Capítulo 5
“Apenas um poetinha” — com que amargura o pobre Keats se ressentia dessa observação! Talvez porque secretamente soubesse que era justa. Keats, afinal, era essa estranha e infeliz quimera: um poetinha e um grande homem. Entre o autor das odes e o das cartas há um grande abismo, o mesmo que separava os atletas gregos dos heróis.
Pessoalmente não me dedico às cartas heroicas. Só posso reivindicar modestamente o posto de um competente atleta de segunda classe — embora muito mais competente, insisto (mesmo que isso não tenha importância), do que quando eu escrevia sobre as cotovias. “Apenas um poetinha” — infelizmente nunca serei mais que isso.
Quero mostrar-lhes um exemplo de minha competência já madura. Escolhi-o ao acaso, como dizem os críticos, na minha longamente projetada, mas nunca concluída, série de poemas sobre os seis primeiros Césares. Orgulho-me de dizer que meu pai teria gostado do título, o qual, por sua vez, é completamente wordsworthiano; faz parte da grande tradição do imortal A caixa de agulhas em forma de harpa. “Calígula cruza a ponte de barcos entre Baiae e Puteoli. Por Peter Paul Rubens (1577-1640).” O poema propriamente dito, entretanto, não lembra muito o Distrito de Lake.
De popa a proa os barcos formam
Uma ponte sobre o golfo azulado; está pronta a estrada.
E César, montado em seu tordilho,
Encabeça o exército em cavalgada.
Ébrios de seu próprio sangue eles seguem.
Cintilam as ondas, como se lhes assistissem,
Inclinam-se os rochedos, imitando-lhes a marcha,
E assim eles preenchem o vazio dos céus
Com os valsantes Deuses e Virtudes,
Cortam os ventos marítimos com seus gritos,
E o templo de Vesta nas alturas
Gira como um carrossel brilhante.
Tendo na mão o caduceu espiralado
E asas de ouro à guisa de esporas,
O jovem César, vestido como Deus,
Saúda seus alegres marinheiros.
Saúda-os, enquanto são lançados ao mar
Os viajantes vindos da cidade costeira;
Ri, enquanto as cabeças são golpeadas
E afundadas até sob as bolhas se afogarem.
Ao longe surge um redemoinho
Varrendo o céu alegórico.
E a Beleza, como um relâmpago dirigido,
Risca o peito largo de Júpiter e a coxa de Juno.
Escorrega pelo flanco de Marte e das curvas
De Virtude salta, num giro vertiginoso,
Circunda uma nuvem e, sempre girando,
Lança-se à terra, aos punhos erguidos de César.
Uma burguesa despenca do alto da ponte.
Rápida, Beleza escapa de César
E por entre as pernas ainda fora d’água
Desaparece entre os barcos, no oceano azul.[10]
Lendo o poema do começo ao fim, alegro-me por reconhecê-lo muito próximo do padrão internacional em voga. Um pouco mais e eu poderei competir num torneio crítico com Monsieur Cocteau e a srta. Amy Lowell. Quanta honra! Sinto-me pequeno diante do que está prestes a acontecer.
Mas, ah, os Césares! Eles me perseguem há muitos anos. Já tive planos de colocar metade do universo em duas ou três dúzias de poemas sobre esses monstros. Para começar, todos os pecados, e para terminar, todas as virtudes... Arte, ciência, história, religião — também elas teriam o seu lugar garantido. E Deus sabe o que mais. Mas os Césares não chegaram a tanto. Logo percebi que a ideia era ampla e pretensiosa demais para ser posta em prática. Comecei por Nero, o artista (as profundezas exigem mais profundezas). “Nero e Sporus caminhando pelos jardins da Casa Dourada.”
A sombria agitação do ar perfumado
Toca seu rosto, esvoaça seus cabelos.
Com os mais delicados dedos eu acaricio,
Sporus, todo o seu encanto;
Redonda como uma fruta, desarvorada, brilha a lua;
E as labaredas sobre as vinhas,
Como estrelas num céu de delírio,
Também brilham e se apagam.
Incessantes jorram as fontes, cantam os rouxinóis.
Mas o tempo passa e o amor nada prova.
Lentamente ardem em brasas os cristãos;
Apagam-se as chamas de seus tristes bravos.
E você, doce Sporus, você e eu
Também devemos morrer, também devemos morrer.[11]
Mas o solilóquio que se seguia era expresso em tom mais filosófico. Expus nesses versos todas as razões da existência do halma[12] — razões essas em que eu quase acreditava na época em que escrevi o poema. Quanto mais se vive, mais se aprende. Enquanto isso, eis o poema:
Na leitosa luz dos cristãos
Muito obscuramente adivinho
Seus olhos e vejo sua pálida beleza
Como o brilho tênue da flor noturna
Opacos na escuridão, eles veneram
Um deus que morreu lentamente, para que
Sofressem menos; suportou a dor
Da eternidade num só dia,
A dor de toda a humanidade em um único
Corpo ferido e um só triste coração.
O mármore amarelo, suave como a água,
É para mim uma Casa Dourada; ali
Os deuses de mármore adormecem sua força
E são belas as brancas moças de Paros.
Rosas e oleandros de cera,
Cachos de uvas verdes e corados pêssegos —
Todas as coisas belas eu provo, toco, vejo,
Conhecendo, amando, tornando-me cada uma delas.
O navio afundou, minha mãe nadou:
Eu me casei e tornei-me casado;
O velho Cláudio morreu do veneno imperial
O velho Sêneca sangrou muito lentamente.
Besta selvagem e ao mesmo tempo sua vítima,
O violador e a noiva retraída;
Rei do mundo e escravo de um escravo,
Aterrorizado e —
Um artista, oh doce Sporus, um artista,
Todos estes sou eu e é preciso que seja.
É Lídia essa melodia? Eu a amei.
E você escutou minha sinfonia
De vozes lastimosas e metais ruidosos
Com longos e agudos flauteados que evocam
A dor sobre um golfo de terrores murmurantes
E prazeres penetrantes, que acabam
Em agonia — poderia eu ter feito
Minha canção de Fúrias onde o veneno
Ainda corre no caule da cicuta
E os sabres vermelhos, novamente virgens, brilham?
Ou tomar o amor de uma criança que é só
Adoração, só ternura e confiança —
Uma teia na madrugada, nebulosa e frágil —
E com a violência do desejo
Destruir e profaná-la? Você ouvirá
O silêncio se rompendo e o choro
Fino e áspero, que é a própria música
Da vergonha e o remorso do pecado.
Cristo morreu; o artista vive por todos;
Ama, e seu mármore nu ergue-se
Puro como uma coluna no céu,
E cujos lábios, peito e coxas exigem
Não uma humilhação, não
O tremor da vergonha que chega;
De suas agonias o homem conhece
Apenas a beleza que delas nasceu.
Cristo morreu, mas Nero, vivo, transforma
Seu remorso mudo em canção; dá
ao destino idiota olhos de amante,
e, enquanto soa sua música, Deus vive.[13]
Nobres e românticos sentimentos! Protesto: eles são motivo de orgulho para mim!
