palavras, os artistas. Ao usar a palavra “coleção”, a srta. Thriplow se colocou, juntamente com Calamy, do lado dos Guardiões.

Mas o efeito que o nome talismânico causou em Calamy não foi o esperado.

— Essa assustadora senhora continua recebendo? — perguntou ele. — Você deve se lembrar de que eu estive fora por mais de um ano; não estou muito atualizado.

A srta. Thriplow alterou rapidamente a expressão do rosto e o tom da voz. Sorrindo com sabido desdém, disse:

— Mas ela não é nada diante de lady Giblet, não? Se quiser horrorizar-se verdadeiramente não deixe de frequentá-la. Sua casa é definitivamente um mauvais lieu. — Ela moveu a mão cheia de anéis de um lado para o outro, gesticulando como uma especialista em horrores.

Calamy não concordou inteiramente.

— Giblet talvez seja a mais vulgar, mas não a pior — disse ele num tom de voz e com uma expressão reveladora de quem sabia o que dizia, e que no fundo da alma não adorava esses prazeres sociais. — Depois de estar fora como eu estive por um ano ou mais, voltar à civilização e encontrar as mesmas velhas pessoas, fazendo as mesmas coisas idiotas, é surpreendente! Espera-se no mínimo que tudo esteja muito diferente. Não sei por quê; talvez porque eu mesmo esteja muito diferente. Mas tudo continua exatamente igual. Giblet, Trunion ou mesmo, sejamos francos, a nossa anfitriã, embora honestamente eu sinta profundo carinho por nossa pobre e querida Lilian. Não há a menor mudança. Oh, é muito mais do que surpreendente, é decididamente terrível!

Foi a essa altura da conversa que a srta. Thriplow percebeu estar cometendo um enorme engano, seguindo pelo caminho errado. Um segundo mais e ela teria consumado um terrível equívoco num julgamento social; teria cometido o que ela chamava, em seus momentos mais joviais, de “gafe”. A srta. Thriplow era muito sensível a respeito das suas gafes. A lembrança desses lapsos tinha um jeito de se agarrar firmemente a seu espírito, criando feridas que custavam a fechar. Cicatrizadas, as velhas marcas ainda doíam de vez em quando. De repente, sem razão nenhuma, no meio da noite ou da mais animada festa — assim, sem mais nem menos, à propos de bottes —, ela se lembrava e era dominada por um sentimento de autorreprovação e de vergonha retroativos. E para isso não existia remédio, nenhuma profilaxia espiritual. Tinha-se que fazer de tudo para inventar alternativas triunfalmente certas e diplomáticas para a gafe — imaginar-se, por exemplo, sussurrando ao ouvido da irmã Fanny uma frase açucarada em vez da outra amarga e ofensiva; ver-se deixando com toda a dignidade o estúdio de Bardolph e saindo para a ruazinha de terra, passando pela casa com o canário pendurado na janela (um toque primoroso, o canário) e seguindo em frente, para longe — quando, na verdade (oh, Senhor, que tola fora e como se sentira miserável depois daquilo!), deveria ter ficado. Tinha-se que fazer o que fosse possível; só não era possível se convencer de que a gafe não acontecera. A imaginação lutava para aniquilar a odiosa lembrança, mas não tinha forças para conseguir uma vitória decisiva.

E agora, se não tivesse sido cuidadosa, teria cometido outra gafe para ocupar e supurar sua memória. Como pude ser tão estúpida, pensou ela, como isso foi possível? Porque era óbvio que a atitude extravagante, o disfarce elegante eram totalmente impróprios para a ocasião. Calamy deixara bem claro que não apreciava esse tipo de coisa; talvez o fizesse antes, mas não agora. Se continuasse a agir dessa maneira, seria considerada meramente frívola, mundana e esnobe; e seriam precisos muito tempo e enormes esforços para obliterar essa desastrosa primeira impressão.

Sub-repticiamente a srta. Thriplow fez escorregar o anel de opala do dedo mínimo da mão direita, segurou-o por um momento e escondeu-o no seu lado esquerdo; então, quando Calamy não estava olhando, empurrou-o para o vão entre a almofada do assento e o braço estofado de sua poltrona.

