Capítulo 5

A silhueta negra que no terraço havia simbolizado apenas superficialmente o mr. Cardan transformou-se, quando ele entrou no salão iluminado, no homem completo e genial. O rosto vermelho, agora sob a luz, reluzia num sorriso.

— Conheço Lilian — disse ele. — Ela ficará sentada lá fora, sob as estrelas, sentindo-se romântica, embora enregelada, por horas a fio. Nada se pode fazer, asseguro-lhes. Amanhã ela estará com reumatismo. Resta-nos apenas aceitar e tentar suportar o sofrimento dela pacientemente. — Ele se sentou na poltrona, diante da imensa lareira apagada. — Aqui está melhor — disse num suspiro. Calamy e a srta. Thriplow seguiram-lhe o exemplo.

— Não acham que seria melhor levar um xale para ela? — sugeriu a srta. Thriplow depois de algum tempo.

— Isso só a deixaria irritada — respondeu o mr. Cardan. — Se Lilian disse que está bastante quente para ficar lá fora, então está quente. Nós já provamos ser bastante tolos por ter preferido entrar; se levarmos o xale, correremos o risco de nos tornar ainda piores que isso; seremos rudes, impertinentes e estaremos querendo desmenti-la. “Querida Lilian”, imagine-se dizendo, “não está quente, e, se você disser o contrário, estará dizendo besteira. Por isso eu lhe trouxe um xale.” Não, não, srta. Mary! Certamente também sabe que não dará certo.

A srta. Thriplow concordou.

— Muito diplomático! — disse. — O senhor está absolutamente certo. Diante do senhor, somos todos inocentes crianças... só que um pouco crescidas — acrescentou ela de forma irrelevante, sempre com seu lado infantil, estendendo a mão a poucos centímetros do chão. E do mesmo modo infantil sorriu para ele.

um pouco... — repetiu o mr. Cardan, ironizando. Erguendo a mão direita ao nível dos olhos, ele mediu, entre o polegar e o indicador, um espaço de talvez meia polegada. Com o olho direito ele a espreitava por entre os dedos. — Conheço algumas crianças que, comparadas à srta. Mary Thriplow, seriam... — Ele ergueu as mãos e depois bateu-as sobre as coxas, deixando a frase terminar por si mesma no silêncio fecundo.

A srta. Thriplow ressentiu essa negação de sua simplicidade infantil. Assim é o Reino dos Céus. Mas as circunstâncias não lhe permitiam insistir muito categoricamente sobre esse aspecto na presença do mr. Cardan. A história da amizade entre eles não era das mais felizes. Na primeira vez em que se encontraram o mr. Cardan reduziu-a, com um único olhar (erradamente, insistia a srta. Thriplow), a uma espécie de confidente cínica e diabólica, e tratou-a como se fosse uma moça inteiramente “moderna” e sem preconceitos, uma dessas que não só fazem o que gostam (o que não é nada, porque as mais recatadas e “antiquadas” podem e o fazem), mas também falam aberta e arejadamente sobre suas diversões. Inspirada pelo desejo de agradar e deixando-se levar pela facilidade de se adaptar à atmosfera reinante, a srta. Thriplow assumira despreocupadamente o papel que lhe estava destinado. Como fora brilhante, adorável e maliciosamente atrevida, até que, por fim, piscando com benevolência o tempo todo, o mr. Cardan conduzira a conversa por caminhos tão tortuosos e ultrajantes que a srta. Thriplow começou a temer que ela se tivesse colocado numa posição falsa. Com um homem como ele, só Deus sabe o que poderá acontecer em seguida. De maneira quase imperceptível, a srta. Thriplow transformou-se de uma salamandra a brincar entre as labaredas em uma prímula florida na margem de um rio. Daí em diante, sempre que conversava com o mr. Cardan, a jovem e séria novelista — culta e inteligente, mas nem um pouco convencida — entrava em cena. Quanto a ele, aceitou a novelista com o mesmo tato que o distinguia em todas as negociações sociais, sem demonstrar o menor assombro diante da mudança. No máximo, permitia-se de vez em quando fixá-la com o olho que piscava e sorrir de maneira significativa. Nessas ocasiões a srta. Thriplow fingia não perceber. Era o melhor que podia fazer em tais circunstâncias.

