Tampa

Ao sul de Tampa, onde a península encontra a baía, a South Dale Mabry Highway terminava no portão de frente da Base da Força Aérea MacDill, sede do Comando Central dos Estados Unidos. Ali, generais de quatro estrelas mundialmente famosos — Tommy Franks, John Abizaid, David Petraeus — traçaram planos de guerra para o Afeganistão e o Iraque, comandaram centenas de milhares de soldados em batalha, decolaram em seus jatos pessoais para voar ao redor de sua Área de Responsabilidade, cometeram grandes erros estratégicos e tentaram corrigi-los tardiamente. Eles gozavam da hospitalidade pródiga das anfitriãs da sociedade de Tampa enquanto moldavam a política externa americana e o destino das nações na região mais explosiva do mundo, do Egito ao Paquistão, com a autoridade de procônsules romanos. Depois da Casa Branca e do Pentágono, nenhum lugar do país exerceu mais poder durante a guerra contra o terrorismo do que MacDill. E a quatro quarteirões de distância morava a família Hartzell.

A família era composta de Danny e Ronale, seu filhos Brent e Danielle, o irmão mais moço de Danny, Dennis, e quatro gatos. Eles moravam na South Dale Mabry, em frente ao Motel MacDill e a Bay Check Cashing, em um apartamento de dois quartos no andar térreo de um conjunto habitacional onde os vizinhos traficavam drogas e ficavam furiosos se alguém lhes lançasse um olhar enviesado. Os Hartzell costumavam assistir à HGTV, que se dedicava ao setor imobiliário, mas eram pobres demais para especular com casas, perdê-las numa execução hipotecária, ou acabar como clientes de Matt Weidner. Eles nem sequer tinham carro, o que os deixava à mercê dos ônibus do Transporte Regional da Área de Hillsborough. Danny nunca ganhou mais de 20 mil por ano, e o único momento em que tinham dinheiro sobrando era na época do imposto de renda — em determinado ano, gastaram o crédito fiscal para famílias de baixa renda num computador; no ano seguinte, em uma poltrona de vinil preto e um sofá; depois, em uma televisão de tela plana barata. Estavam afastados dos parentes, que em sua maioria bebiam demais. Tinham alguns amigos, e nenhuma igreja (embora fossem cristãos), sindicato (embora pertencessem à classe trabalhadora) ou associação de bairro (embora desejassem que a região fosse segura o suficiente para que as crianças pudessem sair para pedir guloseimas no Halloween). Quase não pensavam em política. O que eles tinham era um ao outro.

Em 2008, quando a recessão atingiu Tampa, Danny foi demitido de seu emprego de dez dólares por hora em uma pequena fábrica perto da base chamada Master Packaging, que fazia sacos plásticos para lanches. O pior de tudo foi que seu supervisor, que fora colega de escola de Danny, mandou outra pessoa lhe dar a notícia. Danny trouxe o bilhete azul para casa e o mostrou a Ronale, e ela perguntou: “O que vamos fazer agora?”. Isso foi em março. Danny passou o resto do ano à procura de emprego. Candidatou-se a vagas na Home Depot, no Sam’s Club, no Publix e sessenta outros lugares, precisou fazer longas viagens de ônibus para as entrevistas, mas era sempre o 25o candidato a uma vaga. Estava com trinta e tantos anos, era baixo, barrigudo, usava um cavanhaque ralo e cobria a cabeça quase careca com um boné dos Steelers. Faltavam-lhe muitos dentes, e falava com uma voz rouca e alta em consequência da surdez de um ouvido. Ele mesmo se classificava como “um cara do tipo colarinho azul”, não um “cara do tipo atrás do balcão eis o seu dinheiro posso ajudá-la a encontrar o vestido do seu tamanho”, mas os únicos empregos que restavam eram no varejo, e ele precisava da aparência e da conduta certa.

