Capítulo 1

Os velhos cavaleiros em seus clubes não eram mimados com mais luxúria do que eu, no cálido mar Tirreno. De braços estirados como uma cruz viva, eu flutuava com o rosto voltado para cima, na água tépida e azulada. O sol batia em mim, transformando em sal as gotas em meu rosto e meu peito. Minha cabeça repousava na água tranquila; meus membros e meu corpo ondulavam na superfície de um colchão cristalino de nove metros de espessura e carinhosamente elástico, desde a cama de areia sobre a qual se espalhava. Podia-se ficar ali paralisado por toda a vida e nunca ter escaras.

O céu sobre mim enevoava-se com o calor do meio-dia. As montanhas, quando me voltei na direção da terra para olhá-las, estavam quase esvanecidas por trás de um fino véu. Mas o Grande Hotel, por sua vez, embora não fosse tão grande quanto parecia nos folhetos ilustrados — nestes, a porta de entrada tinha dez metros de altura, e dez acrobatas altos, um sobre os ombros do outro, não teriam alcançado o peitoril da janela do andar térreo —, o Grande Hotel não tentava se esconder; o branco das casas de veraneio se destacava desavergonhadamente do verde dos pinheiros; e na frente delas, ao longo da praia amarelada, eu via as cabines de banho, os guarda-sóis abertos, as crianças cavando a areia e os banhistas mergulhando e chapinhando nas águas rasas e quentes — homens seminus como estátuas de bronze, meninas com túnicas brilhantes, pequenos camarões rosados em vez de meninos e pesadas morsas vermelhas e lustrosas, que eram as matronas com suas toucas emborrachadas e roupas de banho pretas e molhadas. Aqui e ali, na superfície da água, movia-se o que os nativos chamavam de patini — catamarãs feitos com um par de flutuadores de madeira unidos em uma das extremidades e com um banco alto no meio, para o remador. Lentamente, desprendendo em sua esteira uma aragem de gracejos, risadas e músicas italianas, eles deslizavam no plano azulado. Às vezes, precedendo seu rastro, seu barulho e mau cheiro, passava um barco a motor, e subitamente o meu colchão cristalino se agitava sob mim, ao mesmo tempo em que as ondas criadas pelo barco me erguiam, baixavam e erguiam novamente, cada vez mais suaves, até que tudo ficava novamente macio.

Era mais que isso. A descrição, agora que a releio, não é elegante. Pois, embora eu não tenha jogado uma partida de bridge desde os meus oito anos e nunca tenha aprendido a jogar majongue, posso declarar que estudei as regras de estilo. Aprendi a arte de escrever bem, o que significa não dizer nada de uma maneira elaborada. Adquiri todos os predicados literários. Além disso, se é que posso dizê-lo sem fatuidade, também tenho talento. “Nada é mais proveitoso do que a autoestima justa e equilibrada.’’ Tenho Milton do meu lado para justificar minha asserção. Se escrevo bem, não é meramente outra maneira de escrever mal sobre coisa alguma. Quanto a isso minhas efusões diferem um pouco das de meus amigos cultos. Ocasionalmente tenho algo a dizer, e descobri que fazê-lo de maneira elegante e floreada me é tão fácil quanto caminhar. É claro que não dou a menor importância a isso. Eu poderia ter tanto a dizer quanto La Rochefoucauld e tanta facilidade para fazê-lo quanto Shelley. E daí? Mas isso seria uma grande arte, diria você. Sem dúvida; mas e daí? É puro preconceito, esse nosso, a favor da arte. Religião, patriotismo, ordem moral, humanitarismo, reforma social; imagino que todos nós tenhamos lançado tudo isso ao mar há muito tempo. Mas continuamos pateticamente presos à arte. É muita insensatez; porque a coisa toda tem muito menos razão de existir do que a maior parte dos objetos de devoção dos quais já nos livramos, e não tem nenhum sentido, realmente, sem seus apoios e suas justificativas. A arte pela arte — o jogo pelo jogo. Já é tempo de destruirmos o último e mais tolo dos ídolos. Amigos, eu lhes suplico, abandonem o derradeiro e mais doce dos inebriantes e despertem, por fim, completamente sóbrios — entre as latas de lixo nos degraus do pátio.

