Capítulo 6

Esses eram os fantasmas que minha recitação chamava para dançar na superfície do mar Tirreno. Eles me faziam lembrar que eu estava em férias, que a paisagem no meio da qual eu flutuava agora era bem melhor do que uma ilusão e que a vida era real e corriqueira apenas durante os onze meses que eu passava entre Gog’s Court e a casa da srta. Carruthers. Eu era um inglês democrata e um londrino, vivendo numa época em que o Daily Mail vendia dois milhões de exemplares todas as manhãs; não tinha direito a todo este sol, ao mar tépido e claro, a tantas montanhas e nuvens, à imensidão azul do céu; não tinha direito a Shelley; e se fosse um verdadeiro democrata não teria o direito nem de pensar. Mas novamente preciso confessar minha fraqueza congênita.

No aconchego da água eu sonhava com o estado democrático ideal, em que nenhuma exceção irrelevante, inspirada pelo Espírito Santo, perturbaria a serenidade da regra — a regra de Cloudesley e Carruthers, de Fluffy e do inigualável e atento Brimstone —, quando simultaneamente percebi que um barco se aproximava de mim por trás, na verdade quase tocando minha cabeça. A vela branca enfunava-se acima de mim; uma leve ondulação na proa, o clop-clop de pequenas ondas batendo em seus flancos, o barco envernizado chegando cada vez mais perto. É algo terrível ser sacudido por aquele súbito espasmo de medo que não pode ser controlado porque vem tão depressa que as forças reguladoras da mente são apanhadas de surpresa. Parece que todas as células do corpo sentem esse terror; em um instante, se é reduzido da categoria de homem a um amontoado de amebas contraídas. Sente-se baixar na escala dos seres, cair na linhagem evolucionária e por um segundo tornar-se nada mais que um animal assustado, aterrorizado. Em um momento eu estava cochilando no meu colchão translúcido como um filósofo; no momento seguinte, gritava desarticuladamente, movia desesperadamente meus membros para fugir do perigo iminente.

— Ei! — gritei, e então senti uma pancada no lado da cabeça e fui empurrado para dentro da água. Eu tinha consciência de estar engolindo grande quantidade de água salgada, enchendo meus pulmões com ela e me afogando violentamente. De repente não vi mais nada; o golpe deve ter me atordoado por um momento. Recobrei mais ou menos a consciência e vi que voltava à superfície, com metade da cabeça fora da água. Eu tossia e arfava — tossia para me livrar da água nos pulmões e arfava em busca de ar. Mas tanto um processo como o outro, percebo agora, resultavam exatamente no contrário do que eu pretendia. Porque eu tossia todo o ar que havia nos pulmões e, por estar com a boca dentro da água, tomava grandes goles de salmoura. Meu sangue, enquanto isso, saturado de gás carbônico, continuava a correr para dentro dos pulmões na tentativa de trocar o tóxico mortal por oxigênio. Em vão; não havia oxigênio para ser trocado.

Eu sentia uma dor terrível na nuca — não excruciante, mas constante; constante, abrangente, profunda e, ao mesmo tempo, estranhamente nauseante —, uma dor muito desagradável. O sistema nervoso controlador da respiração, desesperado, começava a entrar em colapso; a dor na nuca era seu aceno de despedida, seu último espasmo de agonia. Lentamente fui perdendo a consciência; eu desaparecia aos poucos como o Gato que Ri de Alice no país das maravilhas. A última coisa que restava, que continuava presa à consciência quando tudo mais desvanecia, era a dor.

Nessas circunstâncias, sei que o clássico seria que toda a minha vida se desenrolasse num átimo diante dos olhos da mente. Zás... um drama desinteressante em trinta e dois carretéis se desenrolando, e eu me lembraria de tudo, desde o gosto do leite na mamadeira até o Marsala que eu bebera na noite anterior no Grande Hotel; da primeira repreensão ao último beijo. Entretanto, nenhuma dessas coisas esperadas aconteceu. Lembro-me de que meus últimos pensamentos, enquanto eu mergulhava na inconsciência, foram para minha mãe e para a Gazeta do Criador de Coelhos. Num último acesso dessa consciência que me perseguia e me colocava em desvantagem durante toda a minha vida, pensei que deveria ter deixado pronto o editorial da próxima quinta-feira. Ocorreu-me também que seria um enorme transtorno para minha mãe quando ela chegasse dentro de poucos dias e soubesse que eu não estava mais em condições de acompanhá-la na viagem a Roma.

