Capítulo 4
Passada a tempestade, o vento começara a amainar e por entre as nuvens carregadas havia sol. Os castanheiros amarelados, agora quase imóveis, reluziam no ar claro. Um murmúrio de água correndo enchia os ouvidos. A grama nas encostas brilhava à luz do sol. Calamy deixou seu quarto escuro na hospedaria e começou a subir a trilha íngreme para a estrada. De vez em quando parava para olhar em volta. A trilha, nesse ponto, debruçava-se sobre o lado de um profundo vale. Para cima, o terreno erguia-se abruptamente, em alguns pontos quase um penhasco. Abaixo, os verdes prados de montanha, brilhando ao sol e adornados aqui e ali com aglomerados de castanheiros, desciam até o fundo, que o sol da tarde já deixara envolto numa sombra enfumaçada. Profundamente ensombrecidas, no lado oposto dessa garganta estreita, as montanhas eram grandes massas negras encobertas pela mesma névoa que flutuava no fundo do vale, erguendo suas silhuetas contra a luz brilhante. Por trás dos cumes, o sol espiava, atravessando o vale e tocando a vertente em que se encontrava Calamy com uma claridade que, em contraste com as montanhas escuras à sua frente, parecia quase irreal. À direita, na cabeceira do vale, um pico de rocha nua marrom, marcada por veios brancos de mármore, atravessava as nuvens e seu topo resplandecia à luz do sol como uma pedra preciosa. Uma faixa de vapor branco rodeava os flancos da montanha. Abaixo dela viam-se os contrafortes rochosos e longos declives cobertos de vegetação, que adentravam o vale todo coberto pela bruma, sombrio e morto, salvo em alguns pontos onde um grande raio dourado atravessava a massa cinza e tocava a floresta, a relva ou a rocha, dando-lhes uma vida intensa e fugaz.
Calamy ficou durante um longo tempo admirando a paisagem. Como era linda! Quanta beleza! As árvores úmidas e brilhantes pareciam prontas para uma festa — e no entanto era a morte e o inverno que as esperavam. Belas eram as montanhas, mas ameaçadoras e terríveis. Terrível o profundo abismo de sombras enfumaçadas abaixo do verde brilhante. E as sombras subiam a cada segundo, à medida que o sol baixava. Belo, terrível e misterioso, impregnado de que enorme segredo, símbolo de que fantástica realidade?
Da direção de uma cabana abaixo da estrada chegavam sons de sinos e de uma estridente voz infantil. Meia dúzia de cabras brancas e pretas, de longas barbichas negras e chifres retorcidos, os olhos amarelos e pupilas estreitas, trotava montanha acima, soando seus sinos monótonos. O garotinho se arrastava atrás delas, brandindo um cajado e gritando palavras de comando. Ele tocou o boné ao cruzar com Calamy; trocaram algumas palavras em italiano sobre a tempestade, as cabras, a melhor maneira de conduzi-las; depois, acenando o cajado e gritando peremptoriamente para o seu pequeno rebanho, a criança continuou subindo pela estrada. As cabras iam na frente, os cascos batendo nas pedras; de vez em quando paravam para arrancar com a boca um tufo de grama do barranco lateral. Mas o garotinho não as deixava parar. “Via!”, gritava, batendo nelas com o cajado. Elas voltavam a andar. Logo, o pastor e as cabras ficaram fora de vista.
Se tivesse nascido como aquele garotinho, imaginou Calamy, estaria ali no meio daquelas montanhas, trabalhando sem questionar, tocando os animais ou cortando madeira, de vez em quando conduzindo uma carroça de lenha ou de queijos pela longa estrada para Vezza? Faria tudo sem questionar? Veria que as montanhas são belas e terríveis? Ou aquela terra seria para ele meramente ingrata por exigir tanto trabalho e devolver muito pouco em troca? Acreditaria em céu e inferno? E frequentemente, quando algo saísse errado, invocaria com toda a sinceridade o auxílio do Menino Jesus, da Virgem Santíssima e de são José, a trindade familiar patriarcal — pai, mãe e filho — dos camponeses italianos? Teria se casado? Nessa época, provavelmente, seus filhos mais velhos teriam dez ou doze anos e estariam conduzindo cabras pelos campos, gritando estridentemente e brandindo cajado. Levaria uma vida tranquila e satisfeita como um jovem patriarca com sua mulher, seus filhos e os rebanhos? Seria feliz vivendo dessa maneira, ligado à terra, uma vida antiga, instintiva, de uma sagacidade animal? Parecia algo impossível de se imaginar. Mesmo assim, apesar de tudo, era bastante possível. O espírito tem que ser muito forte, ardentemente apaixonado, para desligar-se das tradições da infância e das circunstâncias impostas pela vida. Teria ele um espírito assim?