Espero que esta pequena digressão baste para mostrar que enquanto escrevo trabalho sem nenhuma ilusão. Não acho que qualquer coisa que eu faça tenha a menor importância; e se me esforço tanto para conferir beleza e elegância a estes fragmentos autobiográficos é puramente por força de hábito. Tenho praticado a arte literária há tanto tempo que já se tornou natural esforçar-me, como sempre fiz. Eu sempre me esforço. Você pode perguntar por que escrevo, afinal, se considero todo o processo totalmente desprovido de importância. É uma pergunta pertinente. Por que fazer uma coisa tão inconsistente? Só posso dizer, para me justificar, que é por fraqueza. A princípio desejaria viver rudemente como qualquer ser humano comum. A carne quer, mas o espírito é fraco. Confesso que estou cada vez mais cansado. Anseio por outros entretenimentos que não aqueles legítimos oferecidos pelo cinema e pelo Palais de Danse. Luto, tento resistir à tentação; mas no final sucumbo. Leio uma página de Wittgenstein, ouço um pouco de Bach; escrevo um poema, alguns aforismos, uma fábula, um fragmento autobiográfico. Escrevo com cuidado, honestamente, até com paixão, como se tivesse alguma importância o que estou fazendo, como se fosse fundamental para o mundo conhecer meus pensamentos, como se eu fosse salvar uma alma dando expressão a eles. Mas bem sei, é claro, que todas essas encantadoras hipóteses são infundadas. Na verdade, escrevo meramente para matar o tempo e distrair minha mente, que ainda é, apesar de meus esforços, uma prece à autoindulgência intelectual. Antevejo uma plácida meia-idade em que, tendo finalmente superado o velho Adão que existe em mim e saciado todas as extravagâncias de minha ânsia espiritual, eu seja capaz de adaptar-me tranquilamente à vida da carne, à existência humana natural, que, temo, ainda me parece tão proibida, tão monotonamente austera e entediante. Ainda não atingi esse estado de graça. Por isso estas divagações sobre a arte; peço perdão por elas. E, acima de tudo, imploro-lhes uma vez mais, não pensem que eu lhes dê a menor importância.

A pobre sra. Aldwinkle, por exemplo — eis alguém que jamais acreditaria que eu não seja um amante da literatura. “Mas Chelifer” costumava ela dizer com seu jeito ofegante mas muito determinado, “como pode blasfemar assim contra seu próprio talento?” E eu assumia o meu ar mais egípcio — sempre me disseram que lembro uma escultura egípcia —, meu sorriso mais esfíngico e dizia: “Sou um democrata; como quer que permita que o talento blasfeme contra a minha humanidade?”, ou algo tão enigmático quanto isso. Pobre sra. Aldwinkle! Mas estou indo muito depressa. Comecei a falar da sra. Aldwinkle e você nem sabe quem ela é. Nem mesmo eu o sabia naquela manhã, quando flutuava nas águas macias e tranquilas — na ocasião eu não conhecia nada além de seu nome; quem não conhecia? A sra. Aldwinkle, a salonnière, a anfitriã, a promotora de reuniões literárias e ágapes de leões — ela não era uma figura clássica, uma palavra doméstica, uma citação familiar? É claro que sim. Pessoalmente, porém, eu nunca a havia visto até aquele momento. E não porque ela não tivesse se empenhado. Poucos meses atrás recebi um telegrama, por intermédio de meu editor: “príncipe papadiamantopoulos acaba de chegar ansioso conhecer melhor sociedade intelectual artística literária de Londres. convido jantar conhecê-lo quinta-feira 20h15. 112 berkeley square Lilian aldwinkle”. Nessa forma telegráfica, posto dessa maneira, o convite parecia tentador. Mas um exame mais cuidadoso mostrou-me que as perspectivas não eram tão atraentes quanto pareciam. Porque o príncipe Papadiamantopoulos era, apesar do título e do nome maravilhosamente promissores, um intelectual tão sério quanto o resto de nós; descobri, para meu próprio horror, que se tratava de um geólogo de primeira classe e alguém que compreendia cálculo diferencial. Entre os outros convidados deveriam estar pelo menos três escritores decentes e um pintor. E a própria sra. Aldwinkle, reputada como uma mulher culta e não completamente tola. Preenchi o formulário-resposta e remeti-o da agência de correio mais próxima: “lamento muitíssimo nunca janto fora exceto na quaresma Francis chelifer”. E na quaresma esperei secretamente por outro convite. Mas fiquei aliviado, embora um pouco desapontado, por nunca mais ter ouvido falar da sra. Aldwinkle. Eu gostaria que ela tivesse tentado, em vão, esforçar-se para que eu traísse minha lealdade para com lady Giblet.