Há também os fragmentos sobre Tibério; devo acrescentar que Tibério representa meu esquema simbólico de amor. Eis um deles: “Nos jardins de Capei”. (Noto que todas as minhas cenas se passam em Capri, durante a noite, ao luar. Talvez isso seja importante. Quem pode dizer?)
Hora após hora as estrelas se movem
E a lua, voltada para a noite remota,
Esconde sua face.
Hoje cegos, estes jardins lembram
As pétalas carmesins acetinadas,
E a lembrança é o perfume das rosas.
Hora após hora passam lentas as estrelas,
Ano após ano abrem-se as flores misteriosamente
E com idêntico brilho se voltam para o céu.
Indiferente ao fluxo das estrelas,
Aspirando esse novo mas imemorial perfume,
Deito-me, imóvel, em meu leito inclinado;
E as duas mulheres que comigo o dividem
Com o hálito ácido de vinho, mas os corpos suaves
Ainda quentes e viçosos dormem embriagadas ao meu lado.[14]
Hoje considero louvável essa fixação da atenção sobre o que é relevante, a realidade humana no centro da paisagem sem sentido. Foi exatamente na época em que escrevi esse fragmento que aprendi a difícil arte da concentração exclusiva no que é relevante. Foram lições penosas. A guerra me preparou para aprendê-las. O amor ensinou-as a mim.
Seu nome era Bárbara Waters. Eu a vi pela primeira vez quando tinha catorze anos. Ela era mais velha um ou dois meses. Eu participava de um daqueles divertidos piqueniques à beira do rio Cherwell, que vez ou outra eram organizados nas férias de verão pelas esposas dos professores, de espírito mais esportivo e animado. Nós saíamos às sete horas da noite dos ancoradouros que ficavam ao norte de Oxford, em meia dúzia de barcos, e subíamos o rio durante mais ou menos uma hora, até que escurecesse completamente. Então desembarcávamos em alguma campina, estendíamos a toalha, abríamos os cestos de comida e lanchávamos animadamente. Os mosquitos eram tantos que deixavam os meninos fumarem para afastá-los — as meninas também tinham permissão. Com que experiência e prazer nós, meninos, tragávamos a fumaça, soltando-a pelo nariz ou abrindo a boca como sapos para fazer anéis! Mas as meninas sempre destruíam os cigarros, enchiam a boca de tabaco e, fazendo caretas, esfregavam o gosto amargo nos lábios. No final, depois de muita risada, livravam-se dos cigarros ainda pela metade. Nós ríamos delas com desdém e benevolência. Mais tarde juntávamos nossas coisas e voltávamos para casa, cantando. Ao longo do rio as nossas vozes· soavam sobrenaturalmente doces. A lua amarela, grande como um morango, brilhava sobre nós. Havia uma cintilação na superfície da água e em toda a extensão das ondas formadas pela passagem dos barcos. As folhas dos salgueiros fulguravam como metal. Uma bruma encobria as margens. Às vezes subia do rio um leve cheiro de mato, logo violentamente afastado pelo aroma do tabaco em pungentes golfadas de fumaça. Outras vezes um doce perfume animal se insinuava na umidade atmosférica; olhando atentamente por entre os salgueiros, podíamos ver algumas vacas deitadas na grama, a cabeça e o dorso projetados como cristas de montanhas por sobre a bruma rasteira, ainda cansadas do longo dia de trabalho terminado havia muito tempo. Ruminavam sem parar a primeira refeição da manhã, que já se misturava com o almoço, e o lanche da tarde também já se tornando um prolongado jantar vegetariano. Mascando e esmagando, elas moviam suas infatigáveis mandíbulas. Esse som chegava fracamente até nós através do silêncio. Então uma voz límpida começava a cantar Greensleeves ou Beba-me apenas com seus olhos.
Às vezes, só por diversão, embora fosse desnecessário, por estar sempre muito calor, fazíamos uma fogueira em torno da qual comíamos maionese de salmão e galinha com batatas com casca assadas na brasa — em geral mal assadas ou queimadas. Foi à luz de uma dessas fogueiras que vi Bárbara pela primeira vez. O barco em que eu estava saíra um pouco depois dos outros porque ficamos esperando alguns retardatários. Ao nos aproximarmos do lugar marcado, os outros já tinham desembarcado e aprontado tudo para a nossa refeição. Os mais jovens do grupo tinham recolhido a lenha para o fogo, que estava sendo aceso. À luz do luar, havia pessoas sentadas e outras em pé ao redor da toalha. Um pouco à frente, sob a sombra negra de um enorme olmo, moviam-se algumas silhuetas sem rosto. De repente, uma pequena chama se acendeu de um palito de fósforo e foi protegida por um par de mãos, que no mesmo instante se tornaram de um coral transparente. As silhuetas começaram a ganhar fragmentos de vida. As mãos que amparavam a chama moveram-se ao redor da pira; duas ou três pequenas chamas surgiram. E então, ao som de um grandioso “hurra!”, a fogueira se acendeu. No centro da sombra negra do olmo formava-se um pequeno universo, muito mais vivo do que o mundo fantasmagórico sentado sob o luar, um pouco mais atrás. À luz do fogo vi uma dúzia de rostos familiares, de meninos e meninas que eu conhecia. Mas quase não os notava. Só prestava atenção a um único rosto, que eu nunca vira antes. Uma labareda mais alta revelou-o de maneira apocalíptica. Corado, brilhante, quase sobrenatural à luz trêmula e mutante das chamas, esse rosto sobressaía com incrível clareza e precisão contra o fundo enegrecido, tornado ainda mais escuro pelo fogo. Era o rosto de uma menina. Seus cabelos também eram escuros, com reflexos de um vermelho dourado. O nariz era levemente aquilino. Os olhos alongados, quase oblíquos, brilhavam por entre as pálpebras como se espiassem através de uma misteriosa fenda e revelavam uma felicidade interna, secreta, indescritível.
A boca parecia partilhar o mesmo segredo. Os lábios não eram grossos, mas delicados; fechados, eles se curvavam num sorriso que expressava uma alegria maior do que qualquer risada, qualquer arroubo de felicidade. Os cantos da boca se erguiam de tal modo que os lábios se tornavam quase paralelos aos olhos oblíquos. O sorriso parecia estar preso aos dois pequenos sulcos que vincavam as faces, afunilando-se em direção ao queixo delicado e firme. O pescoço era roliço e pequeno; os braços, que o vestido de musselina deixava descobertos, eram bem finos.
Meu barco subia lentamente a correnteza. Eu não tirava os olhos daquele rosto que a luz tênue da fogueira revelava. Eu nunca vira nada tão bonito. Qual seria o segredo daquela alegria inexprimível? Que felicidade inominável residiria por trás daqueles olhos oblíquos, daquele sorriso silencioso? Eu mal respirava. As lágrimas molhavam-me as faces — ela era bonita demais. Eu estava assustado, sentia uma espécie de medo, como se de repente me visse na presença de algo mais que um mero ser mortal, diante da própria vida. As chamas se avivaram. Os reflexos fulvos passeavam sobre o rosto de sorriso silencioso e secreto, como se o sangue vivo fluísse delirante sob a pele. As outras crianças riam, gritavam, moviam os braços. Ela permanecia absolutamente quieta, com os lábios fechados, os olhos estreitados, sorrindo. Sim, ali estava a própria vida.