Uma noite, logo depois do Natal, a família sentou-se em sua sala de estar apertada, com um programa de jogos para adolescentes na TV, as crianças de mãos dadas no tapete cinza, que já vivera dias melhores. Brent, que tinha doze anos e era pequeno para sua idade, e Danielle, que estava com nove anos, ainda acreditavam em Papai Noel, já que não viam como seus pais poderiam comprar presentes. Com efeito, Danny e Ronale dependeram de caridade no Natal daquele ano. Danny não gostava de precisar fazer isso — outras pessoas estavam em pior situação do que eles — e odiava não poder colocar Danielle na aula de dança ou Brent na de futebol. Agradecia a Deus todos os dias por Ronale, mas, para ser sincero, estava começando a perder a esperança. “Por que todas aquelas pessoas me veem como um sujeito tão ruim? Elas não me conhecem, não conhecem a minha história de trabalho, não vão me dar uma chance. Comecei a me perguntar o que há de errado comigo. Você trabalha para ter o que tem, isso é tudo que alguém pode fazer, e então, de repente, a economia fica tão ruim que, em vez de trinta pessoas à procura de trabalho, há 3 mil.”

E, mesmo assim, Danny de alguma forma se culpava. Largara o colégio no último ano e agora se arrependia profundamente, achava que o mundo o estava escolhendo para uma vingança terrível, que o problema devia ser culpa dele, que o fracasso era só dele e que não tinha direito à ajuda de ninguém. Dos banqueiros em Wall Street aos proprietários de imóveis no escritório de Weidner, ninguém mais parecia ter essa visão de si mesmo.

Danny vinha dos arredores de Pittsburgh. Seu pai alcoólatra trabalhara na manutenção da ferrovia, depois na companhia de energia, depois numa faculdade local, antes de se mudar com a família para Tampa, quando Danny tinha em torno de doze anos e as siderúrgicas estavam fechando, no início dos anos 1980. Passou a beber ainda mais na Flórida. Ensinou Danny a dirigir defensivamente e amar os Steelers, mas, afora isso, ninguém o mandava escovar os dentes ou fazer qualquer outra coisa.

Ronale tinha uma história muito pior. Era natural de Tampa. Ambos os pais eram alcoólatras, a mãe era uma mulher rancorosa de olhar maligno. Eles se separaram quando Ronale tinha sete anos, e ela foi arrastada através da Flórida e da Carolina do Norte pela mãe (que era capaz de beber álcool puro se não pudesse encontrar bebida e se amigava com qualquer homem que a aceitasse), às vezes morando no carro, faltando muito à escola, roubando tortinhas Reese’s porque sua mãe era muito viciada e egoísta para comprar-lhe comida se dissesse “mamãe, estou com fome”. Desde cedo, Ronale decidiu que jamais seria aquele tipo de mãe.

Quando Danny estava no décimo ano e Ronale no nono, tornaram-se vizinhos no sul de Tampa, perto da base. Doug, o irmão mais velho de Danny, deu em cima de Ronale e, por puro ciúme, Danny entrava na sala sempre que eles começavam a dar uns amassos. Ele passava por Ronale na calçada, olhava firme nos olhos dela e dizia “puta”, e ela respondia “e você é um tremendo babaca”, e quando eles descobriram que gostavam de falar um com o outro foi o começo de um amor para toda a vida. Ronale largou a escola mais cedo do que Danny — estava cansada de ser intimidada. “Muita gente queria literalmente me matar”, contou Ronale. “Encurralada nos cantos e sem ninguém para me ajudar e coisas assim, e tudo mais.” Ela foi trabalhar numa lavanderia automática, e Danny conseguiu um emprego de esmerilhador numa oficina de soldagem em St. Petersburg. Em 1995, quando ela ficou grávida de Brent aos 22 anos, foram morar juntos num trailer. Em 1999, com Danielle a caminho, eles se casaram.

Trabalhando contra os Hartzell quando eles se estabeleceram na vida estava a quase completa falta de instrução, dinheiro, família ou apoio de qualquer espécie, além de uma cota incomum de problemas de saúde: a surdez e os dentes apodrecidos de Danny, a obesidade, o diabetes e os dentes apodrecidos de Ronale, o TDAH e o problema do hormônio do crescimento de Brent, a deficiência auditiva e ansiedade de Danielle. Trabalhando a favor deles: Danny tinha uma profissão, os pais não bebiam nem usavam drogas, as crianças eram respeitosas, a família ficaria junta em qualquer circunstância, eles se amavam. De acordo com a moralidade convencional, o lado positivo deveria mantê-los à tona e, em outro momento e outro lugar, talvez isso tivesse acontecido.

