—O quê?
— Não morreu — diz o Warner —, mas está ferido com gravidade. Desconfio que vão conseguir reanimá-lo.
— O quê… — Sinto o pânico nos ossos. — De que falas?
— Por favor — diz o Warner. — Senta-te. Eu explico. — Senta-se no chão e toca no chão a seu lado. Não sei que outra coisa posso fazer e as minhas pernas ficaram trémulas demais para se manterem de pé sozinhas.
Os meus membros desabam no chão e encostamo-nos os dois à parede, com o lado direito do corpo dele e o esquerdo do meu separados apenas por poucos centímetros de ar.
Passam 1
2
3 segundos.
— Não quis acreditar no Castle quando me disse que podia ter um… um dom — diz o Warner. A sua voz é tão baixa que preciso de esforço para o ouvir, mesmo estando tão perto. — Uma parte de mim achou que ele estivesse a tentar enlouquecer-me de propósito. — Um pequeno suspiro. — Mas fazia algum sentido, se pensasse no assunto. O Castle também me falou do Kent — continua o Warner. — Disse que consegue tocar-te e que descobriram porquê. Por um momento, pensei se teria um poder parecido, igualmente patético e inútil. — Ri-se. — Custou-me muito acreditar.
— Não é um poder inútil — ouço-me dizer.
— A sério? — Vira-se para mim. Os nossos ombros quase se tocam. — Diz-me, querida. Que consegue ele fazer?
— Consegue desativar coisas. Dons.
— Certo — diz ele. — Mas de que forma vai isso ajudá-lo? Como pode ajudá-lo desativar os poderes da sua própria gente? É absurdo. É um desperdício. Não vai ajudar nada nesta guerra.
Eriço-me. Decido ignorar aquilo.
— Que tem isto tudo a ver com o Kenji?
Vira outra vez a cara na direção oposta. A sua voz é mais delicada quando diz:
— Acreditarias se te dissesse que consigo sentir a tua energia agora mesmo? Que consigo sentir o seu tom e o seu peso?
Olho fixamente para ele, estudo-lhe as feições e a franqueza hesitante na sua voz.
— Sim — respondo. — Acho que acredito em ti.
O Warner sorri de uma forma que parece entristecê-lo.
— Consigo sentir — diz, inspirando fundo — as emoções que sentes com maior força. E, porque te conheço, consigo enquadrar essas sensações num contexto. Sei que o medo que sentes agora, por exemplo, não me é dirigido a mim e sim a ti própria e ao que pensas que fizeste ao Kenji. Sinto a tua hesitação… a tua relutância em acreditar que a culpa não foi tua. Sinto a tua tristeza, o teu pesar.
— Consegues mesmo sentir isso? — pergunto.
Acena com a cabeça sem olhar para mim.
— Não sabia que era possível — digo-lhe.
— Eu também não… Não sabia — afirma. — Não soube durante muito tempo. Pensei mesmo que fosse normal ter uma perceção tão grande das emoções humanas. Pensei que talvez fosse só mais atento do que a maioria. Isso influenciou muito o meu pai a deixar-me comandar o Setor 45 — diz-me. — Porque tenho uma capacidade invulgar para perceber se alguém esconde alguma coisa, se sente culpa ou, mais importante que isso, se mente. — Uma pausa. — Por isso — continua —, e porque não tenho medo de concretizar ameaças se a ocasião o exigir. Foi só quando o Castle sugeriu que poderia haver mais alguma coisa em mim que comecei a analisar isto a sério. Quase perdi o juízo. — Abana a cabeça. — Pensava uma e outra vez, tentando encontrar formas de provar ou refutar as teorias dele. Mesmo depois da minha deliberação cuidadosa, neguei tudo. E, mesmo que tenha um pouco de pena… por ti, não por mim… do Kenji por ter sido estúpido a ponto de se intrometer esta noite, acho que foi o destino. Porque, agora, tenho finalmente uma prova. Uma prova de que estava enganado. De que o Castle estava certo.
