Capítulo 3
Era uma pena que o mr. Cardan não pudesse ouvir o que sua anfitriã estava dizendo. Ele teria adorado: ela falava sobre si mesma. Era um assunto sobre o qual ele especialmente gostava de ouvi-la. Há poucas pessoas, costumava ele dizer, cuja versão autorizada de si mesma difere tanto da revisada, que é a formada pelos outros. No entanto, não era sempre que a sra. Aldwinkle lhe dava a chance de comparar ambas as versões. Diante do mr. Cardan ela ficava sempre mais tímida; eles se conheciam havia tanto tempo.
— Às vezes — dizia a sra. Aldwinkle a Chelifer, caminhando no segundo dos três terraços —, às vezes eu gostaria de ser menos sensível. Sinto todas as coisas de uma maneira muito penetrante, por mais sutis que elas sejam. É como estar sendo... sendo... — ela movia as pontas dos dedos como se agarrasse o ar, em busca da palavra certa — como estar sendo arranhada — concluiu triunfante, e olhou para o companheiro.
Chelifer meneou a cabeça afirmativamente.
— Sou muito perceptiva — continuou ela — aos pensamentos e sentimentos das pessoas. Não é preciso falar para que eu saiba o que elas têm na mente. Eu sei, eu sinto só de olhar.
Chelifer perguntou-se se ela sabia o que ele tinha na mente. Aventurou-se a duvidar.
— É um dom maravilhoso — disse ele.
— Mas tem suas desvantagens — insistiu a sra. Aldwinkle. — Por exemplo, você não imagina como sofro quando as pessoas ao meu redor estão infelizes, principalmente se me sinto de certa forma responsável. Se estou doente, sinto-me mal ao pensar nos criados, nas enfermeiras e nas pessoas em geral, todos acordados, subindo e descendo escadas a noite toda por minha causa. Sei que é bobagem; mas, sabe, sou tão... tão profundamente reconhecida a todos eles que esse próprio reconhecimento impede-me de sarar mais depressa...
— É muito desagradável — disse Chelifer no seu tom mais polido e direto.
— Você não imagina como o sofrimento me afeta. — Ela o olhou com ternura. — Naquele dia, no primeiro dia, quando você desmaiou, não pode nem imaginar...
— Peço desculpas por tê-la afetado tanto — disse Chelifer.
— Você teria reagido da mesma maneira, naquelas circunstâncias. — A sra. Aldwinkle pronunciou as duas últimas palavras num tom significativo.
Chelifer balançou a cabeça com modéstia.
— Devo dizer que sou singularmente estoico para com o sofrimento alheio.
— Por que se coloca sempre contra si mesmo? — perguntou a sra. Aldwinkle com sinceridade. — Por que denegrir seu próprio caráter? Sabe que não é o que finge ser. Quer se fazer passar por alguém muito mais duro e seco do que realmente é. Por que faz isso?
Chelifer sorriu.
— Talvez seja para estabilizar a média universal. Há muita gente que se mostra mais amável e sensível do que de fato é. Não acha?
A sra. Aldwinkle ignorou a pergunta.
— Mas você — insistiu —, quero saber de você. — Ela o olhava fixamente. Chelifer sorriu e não disse nada. — Não vai me dizer? Não faz mal. Estou preparada. Sou muito intuitiva. Graças à minha sensibilidade, eu sinto o caráter das pessoas. E nunca me engano.
— É invejável — disse Chelifer.
— Não pense que pode me enganar — continuou ela. — Ninguém pode. Eu o compreendo. — Chelifer suspirou interiormente; ela já dissera isso antes, mais de uma vez. — Quer saber como você realmente é?
— Quero.
— Bem, para começar — disse ela —, é um homem tão sensível quanto eu. Vejo-o em seu rosto, na maneira como age. Ouço-o quando fala. Mesmo que finja ser rijo e... e... impenetrável, mas eu...
Enfastiado mas paciente, Chelifer ouvia. A voz oscilante da sra. Aldwinkle subia e descia, de uma nota para outra não relacionada, ferindo-lhe os ouvidos. As palavras se tornavam vagas e distantes. Perdiam a articulação e o sentido. Não eram mais que o barulho do vento; um som que acompanhava mas não lhe interrompia os pensamentos. E nesse momento os pensamentos de Chelifer eram poéticos. Ele dava os últimos retoques no seu pequeno “Incidente mitológico”, uma ideia que lhe ocorrera recentemente e na qual vinha trabalhando nos últimos dois dias. Agora estava concluído; um certo polimento era só o que faltava.
Através do pálido esqueleto de florestas
Órion caminha. O vento norte cola
Seus lábios frios às flautas gêmeas de aço
Que são sua arma. E seu brinquedo.
Enterrado até os joelhos ele vai aonde
Algum avarento dos bosques
— Mais ladino do que toda aquela gente
que rouba e acumula, ano após ano —
juntou todo o seu precioso cobre.
A Rainha do Amor e da Beleza atira
suas iscas nas alamedas de faias —
Migalhas de pão e o milho dourado.