O barco encostou na margem.
— Segure-se! — gritou alguém. — Segure-se, Francis! Com relutância fiz o que me mandaram; era como se algo muito precioso estivesse morrendo dentro de mim.
Depois disso eu a vi umas duas vezes. Fiquei sabendo que era órfã, mas tinha parentes em Oxford, com quem de vez em quando ficava. Se eu tentava falar com ela, ficava sempre envergonhado demais para fazer mais do que gaguejar coisas triviais ou tolas. Ela me olhava com serenidade por entre as pálpebras e respondia. Não me lembro bem do que ela dizia, mas sim do tom com que o fazia — calmo, frio, seguro, como convinha à encarnação da própria vida.
— Você joga tênis? — eu perguntava, quase chorando pela minha estupidez e falta de coragem.
Por que você é tão bonita? O que está pensando por trás desses olhos misteriosos? Por que essa inexplicável felicidade? — eram as perguntas que eu gostaria de lhe fazer.
— Sim, adoro jogar tênis — respondia ela a sério.
Lembro-me de uma vez que consegui avançar um pouco mais numa conversa mais inteligente e coerente e perguntei a ela quais eram os livros de que mais gostava. Enquanto eu falava, ela me olhava fixamente. Por fim eu acabei enrubescendo e desviei os olhos. Ela tinha uma vantagem injusta sobre mim: era capaz de me olhar por entre as pálpebras como se me espreitasse. Eu ficava exposto e totalmente desprotegido.
— Não leio muito — disse ela, por fim. — Na verdade, não gosto de ler.
Minha tentativa de me aproximar, de estabelecer um contato, fracassara. Ao mesmo tempo eu precisava saber que ela não gostava de ler. Afinal, de que lhe serviria ler? Quando se é a própria vida não se tem necessidade de meros livros. Anos mais tarde ela admitiu que abria uma exceção para os romances de Gene Stratton-Porter. Quando eu fiz dezessete anos, ela foi morar na África do Sul com outros parentes.
O tempo passou. Eu pensava nela constantemente. Tudo o que lia nos poetas sobre o amor ajustava-se àquele rosto de sorriso secreto e adorável. Meus amigos se vangloriavam de seus pequenos romances. Eu os ouvia sem nenhuma inveja porque sabia, não só teoricamente, mas pela experiência, que aquilo não era amor. Uma vez, quando eu era calouro na universidade, eu próprio, depois de uma noitada numa boate, escorreguei da pureza na qual me mantivera até então. Depois senti-me terrivelmente envergonhado. Era como se eu não fosse mais digno do amor. Em consequência — a relação entre causa e efeito me parece agora um tanto difícil de determinar, mas na época sei que o que fiz foi bastante lógico —, eu me sobrecarreguei de trabalho, ganhei dois prêmios universitários, tornei-me um ardente revolucionário e devotei muitas horas de meu tempo ao “serviço social”, no colégio Mission. Não fui um bom assistente social; desempenhei com indiferença o meu papel com os adolescentes violentos dos cortiços e odiei cada momento passado no Mission. Foi precisamente por isso que não continuei esse trabalho. Por uma ou duas vezes aceitei participar da dança moms no jardim de minha mãe. Eu tentava me valorizar — para quê? Nem eu mesmo sabia, mas de alguma maneira era o que desejava. Preparava-me para amar incessantemente e de vez em quando fazer grandes coisas.
Então veio a guerra. Da França, mandei uma carta para ela, escrevendo tudo o que não tivera coragem de dizer pessoalmente. Enviei a carta para o único endereço que eu conhecia — ela já se mudara havia muitos anos —, sem muitas expectativas, apenas que ela a recebesse. Escrevi para minha própria satisfação, para tornar explícito tudo o que eu sentia. Não tinha dúvida de que logo estaria morto. Não escrevi essa carta a uma mulher e sim a um deus; foi uma elucidação e uma apologia enviada ao universo.
No inverno de 1916 fui ferido. Ao receber alta no hospital, fui considerado incapaz para o serviço ativo e designado para um posto no setor de contratos da Força Aérea. Fui encarregado dos produtos químicos, celuloide, tubos de borracha, óleo de mamona, roupas de cama e tecidos para balões. Passava todo o tempo discutindo com judeus alemães o preço dos produtos químicos e do celuloide, com vendedores gregos o do óleo de mamona, com irlandeses o da roupa de cama. Japoneses de óculos vinham me apresentar amostras de crepe da China e tentavam me convencer — oferecendo-me também cigarros especiais — de que era muito melhor e mais barato do que o algodão usado na confecção de balões. De cada uma das cartas que eu ditava, primeiro eram feitas onze, depois dezessete e no fim, quando o departamento atingiu o auge da prosperidade, vinte e duas cópias, para serem lidas e arquivadas pelas várias subseções do ministério interessado. O hotel Cecil estava repleto de funcionários. Nos porões, dois andares abaixo do nível da rua, e no sótão, acima dos canos das chaminés, centenas de moças dedilhavam suas máquinas de escrever. No salão de baile subterrâneo, que mais se parecia com o cenário para uma festa de Belshazzar, milhares de refeições baratas eram consumidas diariamente. Nos melhores quartos, os que tinham vista para o Tâmisa, ficavam os servidores civis de longa permanência, com letras depois de seus nomes, os grandes homens de negócios que nos ajudavam a vencer a guerra e os oficiais do Estado-Maior. Velozes veículos motorizados esperavam por eles no pátio. Às vezes, ao entrar no escritório pela manhã, imaginava-me um visitante de Marte.
Uma dessas manhãs — eu já estava havia vários meses na Força Aérea — vi-me diante de um problema que só poderia ser solucionado mediante uma consulta a um especialista do Departamento Naval. O pessoal da Marinha ocupava um conjunto de prédios do lado oposto ao pátio da ala em que ficavam os nossos oficiais. Somente depois de vagar por dez minutos em um labirinto consegui finalmente encontrar o homem que procurava. Lembro-me de que era uma pessoa muito afável; perguntou-me como eu podia gostar da Bolo House (esse era o apelido do nosso precioso escritório da Força Aérea), ofereceu-me um charuto das Índias Orientais e também uísque com soda. Depois disso iniciamos uma conversa técnica sobre o celuloide não inflamável. Quando o deixei, estava muito mais bem informado do que antes.
— Até logo — disse ele, quando eu me afastava. — Se quiser saber mais sobre acetonas ou qualquer dessas malditas drogas, pode me procurar.
— Obrigado — respondi. — E se por acaso quiser saber sobre Apolônio de Rodes ou Chaucer ou sobre a história do tridente...
