Capítulo 2
Ao retornar, a sra. Aldwinkle os encontrou no terraço superior, desfrutando a vista. A seus pés, a cidade de Vezza já estava eclipsada pela sombra da grande montanha escarpada que se projetava sobre a planície no extremo oeste dos dois vales. Mais além, a planície ainda brilhava. Estendia-se abaixo deles a perder de vista, como um mapa de si mesma — as estradas desenhadas em branco, os rios em filetes prateados, os pinheiros em verde-escuro, as campinas e as terras cultivadas formando um xadrez marrom e esmeralda, os trilhos do trem numa linha marrom-escura que cortava toda a extensão. E adiante da última franja de pinheiros e areia, de um azul-escuro e opaco, estava o mar. Na direção dessa vasta paisagem emoldurada pelas duas montanhas — a do leste ainda brilhando em tons de rosa e a do oeste já profundamente escura —, outra escadaria conduzia a um terraço embaixo e seguia descendo, por entre as colunas de ciprestes, até o portão ornado com esculturas, a meio caminho do sopé da montanha.
Eles estavam lá em silêncio, debruçados sobre a balaustrada. Desde que resolvera se livrar da Guardiã, pensou a srta. Thriplow, as coisas estavam indo muito bem entre os dois. Podia ver que ele apreciava sua combinação de ingenuidade moral com sofisticação mental, de brilhantismo com autenticidade. Não era capaz de entender por que lhe ocorrera fingir ser qualquer outra coisa além de simples e natural. Afinal, isso é o que ela realmente era — ou pelo menos determinara que devia ser.
Do pátio de entrada na ala oeste do palácio, chegaram até eles os sons de uma buzina e de vozes.
— Aí estão eles — disse a srta. Thriplow.
— Preferia que não estivessem — protestou ele com um suspiro. Erguendo-se, deu as costas para a paisagem e voltou-se para a casa. — É como atirar uma pedra nas águas de um lago; refiro-me a todo esse barulho.
A srta. Thriplow incluiu-se mentalmente entre os encantos da tranquilidade vespertina e tomou o comentário como um cumprimento.
— Quando se é sensível, a todo instante é preciso suportar o estilhaçar dos cristais.
Pelos imensos salões ecoantes do palácio, podia-se ouvir o som de uma voz que se aproximava.
— Calamy — alguém chamava —, Calamy! — Cada sílaba do nome era pronunciada numa modulação que ia do grave ao mais agudo, sem nenhuma musicalidade, mas numa sucessão de tons incertos e não encadeados. — Calamy! — Era um chamado tão vago e atonal quanto um sopro articulado. Ouviram-se passos apressados e um farfalhar de tecidos. No alto dos degraus do terraço, na enorme e imponente entrada, surgiu a sra. Aldwinkle.
— Aí está você — disse ela, eufórica. Calamy se adiantou para cumprimentá-la.
A sra. Aldwinkle era uma dessas mulheres senhoriais, grandes e bonitas, que parecem ter sido construídas com partes de duas pessoas diferentes: que ombros largos elas possuem, que formas jônicas; e, projetando-se dentre os ombros, um pescoço tão fino, uma cabeça tão pequena e compacta, quase infantil! Sua melhor fase é entre os vinte e oito e, digamos, trinta e cinco anos, quando o corpo está em plena maturidade e o pescoço, a cabeça pequena, as feições intocadas parecem pertencer a outra jovem. A beleza dessas mulheres se torna muito mais notável, muito mais atraente, devido à incongruência de seus componentes.
— Aos trinta e três anos — costumava dizer o mr. Cardan —, Lilian Aldwinkle atraía de uma só vez todos os bígamos. Era como se da cintura para cima tivesse dezoito anos e, para baixo, fosse a viúva Dido. Tinha-se a impressão de estar com duas mulheres ao mesmo tempo. Era extremamente estimulante.