O primeiro desastre aconteceu em 2004. Foi a costumeira espiral descendente de circunstâncias e erros. Primeiro, a oficina de soldagem mudou-se para New Port Richey, e Danny não teve condições de se mudar com ela, então perdeu o emprego. A família alugava um trailer em St. Pete, Danny fazia biscates para o proprietário com a ideia de que o comprariam assim que recebessem o crédito fiscal. Mas o dono nunca pagou Danny e depois mandou os Hartzell embora, alegando que Danny lhe devia aluguéis atrasados. Uma noite, o pai e o irmão Doug de Danny se embebedaram e decidiram destruir o trailer em seu nome. A polícia foi chamada e prendeu Danny no motel onde a família estava, e ele passou a pior noite de sua vida sobre a laje de concreto de uma cela, com uma centena de outros sujeitos. No dia seguinte, o juiz deu uma olhada em sua ficha impecável e lhe concedeu liberdade provisória sem fiança, mas agora a família não tinha onde morar.

Eles vagaram por St. Pete durante um mês, dormindo no carro. Ronale estocou caixas de refeição conseguidas no banco de alimentos e, quando as crianças sofreram queimaduras por causa do sol, esfregou-os com vinagre para acelerar a cicatrização. Brent estava entediado sem seus videogames, e Danielle tinha medo de ruídos noturnos. Mais tarde, ela se lembrou de estar sentada no carro uma noite, junto à praia sob a Ponte Gandy. “Havia uma pilha de caixas de comida na minha frente, e eu olhava para as caixas de alimentos e depois para a trilha de areia até o mar”. De manhã, Danny e Ronale punham as crianças no ônibus escolar, como se nada tivesse acontecido.

Conseguiram voltar para Tampa, encontraram o apartamento na rodovia South Dale Mabry por 725 dólares por mês, e Danny foi contratado na Master Packaging. Nos quatro anos seguintes, as coisas se estabilizaram. Dennis, o irmão mais moço de Danny, dormia no sofá da sala e ajudava nas despesas com o dinheiro de um emprego de meio período no Wal-Mart, onde recolhia carrinhos de compras. O salário de Danny, a renda da seguridade social de Danielle e os vales-refeição eram suficientes para manter suas cabeças acima da água. Então veio o bilhete azul, e uma coisa levou à outra. No primeiro semestre de 2009, Danielle foi diagnosticada com osteosarcoma — câncer ósseo na perna esquerda. No ano e meio seguinte, a vida dos Hartzell foi absorvida por hospitais, exames, cirurgias e quimioterapia. Quase tudo foi pago com caridade. Com uma doação em dinheiro de um completo estranho, compraram um Chevy Cavalier 2003 para ir aos compromissos. Danny parou de procurar emprego para dar à filha atenção completa, e Ronale, que estava sempre reclamando dos erros cometidos por professores, patrões, senhorios e vizinhos, adorou os médicos de Danielle e entrou para grupos de pais de filhos com câncer: pela primeira vez em sua vida sentiu-se parte de uma comunidade. O apartamento encheu-se de frases inspiradoras emolduradas:

 

O QUE O CÂNCER NÃO PODE FAZER

Não pode aleijar o amor

Não pode estraçalhar a esperança

Não pode extinguir o espírito

Não pode destruir a confiança

Não pode apagar memórias

 

Uma prótese que exigiria ajustes periódicos de quatro milímetros à medida que ela crescesse foi costurada dentro da pequena perna magra de Danielle. Ela passou um ano inteiro livre do câncer. Eles agradeceram a Deus. Afora isso, nada mudou para os Hartzell.

 

 

No final do primeiro semestre de 2011, Danny Hartzell teve um sonho: mudaria com a família para a Geórgia.