Ele deu uma gargalhada.
— Irei procurá-lo — finalizou.
Ainda rindo, fechei a porta e saí para o corredor. Uma moça passou apressada e resmungando baixinho com uma pilha de pastas na mão. Assustada com minha súbita aparição, ela me olhou. Meu coração deu um salto e por um instante parou de bater.
— Bárbara!
Ao ouvir seu nome, ela me olhou com aquele jeito de espreitar por entre as pálpebras semicerradas que eu conhecia tão bem. Percebi um leve franzir de testa e em seguida os lábios se estreitando. E então, quase instantaneamente, seu rosto se iluminou num sorriso e os olhos escuros tremeluziram alegremente.
— Mas é Francis Chelifer! — exclamou ela. — Não o reconheci, você está diferente.
— Você não — disse eu. — Está a mesma coisa.
Ela sorriu com os lábios fechados e por entre as pálpebras olhou-me como se me espreitasse. Estava mais linda que nunca em sua jovem maturidade. Se eu estava contente ou triste por tê-la encontrado novamente era algo que não sabia. Mas sei que fui profundamente tocado; eu tremia e sentia que meu equilíbrio estava completamente alterado. A memória de um amor simbólico, para o qual e pelo qual eu vivera todos aqueles anos, estava agora reencarnada diante de mim, não como um símbolo, mas como indivíduo; isso basta para amedrontar qualquer um.
— Pensei que estivesse na África do Sul — continuei. — O que é mais ou menos o mesmo que dizer que você não existia.
— Voltei há um ano.
— E desde então está trabalhando aqui?
Bárbara concordou.
— Você também está trabalhando na Bolo House? — perguntou.
— Há seis meses.
— Nunca pensei! Como não nos encontramos antes? Como este mundo é pequeno, incrivelmente pequeno!
Almoçamos juntos.
— Recebeu minha carta? — Juntei coragem para fazer essa pergunta enquanto tomávamos café. Bárbara moveu afirmativamente a cabeça.
— Levou muito tempo até que ela chegasse às minhas mãos.
Eu não sabia se estava dizendo isso de propósito, para adiar a inevitável conversa sobre a carta, ou se o fazia espontaneamente, sem segundas intenções, porque achava interessante que a carta tivesse demorado tanto para chegar.
— Primeiro foi para a África do Sul e então voltou para cá — explicou-me.
— Você a leu?
— É claro que sim.
— Entendeu o que eu quis dizer? — Fiz a pergunta que preferia não ter feito. Temia pela resposta que pudesse receber.
Ela apenas assentiu e não disse nada, olhando-me misteriosamente, como se possuísse um segredo e uma profunda compreensão de tudo.
— Aquilo era quase inexprimível — disse eu. Seu olhar encorajou-me a continuar. — Era tão profundo e tão vasto que eu não encontrava palavras para dizê-lo. Entendeu? Você entendeu mesmo?
Bárbara ficou um tempo em silêncio e então, com um leve suspiro, disse:
— Não sei por que os homens sempre se comportam como tolos comigo.
Eu olhei para ela. Teria mesmo dito o que ouvi? Ela ainda sorria, como só a vida é capaz de sorrir, e nesse instante eu tive a terrível premonição do que eu iria sofrer. Mesmo assim perguntei quando a veria novamente. À noite? Poderíamos jantar juntos? Bárbara balançou a cabeça; tinha um compromisso. Então almoçaríamos no dia seguinte?
— Preciso pensar. — Ela franziu os lábios e a testa. Não, lembrou-se por fim, também não poderia ser no dia seguinte. Seu primeiro tempo livre seria para jantar, dali a dois dias.
Retornei ao trabalho sentindo-me particularmente um marciano. Um dossiê com oito pastas sobre a Imperial Cellulose Company aguardava-me sobre a mesa. Minha secretária trouxe-me um relatório de especialistas sobre as patentes de óleo de mamona, que acabara de chegar. Um vendedor de tubos de borracha estava ansioso para falar comigo. E eu ainda queria aquela ligação para Belfast, sobre o negócio dos lençóis? Pensativo, eu queria tudo o que a moça estava dizendo. Para que tudo aquilo?
— Os homens se comportam como tolos com a senhora, srta. Masson? — ocorreu-me perguntar. Ergui os olhos para a secretária, que aguardava minhas ordens.
A srta. Masson ficou surpreendentemente enrubescida e, tímida, deu uma risada artificial.
— Oh, não — disse. — Devo ser um patinho feio — e acrescentou: — De certa forma é até um alívio. Mas por que está perguntando isso?
Os cabelos dela eram ruivos e crespos, a pele, muito branca, e os olhos, castanhos. Devia ter uns vinte e três anos, acho; e não era absolutamente um patinho feio. Jamais conversávamos, exceto sobre o trabalho, e raramente eu a olhava mais de perto, contentando-me em saber que ela estava presente. Era uma secretária muito eficiente.
— Por que está perguntando isso? — Uma expressão estranha, como um olhar de terror, surgiu no rosto da srta. Masson.
— Não sei. Curiosidade. Veja se consegue a ligação para Belfast esta tarde. E diga ao homem dos tubos de borracha que não poderei recebê-lo.
A atitude da srta. Masson mudou. Ela sorriu-me eficientemente, como uma boa secretária. Seu olhar tornou-se impassível.
— O senhor não poderá recebê-lo — repetiu. Ela tinha o hábito de repetir o que os outros acabavam de dizer, de reproduzir como um eco opiniões e piadas ditas um momento antes, como se fossem de sua autoria. Ela deu-me as costas e dirigiu-se para a porta. Fiquei sozinho com a história secreta da Imperial Cellulose Company e o relatório dos especialistas sobre as patentes de óleo de mamona e os meus próprios pensamentos.
Dois dias depois, Bárbara e eu jantamos num restaurante caríssimo, cujos pratos conseguiram com sucesso fazer-nos esquecer de que estávamos em plena campanha submarina e que a comida era racionada.
— Gosto muito da decoração — disse ela, olhando ao redor. — E também da música. (A sra. Cloudesley Shove achara o mesmo das Corner Houses.)
Enquanto ela apreciava a arquitetura, eu a olhava. Estava usando um vestido de noite cor-de-rosa, curto e sem mangas. A pele dos ombros e do pescoço era muito branca. Havia uma rosa brilhante na abertura do corpete. Os braços, sem serem ossudos, continuavam finos como quando ela era menina; toda a sua aparência era a de uma adolescente.
— Por que me olha assim? — perguntou-me, quando se cansou da arquitetura. Ela realçava o tom rosado das faces e dos lábios levemente sorridentes. Por entre as pálpebras escurecidas, seus olhos tinham um brilho fora do comum.
— Estava me perguntando por que você é sempre tão feliz. Uma felicidade interior, misteriosa e secretamente sua. Que segredo é esse? Era nisso que eu estava pensando.