Pacientemente ela espera.
E quando o incauto faisão vem
Encher seu colorido papo de migalhas,
Com precisão a esportiva Rainha
Mira o alvo. O pássaro já não é.
Confiante, Órion segue o seu caminho.
A cipriota carrega, aponta, faz fogo.
Ele cai. E Vênus toda inteira
Debruça-se sobre a presa caída.[18]
Chelifer repetiu os versos em silêncio e não desgostou deles. A segunda estrofe talvez fosse um pouco “mimosa”; um pouco, talvez — como dizê-lo? —, como um livro de figuras de Walter Crane. Talvez devesse omiti-la; ou substituí-la, quem sabe, por algo mais em harmonia com a elegância alusiva à Idade de Prata de todo o resto. Quanto ao último verso, era realmente magistral. Dava a Racine sua raison d’être; se Racine nunca tivesse existido, teria sido necessário inventá-lo só por estas duas linhas.
Ele cai. E Vênus toda inteira
Debruça-se sobre a presa caída.
Extasiado, Chelifer demorou-se neles. Foi então que notou que a sra. Aldwinkle dirigia-se a ele de maneira mais direta. De inarmonicamente eólia, a voz dela se tornara agora mais articulada.
— Você é assim — estava ela dizendo. — Não estou certa? Não compreendo você?
— Talvez — disse Chelifer, sorrindo.
Enquanto isso, no terraço de baixo, Calamy e a srta. Thriplow conversavam à vontade. Discutiam um assunto que a srta. Thriplow professava com grande competência; era — para usar a linguagem das bancas examinadoras — o seu Tema Especial: eles discutiam sobre a Vida.
— A vida é maravilhosa — dizia ela —, sempre. Rica e alegre. Acordei esta manhã, por exemplo, e a primeira coisa que vi foi uma pomba pousada no peitoril da janela. Uma grande pomba cinzenta, que tinha um arco-íris aprisionado, cravado em seu peito. — Essa frase, especialmente bem encontrada e bonita, a srta. Thriplow decidiu registrar, para referências futuras, em seu caderno de anotações. — Depois, no alto da parede do lavabo, vi um pequeno escorpião saído dos signos do Zodíaco. Então Eugênia entrou e me chamou; imagine-se recebendo água quente de uma criada que, para começar, se chama Eugênia. Ela começou a falar, e o fez por um quarto de hora. Contou-me sobre seu noivo, que parece ser muito ciumento. Eu também seria se estivesse noiva de um par de olhos tão vivos quanto os dela. Pense em tudo isso que por casualidade aconteceu antes do café da manhã! É uma extravagância! A vida é tão generosa, tão copiosa! — disse, voltando o rosto radiante para o companheiro.
Calamy a olhava através das pálpebras semicerradas, sorrindo, com aquele ar insolente e sonolento, com aquele poder indolente, tão característicos dele, especialmente em suas relações com as mulheres.
— Generosa! — repetiu. — Sim, eu diria que é. Pombas antes do café... E no café a vida oferece você.
— Como se eu fosse salmão defumado — disse a srta. Thriplow, rindo.
Mas Calamy não se incomodou com a risada dela. Continuou a olhá-la por entre as pálpebras, com a mesma insolência, a mesma certeza de poder — uma certeza absoluta que não lhe exigia nenhum esforço; plácido, sonolento, ele podia esperar pelo inevitável triunfo. Era isso que deixava a srta. Thriplow inquieta. E o que a fazia gostar dele.
Continuaram a andar. Quinze dias antes, eles jamais poderiam estar assim, conversando à vontade no terraço sobre o Tema Especial da srta. Thriplow. Sua anfitriã teria posto fim a qualquer tentativa rebelde de independência, da maneira mais rude e imediata. Mas desde que Chelifer chegara a sra. Aldwinkle estava preocupada demais com os interesses de seu próprio coração para dar a mais leve atenção ao que faziam e diziam ou aonde iam seus hóspedes. Relaxara a vigilância do carcereiro. Eles podiam conversar entre si, caminhar sozinhos ou aos pares, desejar boa-noite a todos quando desejassem; a sra. Aldwinkle não se importava. Desde que não interferissem na sua relação com Chelifer, podiam fazer o que bem quisessem. Fay ce que vouldras[19] passou a ser a regra no palácio dos Cybo Malaspina.
— Jamais entenderei — continuou a srta. Thriplow meditativamente, prosseguindo com seu Tema Especial — por que as pessoas não são felizes; quero dizer, fundamentalmente felizes. É claro que o sofrimento existe, a dor existe, há mil razões para que alguém não seja conscientemente feliz, na superfície, entende? Mas eu me refiro à felicidade básica; como não tê-la? Mesmo que alguém se sinta miserável, a vida continua sendo maravilhosa. Concorda comigo? — Ela estava sendo levada pelo seu amor à Vida. Era uma mulher jovem e ardente, via-se como uma criança a saltar, por pura alegria, sobre montes de feno perfumado. A pessoa podia ter o talento que tivesse, mas se sentisse um amor genuíno pela vida nada mais importaria: estaria salva.