Calamy foi arrancado de suas especulações ao ouvir o próprio nome chamado a curta distância. Ele se virou e viu o mr. Cardan e Chelifer subindo a passos largos a estrada em sua direção. Acenou e foi ao encontro deles. Estava satisfeito por vê-los ou não? Impossível saber.
— Alô — disse o mr. Cardan, piscando jovialmente ao se aproximar. — Como vai a vida aqui em Tebas? Tem alguma objeção a receber um par de ímpios visitantes de Alexandria?
Calamy riu e, sem responder, apertou-lhes as mãos.
— Vocês se molharam? — perguntou, mudando de assunto.
— Escondemo-nos numa caverna — disse o mr. Cardan, olhando a paisagem em volta. — Muito bonito — elogiou, como se Calamy fosse o autor. — Muito bonito mesmo.
— Wordsworthiano — acrescentou Chelifer com sua voz precisa.
— Onde você está hospedado? — perguntou o mr. Cardan.
Calamy apontou a cabana. O mr. Cardan assentiu com a cabeça.
— Corações de ouro, mas um tanto servis, hein? — perguntou, erguendo mais alto as sobrancelhas brancas.
— Nem fale — concordou Calamy.
— Moças bonitas? — continuou o mr. Cardan. — Ou um pouco gordas?
— Nem uma coisa nem outra.
— E quanto tempo pretende ficar por aqui?
— Não tenho ideia.
— Até que tenha atingido o fundo do cosmo, não?
Calamy sorriu.
— Isso mesmo.
— Esplêndido — disse o mr. Cardan, dando tapinhas no braço de Calamy —, esplêndido. Eu o invejo. Meu Deus, o que não daria para ter a sua idade. O que não daria! — Ele balançou a cabeça com tristeza. — Mas, ai de mim, o que teria para dar, na verdade? No momento, no máximo duzentas libras. Essa é toda a minha fortuna. Não deveríamos nos sentar? — acrescentou, em outro tom de voz.
Calamy desceu com eles pela trilha. Em frente à hospedaria, sob as janelas, havia um longo banco. Os três homens se sentaram, agradavelmente aquecidos sob o sol que os atingia em cheio. Abaixo deles estava o vale estreito e oculto pelas sombras; na frente, as montanhas negras com seus topos encobertos, mas cujo contorno era nítido contra o céu claro iluminado pelo sol.
— E a viagem a Roma — perguntou Calamy —, foi boa?
— Tolerável — disse Chelifer.
— E a srta. Elver? — ele dirigiu a pergunta ao mr. Cardan.
— Você não soube? — perguntou ele.
— Soube o quê?
— Ela morreu. — Imediatamente, sua fisionomia tornou-se rígida e contraída.
— Sinto muito — disse Calamy. — Eu não sabia. — Achou melhor não prosseguir com outras condolências.
Fez-se silêncio.
— Eis aí algo que se tem grande dificuldade em admitir, por mais que se olhe misticamente para o próprio umbigo — disse por fim o mr. Cardan.
— O quê? — perguntou Calamy.
— A morte — respondeu o mr. Cardan. — Ninguém pode aceitar o fato de que, no fim de tudo, a carne se apodera do espírito e espreme a vida para fora, até transformar o homem em algo comparável a um animal doente. À medida que a carne adoece, o espírito também adoece. Então a carne morre e começa a apodrecer; e presumivelmente o espírito também apodrece. E termina aí o exame onfalógico, com todos os seus subprodutos: Deus, justiça, salvação e todo o resto.
— Pode ser — disse Calamy. — Podemos até admitir que esteja certo, mas não acho que isso faça a menor diferença...
— A menor diferença?
Calamy meneou a cabeça.