— Por que eu não estaria feliz? — perguntou-me. — Só que, na verdade — acrescentou em seguida —, não estou feliz. Como poderia, quando milhares de pessoas morrem a cada minuto e tantas estão sofrendo? — Ela tentava demonstrar a atitude grave de quem está numa igreja. Mas a alegria secreta se insinuava irreprimivelmente por entre a estreita abertura oblíqua de seus olhos. Entocaiada, sua alma vivia um interminável feriado.
Não pude deixar de rir.
— Felizmente — disse eu —, nossa solidariedade ao sofrimento alheio não é bastante forte para impedir que jantemos. O que você prefere: lagosta ou salmão?
— Lagosta — disse Bárbara. — Mas como você é cínico! Não acredita no que estou dizendo. Asseguro-lhe que não há um só momento em que eu não me lembre dos mortos e feridos. E também dos pobres, da maneira como vivem nos cortiços. Não é possível ser feliz. Não mesmo — ela balançou a cabeça.
Percebi que, se insistisse nesse assunto, iria forçá-la a continuar aquela farsa de quem estava numa igreja, poderia arruinar-lhe a noite e, por fim, fazer com que ela deixasse de gostar de mim. Corri os olhos pelo cardápio.
— Vamos tomar champanhe?
— Aceito — disse ela, olhando-me com uma expressão indecisa, sem saber muito bem se continuava mantendo o ar grave ou se passava para uma alegria mais natural.
Pus fim a essa indecisão, mostrando-lhe um homem sentado a uma mesa próxima à nossa. Cochichei:
— Você já viu uma anta?
Ela irrompeu numa deliciosa risada; não tanto por ter sido muito engraçado o que eu disse, mas por ser um tremendo alívio poder rir novamente com a consciência tranquila.
— Acho que se parece mais com um tamanduá — sugeriu, olhando na direção indicada e debruçando-se sobre a mesa para falar mais intimamente. A proximidade daquele rosto bonito provocou-me vertigem. Eu quase gritei. A secreta felicidade daquele olhar significava juventude, saúde, era a vida incontrolável. Os lábios fechados sorriam com uma jubilosa sensação de poder. O perfume da rosa a envolvia. A flor vermelha entre seus seios fulgurava sobre a brancura da pele. De repente me dei conta de que por baixo da seda do vestido estava um corpo jovem e nu. Teria sido para essa descoberta que eu me preparara todos aqueles anos?
Depois de jantar fomos para o salão de dança; terminado o show, dançamos. Ela me disse que saía para dançar quase todas as noites. Não perguntei com quem. Bárbara parecia apreciar todas as mulheres que entravam no salão e me perguntava se eu não achava aquela muito bonita, a outra extremamente atraente; quando, pelo contrário, eu as achava repulsivas, ela se aborrecia por eu me mostrar pouco condescendente com seu sexo. Mostrou uma ruiva em outra mesa e quis saber se eu gostava daquele tipo de mulher. Quando eu disse que preferia a História da civilização na Inglaterra, de Buckle, ela riu como se eu tivesse dito algo absurdamente paradoxal. Melhorou quando ficamos em silêncio; por sorte ela possuía grande capacidade para o silêncio, podia usá-lo como uma arma de defesa quando as perguntas a desgostavam ou a deixavam envergonhada. Nesses casos, simplesmente não respondia, por mais que eu insistisse, e sorria o tempo todo misteriosamente, como se estivesse em outro mundo.
Ficamos ali durante mais ou menos uma hora, até que um jovem gordo e flácido, com cabelos muito negros e pele escura, o nariz grande e carnudo de narinas retorcidas como duas opulentas volutas orientais, passou por nós com arrogância. Ele usava um monóculo de prata no olho esquerdo, e entre os grossos fios de barba que despontavam em seu queixo havia grânulos de pó de arroz que a eles se prendiam como minúsculos flocos de neve. Ele e Bárbara cruzaram o olhar; sorrindo profusamente, o jovem aproximou-se da mesa e ambos trocaram algumas palavras. Bárbara parecia muito feliz por vê-lo.
— Ele é muito inteligente — explicou-me, quando ele seguiu para a mesa onde o aguardava a ruiva, a quem eu trocara pela História da civilização. — É sírio. Você precisa conhecê-lo; também escreve poesias, sabe?
Senti-me infeliz a noite inteira; ao mesmo tempo, preferia que nunca tivesse terminado. Teria gostado de continuar para sempre naquele porão abafado, ouvindo a banda de jazz tocar alto, como se o fizesse dentro da minha cabeça. Respiraria aquele ar viciado e dançaria eternamente sem jamais me cansar; poderia ficar ouvindo a conversa de Bárbara para sempre, só para olhar para ela, ficar perto dela, especular, até o assunto seguinte, sobre o profundo e adorável mistério que havia por trás daqueles olhos, sobre a fonte inesgotável de sua alegria secreta, que a fazia sorrir com tanta decisão e arrebatamento.
As semanas se passaram. Nós nos víamos quase diariamente. E eu a amava a cada minuto com mais violência e dor, um amor que se distanciava muito da adoração religiosa da minha infância. Mas era a memória persistente daquele amor que tornava meu desejo atual tão ardente e atormentado, provocando uma sede que nenhuma posse poderia saciar. Nenhuma posse seria possível, desde que o que eu possuísse, fosse o que fosse, como eu compreendia com mais clareza a cada vez que a via, fosse completamente diferente do que eu desejara ter em todos aqueles anos. E eu desejara toda a beleza, tudo o que existe de bom e de verdadeiro, simbolizado e encarnado em um rosto. Agora esse rosto estava muito perto, os lábios tocavam os meus; mas o que eu tinha era apenas uma mulher “de têmpera”, como costumam qualificar os eufemistas, de maneira admirável e adorável, as coisas lascivas. Ao mesmo tempo, irracionalmente e apesar das evidências, eu não deixava de acreditar que ela fosse, de certa forma e secretamente, aquilo que eu imaginava. Meu amor simbólico fortalecia o desejo pela mulher que ela era.
Tudo isso, se fosse hoje, teria me parecido perfeitamente natural e normal. Se eu faço amor com uma mulher, sei perfeitamente com quem estou fazendo amor. Mas naquela época eu ainda tinha que aprender isso. Na companhia de Bárbara eu aprendia vingando-me. Aprendia que é possível amar profundamente e como um escravo alguém por quem não se tem nenhuma estima, de quem não se gosta, a quem se considera mau-caráter e que, enfim, só nos faz infeliz e nos aborrece. E por que não amar, pergunto eu, por que não? Parece-me ser a coisa mais natural do mundo. Mas naquela época eu acreditava que o amor viesse sempre misturado à afeição e à admiração, à veneração e ao êxtase intelectual, tão duradouro quanto o que experimentamos durante a execução de uma sinfonia. Não há dúvida de que às vezes o amor se vê envolvido com alguma dessas coisas, ou todas elas; às vezes elas existem por si mesmas, independentes do amor. Mas é preciso estar preparado para engolir o que se ama em seu estado mais puro e não adulterado. É uma bebida forte, crua e, de certa forma, venenosa.