Ele falava, infelizmente, no pretérito; porque a sra. Aldwinkle não tinha mais trinta e três anos nem doze nem quinze nem algo em torno disso. As formas jônicas ainda estavam presentes, mas não tão evidentes. É verdade que, vista por trás, a cabeça pequena parecia pertencer a uma criança, apoiada sobre os ombros largos. Mas o rosto, que já fora o membro mais jovem de toda a parceria, ultrapassara o corpo na corrida contra o tempo e estava mais destruído e gasto do que deveria. Os olhos eram o atributo mais jovial. Grandes, azuis e bastante expressivos, destacavam-se no rosto pelo brilho intenso. Mas ao redor deles haviam se formado bolsas e pés de galinha. A testa larga era cruzada por algumas rugas horizontais. Dois sulcos profundos desciam ao lado das narinas, passavam pela boca e aí eram parcialmente interrompidos por outro sistema de vincos, que acompanhava o movimento dos lábios até a extremidade inferior do maxilar, formando uma linha nítida de demarcação entre as faces descaídas e o queixo forte e proeminente. A boca era grande, os lábios, de contornos vagos, tinham sua indefinição acentuada pelo batom vermelho que a sra. Aldwinkle aplicava sem muito cuidado. Porque a sra. Aldwinkle era uma impressionista; eram o efeito a distância, o esplendor teatral que a interessavam. Ela não tinha a paciência, nem mesmo diante da penteadeira, para preocupar-se com detalhes pré-rafaelitas.
Ela permaneceu por um momento no alto da escada, uma figura imponente e majestosa. O vestido longo e amplo, de linho verde-pálido, pendia em pregas largas ao seu redor. Um véu esverdeado, amarrado em volta do amplo chapéu de palha, flutuava sobre os ombros. Ela trazia uma grande bolsa pendurada no braço, e na cintura, balançando na extremidade de finas correntes, todo um tesouro de objetos de ouro e prata.
— Aí está você! — Ela sorria enquanto Calamy se aproximava, sorriso esse que outrora já fora de uma doçura penetrante, de um encanto sedutor. Infelizmente, seu interesse agora era principalmente histórico. Com um gesto teatral, ao mesmo tempo exagerado e inexpressivo, estendeu as duas mãos e desceu rapidamente os degraus ao encontro dele. Os movimentos da sra. Aldwinkle eram tão desarmônicos e incertos quanto sua voz. Ela se movia com rigidez e de maneira desajeitada. A majestade do repouso se dissipara.
— Meu querido Calamy! — gritou ela, abraçando-o. — Deixe-me beijar você. Faz um século desde a última vez que o vi. — Em seguida olhou desconfiada para a srta. Thriplow. — Quanto tempo faz que ele está aqui? — perguntou.
— Chegou antes da hora do chá — disse a srta. Thriplow.
— Antes do chá? — A sra. Aldwinkle repetiu estridentemente, como se tivesse sido insultada. — Mas por que não me avisou a tempo quando chegaria? — continuou, dirigindo-se a Calamy. A ideia de que ele chegara enquanto ela não estava e, acima de tudo, que havia passado todo o tempo conversando com Mary Thriplow a aborrecia. A sra. Aldwinkle era constantemente perseguida pelo medo de estar perdendo alguma coisa. Havia muitos anos que o universo parecia conspirar para mantê-la afastada dos lugares em que as coisas excitantes aconteciam e as palavras mais maravilhosas eram ditas. Ela havia relutado muito naquela manhã em deixar a srta. Thriplow sozinha no palácio; a sra. Aldwinkle não queria que seus hóspedes tivessem existências independentes, longe de suas vistas. Mas se ela soubesse, se tivesse a mais leve desconfiança de que Calamy iria chegar enquanto estivesse fora, que passaria horas em um tête-à-tête com Mary Thriplow, ora, jamais teria descido para a praia. Ficaria em casa, por mais tentador que fosse o projeto de um banho.
— Pelo que vejo, você se preparou muito para a ocasião — continuou a sra. Aldwinkle, olhando as pérolas da srta. Thriplow e a túnica de seda preta debruada de branco.
A srta. Thriplow desviou os olhos para a paisagem e fingiu não ter ouvido. Não tinha vontade de entabular uma conversa sobre esse assunto em particular.
— E agora — a sra. Aldwinkle voltou-se para o novo hóspede — preciso mostrar-lhe a casa, a paisagem e tudo o mais.
— A srta. Thriplow já fez a gentileza de mostrar-me — disse Calamy.
Diante dessa informação, a sra. Aldwinkle ficou ainda mais aborrecida.
— Mas ela não deve ter lhe mostrado tudo — disse —, porque não sabe o que há para mostrar. Além disso, Mary não conhece a história do palácio, ou dos Cybo Malaspina, ou dos artistas que trabalharam no palácio, ou... — ela gesticulou com a mão, indicando que, em suma, Mary Thriplow não sabia absolutamente nada e era totalmente incapaz de mostrar qualquer canto da casa ou de seus jardins.