Ah, as noites na casa de lady Giblet! Podendo, eu jamais perdia uma. A vulgaridade, a ignorância e a estupidez dessa anfitriã e de seus esquálidos leões de segunda classe eram certamente únicas. E também aqueles vivandeiros das artes, os deliciosos boêmios, cuja habilidade para apreciar as pinturas cubistas e a música de Stravinsky era a justificativa perfeita para ajudá-los a se livrarem de suas esposas; em nenhum outro lugar viam-se espécimes tão perfeitos quanto na casa de lady Giblet. E as conversas ouvidas naqueles salões de mármore! Em nenhum outro lugar, certamente, um abismo tão profundo separava as pretensões dos fatos legítimos. Em nenhum outro lugar ouviam-se o ignorante, o ilógico, o incapaz de pensar falando com tanto desembaraço sobre coisas das quais não tinha a menor compreensão. E então, pateticamente, eles se gabavam, expressando a opinião incoerente dos imbecis, da capacidade intelectual, do ponto de vista moderno e da inteligência científica e implacável que possuíam. Certamente não seria possível encontrar nada tão perfeito dessa espécie como na casa de lady Giblet; pelo menos não conheço nada mais completo. Provavelmente na casa da sra. Aldwinkle havia conversas sérias; mas em hipótese alguma no salon que escolhi.

Aquela manhã no mar Tirreno foi a última de minha vida antes de transpor os limites da amizade com a sra. Aldwinkle; é bem provável que tenha sido também a primeira de minha vida futura. Nessa manhã o destino pareceu hesitar entre extinguir-me completamente ou apenas me tornar conhecido da sra. Aldwinkle. Gosto de pensar que, por sorte, ele escolheu a segunda alternativa. Mas estou me antecipando.

A princípio vi a sra. Aldwinkle nessa determinada manhã sem saber quem ela era. De onde eu estava, deitado em minha cama de salmoura, notei que um patino sobrecarregado dirigia-se firmemente em minha direção, vindo da praia. Empoleirado no banco do remador estava um rapaz alto, que trabalhava penosamente com os remos. Com as costas contra o banco e as pernas nuas esticadas sobre a proa de um dos flutuadores estava sentado um senhor gordo, de rosto vermelho, cabelos brancos e curtos. Na curvatura do outro flutuador acomodavam-se duas mulheres. A mais velha e maior delas estava sentada na frente com as pernas dentro da água; usava um costume de banho de seda com saia plissada, em tons de vermelho, e os cabelos estavam amarrados com um lenço cor-de-rosa. Imediatamente atrás dela acocorava-se, com os joelhos encostados no queixo, uma criatura jovem e esguia que usava um maiô preto. Em uma das mãos ela segurava uma sombrinha verde com a qual mantinha sua companheira mais velha protegida do sol. Dentro do cone de sombra esverdeado, a dama de rosa e tons de vermelho, que mais tarde eu soube ser a sra. Aldwinkle, assemelhava-se a uma lanterna chinesa acesa dentro de uma estufa de plantas; e quando um movimento acidental da sombrinha da jovem permitiu que o sol tocasse o rosto dessa senhora, foi como se o milagre da ressurreição de Lázaro se operasse diante de meus olhos; porque o verde e o tom cadavérico de repente lhe abandonaram as feições, e as cores da saúde, um pouco alteradas pelos reflexos da roupa de banho, pareceram voltar. A morta vivia. Mas só por um instante; porque os cuidados solícitos da jovem logo reverteram o milagre. A senhora deslizou de volta à posição original, a penumbra da estufa envolveu a lanterna cintilante e o rosto vivo voltou a se tornar pálido, como se pertencesse a alguém que estivesse havia três dias na tumba.