Cada hora que eu passava com Bárbara trazia novas evidências de sua falta de habilidade em representar a parte ideal que minha imaginação reservara para ela. Era egoísta, sedenta dos prazeres mais vulgares, gostava de expor-se numa atmosfera de admiração erótica, divertia-se em colecionar adoradores e tratá-los mal, era tola e mentirosa — em outras palavras, era uma das tantas jovens normais e saudáveis do sexo feminino. Eu teria ficado menos perturbado com essas descobertas se ao menos ela tivesse um rosto diferente. Infelizmente, entretanto, a jovem normal que então se revelava tinha as mesmas feições daquela criança simbólica cujo rosto eu afagara na memória durante toda a minha ardente adolescência. E o contraste entre o que ela realmente era e o que — com seu rosto estonteante e misteriosamente adorável — deveria ser segundo minha imaginação tornava-se uma fonte inesgotável de surpresa e sofrimento. Ao mesmo tempo, a natureza da paixão que eu sentia mudou de maneira inevitável e profunda no momento em que ela deixou de ser um símbolo para se tornar um ser individual. Passei a desejá-la; antes eu a amava como a Deus, como se ela própria fosse uma divindade. E, comparando esse novo amor com o que já sentira, eu me envergonhava, imaginava-me indigno, torpe, animal. Tentava me convencer de que se ela era diferente era porque eu me sentia menos nobre. Às vezes, quando ficávamos em silêncio ao pôr do sol sob as árvores de um parque, ou olhando o rio da janela de meu quarto, em Chelsea, por um rápido instante eu conseguia convencer-me de que Bárbara era o que eu imaginava e que meus sentimentos eram os mesmos que haviam sido em relação à sua memória. Entretanto, Bárbara sempre quebrava a magia do silêncio e, com ela, toda a ilusão.
— Podíamos — dizia pensativamente — ter ido comer ostras em algum restaurante. — Ou então, lembrando-se de que eu era um homem de letras, olhava as cores espalhafatosas do pôr de sol e suspirava:
— Gostaria de ser poetisa.
Isso me levava de volta aos fatos, e Bárbara voltava a ser a jovem palpável que me aborrecia, mas a quem eu desejava — um desejo tão definido e localizado! — beijar, abraçar, acariciar.
Esse desejo era o mesmo que durante algum tempo eu reprimira com tanto rigor. Lutei contra ele como algo maligno, terrivelmente contrário ao meu amor, ultrajante e incompatível com minha concepção da natureza superior de Bárbara. Ainda não aprendera a resignar-me com o fato de que a natureza superior de Bárbara era uma invenção minha, um ornamento criado pela minha imaginação.
Numa noite muito quente eu a levei de carro até a porta da casa da Regent Square, Bloomsbury, onde ela ocupava um pequeno apartamento no sótão. Tínhamos saído para jantar e já era tarde; um quarto de lua começava a erguer-se no céu e iluminava fracamente a calçada por sobre o telhado da igreja, do lado esquerdo da praça. Paguei ao motorista e ficamos sozinhos. Durante toda a noite eu me sentira irritado e aborrecido; mas a ideia de que eu teria de dizer boa-noite e seguir sozinho o meu caminho dava-me uma angústia tão grande que meus olhos se encheram de lágrimas. Permaneci onde estava, numa indecisão silenciosa, olhando o rosto dela. Bárbara sorria misteriosa e tranquila, como se o fizesse para si mesma por alguma razão secreta; seus olhos tinham um brilho diferente. Seu silêncio não continha a inquietação e a indecisão que me dominavam, mas era calmo, quase majestoso. Ela podia viver nesse silêncio, quando assim queria, como uma criatura em seu próprio elemento.
— Bem — disse eu, por fim —, tenho que ir embora.
— Por que não tomamos uma última xícara de chá? — sugeriu ela.
Movido por aquele espírito perverso que nos obriga a fazer o que não queremos, o que sabemos que causará tanto sofrimento quanto é possível em tais circunstâncias, balancei a cabeça negativamente:
— Não. Preciso ir.
Jamais desejara tanto alguma coisa quanto aceitar o convite de Bárbara.
— Entre — insistiu ela. — Não levará mais que um minuto para fazer o chá.
Novamente meneei a cabeça, desta vez angustiado demais para dizer qualquer coisa. Temia que a voz trêmula pudesse trair-me. Sabia instintivamente que, se eu entrasse com ela naquela casa, nós nos tornaríamos amantes. Minha determinação em resistir ao que pareciam ser os desejos mais básicos fortalecia a minha resolução de não entrar.
— Bem, se é assim que prefere — disse ela, dando de ombros —, então boa noite. — Sua voz escondia certo desapontamento.
Apertamo-nos as mãos e eu fui embora. Dez metros adiante minha determinação caiu por terra. Virei-me. Bárbara ainda estava à porta, tentando colocar a chave na fechadura.
— Bárbara — chamei-a, com uma voz que me soou terrivelmente falsa. Voltei correndo. Ela olhou para mim. — Importa-se que eu mude de ideia e aceite o convite? Descobri que estou mesmo com sede. — Que humilhação!, pensei.
Ela riu.
— Como você é bobo, Francis. — E acrescentou em tom de troça: — Se eu não gostasse tanto de você, diria para matar sua sede na gamela mais próxima.
— Desculpe-me. — Aproximando-me dela, senti o seu perfume de rosa e fui transportado de volta à infância, quando à noite eu descia de meu quarto com medo para encontrar tranquilizado minha mãe na sala de jantar, livre de um peso insuportável e incrivelmente feliz, mas ao mesmo tempo sentindo-me miserável por ter consciência de que o que estava fazendo era contrário a todas as regras, um pecado que eu podia avaliar pela melancólica ternura que via nos olhos de minha mãe e pelo portentoso silêncio de meu enorme e barbudo pai, olhando para mim por sobre uma nuvem tempestuosa, como um deus severo. Eu me sentia bem com Bárbara; mas completamente miserável por não estar com ela, digamos, da maneira certa. Eu não estava sendo eu mesmo. Ela, apesar de ter as mesmas feições, não era a mesma. Sentia-me bem porque sabia que logo estaríamos nos beijando; miserável porque não era dessa maneira que eu queria a minha Bárbara imaginária. E também porque, ao admitir secretamente a existência da verdadeira Bárbara, sentia a indignidade de ser escravo de uma mulher como ela.
— Se quiser, posso procurar uma gamela — disse eu, reagindo debilmente à minha revolta. Ao mesmo tempo tentava ser engraçado. — Talvez fosse melhor que eu me afogasse nela.
— Faça como quiser — disse ela com leveza. A porta se abriu e ela entrou na escuridão. Eu a segui, fechando cuidadosamente a porta. Subimos às apalpadelas a escada sem iluminação. Ela destrancou outra porta e acendeu a luz. A súbita claridade deixou-me tonto.
— Tudo está bem quando acaba bem — disse ela, sorrindo e livrando-se da capa que lhe cobria os ombros.