— A salvação não está no outro mundo e sim neste. Ninguém se comporta bem aqui para ganhar harpas e asinhas depois de morto, ou para contemplar por toda a eternidade o bem, a verdade e o belo. Se alguém deseja a salvação, é aqui e agora. O reino de Deus está dentro de você; desculpe-me a citação — acrescentou sorrindo para o mr. Cardan. — Conquistar este reino aqui, nesta vida, essa é a ambição salvacionista. Pode ser que haja outra vida, pode ser que não; isso é irrelevante para a questão principal. Preocupar-se porque a alma pode decair com o corpo é realmente medieval. Os teólogos medievais compensaram seu cinismo assustador em relação a este mundo com um otimismo infantil em relação ao outro. A justiça futura compensaria os horrores do presente. Suprima a vida após a morte e os horrores permanecerão sem nenhuma moderação.
— Exatamente — disse Chelifer.
— Do ponto de vista medieval, a perspectiva é inquietante. Os hindus, e nesse sentido os fundadores do cristianismo, fornecem a doutrina correlata da salvação nesta vida independentemente da vida após a morte. Cada um alcança a salvação à sua própria maneira.
— Alegra-me que admita isso — disse o mr. Cardan. — Temia que começasse a dizer que todos devemos sobreviver de vegetais e olhando para o próprio umbigo.
— Fui informado por ninguém menos que uma autoridade como o senhor — disse Calamy, rindo — de que existem... quantas... oitenta e quatro mil, não é isso?, maneiras diferentes de alcançar a salvação.
— Exato — disse o mr. Cardan —, e muitas mais para alcançar-se o Diabo. Mas tudo isso, meu jovem amigo — prosseguiu ele —, de maneira nenhuma atenua o fato desagradável de o homem lentamente se tornar gagá, morrer e ser comido pelos vermes. Ele pode alcançar a salvação nesta vida, certamente; é claro que isso torna menos intolerável que, no fim das contas, a alma sucumba inevitavelmente ao corpo. Eu, por exemplo, estou velho... estou citando um caso hipotético, note bem... vivo num estado de integridade moral e de salvação neste mundo há cinquenta anos, desde que atingi a puberdade. Digamos que isso seja verdadeiro. Teria eu, por esse motivo, a mínima razão para ser atormentado pela perspectiva de dentro de alguns anos vir a me tornar um idiota senil, cego, surdo, desdentado, desmemoriado, sem interesse por coisa alguma, parcialmente paralisado, um ser revoltante para os meus amigos e todo o resto do catálogo burtoniano? Se minha alma está à mercê de um corpo que apodrece lentamente, de que me servirá a salvação?
— Terá aproveitado nesses cinquenta anos de vida saudável — disse Calamy.
— Mas estou me referindo aos anos de debilidade — insistiu o mr. Cardan —, quando a alma está à mercê do corpo.
Calamy ficou em silêncio por alguns momentos.
— É difícil — disse, pensativo. — Terrivelmente difícil. Mas a questão fundamental é: pode o senhor falar de alma à mercê do corpo, dar uma explicação para a mente em termos materiais? Quando se pensa que foi a mente humana que inventou o espaço, o tempo e a matéria, extraindo-os da realidade de uma maneira arbitrária, é possível querer explicar alguma coisa em função de outra que ela própria inventou? Eis a questão fundamental.
— É como a questão da autoria da Ilíada — disse o mr. Cardan. — O autor do poema foi Homero, ou, se não Homero, alguém que tinha o mesmo nome. De maneira similar, filosófica ou cientificamente falando, como querem os novos físicos, a matéria pode na realidade não ser matéria. Mas permanece o fato de que algo com todas as propriedades que sempre atribuímos à matéria está sempre cruzando nosso caminho, e nossa mente é dominada por certa porção dessa matéria, conhecida como corpo, mudando quando ele muda, acompanhando lado a lado sua decadência.
Calamy, perplexo, correu os dedos pelos cabelos.
— Sim, é mesmo muito difícil — disse. — É impossível não agir como se as coisas fossem realmente o que parecem. Ao mesmo tempo, existe uma realidade totalmente diferente, da qual poderíamos nos aproximar com uma mudança no nosso meio físico, a remoção de nossas limitações corporais. Talvez, se pensarmos com firmeza... — Ele parou, balançando a cabeça. — Quantos dias Gautama passou sob aquela árvore? Se eu ficasse o mesmo tempo e tivesse o mesmo tipo de mente, talvez conseguisse, de alguma maneira bizarra, ultrapassar as limitações da existência comum. Então saberia que o que parece real é, na realidade, inteiramente ilusório... maya, a ilusão cósmica. Além dela vislumbraria a realidade.