Quando o barco carregado começou a passar por mim, vi claramente que na popa havia outra mulher de rosto pálido e grandes olhos escuros. Um cacho de cabelos quase pretos escapava de sua touca de banho e caía, como um longo fio de barba, sobre o rosto. Um rapaz bem-apessoado, de rosto tão bronzeado quanto seus braços e pernas musculosos, esparramava-se na popa do outro flutuador e fumava um cigarro.

As vozes que do barco chegavam vagamente até mim pareciam-me, de alguma maneira, mais familiares do que outras que eu ouvira dos outros patini. Percebi que falavam inglês.

— As nuvens — ouvi o cavalheiro de rosto vermelho dizendo (ele acabara de voltar os olhos, obedecendo a um gesto da dama-lanterna-chinesa-acesa-numa-estufa-de-plantas, para as massas de vapor sobrepostas que pairavam como uma fantástica cordilheira sobre as montanhas reais) —, as nuvens que você tanto admira existem devido às partículas excrementícias que há no ar. São milhares dessas partículas em cada centímetro cúbico. O vapor de água se condensa em torno delas em gotículas suficientemente grandes para se tornarem visíveis. Daí as nuvens: formas maravilhosas e celestiais, mas cuja essência é o pó. Que símbolo do idealismo humano! — A voz melodiosa aumentava à medida que o jovem movia seus remos. — Partículas terrenas transfiguradas em formas celestiais. Essas formas celestiais não têm existências próprias, não são absolutas. A poeira desenha esses vastos caracteres pelo céu.

Preserve-me, pensei. Teria eu ido a Marina de Vezza para ouvir esse tipo de coisa?

Com voz alta mas indistinta, de uma estranha musicalidade, a dama-lanterna-chinesa-acesa-numa-estufa-de-plantas começou a citar Shelley de maneira incorreta.

— “...De um pico ao outro, como uma ponte...’’ — começou e mergulhou no silêncio, vasculhando o ar em busca de um sinônimo para “forma” que rimasse com “pico”. — “Sobre um certo mar.” Para mim, A nuvem é a melhor de todas. É maravilhoso pensar que Shelley tenha navegado neste mar. E que bem próximo daqui, um pouco mais abaixo, foi engolido pelas águas. — Ela apontava para a costa, onde, por trás da névoa fina, a interminável orla marítima de Viareggio se estendia por quilômetros e quilômetros. Agora podia se distinguir levemente seu contorno mais próximo. Mas à noite eles emergiam claros e nítidos na encosta iluminada, como gemas lapidadas, Palace e Grande Bretagne, Europe (outrora Aquila Nera) e Savoia, cintilantes brinquedos majestosos entre hospedarias menores e pequenas pousadas, a essa distância reduzidos a uma beleza estranha, tão pateticamente pequenos e delicados que se poderia quase chorar por causa deles. Nesse exato momento, do lado de cá da cortina de névoa, cem mil banhistas se comprimiam na praia onde outrora o corpo de Shelley fora engolido pelas águas. Os bosques de pinheiros em que ele, fugindo de Pisa, delicadamente perseguira seus pensamentos por entre as sombras flagrantes e silenciosas que agora pululavam de vida. Um sem-número de copuladores da cidade percorriam neste momento seus atalhos... e assim por diante. O estilo jorra de minha caneta. Em cada dracma de tinta preto-azulada estão implícitos milhares de mots justes, como as futuras características de um homem num pedaço de cromossomo. Desculpem-me.

Com a juventude na proa e o prazer no leme — e a carne era tão brilhante ao sol do meio-dia, as cores tão resplandecentes, que me lembrei do êxtase da pequena Etty —, o barco carregado passou lentamente a poucos metros de mim. Estirado como uma cruz viva em minha cama de salmoura, mirei-os languidamente com os olhos entreabertos, apenas uma olhadela, e eles desviaram o olhar como se eu fosse um desses sapos exaustos que depois de procriar ficam boiando de barriga para cima na superfície dos tanques. E no entanto eu era o que tecnicamente se conhece por uma alma imortal. Ocorreu-me que seria mais sensato eles pararem o barco e me saudarem por sobre a água. “Bom dia, estranho! Como vai sua alma? O que podemos fazer para salvá-la?” Mas, por outro lado, esse hábito de ver os estranhos como meros sapos exaustos provavelmente nos poupe de muitos problemas.