— As pessoas parecem imaginar — disse a srta. Thriplow, com um suspiro de mártir — que ser culta significa ser sofisticada. Além disso, não conseguem dar crédito a alguém por ter bom coração, tanto quanto por uma boa cabeça.

E ela tinha coração tão bom! Qualquer um pode ser brilhante, costumava dizer; mas o que importa não é apenas ser bom e generoso, e sim ter sentimentos puros. Ela estava satisfeita pelo incidente com a folha de louro. Aquilo era ter bons sentimentos.

— Parece que as pessoas não entendem absolutamente nada do que escrevo — continuou a srta. Thriplow. — Gostam dos meus livros porque são inteligentes e inusitados, um tanto cínicos e paradoxais, elegantemente brutais. Não percebem como tudo isso é sério. Não enxergam a tragédia e a ternura que há por trás. Vejam — explicou ela —, estou tentando fazer algo novo: uma composição química de todas as categorias. Tento combinar leveza com tragédia, amabilidade, graça, fantasia, realismo, ironia e sentimento. Para as pessoas isso passa como mera diversão, nada mais. — Ela ergueu as mãos, desanimada.

— Não se pode esperar outra coisa — disse o mr. Cardan, confortando-a. — Qualquer um que tenha alguma coisa para dizer será sempre incompreendido. O público entende somente aquilo com que está perfeitamente familiarizado. Qualquer coisa nova o desorientará. E, depois, pense nos mal-entendidos, até entre pessoas inteligentes que já se conhecem. Você já se correspondeu com um amor distante? — A srta. Thriplow concordou, suspirando; profissionalmente ela estava familiarizada com todas as experiências penosas. — Então deve saber como é fácil que seu correspondente tome a expressão de um de seus estados passageiros, esquecidos muito antes de a carta chegar ao destino, como sua condição espiritual permanente. E você nunca se sentiu chocada ao receber em resposta uma carta congratulando-a por seu júbilo, quando, de fato, está imersa em melancolia? Ou não se espantou, ao descer para uma refeição matinal, de encontrar ao lado do seu prato dezesseis páginas de simpatia e consolo? E já teve a má sorte de ser amada por alguém que não ama? Então deve saber muito bem como as expressões de afeição, escritas com lágrimas nos olhos e do fundo do coração, parecem não somente tolas e irritantes, mas, o que é pior, de muito mau gosto. Decididamente vulgares, como aquelas deploráveis cartas lidas nas audiências de divórcio. E, no entanto, são exatamente as mesmas expressões que você costumava usar quando escrevia à pessoa que amava. Da mesma maneira, o leitor que não está sintonizado com o ânimo prevalecente do autor fica mortalmente aborrecido diante de coisas que foram escritas com o maior entusiasmo. Ou então, como o correspondente distante, ele pode agarrar-se a algo que para você não é tão essencial e interpretá-lo como o centro e o âmago de todo o livro. E você, como acabou de admitir, torna as coisas ainda mais difíceis para os seus leitores. Escreve tragédias sentimentais em tom de sátira, e eles só enxergam a sátira. Não é de esperar que o mal-entendido aconteça?

— Há um pouco disso, é claro — disse a srta. Thriplow. Mas não tudo, acrescentou para si mesma.

— Depois deve se lembrar — continuou o mr. Cardan — de que a maioria dos leitores não lê realmente. Quando você pensa que as páginas que lhe custaram uma semana de trabalho agoniado e ininterrupto são lidas casualmente, apenas folheadas, para ser mais exato, em poucos minutos, não deve se surpreender de que de vez em quando surjam mal-entendidos entre o leitor e o autor. Hoje em dia, todos nós lemos demais para podermos ler bem. Lemos apenas com os olhos, não com a imaginação; não nos preocupamos em reconverter a palavra impressa em imagem viva. E fazemos isso, posso dizer, por pura autodefesa. Embora leiamos um enorme número de palavras, novecentos e noventa em cada mil não são sequer dignas de serem lidas, a não ser superficialmente, num passar de olhos. A leitura superficial de coisas sem sentido cria o hábito de sermos descuidados e negligentes com tudo o que lemos, mesmo que sejam bons livros. Você pode sofrer terrivelmente para escrevê-los, minha querida srta. Mary; mas, de cada cem de seus leitores, quantos acha que sentiram o mesmo sofrimento ao lerem o que escreveu? E quando eu digo ler — acrescentou o mr. Cardan — quero dizer ler realmente; quantos, eu repito?