Havia morado em Tampa desde os doze anos e agora se sentia preso. As paredes do apartamento estavam ficando cada vez mais estreitas, especialmente depois que o casal ao lado foi preso por negligenciar seus dois filhos pequenos, deixando tudo imundo, com embalagens de fast-food jogadas por todo lado, e as baratas migraram através da parede para o apartamento de Danny. Eram pequenas, numerosas, deixavam um rastro negro de larvas no local onde a parede da sala se encontrava com o teto, corriam sobre os móveis de vinil, entravam na pia do banheiro e nos Tupperware da cozinha, nos dutos de ar-condicionado e espalhavam o cheiro horrível de suas fezes por todo o apartamento. Por causa das baratas, Ronale parou de cozinhar e passou a comprar comida congelada no Wal-Mart, pizzas, Velveeta Cheesy Skillets, seis bifes Salisbury por 2,28, o que era mais barato do que cozinhar — custava menos comprar um bolo do que fazer em casa — ou então fervia miojo, que Danny chamava de uma das maiores invenções do homem. Não havia nada que pudessem fazer a respeito das baratas, exceto dedetizar o apartamento, o que significaria pagar por três noites em um motel. As baratas envergonhavam Danny e Ronale, que se orgulhavam de manter o lugar limpo. Enquanto isso, a nova família que se mudou para o apartamento ao lado gostava de gritar e tocar música em alto volume à uma da manhã. Um dia, os vizinhos de cima deram a descarga e abriram um buraco no teto de gesso em cima do vaso sanitário dos Hartzell quando Ronale estava no banheiro. O administrador do prédio nunca consertou o estrago.

Durante um tempo, Danny teve um emprego de meio período na Target, descarregando mercadorias e abastecendo prateleiras de madrugada, antes que a loja abrisse, ganhando 8,50 dólares por hora. No começo, tinha trinta ou quarenta horas por semana, o suficiente apenas para sobreviver, mas depois dos feriados a loja cortou suas horas e, na primavera, ele estava trabalhando uma média de dez horas por semana, ganhando 140 dólares a cada duas semanas, descontados os impostos, e a empresa contratara três novos funcionários para seu departamento por salários mais baixos. Ele não podia deixar de pensar que ganharia mais se fosse despedido e começasse a receber o seguro-desemprego, isso sem mencionar que seus vales-refeição dobrariam. Um dia, Danny entreouviu seus gerentes falando sobre números de vendas da loja do dia anterior, que chegavam a 52 mil dólares. Ele fez um cálculo rápido. “Quase 400 mil por semana, e eles não podem se dar ao luxo de me pagar? É pura ganância.”

Quando a Target o contratou, mostraram-lhe um vídeo sobre os males dos sindicatos e lhe disseram que, se alguém o abordasse e falasse sobre como se sindicalizar, ele deveria comunicar o fato à gerência. Danny nunca pensara muito sobre sindicatos, mas se perguntou o que havia de tão errado neles. Uma noite, ele e Ronale assistiram a um programa no History Channel que falava sobre a Batalha de Blair Mountain, uma greve dos mineiros de carvão da década de 1920. O que chamou a atenção de Danny foi o fato de que os mineiros do resto de Virgínia Ocidental se deslocaram para ajudar os do sul do estado que estavam tentando se sindicalizar, e muitos deles foram mortos por capangas da companhia de carvão. Esse tipo de coisa já não acontecia. As pessoas estavam amedrontadas demais para aderir a um sindicato, e as empresas tinham dinheiro demais, elas simplesmente os ameaçavam com um processo. Ultimamente, era difícil conseguir que as pessoas concordassem em fazer qualquer coisa juntas. Ele sabia que os pobres naquela época não tinham uma vida nem um pouco mais fácil. Era capaz de lembrar de quando era menino na Pensilvânia e se aconchegava ao redor do fogão da cozinha para se aquecer, comia feijão e manteiga de amendoim do governo em latas preto e brancas. Mas o que havia mudado desde então era o povo. No mundo em que ele vivia, um pisava no outro, era cada um por si.

Numa manhã em que a Target chamou Danny quando Danielle tinha uma consulta médica, ele faltou ao trabalho sem avisar, algo que nunca havia feito antes, o que praticamente convidou a empresa a demiti-lo, o que ela fez. Ele se candidatou ao seguro-desemprego. Estava de volta exatamente para onde havia começado.