— Quanto disparate seus místicos dizem a respeito disso! — falou o mr. Cardan. — Você já leu Boehme, por exemplo? Luzes e escuridão, rodas e compunções, doces e amargos, mercúrio, sal e enxofre... um palavreado sem sentido.
— Não poderia se esperar outra coisa — disse Calamy. — Como poderia um homem descrever algo totalmente diferente do fenômeno da existência conhecida numa linguagem inventada para descrever esse fenômeno? O senhor poderia dar uma explicação verbal detalhada da Quinta sinfonia a um surdo, mas ele não aprenderia nada e acharia que o senhor só falou asneiras. O que do ponto de vista dele estaria certo...
— É verdade — disse o mr. Cardan. — Mas duvido que o fato de alguém ficar sentado debaixo de uma árvore, seja por quanto tempo for, lhe possibilite livrar-se das amarras humanas e chegar a compreender os fenômenos.
— Bem, estou inclinado a pensar que seja possível — disse Calamy. — Nesse ponto, concordo que pensamos diferentemente. Mas, mesmo que não seja possível chegar à realidade, o fato é que ela existe e se manifesta de uma maneira muito diferente do que comumente pensamos; isso esclarece de certa forma a terrível questão da morte. Certamente, do modo como as coisas parecem ocorrer, é como se o corpo se apoderasse da alma e a matasse. Mas a realidade nesse caso pode ser muito diferente. O corpo como o conhecemos é uma invenção da mente. Qual é a realidade sobre a qual a mente abstrata e simbólica trabalha sua abstração e simbolismo? É possível que, na morte, venhamos a saber. Mas, em todo caso, o que é a morte, realmente?
— É uma pena — colocou Chelifer com sua voz pura, clara e precisa — que a mente humana não tenha executado melhor seu trabalho de invenção, enquanto era tempo. Por exemplo, as nossas abstrações simbólicas da realidade poderiam ter sido feitas de modo que a alma criativa, possivelmente imortal, não precisasse se preocupar com as hemorroidas.
Calamy riu.
— Você é um sentimental incorrigível!
— Sentimental! — ecoou Chelifer, surpreso.
— Um sentimental invertido — disse Calamy, assentindo. — Acho até que um romantismo tão desvairado como o seu esteja extinto desde a deposição de Luís Felipe.
Chelifer riu.
— Talvez esteja certo — disse. — Contudo, saiba que eu mesmo daria o prêmio de sentimentalismo àqueles que veem o que comumente se conhece por realidade, a Harrow Road, por exemplo, ou o Café de la Rotonde, em Paris, como mera ilusão; aqueles que fogem dessa realidade e devotam seu tempo e energia a atividades que o mr. Cardan resumiu e simbolizou na expressão “exame onfalógico”. Não são eles uns imbecis supersuscetíveis e sentimentais?
— Ao contrário — retrucou Calamy —; do ponto de vista histórico, geralmente são homens de grande inteligência. Buda, Jesus, Lao-Tsé, Boehme, apesar de suas rodas e compunções, do sal e do enxofre, e Swedenborg. Sem falar em sir Isaac Newton, que praticamente trocou a matemática pelo misticismo depois que completou trinta anos. Não que ele tenha sido um bom místico; não era. Mas tentou ser; não se pode dizer que se notabilizou por sua limitação mental. Não, não são os tolos que se tornam místicos. É necessária certa dose de inteligência e imaginação para compreender a extraordinária estranheza e o mistério do mundo em que se vive. Os tolos, os inumeráveis tolos acreditam em tudo, deslizam alegremente pela superfície sem jamais se perguntar o que existe por baixo. Contentam-se com as experiências, como a Harrow Road ou o Café de la Rotonde, chamam-nas de realidade e insultam qualquer um que se interesse pelo que existir sob esses símbolos superficiais, chamando-o de imbecil romântico.
— Mas é covardia fugir — insistiu Chelifer. — Ninguém tem o direito de ignorar o que é a realidade para noventa e nove entre cem seres humanos. Mesmo que não seja de fato verdade. Ninguém tem esse direito.
— Por que não? — perguntou Calamy. — Qualquer um tem o direito de ter um metro e noventa de altura e calçar quarenta e quatro. Qualquer um tem esse direito, embora não sejam mais que três ou quatro em cem. Então, por que não ter também o direito de nascer com uma mente incomum, que não se contenta apenas com a aparência superficial?