— De um promontório ao outro — emendou o cavalheiro de rosto vermelho, ao se afastarem de mim.

E muito timidamente, com voz mansa e envergonhada, a solícita e jovem criatura sugeriu que “um certo mar” seria um mar revolto.

— Fosse qual fosse a embarcação — disse o jovem remador, cujo empenho sob o sol escaldante lhe permitia assumir a visão profissionalmente náutica e de bom senso sobre o assunto.

— Mas é óbvio o que significa — disse a dama-lanterna-chinesa com insolência. O rapaz na popa jogou fora o cigarro e começou a assobiar a melodia de “Deh, vieni alla finestra”, de Don Giovanni.

Fez-se silêncio. O barco se afastava a cada remada. As últimas palavras que ouvi foram pronunciadas pela voz arrastada e quase infantil da moça sentada na popa.

— Gostaria de me bronzear mais rapidamente — disse, erguendo o pé para fora da água e olhando a perna branca. — Parece que vivo dentro de um porão. Que aparência terrivelmente feia esta de aspargo cozido! Ou de cogumelo — acrescentou, pensativa.

A dama-lanterna-chinesa fez algum comentário, e depois dela o homem de rosto vermelho. Mas a conversa já não era audível. Logo eu não ouvi mais nada; eles se foram, deixando em sua passagem, entretanto, o nome de Shelley. Fora ali, naquelas águas, que Shelley conduzira seu frágil barco. Com uma das mãos segurara seu Sófocles e, com a outra, o timão. Os olhos se dirigiram ora para as pequenas letras gregas, ora para o horizonte, ora para as montanhas e as nuvens sobre a terra.

— Para bombordo, Shelley — teria gritado o capitão Williams.

E o leme virou com dificuldade para estibordo; o barco cambaleou e quase emborcou. Então, de repente, um clarão! O céu negro e opaco se abriu de um lado ao outro; um estrondo ribombante! A trovoada explodiu sobre eles e, como uma imensa pedra atirada sobre a superfície de nuvens metálicas, os ecos rolaram pelo céu e por entre as montanhas “de um pico ao outro”, ocorreu-me, adotando a frase da dama-lanterna-chinesa. “De um pico ao outro, como o ressoar de um gongo.” (Que infâmia!) E então, rugindo e silvando, o redemoinho passou por cima deles. E tudo acabou.

Mesmo que a dama-lanterna-chinesa não tivesse sugerido, provavelmente eu teria começado a pensar em Shelley. Porque estar nesta costa, entre o mar e as montanhas, em meio à alternância de perfeitas calmarias e súbitos temporais, é como viver dentro de um dos poemas de Shelley. Caminha-se entre belezas transparentes e fantasmagóricas. Não fossem os cem mil banhistas, a banda de jazz do Grande Hotel, a barreira indestrutível que a civilização, sob a forma de hospedarias, apresenta ao longo de quilômetros de mar alheio e vazio, não fosse por isso seria possível perder o senso de realidade e imaginar que a fantasia fora capaz de se transformar em fato. Nos dias de Shelley, quando a costa era praticamente desabitada, um homem podia ser desculpado por esquecer a verdadeira natureza das coisas. Vivendo num mundo real praticamente indistinguível do imaginário, é quase justificável que as fantasias alcancem as alturas extravagantes a que Shelley se permitiu chegar.

Mas um homem da geração atual, educado em ambientes tipicamente contemporâneos, não pode se justificar dessa maneira. Um poeta moderno não pode se permitir as luxúrias mentais nas quais seus predecessores mergulhavam com tanta liberdade. Deitado ali na água, repeti para mim mesmo alguns versos inspirados em reflexões como essas, que eu escrevera alguns meses antes:

O Espírito Santo desliza

Sobre Ilford, Golders Green e Penge.

Suas hostes apodrecidas o infectam;

As vítimas se vingam com justiça.

Se outrora os filhos dos fidalgos

E os guardadores dos estábulos se voltaram

Para as flores e a esperança, para a Grécia e para Deus,

Nós, em nossa velhice, aprendemos

Que somos nativos de onde caminhamos

Pelas ruas sombrias de Camden Town.

