Capítulo 6

Dilacerar-se entre duas preferências distintas é o destino doloroso de quase todo ser humano. O diabo puxa de um lado, o padeiro do outro; puxa a carne, puxa o espírito; ora o amor, ora o dever; a razão ou o bendito preconceito. O conflito, em suas variadas formas, é o tema de todo drama. Mesmo que tenhamos aprendido a deplorar o espetáculo de uma tourada, uma execução ou uma luta de gladiadores, ainda assim sentimos com prazer as contorções dos que sofrem uma angústia espiritual. Algum dia qualquer no futuro, quando a sociedade estiver racionalmente organizada de modo que cada indivíduo ocupe uma posição e trabalhe naquilo em que realmente é capaz, quando a educação tiver cessado de instigar a mente dos jovens com preconceitos fantásticos em vez de verdades, quando a glândula endócrina aprender a funcionar em perfeita harmonia e as doenças forem suprimidas, toda a nossa literatura sobre conflitos e infelicidades nos parecerá estranhamente incompreensível; e nosso gosto pelo espetáculo da tortura mental será visto como uma perversão obscena, da qual os homens decentes se envergonharão. A alegria tomará o lugar do sofrimento como tema central da arte; talvez a arte deixe de existir durante o processo. Hoje se diz que um povo feliz não tem história; podemos acrescentar que indivíduos felizes não têm literatura. O autor despreza num só parágrafo vinte anos de felicidade do herói e se estende por vinte capítulos sobre uma única semana de sofrimento e conflito espiritual. Se o sofrimento cessa, não há mais o que escrever. Talvez tudo isso melhore.

O conflito que nas últimas semanas se instalara no espírito de Irene, embora não fosse tão sério quanto as batalhas interiores que têm enlouquecido os bravos em busca de salvar sua integridade, era para ela muito doloroso. Colocada de forma mais concreta, a questão se resumia nisto: pintar e escrever ou confeccionar sua própria roupa de baixo.

Mas para tia Lilian esse conflito jamais poderia ser sério: na verdade era bastante provável que não devesse sequer existir. Porque, se não fosse por tia Lilian, a Mulher Natural que existia em Irene teria permanecido a incontestável camponesa, e seus dias teriam se passado na mais plácida satisfação, em meio ao complexo rendilhado de suas roupas de baixo. Entretanto, tia Lilian estava do lado da Mulher Antinatural e fora ela quem praticamente dera vida à escritora e pintora, que inventara os grandes talentos de Irene e os contrapusera aos seus dotes domésticos.

O entusiasmo da sra. Aldwinkle pelas artes era tal que, para ela, todos deveriam praticar alguma modalidade. Seu grande pesar era não ter tido pendor para nenhuma delas. A natureza lhe negara o poder de autoexpressão; mesmo numa conversa comum ela achava difícil dar continuidade ao que queria dizer. Suas cartas eram feitas de pedaços de frases, como se os pensamentos, bombardeados e estilhaçados em fragmentos antigramaticais, se espalhassem sobre o papel. Uma curiosa falta de habilidade com as mãos, unida a uma impaciência natural, impedia-a de desenhar corretamente ou mesmo de fazer uma costura reta. E, embora ouvisse música com uma expressão de êxtase, tinha um ouvido que não distinguia uma terça maior de outra menor. “Sou uma dessas pessoas desafortunadas”, costumava dizer, “que têm o temperamento de um artista, mas não seus dotes.” Ela se contentava em cultivar o próprio temperamento e desenvolver as capacidades dos outros. Jamais encontrava um jovem, homem ou mulher, sem que o encorajasse a se tornar um pintor, escritor, poeta ou músico. Fora ela quem persuadira Irene de que sua ligeira destreza com pincéis era um talento e que, por força de suas divertidas cartas, tinha obrigação de começar a escrever poemas. “Como pode passar o tempo de maneira tão frívola e estúpida?”, costumava perguntar sempre que encontrava Irene às voltas com suas roupas de baixo. E Irene, que adorava a tia com a devoção de um cão de estimação, o que só é possível quando se tem dezoito anos, deixava a costura de lado e devotava toda a sua energia a desenhar aquarelas e descrever em rimas a paisagem e as flores do jardim. Mas as roupas de baixo continuavam sendo, não obstante, uma tentação permanente. Ela se descobria indagando por que um ponto corrente não podia ser melhor que seus desenhos, ou uma casa de botão não seria superior a seus versos. E as camisolas não seriam mais úteis que as aquarelas? Mais úteis e, além disso, interessava-lhe muito mais aquilo que ela usava sobre a pele; Irene adorava as coisas bonitas. Tanto quanto tia Lilian, que costumava rir quando a via usando algo feio ou desajeitado. Ao mesmo tempo, tia Lilian não lhe dava uma grande mesada. Por trinta xelins seria capaz de fazer um vestido que custava cinco ou seis guinéus numa loja...

As roupas de baixo tornaram-se para Irene a própria carne, o amor ilícito e a razão rebelada; a poesia e as aquarelas, investidas de uma qualidade sacrossanta pela adoração que ela sentia por tia Lilian, tornaram-se espírito, dever e religião. O conflito entre sua vocação e o que tia Lilian considerava bom se prolongava exaustivamente.

Em noites como aquela, entretanto, a Mulher Natural desaparecia por completo. Sob as estrelas, na escuridão solene, quem poderia pensar em roupas de baixo? E tia Lilian estava sendo tão carinhosa! Apesar disso, estava realmente bastante frio.

— A arte é o que existe de mais importante — dizia a sra. Aldwinkle com toda a sinceridade. — É o que realmente faz a vida valer a pena e justifica a existência. — Quando o mr. Cardan não estava presente, ela se permitia desenvolver com mais segurança seus temas favoritos.