Pelo contrário, pensei, aquilo era um trágico engano. Cheguei mais perto dela e segurei-a pelos braços finos, pouco abaixo dos ombros. Inclinei-me e beijei a face voltada para o outro lado. Ela se virou e, então, foi a boca.
Não há futuro e tampouco há passado;
Não há raízes nem frutas, mas flores temporárias.
Deita-te. Apenas deita-te, e a noite perdurará,
Escura e silenciosa; não algumas horas, mas eternamente.
Quero esquecer-me do mundo
Mas não de seu perfume.
Quero esquecer-me das noites
Mas nunca desta.
A vergonha, o pranto fútil, o arrependimento.
Apenas deita-te, e a felicidade muda e constante
Florescerá à margem de nosso sono.
E se espalhará, até que nada mais exista.
Apenas tu e eu, abraçados, no infinito silêncio.
Mas, condenado à morte, amanhã estarei morto.
E sei, mesmo que a noite pareça infinita,
Que o céu brilhará antes da aurora.[15]
Foi então que aprendi a viver apenas o momento — a ignorar as causas, os motivos, os antecedentes, a recusar a responsabilidade por aquilo que se seguiria. Aprendi, uma vez que o futuro estava fadado a repetir o que já acontecera, a nunca esperar por consolo ou explicações, mas viver aqui e agora, no cerne da realidade humana, no próprio coração da colmeia quente e escura. Mas existe uma imprudência espontânea que nenhum esforço sério pode imitar. Sendo como sou, jamais rivalizaria com aquele tipo de menino que atira sua babá de um penhasco só para vê-la espatifar-se lá embaixo; jamais encostaria uma pistola na cabeça e por brincadeira puxaria o gatilho; jamais, olhando da galeria em Covent Garden para os fãs de Wagner e Saint-Saëns nas poltronas da primeira fila, atiraria a pequena granada de mão (por mais divertido que pudesse ser) que ainda preservo, carregada de explosivo, em minha caixa de chapéu, pronta para qualquer emergência. Essa esplêndida indiferença por tudo o que não seja a sensação imediata só posso imitar vagamente. Mas faço o melhor que posso, e sempre o fiz conscienciosamente com Bárbara. Mesmo assim, as noites sempre chegavam ao fim. E mesmo enquanto duravam, imersas em sensualidade, eu não podia nem por um instante deixar de perceber quem era Bárbara, quem eu era, fora ou seria no dia seguinte. A lembrança disso excluía todo o entusiasmo da paixão íntegra, e sob a superfície calma, sob o êxtase silencioso, inseminava-se uma profunda inquietação. Beijando-a, gostaria de não tê-la beijado; tendo-a em meus braços, preferia estar abraçando qualquer outra pessoa. E às vezes, no escuro e no silêncio, eu preferia estar morto.
Ela teria me amado? De uma maneira ou de outra, sempre dizia isso, até quando me escrevia. Tenho ainda todas as cartas — uma coleção de bilhetes apressados, enviados por mensageiros de uma ala a outra do Hotel Cecil, além de algumas cartas mais longas escritas quando ela estava em férias ou passava um fim de semana longe de mim. Espalho os papéis. São cartas competentes, bem escritas; a caneta raramente se afasta do papel, correndo de uma letra para outra, de uma palavra para outra. A escrita é clara, rápida, fluente e legível. Somente uma ou outra vez, geralmente ao finalizar os bilhetes rápidos, a clareza é prejudicada; são palavras rasuradas, corrigidas com letras disformes. Debruço-me sobre elas na tentativa de interpretar seu significado. “Adoro você, meu amor... beijo-o milhares de vezes... falta muito para a noite chegar... amo-o loucamente.” Consigo destacar das rasuras esses significados fragmentados. Escrevemos coisas como essas de forma ilegível pela mesma razão por que vestimos nosso corpo. A modéstia não nos permite andar nus, e a expressão de nossos pensamentos mais íntimos, de nossos desejos mais urgentes e memórias secretas não pode — mesmo depois de cometermos a autoviolência de colocar as palavras no papel — ser lida e compreendida facilmente. Pepys, ao registrar os detalhes mais escabrosos de seus amores, não se contentou apenas em escrever cifradamente como violou todas as normas do bom francês. Lembro-me, agora que mencionei Pepys, de ter feito a mesma coisa nas cartas que escrevi a Bárbara; finalizava-as com um “Bellissima, ti voglio un bene enorme”, ou um “Je t’embrasse un peu partout”.
Mas ela teria me amado? De certa maneira, acho que sim. Eu satisfazia a sua vaidade. Seus maiores sucessos haviam sido, na maioria das vezes, com jovens soldados. E por estar contaminada pelo esnobismo daqueles que veem um artista, ou qualquer um que se diz artista, como alguém superior aos outros seres — ela se impressionava muito mais por um boêmio qualquer do Café Royal do que por funcionários eficientes, e considerava muito mais difícil e refinado ser capaz de pintar, e mesmo de apreciar um quadro cubista ou tocar uma peça de Bartók ao piano do que dirigir um negócio ou conduzir um julgamento em um tribunal —, por essa razão ela estava profundamente convencida da minha misteriosa importância, orgulhava-se de me ver saltitando à sua volta, como um ser abjeto. Existe uma gravura alemã do século xvi, feita durante a reação contra a escolástica, que representa uma beldade teutônica nua cavalgando um homem careca e barbudo, que ela conduz com rédeas e chicote. O velho está identificado como Aristóteles. Depois de dois mil anos de submissão ao sábio infalível, sem dúvida era uma boa vingança. Para Bárbara, eu devia ser um Aristóteles menor. Mas o que tornava essa comparação de certa forma pouco lisonjeira para mim era o fato de que ela se sentia igualmente gratificada pelas atenções que recebia de outro homem de letras, o sírio moreno de queixo azulado e monóculo prateado. Acho que ele a gratificava muito mais, porque escrevia poemas que eram publicados com frequência em revistas (os meus infelizmente não eram); e o pior é que ele jamais perdia a oportunidade de dizer às pessoas que era um poeta, estava sempre discutindo as inconveniências e as compensadoras vantagens de possuir um temperamento artístico. O fato de durante certo tempo ela ter preferido a mim deveu-se à única razão de eu estar disponível e amá-la de maneira muito mais desprotegida do que ele. A ruiva que eu considerava uma substituta menor da História de Buckle ocupava grande parte do coração dele na época. Além disso, ele era um amante calmo e experiente que não perdia a cabeça por qualquer coisa. De minha parte, Bárbara podia contar com uma paixão que não esperava receber do sírio — uma paixão que, apesar da minha relutância, apesar dos meus esforços para resistir-lhe, reduzia-me a um estado abjeto aos pés dela. É agradável ser venerado, comandar e infligir dor; Bárbara gostava disso tanto quanto qualquer um.
Foi o sírio quem, no final, destituiu-me de meu posto. Notei que em outubro os amigos da África do Sul com quem Bárbara precisava almoçar e jantar chegavam com frequência cada vez maior. E quando não eram eles era tia Phoebe que de repente começava a importunar. Ou o mr. Goble, um grande amigo do avô dela.