— Quem poderia saber? — disse a srta. Thriplow. E mesmo que eles lessem da forma adequada, pensava ela, seriam realmente capazes de desenterrar aquele Coração? Essa era a questão vital.

— É essa mania de se manter atualizado — continuou o mr. Cardan — que mata a arte da leitura. A maioria das pessoas que conheço lê de três a quatro jornais diariamente, folheia meia dúzia de semanários entre o sábado e a segunda-feira e dúzias de revistas por mês. O resto do tempo, como a Bíblia colocaria com justificável vigor, elas se prostituem na busca de mais ficção, mais peças, versos e biografias. Não há tempo para nada além de ler superficialmente, sem compreender. Se você ainda complica, escrevendo tragédias em tom de farsa, só pode esperar confusão. E a sina dos leitores, consolidada por muitas gerações, é muito diferente do destino vislumbrado por seus autores. As viagens de Gulliver, com um mínimo de depuração, tornou-se um livro para crianças; a cada Natal é lançada uma nova edição ilustrada. É esse o resultado de se dizerem coisas profundas sobre a humanidade em forma de conto de fadas. As publicações da Liga da Pureza figuram invariavelmente sob o título “Curiosidades” nos catálogos das livrarias. A parte teológica do Paraíso perdido, que para o próprio Milton era seu aspecto fundamental e essencial, hoje é tão ridícula que acabamos por ignorá-la completamente. Quando se fala em Milton, o que nos vem à cabeça? Um grande poeta religioso? Não, Milton significa para nós uma coletânea de passagens isoladas, repletas de luminosidade, cor e ensurdecedora harmonia, que pairam como estrelas musicais mergulhadas no nada. Algumas vezes as obras-primas adultas de uma geração tornam-se leituras escolares da geração seguinte. Alguém com mais de dezesseis anos lê hoje em dia os poemas de sir Walter Scott? Ou suas novelas? Quantos livros piedosos e moralistas sobrevivem apenas por serem bem escritos! E como nosso interesse meramente pela qualidade estética desses livros teria escandalizado seus autores! Não, ao final das contas, são os leitores que fazem de um livro o que ele essencialmente é. O autor propõe, os leitores dispõem. É inevitável, srta. Mary. Você deve se reconciliar com seu destino.

— Suponho que deva — disse a srta. Thriplow.

Calamy rompeu seu silêncio pela primeira vez desde que tinham entrado na sala.

— Não sei por que você se queixa de ser incompreendida — disse, sorrindo. — Sempre pensei que fosse muito mais desagradável ser compreendido. Você pode se aborrecer com os imbecis que não conseguem entender o que lhe parece óbvio; sua vaidade é ferida pela maneira como a interpretam, eles a tornam tão vulgar quanto eles mesmos; ou a fazem sentir que fracassou como artista, pelo fato de não ter conseguido ser transparente e compreensível. Mas o que é tudo isso comparado aos horrores de ser compreendido? Você se expõe, deixa-se conhecer, fica à mercê de criaturas a cuja guarda confiou sua alma. Isso é aterrorizante! Se eu fosse você — continuou ele —, congratularia a mim mesmo. Tem um público que gosta dos seus livros, mas pelas razões erradas. Enquanto isso você está a salvo, está fora de alcance, dona de si mesma e intacta.

— Talvez tenha razão — disse a srta. Thriplow. Calamy a compreendia, refletiu, ou pelo menos a compreendia em parte; é verdade que sua parte irreal, artificial, mas ainda assim tinha que admitir que era uma parte. E certamente não era agradável.