Os Hartzells estavam cansados da Flórida. Cinco em cada dez pessoas eram idiotas, segundo Ronale. Danny e Ronale não haviam votado na última eleição, mas odiavam o novo governador, Rick Scott, que estava cortando tudo o que as pessoas pobres precisavam, inclusive escolas. Os dois se perguntavam por que americanos como eles estavam afundando, enquanto os novos imigrantes, como os indianos que moravam do outro lado da Dale Mabry, conseguiam comprar lojas de conveniência. Danny ouvira dizer que os primeiros cinco anos deles no país eram isentos de impostos. Ele não era racista, mas, se isso fosse verdade, era injusto.

Quando Danielle estava doente, Ronale entrara no Facebook, e através da página dela Danny havia restabelecido contato com um amigo de infância de Tampa. O amigo operava uma empilhadeira na Geórgia, numa pequena cidade chamada Pendergrass. Num feriado de Quatro de Julho, os Hartzell foram passar um fim de semana com ele e a filha e adoraram as árvores, a pesca, poder sair da casa do amigo e não ver outra casa. As escolas pareciam boas, e o custo da moradia menor, e Ronale achou que apenas duas em cada dez pessoas eram idiotas. Supostamente, havia uma abundância de empregos. Até mesmo o Wal-Mart era mais simpático na Geórgia — Ronale ouviu dizer que a empresa dava folga para as pessoas no fim de semana do Quatro de Julho. Se a família quisesse mudar-se para a Geórgia, o amigo os convidava a ficar com ele até tomarem pé.

De repente, no início de junho, decidiram mudar. Queriam um novo começo. O contrato do aluguel terminava no final do mês, mas transferir-se para outro apartamento em Tampa que não tivesse baratas mudaria somente seu lugar, não a situação deles. “É como se eu tivesse caído naquele buraco de rotina de onde não dá para sair”, disse Danny. “Talvez a culpa seja em parte minha — talvez eu tenha parado de tentar. Lutei por tanto tempo que cansei e larguei de mão. Talvez algumas pessoas sejam melhores nisso. Todo o meu processo de pensamento é: se você não pode sair do buraco, por que não se mudar?”

O sonho de Danny era entusiasmante e assustador. Os Hartzell agarraram-se a ele como a uma escada no fundo de um poço. Danny não sabia se estava fazendo a coisa certa para a sua família, mas não fazê-lo parecia pior. Ronale estava cansada de chegar ao fim do mês com 29 dólares e ter de esperar pelo próximo cheque da seguridade social de Danielle para que pudesse comprar Diet Pepsi ou Dr. Pepper. “Algumas pessoas têm medo, mas às vezes é preciso dar um grande salto”, disse ela. “Mantenha sua fé e faça suas orações.” Ela não sentiria saudade de nada da Flórida, exceto dos médicos de Danielle e da Disney World. Danny não tinha um emprego engatilhado, mas o Wal-Mart prometia uma vaga numa loja da Geórgia para Dennis, que iria com eles, e as crianças ficaram felizes em ir para um lugar novo. Não havia quase ninguém de quem se despedir.

No último dia de junho, um dia antes da mudança, Danny e Ronale puseram dentes novos. Foram com as crianças a um pronto-socorro odontológico ao lado de uma casa de crack, em um bairro ruim de East Tampa. Ambos tinham gengivas infectadas e dentes que precisavam ser extraídos, o que levou semanas, de modo que, no momento em que estavam prontos para pôr dentaduras, estavam completamente desdentados. “Vai ser estranho”, disse Danny na sala de espera. “Papai vai comer um Doritos amanhã. Eu não como Doritos há uns oito anos.” Ele entrou no consultório da dentista e saiu de lá meia hora depois com um sorriso brilhante de dentes perfeitamente uniformes, pagos, em sua maioria, pela Medicaid. Os dentes faziam com que parecesse mais jovem e menos pobre. Danielle sentou no colo dele e instruiu o pai: “Diga ‘them’. ‘Zebra.’ ‘Tycoon.’ ‘Dolphin.’ ‘Wal-Mart.’” Danny começou a gostar da sensação de usar dentaduras. “Eu poderia arranjar uma namorada com eles”, disse, contraindo as sobrancelhas sugestivamente.

Os dentes de Ronale demoraram uma hora para ser colocados. Vozes se levantaram no consultório e ela saiu furiosa. “A de cima machuca minha gengiva”, gritou.