— Terrível — repetiu ela. — Sim, é exatamente a palavra. Essas coisas são terríveis. O tamanho dos lacaios! — Ela ergueu a mão acima da cabeça. — O diâmetro dos morangos! — Abriu as duas mãos à sua frente (ainda muito cintilantes, notou arrependida, com todos aqueles anéis), a trinta centímetros uma da outra. — A futilidade dos caçadores de leões! E o rugido dos leões! — Era desnecessário fazer qualquer coisa com as mãos agora; deixou-as cair novamente no colo e aproveitou a oportunidade para se livrar do anel em forma de escaravelho e dos brilhantes. Assim como o mágico faz movimentos e ruídos para distrair a atenção da plateia ao realizar seus truques, ela se inclinou para a frente e começou a falar com rapidez e convicção. — Agora, falando sério — continuou, pondo seriedade na voz e fazendo desaparecer o sorriso do rosto, que se tornou maravilhosamente redondo, grave e ingênuo —, como rugem aqueles leões! Acho que foi uma tremenda ingenuidade de minha parte, mas sempre imaginei que as pessoas famosas fossem mais interessantes do que as outras. Elas não são! — Deixou-se cair para trás, quase dramaticamente, na poltrona. No processo, uma das mãos pareceu ficar acidentalmente presa às suas costas. Ela a desenganchou, mas não antes de o escaravelho e os brilhantes terem escorregado para o esconderijo. Não restava mais nenhum agora, a não ser uma esmeralda, mas ela podia ficar; era bem discreta e austera. No entanto, ela jamais se livraria das pérolas sem que Calamy percebesse. Nunca, por mais que os homens fossem inconcebivelmente tão pouco observadores. Os anéis eram fáceis de ser tirados, mas o colar... E nem sequer eram pérolas verdadeiras.

Calamy, enquanto isso, estava rindo.

— Lembro-me de já ter feito essa mesma descoberta — disse. — A princípio chega a ser dolorosa. De certa forma é como ter se deixado envolver por uma farsa e participado dela. Você se lembra do que disse Beethoven, que ele raramente encontrava no desempenho dos mais notáveis virtuoses a qualidade que supunha ter o direito de esperar. Tem-se o direito de esperar que as pessoas famosas vivam de acordo com sua reputação, elas deveriam ser interessantes.

A srta. Thriplow inclinou-se outra vez à frente, assentindo enfaticamente, numa animação quase infantil. — Conheço muitas pessoas insignificantes e obscuras — disse ela — que de alguma forma são muito mais interessantes e genuínas que as famosas. É a autenticidade que conta, não?

Calamy concordou.

— Acho difícil ser autêntica — continuou a srta. Thriplow — quando se é uma figura pública ou muito conhecida. — Nesse momento ela se tornou realmente íntima. — Chego a sentir medo quando vejo meu nome nos jornais, os fotógrafos insistindo em fotografar-me, ou sou convidada para jantares. Temo sair da minha obscuridade. A autenticidade somente floresce à sombra. Como o aipo. — Quão insignificante e obscura ela era! Como, por assim dizer, era humilde e honesta! Aqueles leões rugidores da casa de lady Trunion e seus desagradáveis caçadores... não teriam chance de passar pelo buraco de uma agulha.

— Estou encantado por ouvi-la dizer tudo isso — disse Calamy. — Se todos os escritores pensassem como você...

A srta. Thriplow meneou a cabeça, declinando modestamente do cumprimento implícito.

— Sou como Jeová — disse ela. — Sou o que sou. Só isso. Por que me faria passar por outra pessoa? Mas tenho que confessar — acrescentou com uma sinceridade quase audaciosa —, fiquei tão intimidada pela sua reputação que me senti inclinada a fingir ser mais mondaine do que realmente sou. Imaginei-o um homem tremendamente requintado e convencido. É um grande alívio descobrir que me enganei.

— Convencido? — repetiu Calamy com um esgar.

— Por tudo o que ouvi da sra. Aldwinkle, você me parecia estonteantemente mundano. — Enquanto ela dizia essas palavras, sentia-se, de modo correspondente, tornar-se mais obscura e insignificante.

Calamy riu.

— Talvez um dia eu tenha sido um desses imbecis. Mas agora, bem, espero que tudo esteja terminado.

— Imaginei-o — continuou a srta. Thriplow, esforçando-se, apesar de sua insignificância, para ser brilhante —, imaginei-o como uma daquelas pessoas da esquete, “caminhando pelo parque com uma amiga”, você sabe: uma amiga que vem a ser no mínimo uma duquesa ou uma escritora famosa. Pode imaginar como fiquei nervosa? — Ela mergulhou nas profundezas da poltrona. Pobrezinha! Mas as pérolas, que não tinham vindo do mar, ainda lhe causavam constrangimento.