— Concordo — disse Calamy. — É sempre bom viver, mesmo nas épocas mais difíceis. E quando acontece de se estar apaixonado, então é realmente intoxicante.
A srta. Thriplow olhou para ele. Calamy estava de cabeça baixa e os olhos fixos no chão. Havia um leve sorriso em seus lábios; as pálpebras estavam quase fechadas, como se tivesse tanto sono que fosse incapaz de mantê-las abertas. Isso incomodava a srta. Thriplow. Ele fazia uma observação daquelas e nem se dava ao trabalho de dirigir-lhe o olhar.
— Não acredito que já tenha se apaixonado — disse ela.
— Não me lembro de ter estado — respondeu Calamy.
— O que é o mesmo que dizer que nunca se apaixonou de fato — insistiu a srta. Thriplow. Ela sabia muito bem o que estava dizendo.
— E você? — perguntou Calamy.
Ela não respondeu. Deram duas ou três voltas em silêncio. Era tudo tolice, pensava Calamy. Ele não estava realmente apaixonado por ela. Aquilo era uma perda de tempo e havia coisas mais importantes a serem feitas. Outras coisas. Elas surgiam por trás do espanto e do alvoroço da vida, longe do ruído e do vozerio. Mas o que eram elas? Que forma tinham, como se chamavam, o que significavam? Através do tremulante véu do movimento era impossível fazer mais do que as supor vagamente; era como olhar as estrelas através da neblina de Londres. Se alguém pudesse cessar o movimento ou escapar dele, então com certeza conseguiria ver claramente, as coisas grandes e silenciosas que existiam além. Mas cessar o movimento era impossível e, de um modo geral, não se podia fugir dele. A única coisa sensata a fazer era ignorar o que existia além do mundo dos ruídos e seguir da maneira habitual. Isso é o que Calamy tentara fazer. Mas tinha consciência, contudo, de que as coisas continuavam lá. Continuavam calma e imutavelmente presentes, por mais que ele se agitasse e fingisse ignorá-las. Em silêncio, elas clamavam por atenção, com uma persistência cada vez mais irritante.
A reação de Calamy tinha sido fazer amor com Mary Thriplow. Isso deveria mantê-lo ocupado. E manteve, até certo ponto. Como dissera o mr. Cardan, o melhor esporte de salão; mas as pessoas exigiam algo melhor. Deveria continuar com aquilo? Se não, o que fazer? Essas questões o exasperavam. Porque aquelas coisas permaneciam lá, fora do tumulto, é que ele tinha de perguntá-las. As questões se impunham a ele. Mas Calamy não suportava provocações. Recusava-se a deixar-se provocar. Queria fazer o que bem entendesse. Mas, na verdade, ele gostava de namorar Mary Thriplow? Até certo ponto, sem dúvida. Mas a resposta verdadeira era não. Sim, sim, insistia o outro lado de sua mente, gostava sim. Se necessário ele faria até o que não quisesse, se escolhesse fazê-lo. Faria o que não quisesse e isso seria o fim de tudo. Ele se atormentava a ponto de sentir uma espécie de fúria.
— No que está pensando? — perguntou subitamente a srta. Thriplow.
— Em você — disse ele; em sua voz havia uma exasperação selvagem, como se ele ressentisse desesperadamente o fato de estar pensando nela.
— Tiens! — disse ela num tom polido.
— O que diria se eu lhe contasse que estou apaixonado por você?
— Não acreditaria.
— Devo convencê-la a acreditar?
— Estou mais interessada em saber como pretende fazer isso.
Calamy parou, segurou os ombros de Mary Thriplow e virou-a de frente para ele.
— Pela força, se necessário — disse, olhando-a com firmeza.
A srta. Thriplow devolveu o olhar. Ele ainda parecia insolente, arrogante e ciente de seu poder, mas haviam desaparecido a indolência e o torpor que lhe toldavam o olhar, deixando-lhe o rosto limpo como sempre fora, e ardente, com sua beleza perigosa e satânica. Diante dessa súbita transformação, a srta. Thriplow sentiu-se ao mesmo tempo exultante e amedrontada. Jamais vira aquela expressão no rosto de um homem. Já despertara paixões, mas não uma paixão violenta e perigosa como aquela parecia ser.
— À força? — Pelo tom de troça, pelo sorriso zombeteiro, ela tentava exasperá-lo ainda mais.
Calamy apertou-lhe os ombros e sob os dedos sentiu os ossos pequenos e frágeis. Quando falou, descobriu que seus dentes estavam crispados.
— À força — disse. — Assim. — E pegando a cabeça dela com as duas mãos, ele se curvou para beijá-la com raiva, muitas vezes. Por que estou fazendo isso, perguntava-se? É tudo uma tolice. Há outras coisas muito mais importantes. — Acredita agora?
Mary Thriplow enrubescera.
— Você é intolerável! — disse. Mas não estava realmente zangada.