— Mas uma mente assim é irrelevante por ser uma anomalia — disse Chelifer. — Na vida real, ou se você preferir na vida considerada real, são as outras mentes que preponderam, que são a regra geral: as mentes rudes. Repito que não se tem o direito de fugir disso. Se você quer saber o que é a mente humana, deve ter coragem para viver como a grande maioria dos seres humanos. Asseguro-lhe que é singularmente revoltante.
— Aí está você novamente com seu sentimentalismo — reclamou Calamy. — É mesmo o tipo comum do sentimental invertido. O sentimental comum pretende que a vida real seja mais cor-de-rosa do que realmente é. O sentimental invertido, ao contrário, exalta seus horrores. Mas o princípio maligno é o mesmo em ambos os casos: uma preocupação excessiva com o que é ilusório. O homem sensível não vê o mundo das aparências tão cor-de-rosa nem tão amargo, mas segue adiante. Há uma realidade ulterior para ser vista; e é mais interessante...
— Então você condena inclementemente todos esses incontáveis seres humanos que passam a vida na superfície?
— É claro que não — retrucou Calamy —, eu não cometeria essa tolice. Toda essa gente existe, é claro, e pode escolher um dos oitenta e quatro mil caminhos do mr. Cardan para se salvar. O que eu escolhi possivelmente é diferente dos outros, só isso.
— É bem provável — disse o mr. Cardan, que estivera ocupado acendendo o charuto — que eles encontrem o caminho para a salvação com mais facilidade do que você. Por serem mais simples, terão menos motivos para criar desarmonias interiores. Muitos vivem ainda em estado tribal, obedecendo cegamente ao código social que lhes foi sugerido ainda na infância. É um estado prelapsário; ninguém comeu ainda o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal; em geral é toda a tribo, não só o indivíduo, que come. E ele está tão integrado nela que nem lhe ocorre agir contra as suas regras, assim como não ocorre aos meus dentes morder a língua com força quando bem entendem. Essas almas simples, e elas existem aos milhares, descobrirão facilmente seu caminho para a salvação. A dificuldade começa quando cada indivíduo passa a tomar consciência de si mesmo, independentemente da tribo. Há um grande número de pessoas que devem ser selvagens tribais, mas que têm consciência de sua individualidade. Não podem obedecer cegamente às leis da tribo, mas são fracas demais para agir por si mesmas. Eu diria que a maioria das pessoas se encontra nesse estágio, no Estado democrático moderno: são muito cônscias de si mesmas para obedecer cegamente, mas também incapazes de se comportar razoavelmente por conta própria. Por isso esse delicioso estado de coisas atual, que tanto agrada ao nosso amigo Chelifer. Todos vacilamos terrivelmente entre a tribo e a sociedade dos seres humanos conscientes.
— Acho confortante pensar — disse Chelifer — que a civilização moderna esteja fazendo o que pode para restabelecer o regime tribal, só que em escala nacional e até internacional. Livros a baixo preço, telefones sem fio, trens, carros motorizados, gramofones e tudo o mais vêm tornando possível consolidar as tribos não de milhares, mas de milhões de pessoas. A julgar pelos novelistas do Meio-Oeste, o processo parece estar bem adiantado na América. Dentro de algumas gerações, talvez todo o planeta esteja ocupado por uma única e vasta tribo de língua americana, composta de inúmeros indivíduos, todos pensando e agindo da mesma maneira, como as personagens de uma novela de Sinclair Lewis. É uma das especulações mais prazerosas, mesmo que, é claro — acrescentou cautelosamente —, o futuro não nos pertença.
O mr. Cardan concordou, soprando a fumaça do charuto.
— É certamente uma possibilidade — disse. — É uma probabilidade até; porque acho no mínimo provável que possamos gerar uma raça de seres, pelo menos daqui a mil anos, suficientemente inteligente para formar uma sociedade não tribal duradoura. A educação tornou impossível o velho tribalismo e nada fez, nem fará, para viabilizar a sociedade não tribal. Se queremos a estabilidade social, é necessário, portanto, que criemos um novo tipo de tribalismo sobre as bases de uma educação universal para imbecis, usando a imprensa, o telefone sem fio e tudo o mais como instrumentos para estabelecer essa nova ordem. Depois de uma ou duas gerações de educação constante e consciente, talvez seja possível, como disse Chelifer, transformar todos, menos cem ou duzentos em cada milhão de habitantes do planeta, em Babbitts.[27]
— Talvez seja necessária uma estimativa um pouco menor — sugeriu Chelifer.