Mas ainda esperançoso, inspirando profundamente,

O Espírito Santo desce resplandecente.[4]

Lembro-me que escrevi essas linhas numa tarde escura, em meu escritório em Gog’s Court, Fetter Lane. Neste mesmo escritório, numa tarde quase similar, escrevo agora. O refletor do lado de fora da janela revela uma luz mortiça e baça, que tem de ser suplementada pela eletricidade do lado de dentro. Um cheiro constante de tinta de impressão infesta o ar. Do porão chegam-me o baque surdo e o clangor das prensas; elas imprimem os duzentos exemplares semanais de Romance Feminino. Aqui estamos, no coração do universo humano. Venha, então, e admitamos francamente que somos cidadãos desta cidade medíocre, fazemos resolutamente o pior e não tentamos escapar.

Para fugir, seja no espaço ou no tempo, é preciso ir muito mais longe hoje do que há cem anos, quando Shelley viajava pelo mar Tirreno e evocava visões milenares. É preciso ir mais longe no espaço porque há muito mais gente e veículos mais velozes. O Grande Hotel, os cem mil banhistas e a banda de jazz se introduziram naquele poema shelleyiano que é a paisagem de Versilia. E o milênio, que nos dias de Godwin não parecia tão remoto, está cada vez mais distante de nós, conforme cada programa de reforma, cada vitória sobre o capitalismo entrincheirado lança ao chão mais uma ilusão. Para se fugir, em 1924, é preciso ir para o Tibete e olhar para a frente, até, pelo menos, o ano 3000; e quem poderá garantir? É provável que eles estejam ouvindo rádio no palácio do Dalai Lama; é provável que daqui a mil anos a condição milenar só seja milenar porque terão conseguido pela primeira vez tornar a escravidão realmente científica e eficiente.

Uma fuga no espaço, mesmo que se consiga realizá-la, não é real. Um homem pode viver no Tibete ou nos Andes; mas não pode negar que Londres e Paris existem, não pode esquecer que há lugares como Nova York e Berlim. Porque para a maioria dos seres humanos contemporâneos Londres e Manchester são a regra. Pode-se fugir para a primavera eterna de Arequipa, mas não se estará vivendo naquilo que é, para a massa consciente, a realidade.

Uma fuga no tempo não é mais satisfatória. O homem vive num futuro radiante, vive para o futuro. Consola-se com o espetáculo das coisas como são, pensando no que elas seriam. E talvez se esforce para fazer com que sejam como acha que deveriam ser. Asseguro-lhes que conheço tudo isso. Fiz tudo isso: vivi num estado de intoxicação permanente, pensando no que estava por vir, empenhando-me por um ideal de felicidade deslumbrante. Mas uma pequena reflexão foi suficiente para mostrar que essas previsões e esse esforço pelo que deve ser são realmente absurdos. Porque em primeiro lugar não há razão para se pensar que haverá um futuro, pelo menos para os seres humanos. Em segundo lugar não sabemos se o ideal de felicidade pelo qual lutamos não irá se mostrar totalmente irrealizável, ou, se realizável, definitivamente repulsivo à humanidade. As pessoas querem ser felizes? Se houvesse uma possibilidade real de se alcançar a felicidade permanente e imutável não ficaríamos horrorizados diante de sua entediante consumação? E, por fim, o árduo trabalho que a contemplação do futuro exige não impede o presente de existir. Apenas nos cega parcialmente para o presente.

As mesmas objeções se aplicam com a mesma força para as fugas que não se dão no espaço ou no tempo, mas na eternidade platônica, no ideal. A fuga para a mera fantasia não impede que os fatos prossigam; é uma desatenção para com os fatos.