Quando recobrei os sentidos, estava deitado de bruços na areia, com alguém sentado nas minhas costas, como se brincássemos de cavalinho, aplicando o método do professor Schaefer para produzir respiração artificial. “Uno, due, tre, quattro.... Sempre que dizia “quatro”, o homem nas minhas costas punha todo o seu peso nas mãos, apoiadas em cada lado da minha espinha, nas costelas inferiores. O conteúdo dos pulmões era expelido violentamente. Então meu salvador se erguia novamente, a pressão era relaxada e meus pulmões se enchiam de ar. “Uno, due, tre, quattro, o processo recomeçava.

— Ele está respirando. Já está bem. Está abrindo os olhos!

Cuidadosamente, como se eu fosse uma preciosa porcelana chinesa, viraram-me de costas. Tive consciência do sol forte, de uma dor latejante localizada em algum ponto da têmpora esquerda, de muitas pessoas ao meu redor. Deliberada e conscientemente eu aspirava o ar; muitas vozes ditavam-me instruções. Duas pessoas começaram a esfregar a sola dos meus pés. Uma terceira chegou correndo com um baldinho cheio de areia quente e espalhou-a sobre meu estômago. Essa feliz ideia fez imediatamente um imenso sucesso. Todos os espectadores, curiosos e solícitos, que antes rodeavam o meu cadáver, assistindo ao que o professor Schaefer fazia e desejando também fazer alguma coisa para ajudar, descobriam agora que realmente havia algo útil a ser feito. Podiam ajudar a normalizar minha circulação espalhando areia quente sobre mim. No mesmo instante, uma dúzia de pessoas passou a recolher a areia da superfície da praia nos baldinhos, usando pás ou as próprias mãos, e voltavam correndo para jogá-la em cima de mim. Logo eu estava quase enterrado. No rosto de todos os meus bons samaritanos eu notava uma seriedade e sinceridade quase infantis. Iam e voltavam com seus baldes, como se não tivessem nada mais sério para fazer na vida além de construir castelos de areia sobre o peito de afogados. As crianças também contribuíam. A princípio, aterrorizadas com o espetáculo oferecido pelo meu cadáver lívido e lasso, elas se agarravam à mão de suas mães e se encolhiam atrás das saias protetoras, assistindo ao procedimento do professor Schaefer nas minhas costas. Elas relutavam entre a curiosidade e a repulsa. Mas quando voltei à vida, ao perceberem que os mais velhos estavam cobrindo-me de areia e que isso podia ser uma ótima brincadeira, tiveram uma reação violenta. Alegres e excitadas, aos gritos e aos saltos, corriam de um lado para o outro com suas pazinhas. Com muita dificuldade os adultos evitaram que elas atirassem areia em meu rosto, dentro das orelhas e da boca. E um menino, ansioso para fazer algo que ninguém ainda tinha feito, correu para o mar, encheu o balde de água e areia, voltou e esvaziou-o com um grito triunfal, plop!, do alto, bem do alto, bem no meio do meu plexo solar.

Isso foi demais para mim. Desatei a rir. Mas não consegui ir muito longe com minha risada. Após o primeiro acesso, quando eu quis tomar fôlego para a seguinte, descobri que não me lembrava mais de como fazê-lo. E foi somente depois de uma longa e sufocante luta que consegui readquirir essa arte. As crianças se assustaram; isso não fazia parte da brincadeira. Os adultos pararam de ser úteis e consentiram em se afastar do meu corpo com a ajuda das autoridades competentes. Um guarda-sol foi enfiado na areia atrás de mim. Dentro de sua sombra rosada fui deixado em paz para que meus primeiros passos na existência estivessem assegurados. Fiquei de olhos fechados durante muito tempo. De um ponto muito distante, parecia-me, alguém ainda esfregava meus pés. Periodicamente, outra pessoa enfiava uma colher de leite com conhaque dentro da minha boca. Sentia-me exausto, mas maravilhosamente bem. E naquele momento não havia nada mais prazeroso do que apenas respirar.

Algum tempo depois senti-me bastante forte e seguro para abrir novamente os olhos e ver. Como tudo me pareceu belo e original! A primeira coisa que vi foi um jovem gigante seminu agachado aos meus pés, esfregando as solas e os calcanhares. A pele bronzeada e lustrosa encobria os músculos ondulados. O rosto era o de um romano, os cabelos negros e encaracolados. Quando percebeu que meus olhos estavam abertos e que eu olhava para ele, sorriu; os dentes eram brancos e brilhantes, os olhos castanhos reluziam sobre um fundo esmaltado de azul.