— É notável — prosseguiu o mr. Cardan meditativamente — como o maior e mais influente reformista dos tempos modernos, Tolstói, também propõe a reversão ao tribalismo como único remédio para a inquietação civilizada e a incerteza de objetivos. Mas enquanto propomos um tribalismo baseado em fatos... ou seriam aparências?... — o mr. Cardan piscou amigavelmente para Calamy — da vida moderna, Tolstói propôs o tribalismo primitivo, genuíno e rude do selvagem. Esse não daria certo, é claro; porque é improvável que, uma vez tendo-o provado, os homens aceitem perder le confort moderne, como se diz nos hotéis. Nossa sugestão é mais prática: propomos a criação de um planeta inteiro de Babbitts. Irão se espalhar com muito mais facilidade, hoje, do que os mujiques. Mas em ambos os projetos permanece o mesmo princípio: o retorno ao estado tribal. E, se Tolstói, Chelifer e eu concordamos com uma coisa, podem acreditar que nela há uma verdade. A propósito — acrescentou —, espero não estar ferindo sua suscetibilidade, Calamy. Não está pretendendo se fazer passar por um mujique aqui, não é? Cavar a terra, manter porcos e outras coisas desse tipo. Está? Espero que não.
Calamy meneou a cabeça, rindo.
— Pela manhã corto madeira para fazer exercício — disse ele. — Mas não por princípio, asseguro-lhe, não por princípio.
— Ah, ainda bem — disse o mr. Cardan. — Temia que você pudesse fazê-lo por princípio.
— Seria tolice — disse Calamy. — Por que fazer mal uma coisa para a qual não tenho aptidão? E que além disso me impediria de fazer o que a mim parece ser uma capacidade inata?
— E o que é, posso saber? — perguntou o mr. Cardan com assumida desconfiança e cortesia. — O que poderia ser?
— Isso é bastante mordaz — disse Calamy, sorrindo. — Mas o senhor pode perguntar. Porque certamente até agora tinha sido difícil ver qual é o meu talento peculiar. Nem eu mesmo sei. Fazer amor, talvez? Ou cavalgar, matar antílopes na África, comandar um batalhão de infantaria, ler desconexamente com muita velocidade, beber champanhe? Talvez cultivar a boa memória ou minha voz grave, ou o quê? Chego a pensar que seja a primeira: fazer amor.
— Não é um mau talento — disse o mr. Cardan.
— Mas não pode ser cultivado indefinidamente — prosseguiu Calamy. — Com os demais é a mesma coisa, embora sejam verdadeiros para mim. Não, se eu já não tivesse essas aptidões, certamente devotaria toda a minha vida a cavoucar a terra. Mas começo a descobrir em mim mesmo certa facilidade para a meditação, que me parece valer a pena cultivar. E duvido que seja possível cultivar simultaneamente a meditação e a terra. Corto madeira só como exercício.
— Isso é bom — disse o mr. Cardan. — Eu não gostaria de pensar que você estivesse fazendo algo ativamente útil. Você possui os instintos de um cavalheiro; e isso é excelente...
— Satanás! — exclamou Calamy, rindo. — Mas o senhor acha que não sei muito bem que pode criar o caso mais terrível contra o pacífico anacoreta que fica olhando para o próprio umbigo enquanto os outros trabalham? Acha que não pensei nisso?
— Tenho certeza de que pensou — respondeu o mr. Cardan, piscando suavemente.
— Pode ser condenável, realmente; mas só é mesmo convincente quando o anacoreta não faz o seu trabalho de maneira apropriada, se nasceu para ser ativo e não contemplativo. Os imbecis que andam proclamando que o objetivo da vida é a ação, e que o pensamento não vale nada a menos que leve à ação, estão falando apenas por eles mesmos. Existem oitenta e quatro mil caminhos. O contemplativo puro tem direito a um deles.
— Eu seria o último a negar uma coisa dessas — disse o mr. Cardan.
— E, se eu descobrir que não é esse o meu caminho — prosseguiu Calamy —, retornarei e verei o que posso fazer na vida prática. Até agora posso garantir que não vislumbrei nada para mim nesse caminho. Talvez não tenha procurado em algum no qual provavelmente eu encontraria.