A dentista, uma mulher latino-americana, explicou pacientemente que a boca de Ronale ainda estava dolorida por causa das extrações. Por alguns dias, ela deveria tirar as dentaduras a cada quinze minutos e lavá-las em água morna e sal. “Se você pudesse voltar na próxima semana, eu ficaria muito contente de fazer um ajuste.”

“Eu estou indo embora amanhã”, disse Ronale. “Isso dói muito. Sinto muito se seus outros clientes não se importam com a dor, eu não sou perfeita. É como um palito entrando na minha gengiva.”

“Mas estava solto demais”, disse a dentista. “Ia cair.”

“Quero ir embora. Estou cansada de ser tratada como se fosse burra.”

No caminho para casa, Ronale reclamou da dor e que as dentaduras empurravam seus lábios de modo que ela parecia um gorila. A de Danny se encaixava melhor. “Sorte sua que não dói”, disse ela. “Com a minha, dói até para falar.”

“Então tira”, brincou Danny.

“Você é um idiota.”

Logo as crianças estavam jogando o jogo das palavras com a mãe, fazendo-a pronunciar “zebra” e “Wal-Mart”. Quando chegaram de volta ao apartamento, estavam todos rindo, inclusive Ronale, que aderira à brincadeira entre as queixas. Em casa, ela tirou os dentes e nunca mais os pôs. Por solidariedade ou inércia, Danny fez o mesmo.

Na manhã seguinte, 1o de julho, Danny alugou um caminhão de mudança da Budget de cinco metros com todo o dinheiro que conseguiu juntar e o encostou na porta do apartamento. Ele e Dennis passaram o dia carregando suas coisas. Televisão, computador e sofá. Caixas de alimentos secos. Bicicletas das crianças. O material escolar de Hannah Montana de Danielle. A grande coleção de videogames de Danny e Brent (Ronale estava cansada de ver a nuca do marido quando ele desaparecia no World of Warcraft por dez horas seguidas). Tentaram se livrar de tudo o que estava infestado, inclusive da poltrona de vinil preto, mas Danny teve de se conformar com o fato de que algumas baratas fariam a viagem para a Geórgia com eles.

No meio do dia, chegou uma carta oficial de Tallahassee: o juiz de apelação do conselho de indenização do desemprego decidiu que Danny fora demitido da Target por justa causa, e sua reivindicação de benefícios foi rejeitada. “Acho que é só mais água debaixo da ponte a essa altura”, disse ele, deixando de lado a carta. “Uma vez que vamos para lá para reivindicar novos direitos. Certo, Brent? Acho mesmo que as coisas vão ficar melhores por lá. Tudo será novidade. Acho que essa é a coisa certa a fazer. As coisas não vão ficar melhor para nós aqui.”

Para escapar do trânsito e do calor, esperaram a maior parte do dia para partir: Danny, Brent e um gato no caminhão de aluguel, Dennis, Ronale, Danielle e os outros três gatos no Chevy Cavalier. Quando o sol se pôs, os Hartzell já haviam deixado Tampa para trás.

 

 

Eles ficaram pouco mais de um mês na Geórgia.

O amigo de Danny tinha uma nova namorada, e ela não queria os Hartzell por perto. Ele era um anfitrião ranzinza que exigia reembolso de entradas de cinema, insinuava que eles deveriam sair o mais rápido possível, tratava-os como inferiores, e até mesmo tirava sarro do peso de Ronale, o que deixava Danny muito ofendido. Um dia, as crianças foram passear na mata e Brent voltou com carrapatos. No dia seguinte, Dennis mexeu em um vespeiro no quintal e levou várias picadas. Mudaram-se para o primeiro trailer que puderam encontrar, ao lado de uma estrada movimentada. O ar-condicionado não funcionava, mas as crianças tinham medo das picadas de formigas-feiticeiras, então ficavam dentro do trailer sufocante dia e noite. A boa notícia foi que Danny encontrou um emprego de soldador, trabalhando em carretas com uma turma de mexicanos por 12,50 dólares a hora, mas em seu primeiro dia pegou uma peça de aço que estava caindo e agravou uma antiga lesão nas costas. No dia seguinte, mal conseguiu sair da cama. Depois de anos de desemprego e de varejo, não estava em forma para o trabalho pesado. Brent estava bem — era capaz de ficar bem em qualquer lugar, desde que tivesse sua família e seus videogames —, mas Danielle sentia falta de suas amigas, e seus pais perceberam tarde demais que as oito horas de viagem periódicas ao hospital em Tampa para ajustes em sua prótese seriam árduas e dispendiosas. Na Geórgia rural, toda viagem era longa — o novo Wal-Mart de Dennis ficava a quilômetros do trailer, o leite começou a estragar antes que Ronale chegasse em casa de volta do mercado, e estavam gastando todo o dinheiro em gasolina. O pior de tudo era o isolamento. Não falavam mais com o amigo de Danny. Em Tampa, tinham ao menos os médicos, o grupo de apoio. Ali, não tinham ninguém.