Irene, sentada aos pés da tia e recostada em seus joelhos, podia apenas concordar. A sra. Aldwinkle passava a mão suavemente por seus cabelos ou os penteava com as pontas dos dedos, desarrumando os fios na superfície. Irene fechou os olhos; feliz, sonolenta, apenas ouvia. As palavras da sra. Aldwinkle chegavam até ela em lufadas, uma frase aqui, outra ali.

— Desinteressada — estava ela dizendo —, desinteressada... — A sra. Aldwinkle tinha um jeito próprio, quando queria insistir em uma ideia, de repetir várias vezes a mesma palavra. — Desinteressada... — Isso a livraria de ter de procurar frases que nunca encontraria, de dar explicações que acabavam se tornando, na melhor das hipóteses, bastante incoerentes. — O prazer de trabalhar pelo próprio trabalho... Flaubert passava dias sobre uma única sentença. Maravilhoso...

— Maravilhoso — ecoou Irene.

Uma leve brisa se insinuava por entre os loureiros. As folhas rijas crepitavam ao se tocar, como escamas de metal. Irene tremia um pouco; decididamente estava frio.

— É realmente uma atividade... — a sra. Aldwinkle não conseguiu se lembrar da palavra “criativa” e teve que se contentar em gesticular com a mão livre. — Por meio da arte o homem está mais próximo de se tornar um deus... um deus...

O vento noturno fazia crescer o ruído das folhas de louro. Irene cruzou os braços sobre o peito, tentando se aquecer um pouco. Infelizmente, aquela serpente de carne e osso também era sensível. A túnica que ela vestia não tinha mangas. O calor de seus braços nus aos poucos foi sendo levado pelo vento; a temperatura ambiente subiu cem bilionésimos de grau.

— É o que existe de mais elevado na vida — dizia a sra. Aldwinkle. — É a própria vida.

Carinhosamente ela amarfanhava os cabelos de Irene. Nesse exato momento, o mr. Falx meditava sobre os bondes da Argentina, entre depósitos de guano no Peru, sobre o zumbido das hidrelétricas aos pés das cataratas africanas, os refrigeradores australianos repletos de carne de carneiro, as quentes e escuras minas de carvão de Yorkshire, as plantações de chá nas encostas do Himalaia, os bancos japoneses, diante das bocas dos poços de petróleo mexicanos, os vapores açoitados pelas águas no mar da China — nesse exato momento, homens e mulheres de todas as raças e cores faziam sua parte para garantir a renda da sra. Aldwinkle. No seu capital de duzentos e setenta mil libras o sol nunca se punha. As pessoas trabalhavam; a sra. Aldwinkle levava uma vida elevada. Vivia apenas pela arte; os outros, apesar de inconscientes do privilégio, pela arte que existia nela.

O jovem lorde Hovenden suspirou. Se ao menos fossem seus os dedos que brincavam nos fios lisos e brilhantes do cabelo de Irene! Parecia-lhe um enorme desperdício ela se orgulhar tanto de sua tia Lilian. Não sabia por quê, mas, quanto mais gostava de Irene, menos gostava de tia Lilian.

— Alguma vez você pensou em ser um artista, Hovenden? — perguntou-lhe subitamente a sra. Aldwinkle. Ela se inclinava para a frente com um brilho no olhar que refletia a luz de dois ou três mil sóis. Ia sugerir que ele tentasse produzir rapsódias poéticas sobre a injustiça política e a condição das classes inferiores. Algo entre Shelley e Walt Whitman.

— Eu? — disse Hovenden, espantado; em seguida riu alto: — Ha, ha, ha! — numa nota dissonante.

Penalizada, a sra. Aldwinkle voltou à sua posição inicial.

— Não sei por que acha essa ideia tão cômica — disse.

— Talvez porque ele tenha outras tarefas a fazer — disse o mr. Falx, da escuridão. — Tarefas mais importantes. E, ao ouvir aquela voz profunda, profética e emocionante, lorde Hovenden sentiu que realmente tinha.

— Mais importantes? — indagou a sra. Aldwinkle. — O que pode ser mais importante? Pense em Flaubert... — Pensar em Flaubert, trabalhando cinquenta e quatro horas semanais numa oração relativa. Mas a sra. Aldwinkle estava entusiasmada demais para dizer o resto, depois de ter pensado em Flaubert.

— Pense nos mineiros de carvão, para variar — respondeu o mr. Falx. — É a minha sugestão.

— Sim — concordou lorde Hovenden, assentindo com gravidade. Grande parte de sua fortuna vinha do carvão. Ele se sentia particularmente responsável pelos mineiros, quando tinha tempo para pensar neles.

— Pense... — disse o mr. Falx com sua voz profunda, e mergulhou num silêncio mais eloquentemente profético do que qualquer discurso.

Por um longo tempo ninguém disse nada. O vento passou a soprar com mais força, em rajadas cada vez mais frias. Irene estreitou os braços em torno do peito; ela tremia e bocejava de frio. A sra. Aldwinkle sentiu o corpo jovem tremer em seus joelhos. Ela também sentia frio, mas depois do que dissera a Cardan e aos outros era impossível entrar, pelo menos por enquanto. Consequentemente, o tremor de Irene a perturbava.

— Pare com isso — disse ela com rispidez. — Que hábito mais estúpido! Parece um desses cachorrinhos que tremem mesmo diante do fogo.

— Eu também acho — disse lorde Hovenden, pondo-se a defender Irene — que está ficando frio.

— Bem, se é isso que acham — retorquiu a sra. Aldwinkle com um sarcasmo esmagador —, é melhor entrarmos e pedir que acendam o fogo.

Era quase meia-noite quando finalmente ela deu permissão para que entrassem em casa.