— Seja como for — Calamy fazia o possível para dizer a coisa certa —, já vi o suficiente para achar o lugar adorável.
Mas a sra. Aldwinkle não se satisfez com essa admiração simples e espontânea. Tinha absoluta certeza de que ele não vira realmente a beleza da paisagem, não a entendera, não soubera analisar o profundo encanto de seus componentes. Começou então a interpretar o espetáculo.
— Os ciprestes criam um maravilhoso contraste com as oliveiras — explicava, mostrando a paisagem com a ponta da sombrinha, como se estivesse dando uma aula com projeção de slides coloridos.
Ela entendia daquilo, é claro; ela estava inteiramente qualificada para apreciar tudo nos mínimos detalhes. Porque a vista agora era sua propriedade. E, por essa razão, a mais bela do mundo; ao mesmo tempo, somente ela tinha o direito de permitir que alguém soubesse desse fato.
Todos nós ficamos propensos a valorizar excessivamente o que por acaso nos pertence. As galerias de arte provincianas estão sempre repletas de Rafaéis e Giorgiones. A metrópole mais brilhante da cristandade, de acordo com seus habitantes, é Dublin. O meu gramofone e o meu Ford são melhores do que os seus. E como são aborrecidos e patéticos aqueles turistas pobres, porém cultos, que nos mostram orgulhosos sua coleção de cartões-postais, como se eles próprios possuíssem as obras de arte neles representadas.
Com o palácio, a sra. Aldwinkle adquirira vastos domínios não mencionados em contrato. Comprara, para começar, os Cybo Malaspina e toda a sua história. Essa família, cuja única pretensão à fama foi ter produzido, pouco antes de sua extinção, aquele príncipe de Massa Carrara a quem a Velha, em Cândido — quando ainda era a jovem e encantadora filha de um papa —, estivera prometida em casamento; a família se tornara agora, para a sra. Aldwinkle, tão esplêndida quanto os Gonzaga, os Este, os Médici ou os Visconti. Até os obscuros duques de Modena, arrendatários do palácio (exceto durante o breve interlúdio napoleônico) entre a extinção dos Cybo Malaspina e a fundação do reino da Itália, até eles lucraram muito por estarem ligados ao lugar; para a sra. Aldwinkle, passaram a ser patronos das letras e pais de seu povo. E a irmã de Napoleão, Elisa Baciocchi, princesa de Lucca, que passara mais de um verão naquelas montanhas, veio a ser creditada pela atual proprietária com um ilimitado entusiasmo pelas artes e, o que era mais esplêndido aos olhos da sra. Aldwinkle, um ilimitado entusiasmo pelo amor. Em Elisa Bonaparte-Baciocchi, a sra. Aldwinkle encontrara sua alma gêmea, a quem somente ela entendia.
O mesmo se dava com a paisagem. Pertencia-lhe até o mais remoto horizonte, e ninguém mais estava capacitado a dar-lhe o devido valor. E como ela apreciava os italianos! Desde que comprara sua casa na Itália tornara-se a única estrangeira a conhecê-la intimamente. Toda a península e tudo o que nela estava contido eram propriedade sua e seu segredo. Comprara as artes, a música, a linguagem melódica, a literatura, os vinhos e a comida, a beleza de suas mulheres e a virilidade de seus fascistas. Adquirira a paixão italiana: cuore, amore e dolore eram seus. Também não se esquecera de comprar o clima — o melhor da Europa —; a fauna — com que orgulho lera nos jornais que um lobo devorara um esportista de Pistoia a vinte quilômetros de sua casa —; a flora — em especial as anêmonas vermelhas e as tulipas selvagens — os vulcões —; ainda maravilhosamente ativos; os terremotos...
— E agora — disse a sra. Aldwinkle, depois de decantar a paisagem —, agora precisamos ver a casa.
Ela deu as costas para a vista.
— Esta parte do palácio — disse, continuando sua aula — data de cerca de 1630. — Ela apontou para cima com a sombrinha; os slides coloridos eram agora sobre arquitetura. — Um exemplo muito especial do antigo barroco. O que resta do velho palácio, com a torre, constitui a ala leste da casa atual...