No início de agosto, já estavam exaustos. Voltar para Tampa foi menos uma decisão do que um colapso. Um benfeitor do hospital achou para eles um trailer perto de Brandon chamado River Run. Ronale olhou para as fotos on-line e fez um depósito de duas semanas de quatrocentos dólares. Alugaram outro caminhão e deixaram a Geórgia pouco antes da meia-noite de uma sexta-feira. Quando chegaram a River Run na manhã seguinte e viram os buracos nas paredes do trailer, as janelas com venezianas que não abriam, a porta sem tranca, a falta de qualquer aparelho doméstico, queriam cair de joelhos e chorar. Não havia como as crianças morarem lá. Foram para Tampa e deixaram Dennis no Wal-Mart para pleitear seu antigo emprego de 7,60 por hora de volta. Depois, começaram a procurar um motel. Algum instinto de migração levou a família de volta para a região em torno de MacDill, onde pegaram um quarto de 45 dólares por noite no Crosstown Inn, junto à South Dale Mabry Highway, poucas quadras ao norte de seu antigo apartamento. Tinham uma torradeira, e comeram cachorros-quentes torrados uma noite, pequenas pizzas feitas de pão, molho de tomate e queijo fatiado na noite seguinte. Todas as suas coisas estavam no caminhão de aluguel, já com um dia de atraso na devolução, o que significava a metade do depósito. Haviam perdido o depósito do trailer de River Run. Tinham dinheiro suficiente para cerca de uma semana no motel. Depois disso, uma mulher que conheciam do hospital talvez pudesse tomar conta de Brent e Danielle enquanto Danny, Ronale e Dennis dormiam no carro.

Danny estava no fim de suas forças. Ele tentou manter a confiança, mas continuava se repreendendo — não havia pensado bem a coisa, todas as consequências, e agora até mesmo a decisão mais simples o deixava paralisado. Um dia, estava com a filha no carro, no estacionamento do Wal-Mart, se preparando para entrar e comprar sanduíches de carne, pão e salada de batatas para o jantar no motel, e Danielle começou a chorar. Ela estava com medo de que, caso ficassem sem teto novamente, os gatos morreriam. Danny sempre tentava ser um pai forte na frente dos filhos, mas ao abraçar Danielle, não conseguiu segurar as lágrimas.

No meio da crise, Danny experimentou uma clareza dolorosa. Ele sabia duas coisas: tudo tinha de girar em torno da saúde de Danielle e tudo dependia de ele encontrar um emprego. Deixando para trás o entorpecimento que o dominara, começou a circular por toda a cidade, inscrevendo-se em todos os lugares que estavam contratando, lanchonetes ou qualquer outra coisa, não importava. Com uma ajuda do supervisor de Dennis no Wal-Mart, Danny foi contratado para descarregar e estocar produtos ganhando oito dólares por hora. Com os empregos dele e de Dennis no Wal-Mart, conseguiram alugar um apartamento de 745 dólares por mês num conjunto habitacional na South Lois Avenue. Tinha um quarto a mais do que o antigo na Dale Mabry, que ficava a um quilômetro e meio de distância, fazendo com que eles completassem um círculo, como se Deus quisesse que esquecessem de ir para outro lugar para começar de novo e, em vez disso, tentassem fazer as coisas funcionarem ali onde tinham os pés plantados.