Alguém me perguntou em italiano como eu estava me sentindo. Olhei para o lado. Um homem corpulento, com um grande rosto vermelho e bigode preto, estava sentado. Em uma das mãos segurava uma xícara e na outra uma colher. Vestia calças de linho branco. O suor gotejava de seu rosto; ele parecia untado de manteiga. Ao redor dos olhos negros, pequenas rugas se espalhavam como os raios de uma auréola. Ele me ofereceu a colher. Eu engoli. As costas de suas mãos escuras eram recobertas de pelos finos.

— Sou o médico — explicou e sorriu. Movi a cabeça e também sorri. Eu nunca tinha visto um médico tão amável e atencioso.

Então ergui os olhos e o céu estava azul, lindamente festonado pela extremidade do guarda-sol cor-de-rosa. Olhei para baixo e vi pessoas em volta — todas sorriam. Por entre elas, eu vislumbrava o mar azul.

— Belli sono — disse ao médico, e voltei a fechar os olhos.

Tantas pessoas bonitas... Na escuridão avermelhada, por trás de minhas pálpebras, eu as ouvia. Lentamente, voluptuosamente, inspirei o ar salgado. O jovem gigante ainda esfregava meus pés. Com esforço ergui uma das mãos e pousei-a sobre o peito. Levemente, como um cego percorrendo os relevos de uma escrita em braile, corri os dedos pela minha pele. Senti as costelas e as pequenas depressões entre uma e outra. Simultaneamente, senti na ponta dos dedos um pulsar quase imperceptível: era o que eu estava procurando. Os dedos cegos que percorriam a página haviam se deparado com uma palavra estranha. Não tentei interpretá-la. Bastava-me que ela estivesse lá. Durante muito tempo fiquei imóvel, sentindo meu coração bater.

— Si sente meglio? — perguntou o médico.

Eu abri os olhos.

— Sinto-me feliz. — Ele sorriu. Os raios das auréolas de seus olhos se estenderam. Foi como se esse símbolo sagrado de certa forma tivesse se tornado mais sagrado.

— Que bom que você está vivo — disse ele.

— Muito bom.

Olhei o céu mais uma vez e o guarda-sol cor-de-rosa em cima de mim. Olhei o jovem gigante, tão forte e ao mesmo tempo tão doce, junto aos meus pés. Olhei para a direita e para a esquerda. O círculo de curiosos se desfizera. Fora de perigo, eu cessava de ser objeto de simpatia ou curiosidade. Estavam todos ocupados com seus próprios afazeres, como de hábito. Eu os observei e me senti feliz.

Um jovem casal em roupas de banho passou por mim devagar, na direção do mar. O rosto deles, o pescoço e os ombros, os braços e pernas nus tinham uma tonalidade marrom-clara e transparente. Eles andavam devagar, de mãos dadas e tão graciosos, tão descontraídos que senti vontade de chorar. Eram muito jovens, altos, esguios e fortes. Belos como uma parelha de potros puro-sangue; belos, lânguidos e majestosos, andavam em um mundo que estava além do bem e do mal. Eu não me importava com o que estivessem fazendo ou sobre o que conversavam; justificava-os o mero fato de existirem. Eles pararam e olharam para mim; um com olhos castanhos, o outro, acinzentados, fizeram brilhar para mim os dentes brancos e perfeitos; perguntaram como eu estava me sentindo e, quando eu disse que estava melhor, sorriram outra vez, continuando a andar.

Uma menina com um vestido florido em tons mais pálidos do que seu rosto e membros bronzeados chegou correndo, parou a poucos metros de mim e ficou olhando atentamente. Seus olhos eram muito grandes, de cílios negros e absurdamente longos. Acima deles expandia-se uma fronte abobadada de fazer inveja a qualquer filósofo. O nariz arrebitado era tão pequeno que mal se notava. Os cabelos negros e frisados se eriçavam em volta da cabeça, num estado de explosão permanente. Ela ficou me olhando um longo tempo. Também olhei para ela.

— O que você quer? — perguntei por fim.

E de repente, ao ouvir minha voz, a criança foi tomada por uma grande timidez. Cobriu o rosto com o braço, como se estivesse se protegendo de um golpe. Então, em seguida, espiou-me por baixo do cotovelo. O rosto estava vermelho. Perguntei novamente. Mais uma vez ela se assustou. Correu de volta para sua família, reunida alguns metros adiante em um estreito e precário oásis de sombra produzido pelo guarda-sol. Ela se encolheu nos braços de uma plácida mãe vestida de musselina branca. Tendo conseguido abolir minha existência ao afundar o rosto no peito confortável, ela escorregou do colo da mãe e voltou a brincar serenamente com a irmã mais nova, como se o desagradável incidente não tivesse ocorrido.