Quando lhe pedi que me contasse sobre esses encontros, ela chegou a dizer:
— Oh, são extremamente aborrecidos! Só se fala de assuntos de família. — Ou então simplesmente sorria, dava de ombros e se recolhia num silêncio impenetrável.
— Por que você mente para mim? — perguntei.
Ela manteve o silêncio e o sorriso secreto. Houve vezes em que insisti para que se livrasse dos amigos sul-africanos e jantasse comigo. Ela consentia, relutante; mas então se vingava, falando de todos os homens interessantes que conhecera.
Uma noite, apesar de minhas súplicas, das ameaças e exigências, ela foi jantar com tia Phoebe em Golders Green e passar a noite lá; fiquei esperando por ela em Regent Square. Era uma noite fria e úmida. Permaneci em meu posto das nove horas até depois da meia-noite, andando de um lado para o outro, diante da casa em que ela morava. Conforme eu andava, corria a ponta da minha bengala pelas grades que circundavam o jardim no meio da praça, provocando um matraquear sucessivo; esses ruídos acompanhavam meus pensamentos. Das árvores molhadas caía ocasionalmente uma pesada gota d’água. Devo ter andado alguns quilômetros naquela noite.
Durante essas três horas pensei muito. Pensei na fogueira que se acendeu subitamente e revelou um rosto infantil na escuridão. Pensei no meu amor de menino, depois em como eu vira aquele mesmo rosto novamente e no amor que ele inspirara no homem adulto. Pensei nos beijos, nas carícias, nos sussurros. Pensei no sírio de olhos negros e monóculo de prata, na pele engordurada brilhando sob o pó de arroz, nos grânulos de pó de arroz presos aos fios de barba no queixo. Provavelmente eles estariam juntos naquele momento. Monna Vanna, Monna Bice — “O amor não é tão puro e abstrato como dizem os que não possuem amantes e sim musas”. A realidade estimula a imaginação, a mentira a dirige. A verdade é Bárbara, pensei, a verdade é que ela gosta do homem com monóculo de prata, a verdade é que eu dormi com ela e é provavelmente verdade que ele também.
Também é verdade que os homens são cruéis e tolos, que se deixam destruir por outros tão tolos quanto eles próprios. Pensei na paixão que eu sentia pela Justiça universal, nos meus ideais de um mundo futuro habitado por seres que vivessem de acordo com a razão. Mas para que serve o lazer, se é usado para ouvir rádio ou assistir a jogos de futebol? Para que a liberdade, se os homens se escravizam voluntariamente a políticos como os que agora governam o mundo? A educação, se só serve para ler jornais e revistas de ficção? E o futuro, o futuro radiante — supondo que viesse a ser diferente do passado em tudo menos na ostentação dos confortos materiais e na uniformidade espiritual, que de certa maneira fosse superior, o que isso tinha a ver comigo? Nada, absolutamente nada, nada, nada.
Minhas reflexões foram interrompidas por um policial que se aproximou, tocou polidamente o capacete e perguntou o que eu estava fazendo.
— Vejo o senhor andar de um lado para outro há uma hora — disse ele. Eu expliquei que estava esperando uma mulher. Ele riu discretamente. Ri também. Realmente, a brincadeira estava ficando cada vez melhor. Ele se foi e eu continuei a andar.
E essa guerra, pensei, existiria a mínima possibilidade de que algo de bom resultasse dela? Guerra para acabar com a guerra! Desta vez esse argumento fora bastante poderoso; e reforçado com um chute no traseiro, o chute mais forte que jamais se deu. Mas convenceria a humanidade mais eficazmente do que qualquer outro argumento já o fizera?
Mesmo assim os homens são corajosos, pensei, são pacientes, afáveis, dispostos a se sacrificar. Mas são também todas as contradições — são bons e maus porque não podem evitar. Perdoemo-los porque não sabem o que fazem. Tudo isso emana de uma estupidez primordial e animal. Essa é a mais profunda das realidades: o ser inconsciente, a estupidez.
E os conscientes, os lúcidos, esses são raras exceções, são irrelevantes à realidade maior, são mentiras como o amor ideal, como os sonhos do futuro, como crer na justiça. E viver entre suas obras é viver num mundo de cintilantes falsidades, muito distantes do mundo real; isso é fugir. Fugir é covardia; consolar-se com o que não é verdade ou irrelevante para o mundo em que se vive é estupidez.
E os meus talentos, tais como são, também são irrelevantes. A arte a cujo serviço eu os devoto também é uma consoladora mentira. Um marciano consideraria escrever frases com palavras de sons semelhantes a intervalos regulares algo tão bizarro quanto comprar óleo de mamona para lubrificar as máquinas de destruição. Lembrei-me de algumas linhas que tinha escrito para Bárbara — palavras de amor bastante cômicas — por ocasião da última epidemia de ataques aéreos de surpresa. Os octossílabos rimavam em minha cabeça.
E quando a lua cheia convidar
Outros seres e monstros noturnos,
Buscaremos uma alcova profunda,
Um recanto memorável para o amor.
Ali nos deitaremos com doces e vinhos
E desafiaremos a tola a brilhar...[16]
Eu os estava repetindo para mim mesmo quando um táxi entrou na praça silenciosa, aproximou-se do meio-fio e parou em frente à casa de Bárbara. À luz fraca de um lampião embaçado vi duas pessoas saírem de dentro dele: um homem e uma mulher. A silhueta masculina adiantou-se, curvou-se sobre sua mão e começou a contar moedas à luz da pequena lâmpada do taxímetro. No estreito facho de luz percebi o brilho de um monóculo. As moedas retiniram ao passar para outras mãos, e o táxi foi embora. As duas figuras subiram os degraus, a porta se abriu e elas entraram na casa.
Retirei-me, repetindo todas as palavras injuriosas e ofensivas que podem ser ditas a uma mulher. Sentia quase um alívio. Agradava-me pensar que tudo terminara, que tudo estava definitivamente e para sempre encerrado.
— Boa noite, senhor.
Era o mesmo policial. Pareceu-me notar um tom quase imperceptível de zombaria em sua voz.
Não dei sinal de vida nos quatro dias seguintes. Esperava que ela me telefonasse ou escrevesse para perguntar o que havia comigo. Nada disso aconteceu. Minha sensação de alívio transformou-se em sentimento de miséria. No quinto dia, ao sair para almoçar, encontrei-a no pátio. Nenhum comentário foi feito sobre meu silêncio prolongado e sem precedentes. Eu não disse nenhuma das coisas amargas que planejara caso a encontrasse acidentalmente, como estava acontecendo. Pelo contrário, pedi, cheguei a implorar que almoçasse comigo. Bárbara recusou; tinha um encontro com alguém da África do Sul.
— Vamos jantar, então — roguei como um ser desprezível.
Aquela humilhação não podia continuar. Eu teria dado qualquer coisa para cair novamente em suas boas graças.
Bárbara meneou a cabeça negativamente e disse:
— Eu gostaria muito, mas aquele aborrecido mr. Goble...