A srta. Thriplow, que já ouvira tudo isso antes, fazia-o novamente, contudo, com a expressão de arrebatado interesse que pode ser encontrada no rosto das crianças durante as palestras do Instituto Real; em parte para compensar, aos olhos da sra. Aldwinkle, a ofensa por ter estado em casa quando Calamy chegara, e também para impressionar o próprio Calamy com sua capacidade de estar franca, total e acriticamente absorvida nas pequenas questões do momento.
— Agora vou mostrar-lhe o interior do palácio — disse a sra. Aldwinkle, subindo os degraus do terraço para a casa. Seus tesouros tilintavam na ponta das correntes. Obedientes, a srta. Thriplow e Calamy a seguiram.
— A maior parte dos quadros — proclamou a sra. Aldwinkle — são de Pasquale da Montecatini. Um grande pintor, terrivelmente menosprezado — concluiu, meneando a cabeça.
A srta. Thriplow ficou de certa maneira embaraçada quando, diante desse comentário, seu companheiro sorriu-lhe de modo visivelmente zombeteiro. Se devolveria o sorriso de forma confidencial e irônica ou se o ignoraria e preservaria sua expressão do Instituto Real, essa era a questão. Afinal decidiu ignorar a cumplicidade tácita.
Na entrada do grande salão eles foram recebidos por uma jovem vestida com uma túnica de linho rosa-pálido, de rosto redondo e infantil (uma ingenuidade diferente daquela da srta. Thriplow), que olhava por entre uma fresta retangular de seu liso cabelo cor de cobre cortado em forma de cuia. Um par de olhos grandes e azuis fitava por trás da franja metálica. O nariz era pequeno e levemente arrebitado. O lábio superior, estreito, dava-lhe uma aparência ao mesmo tempo patética e feliz, como a de uma criança. Era Irene, a sobrinha da sra. Aldwinkle.
Calamy e ela apertaram-se as mãos;
— Acho que deveria dizer — adiantou-se ele — que você cresceu bastante desde a última vez que a vi. Mas a verdade é que não acho que tenha crescido.
— Nada posso fazer quanto a isso — respondeu ela. — Mas interiormente... — Interiormente Irene era mais velha que as pedras sobre as quais pisava. Não fora por nada que passara os cinco anos mais impressionantes da sua vida sob a guarda da tia Lilian.
A sra. Aldwinkle interrompeu impacientemente o diálogo.
— Quero que você veja este teto — disse a Calamy. Como galinhas bebendo água eles ergueram a cabeça para o Rapto de Europa. A sra. Aldwinkle baixou o olhar. — E este trabalho rústico com um grupo de divindades marinhas. — Num par de grandes nichos emoldurados com conchas e pedras esponjosas, dois grupos de peixes se contorciam furiosamente. — Que estupendo seicento! — disse ela.
Irene, enquanto isso, sentindo-se dispensada pela longa convivência de ter que prestar muita atenção às divindades marinhas, havia notado que as capas de cretone das poltronas estavam amarrotadas. Sendo naturalmente ordeira — e desde que fora morar com tia Lilian tornara-se duplamente ordeira —, ela caminhou pela sala na ponta dos pés para alisar as capas. Curvando-se sobre a poltrona mais próxima, segurou o tecido solto na parte da frente da almofada e puxou-o com força para que se soltasse completamente a fim de, em seguida, poder alisá-lo como deveria. O pano soltou-se como a vela de um navio subitamente enfunada pelo vento e junto com ele veio — praticamente do nada, como se Irene tivesse feito um passe de mágica — uma chuva cintilante de joias. Elas se espalharam pelo chão, rolando pela cerâmica. O barulho arrancou a srta. Thriplow do arrebatamento quase infantil com que contemplava os nichos de pedras esponjosas. Ela se virou bem a tempo de ver o anel em forma de escaravelho rolar em sua direção, com o movimento vacilante de um aro excêntrico. Perto de seus pés ele perdeu a velocidade, oscilou e caiu de lado. A srta. Thriplow abaixou-se imediatamente para pegá-lo.
— Oh, são apenas meus anéis — disse aereamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo que seus anéis saltassem da poltrona quando Irene fosse esticar as capas. — Apenas isso — acrescentou, para tranquilizar Irene, que ficara imóvel, como que petrificada pela surpresa, olhando as joias espalhadas.
A sra. Aldwinkle, por sorte, estava totalmente absorto em sua explanação a Calamy sobre Pasquale da Montecatini.