Melancólico, de algum ponto distante, ouvi o pregão longo e entrecortado do vendedor de roscas. “Bombolani!” Duas jovens marquesas norte-americanas passaram em seus roupões de banho púrpura, falando ambas ao mesmo tempo e numa única e infatigável tonalidade. “...e ele tem um gênio adorável!”, disse uma delas. “Mas o que eu mais gosto”, disse a outra, que parecia ter assimilado mais o estilo latino de pensar, “é dos seus dentes.” Um homem de meia-idade, cuja barriga só podia ser resultado de muita pasta, e um menino magrinho de uns doze anos entraram em meu campo de visão, saindo molhados do mar. A areia quente os fazia saltitar com uma agilidade agradável de se ver. Mas a sola dos pés da louca Concetta era feita de material mais grosso. Descalça, ela descia as montanhas diariamente, carregando num braço o cesto cheio de frutas e na outra mão um cajado. Vendia seus produtos na praia ou percorria as casas de veraneio até que o cesto estivesse vazio. Então retornava, cruzando as planícies e subindo os morros. Desviei o olhar do homem gordo e do menino magro e a vi diante de mim. Ela usava um vestido velho, todo sujo e esfarrapado. Tufos de cabelos brancos escapavam por baixo do grande chapéu de palha. Seu rosto de velha era magro, astuto e impaciente; a pele enrugada lembrava um pergaminho esticado sobre os ossos. Apoiada em seu cajado, ela ficou olhando para mim durante algum tempo, sem dizer nada.

— Então é você o estrangeiro afogado? — disse por fim.

— Se ele tivesse se afogado não estaria aqui vivo — observou o médico. O jovem gigante achou isso muito engraçado; riu ruidosamente, das profundezas de seu peito largo. — Vá embora, Concetta — continuou o médico. — Ele precisa descansar. Não vá perturbá-lo com seus discursos.

Concetta não prestou atenção a ele. Costumava fazer esse tipo de coisa.

— O que seria de nós — começou, balançando a cabeça — sem a misericórdia de Deus? Você é tão jovem, signorino... Tem tempo para muita coisa. Deus o preservou. Eu sou velha, mas me ajoelho diante da cruz. — Ela aprumou-se e ergueu o cajado. Na ponta amarrara uma cruz feita com dois pedaços de madeira. Beijou-a com devoção. — Eu amo a cruz. A cruz é bela, a cruz é... — Mas foi interrompida por uma jovem babá que veio lhe pedir meio quilo de uvas. Não devia ser permitido que os negócios interferissem na teologia. Concetta pegou sua pequena balança de ferro, pôs um cacho de uvas no prato e moveu o peso na barra para um lado até equilibrar. A babá esperava. Tinha um rosto redondo e vermelho, sardas, cabelos negros e os olhos como dois botões pretos. Era carnuda como uma fruta. O jovem gigante olhou-a com sincera admiração. Ela rolou os botões na direção dele, só por um instante, e em seguida ignorou-o por completo; murmurava desinteressadamente consigo mesma, como se estivesse sozinha numa ilha deserta e quisesse manter o espírito elevado, e olhava distraída as pitorescas belezas da natureza.

— Seiscentos gramas — disse Concetta.

A babá pagou pelas uvas e, ainda murmurando, ainda em sua ilha deserta, afastou-se em pequenos passos, ondulando redonda como uma lua entre nuvens agitadas pelo vento. O jovem gigante parou de esfregar meus pés e seguiu-a com os olhos. Tão bela e pacífica como a lua, a babá, sempre rebolando, claudicava instavelmente em seus saltos altos sobre a areia.

Rabear, pensei. O velho Skeat acertou em cheio na tradução da palavra.

— Bella grassa — disse o médico, verbalizando os óbvios sentimentos do jovem gigante. Os meus também; porque, afinal, ela estava viva, obedecia às leis de sua natureza, caminhava sob o sol, comia uvas e rabeava. Fechei os olhos novamente. O sangue pulsava e o coração batia regularmente sob meus dedos. Eu me sentia como Adão recém-criado, frágil como uma borboleta que acabava de sair de sua crisálida — o barro vermelho, ainda úmido e mole, não permitia que eu me levantasse. Mas logo, quando estivesse seco e firme, eu me ergueria e sairia galopando pelo mundo afora, eu próprio um jovem gigante, um puro-sangue gracioso e majestoso, uma criança, um lunático maravilhoso.