— O que sempre me pareceu a mais importante objeção ao exame onfalógico prolongado — disse o mr. Cardan, depois de um breve silêncio — é o fato de se deixar muito de lado os recursos pessoais; é preciso alimentar-se da própria gordura mental, por assim dizer, em vez de se nutrir daquilo que está fora. E conhecer a si mesmo acaba por se tornar impossível; porque só nos conhecemos em relação às outras pessoas.
— É verdade — concordou Calamy. — Uma parte do indivíduo certamente só se conhece em relação ao que está fora. Depois de doze ou quinze anos de vida adulta, acho que conheço essa minha parte completamente. Relacionei-me com muitas pessoas, meti-me nas situações mais curiosas e, assim, quase todas as potencialidades latentes ligadas a essa parte de meu ser tiveram a chance de ser desdobradas e transformadas em realidade. Mas por que deveria continuar? Não há mais nada que eu queira saber sobre essa parte de mim; imagino que não haja mais nada importante para ser extraído do meu contato com o mundo exterior. Mas há um outro universo desconhecido dentro de mim, esperando para ser descoberto. Um universo inteiro que só posso conhecer pela introspecção e pelo pensamento paciente e ininterrupto. Só pela curiosidade vale a pena explorá-lo. Mas tenho razões mais fortes do que a curiosidade a me convencer. Sei que o que posso encontrar lá é tão importante que empreender essa busca tornou-se uma questão de vida ou morte.
— Humm — murmurou o mr. Cardan. — E o que acontecerá depois de três meses de casta meditação, se alguma adorável jovem tentação surgir por esta estrada, “balançando o traseiro”, como diria Zola, e pousar seus grandes olhos negros sobre você? O que poderia acontecer com as suas explorações do universo interior?
— Bem — disse Calamy —, espero que não sejam interrompidas.
— Espera? Sinceramente?
— Vou me esforçar ao máximo para que continuem.
— Não será fácil — garantiu o mr. Cardan.
— Eu sei.
— Talvez você descubra como explorar simultaneamente a tentação e o universo interior.
Calamy balançou negativamente a cabeça.
— Lamentavelmente, acho que não é possível. Se fosse, seria maravilhoso. Mas há algumas razões para que não o seja. Não daria certo, mesmo que houvesse moderação. Sei disso, mais ou menos, por experiência. E todas as autoridades também concordam.
— Apesar disso — disse Chelifer —, tem havido algumas religiões que prescrevem a indulgência nessa atenção em particular como disciplina e ritual em certas estações e para celebrar determinadas festas.
— Mas elas não alegam — respondeu Calamy — que seja uma disciplina que facilite, para aqueles que se submetem a ela, a exploração desse universo interior.
— Pode ser que não — objetou Chelifer. — Afinal, não existe uma regra. Numa certa época e em determinado lugar respeitam os pais quando eles envelhecem; em outra época e em outro lugar batem na cabeça deles e os põem num pot-au-feu. Tudo está certo ou errado, dependendo de quando e onde.
— Isso é verdade, com algumas restrições — disse Calamy. — E as restrições são a parte mais importante. Parece-me que há um paralelo entre o mundo físico e o moral. No mundo físico, a realidade não conhecível é chamada de continuum quadridimensional. O continuum é o mesmo para todos os observadores; mas, quando querem desenhá-lo, selecionam diferentes eixos para seu gráfico, segundo suas diferentes inclinações e de acordo com suas mentes e limitações físicas diferentes. Os seres humanos selecionaram para seus eixos o espaço e o tempo tridimensionais. Não poderiam ter feito de outro modo, sendo como são a mente, o corpo e a terra onde vivem. Espaço e tempo são ideias necessárias e inevitáveis para nós. E, quando queremos desenhar essa outra realidade na qual vivemos... ela é diferente ou, incompreensivelmente, é de certa forma a mesma?... escolhemos, é inevitável; não podemos deixar de escolher esses eixos de referência a que chamamos bem e mal; as leis do nosso ser nos obrigam a ver as coisas sob os aspectos bons e maus. A realidade permanece a mesma, mas os eixos variam com a posição mental, por assim dizer, e com as capacidades diversas dos diferentes observadores. Alguns deles têm visão mais clara e de certa maneira estão mais bem posicionados do que outros. A mudança incessante das convenções sociais e dos códigos morais no decurso da história representa o deslocamento dos eixos de referência escolhidos pelos que são menos curiosos, mais míopes ou mal posicionados. Mas os que são escolhidos pelos melhores observadores têm sido surpreendentemente semelhantes. Gautama, Jesus e Lao-Tsé, por exemplo, viveram bastante longe um do outro no espaço, no tempo e na escala social, mas seus desenhos da realidade são muito parecidos. Quanto mais perto de um deles um homem consegue chegar, mais os eixos de referência morais de um e de outro corresponderão. E, se a maioria dos observadores mais atentos concorda em dizer que a entrega a esses prazeres particulares interfere na exploração do mundo espiritual, então pode ter certeza de que é verdade. Não há dúvida de que a satisfação natural e moderada dos instintos sexuais é, em si, um assunto bem diferente da moralidade. É somente em relação a outras coisas que a satisfação do instinto natural pode ser considerada boa ou má. Pode ser má, por exemplo, se houver enganos e crueldade. Certamente também é má quando escraviza uma mente que, no íntimo, sente que poderia ser livre. Livre para contemplar e tornar-se serena.