Por fim existem aquelas pessoas mais corajosas que os escapistas, as quais realmente se deixam envolver pela vida e se consolam descobrindo no meio da imundície, da repugnância e da estupidez as evidências de uma bondade generalizada, de caridade, piedade e coisas semelhantes. É verdade que essas qualidades existem e o espetáculo que oferecem é decididamente animador; apesar da civilização, os homens não sucumbiram às bestas. Mesmo na sociedadehumana, os pais são devotados à sua prole; mesmo na sociedade humana, os fracos e os aflitos são assistidos. Seria surpreendente, considerando-se as origens e afinidades humanas, se isso não acontecesse. Você já leu algum obituário cujo sujeito não possuísse, por trás de sua aparência rude e modos grotescos, um coração de ouro? E os obituaristas, por mais saturada que seja sua produção literária, estão perfeitamente certos. Todos nós temos um coração de ouro, embora seja verdade que muitas vezes estejamos preocupados demais com nossos próprios envolvimentos para nos lembrarmos disso. O homem realmente cruel e fundamentalmente mau é tão raro quanto um gênio ou um completo idiota. Nunca conheci ninguém que fosse realmente mau. E isso não surpreende; porque um homem com um coração realmente maligno possui certos instintos que se desenvolveram a um grau anormal e outros mais ou menos atrofiados. Nesse sentido, nunca conheci um homem como Mozart.

É verdade que Charles Dickens se sentiu elevado e cronicamente comovido ao constatar a presença de virtudes no meio da imundície. “Ele mostrou’’, afirmou proveitosamente um de seus admiradores americanos, “que a vida nas suas formas mais grotescas pode exibir uma grandeza trágica; que em meio aos desatinos e aos excessos os sentimentos morais não morrem completamente, e que os antros de crimes mais hediondos podem ser iluminados pela presença de almas nobres.” Muito bonito. Mas existe alguma razão para nos entusiasmarmos com o surgimento de virtudes na sociedade humana? Não nos entusiasmamos pelo fato de os homens possuírem rins e pâncreas. As virtudes são tão naturais no homem quanto os órgãos digestivos. Qualquer biólogo sério, levando em consideração os seus próprios instintos gregários, esperaria encontrá-las naturalmente.

Sendo esse o caso, não existe nada nessas virtudes à la Dickens que mereça “ser cantado em verso e prosa” — como costumamos dizer às vezes, quando somos notadamente ricos dessas virtudes. Não há razão para nos orgulharmos das qualidades que herdamos de nossos antepassados animais e partilhamos com nossos animais de estimação. Seria mais gratificante se pudéssemos encontrar na sociedade contemporânea evidências de virtudes humanas peculiares — virtudes racionais e conscientes que por definição devem pertencer a uma criatura chamada Homo sapiens. Por exemplo, a compreensão, a ausência de preconceitos irracionais, a tolerância, o equilíbrio, a posse racional de bens sociais. Mas isso, ai de nós, é precisamente o que não encontramos. A que, então, se devem a imundície, a confusão e a feiura, senão à falta de virtudes humanas? O fato é que, exceto por um capricho ocasional da natureza, surgido ora aqui, ora acolá, e sempre fora de hora, nós, homens sapientes, não possuímos praticamente qualquer virtude humana. Passe uma semana em uma cidade grande e isso se tornará claro. É tão completa a ausência de qualidades verdadeiramente humanas que somos induzidos, se aceitarmos encarar a realidade, a agir como Charles Dickens e congratular a raça por suas virtudes meramente animais. Os entusiastas e otimistas, que nos garantem que a humanidade está certa porque as mães amam seus filhos, os pobres ajudam uns aos outros e os soldados morrem por uma bandeira, tentam nos consolar baseados no fato de que somos semelhantes às baleias, aos elefantes e às abelhas. Mas quando pedimos a eles que citem uma evidência de sabedoria humana, que nos apontem algum espécime cuja conduta seja consciente e racional, somos acusados de frieza intelectual e “desumanidade” generalizada, o que significa nossa recusa em aceitar os padrões animais. Por mais agradecidos que possamos nos sentir por existirem na sociedade civilizada essas virtudes primevas e selvagens, não podemos igualá-las aos horrores e imundícies da vida civilizada. Esses horrores e imundícies nascem da falta de razão no homem, de seu fracasso em ser completa e sabiamente humano. As virtudes selvagens são meras observadoras desse animalismo, cuja cabeça é a bondade instintiva e a cauda são a estupidez e a crueldade instintiva.

Sinto muito pelo derradeiro consolo da filosofia. Estamos entregues à realidade. Meu escritório em Gog’s Court está situado, repito, no próprio coração da realidade, em seu coração palpitante.