Existem pessoas que conseguem passar a vida em estado de permanente convalescença. Comportam-se o tempo todo como se tivessem sido milagrosamente salvas da morte há apenas um momento; sempre animadas, unicamente por estarem vivas, e intoxicadas de felicidade só porque, por sorte, não estão mortas. Para as que não vivem essa convalescença, pode ser que o segredo da felicidade consista em meio afogamento regularmente, três vezes ao dia, antes das refeições. Recomendo-o como uma alternativa mais drástica para o meu “trenó-aquático-em-cada-escritório” como tratamento para o tédio.

— Está sozinho aqui? — perguntou o médico.

Assenti com a cabeça.

— Nenhum parente?

— Não no momento.

— Nem amigos?

— Humm — fiz eu.

Ele tinha uma verruga no lado do nariz, onde este se junta com o rosto. Descobri-me estudando-a atentamente; era uma verruga muito interessante, esbranquiçada mas um pouco avermelhada na parte superior. Como uma cereja não totalmente madura.

— O senhor gosta de cereja? — perguntei.

O médico ficou bastante surpreso.

— Gosto — disse, depois de um pequeno silêncio e grande deliberação, como se tivesse pesado muito bem o assunto antes de responder.

— Eu também. — E explodi numa risada. Desta vez, porém, minha respiração suportou triunfalmente o esforço. — Eu também, mas só se estiver madura — acrescentei, quase sem fôlego de tanto rir. Nunca se dissera nada tão engraçado.

Foi então que a sra. Aldwinkle entrou definitivamente em minha vida. Ainda sem poder conter o riso, olhei para o lado e vi de repente a dama-lanterna-chinesa do patino diante de mim. Seu traje estampado em tons vermelhos, agora um pouco menos berrante por estar molhado, reluzia ainda nas sombras aquáticas de sua sombrinha verde, e pela expressão de seu rosto era como se ela tivesse se afogado e não eu.

— Ouvi dizer que é inglês — disse ela com a mesma voz mal controlada e desarmônica que eu ouvira, não havia muito tempo, citando Shelley incorretamente.

Ainda fraco e atordoado em minha convalescença, concordei.

— Disseram-me que quase se afogou.

— Correto — disse eu, sem conseguir parar de rir; a piada era mesmo fantástica.

— Sinto muito por saber... — Ela não costumava completar suas frases. As palavras iam sumindo numa nódoa de sons indistintos e desarticulados.

— Não se preocupe — pedi. — Nem foi tão desagradável. Afinal, seja como for... — Olhei para ela com afeição e a curiosidade ilimitada de um convalescente. Ela também me olhava. Esses olhos, pensei, devem ter a mesma convexidade daquelas pequenas lentes vermelhas que são parafusadas nas traseiras das bicicletas: absorvem toda a luz que há em volta e a refletem novamente com um brilho concentrado.

— Vim saber se posso ajudar em alguma coisa — disse a dama-lanterna-chinesa.

— Muito gentil de sua parte.

— Está sozinho aqui?

— Até agora estou.

— Então talvez seja bom para você passar um ou dois dias em minha casa, até que esteja inteiramente... — A voz foi sumindo, ela fez um gesto que implicava a palavra que faltava e continuou: — Tenho uma casa perto daqui — disse, indicando com a mão a parte montanhosa da paisagem shelleyana.

Jubiloso em meu estado ainda atordoado, aceitei o convite.

— Encantador — disse eu. Tudo naquela manhã era decididamente encantador. Eu teria aceitado com prazer genuíno e puro um convite para ficar com a srta. Carruthers e o mr. Brimstone.

— Qual é o seu nome? Ainda não sei — disse ela.

— Chelifer.

— Chelifer? Seria Francis Chelifer?

— Francis Chelifer — afirmei.

— Francis Chelifer! — Decididamente ela punha toda a alma em meu nome. — Mas é maravilhoso! Quero conhecê-lo há muitos anos.

Pela primeira vez, desde que eu voltara embriagado da morte, tive uma terrível premonição do que seria estar sóbrio no dia seguinte. Lembrei-me então de que, virando a esquina, apenas virando a esquina, eu encontraria o mundo real.

— E o seu nome, qual é? — perguntei, apreensivo.

— Lilian Aldwinkle — disse a dama-lanterna-chinesa, moldando os lábios num sorriso incrivelmente penetrante em sua doçura. As lâmpadas azuis que eram seus olhos brilhavam com tanta intensidade que até um motorista daltônico, desses que enxergam ônibus verdes circulando em Piccadilly e árvores e grama vermelha no Green Park, teria reconhecido a cor deles, pelos sinais de perigo que representavam.

Uma hora depois eu estava reclinado no assento do Rolls-Royce da sra. Aldwinkle. Não havia como fugir.