— Sem dúvida — disse o mr. Cardan. — Mas, como homem prático, posso apenas dizer que será terrivelmente difícil preservar essa liberdade. Aquele balançar de ancas... — Ele moveu o charuto de um lado para o outro. — Dentro de seis meses voltarei a procurá-lo e então veremos como você estará com tudo isso. É extraordinário o efeito que os apetites naturais causam a uma boa resolução. Estando saciada, a pessoa acha que a regeneração será fácil; mas, quando a fome volta, como é difícil...
Ficaram os três em silêncio. Das profundezas do vale, as sombras enfumaçadas já atingiam a colina. As outras já estavam totalmente negras e as nuvens que as encobriam tornavam-se escuras e ameaçadoras, exceto nos pontos mais altos, onde o sol poente as tocava com uma luz cada vez mais densa. A sombra já chegava aonde eles estavam e não demorou a envolvê-los. Batendo os sinos com força e os pequenos cascos nas pedras, as seis cabras desciam a colina em direção à estrada. O garotinho vinha atrás, brandindo a bengala. “Eia-oo!”, gritava com uma espécie de fúria homérica; mas, ao avistar os três homens sentados fora da cabana, calou-se subitamente, enrubesceu e afastou-se sem qualquer heroísmo, ousando apenas murmurar de vez em quando qualquer coisa às cabras, enquanto as conduzia ao estábulo para dormir.
— Meu Deus! — exclamou Chelifer, que estivera acompanhando o movimento dos animais com certa curiosidade. — Acho que é a primeira vez que vejo uma cabra ou sinto seu cheiro, desde que comecei a escrever sobre elas para o jornal. É muito interessante. Cheguei a esquecer que essas criaturas existem.
— Tendemos a esquecer que qualquer coisa ou pessoa realmente existe além de nós mesmos — disse o mr. Cardan. — É sempre um choque descobrir que elas existem.
— Dentro de três dias — disse Chelifer, pensativo — estarei de volta ao escritório. Coelhos, cabras, ratos; Fetter Lane, a pension familiar. Todos os conhecidos horrores da realidade.
— Sentimental — brincou Calamy.
— Lilian decidiu viajar para Monte Carlo — disse o mr. Cardan. — Irei com ela, é claro; não se pode rejeitar uma oferta de refeições gratuitas. — Ele jogou fora o charuto e levantou-se, esticando o corpo. — Acho melhor descermos antes que anoiteça.
— Quando os verei novamente? — perguntou Calamy.
— Voltarei aqui em seis meses, não se preocupe — disse o mr. Cardan. — Mesmo que tenha que ser à minha custa.
Eles galgaram a trilha íngreme até a estrada.
— Adeus.
— Adeus.
Calamy ficou vendo-os se afastarem até perdê-los de vista numa curva. Uma profunda melancolia desceu sobre ele. Sentia como se sua antiga vida estivesse indo embora com os dois. Ele ficara só, com alguma coisa nova e estranha. O que iria acontecer?
Talvez nada acontecesse, refletiu; talvez fosse tolice sua.
Agora a cabana estava na sombra. Olhando para a colina, ele podia ver as copas das árvores ainda brilhando, como se estivessem prontas para uma festa, acima da escuridão crescente. Na cabeceira do vale, como uma imensa pedra preciosa, irradiando seu brilho interior, o rochedo atravessava as nuvens e tocava o céu. Talvez tivesse agido como um tolo, pensou Calamy. Mas alguma coisa naquele pico resplandecente lhe dizia que não.