— Que queres dizer com isso?
— Fiquei com a tua Energia — diz-me — e não sabia que podia fazê-lo. Senti tudo com muita clareza quando ficámos os quatro unidos. O Adam era inacessível, o que, já agora, explica porque nunca desconfiei que não me era leal. As suas emoções estavam sempre escondidas, sempre bloqueadas. Fui ingénuo e supus que era simplesmente robótico, desprovido de qualquer personalidade ou interesses. Conseguiu eludir-me e foi por culpa minha. Confiei demasiado em mim para prever a possibilidade de uma falha no meu sistema.
E quero dizer: Afinal, o poder do Adam não é assim tão inútil, pois não?
Mas não digo.
— E o Kenji — diz o Warner, após um momento. Esfrega a testa. Ri-se um pouco. — O Kenji foi… muito esperto. Muito mais esperto do que julguei possível. E, no fundo, era precisamente essa a tática dele. O Kenji — diz, expirando — teve o cuidado de ser uma ameaça evidente em vez de ser uma ameaça discreta. Estava sempre a meter-se em sarilhos… a exigir porções extra às refeições, a lutar com os outros soldados, a violar o recolher obrigatório. Violava regras simples para atrair atenções. Para me fazer vê-lo como irritante e nada mais. Sempre senti que havia alguma coisa nele que não batia certo, mas atribuí isso ao seu comportamento rebelde e à sua incapacidade para seguir as regras. Considerei-o um mau soldado. Alguém que nunca seria promovido. Alguém que seria sempre reconhecido como uma perda de tempo. — Abana a cabeça. Ergue os olhos do chão. — Brilhante — diz, parecendo quase impressionado. — Foi brilhante. O único erro dele — acrescenta, após um momento — foi ser demasiado amigo do Kent. Esse erro quase lhe custou a vida.
— E então…? Estavas a tentar acabar com ele esta noite? — Continuo tão confusa, a tentar focar a conversa. — Magoaste-o de propósito?
— Não de propósito. — O Warner abana a cabeça. — Não sabia o que fazia. No princípio, pelo menos. Só senti Energia. Nunca soube capturá-la. Mas toquei a tua apenas por te tocar a ti… Havia tanta adrenalina entre nós que a tua quase se lançou sobre mim. E, quando o Kenji me segurou o braço — diz —, tu e eu continuávamos ligados. E eu… de alguma forma, consegui canalizar o teu poder na direção dele. Foi bastante acidental, mas senti isto acontecer. Senti o teu poder entrar dentro de mim. E jorrar de dentro de mim. — Ergue a cara. Os seus olhos encontram os meus. — Foi a coisa mais extraordinária que já senti.
Penso que cairia se não estivesse já sentada.
— Então consegues roubar… os poderes das outras pessoas? — pergunto-lhe.
— Aparentemente.
— E tens a certeza de que não magoaste o Kenji de propósito?
O Warner ri-se e olha para mim como se tivesse acabado de dizer alguma coisa muito divertida.
— Se quisesse matá-lo, tê-lo-ia feito. E não precisaria de um estratagema tão complicado. A teatralidade não me interessa — declara. — Se quiser fazer mal a alguém, não preciso de muito mais que as minhas mãos.
Fico atordoada, em silêncio.
— Espanta-me — continua o Warner — que consigas conter-te tanto sem encontrar formas de libertar o excesso. Mal consegui manter o controlo. A transferência do meu corpo para o do Kenji não foi só imediata. Foi também necessária. Não conseguiria aguentar a intensidade durante muito tempo.
— E eu não consigo magoar-te? — Pestanejo, espantada. — Nem um pouco? O meu poder só entra dentro de ti? Absorve-lo?
Acena afirmativamente. Diz:
— Queres ver?
E digo que sim com a cabeça e os olhos e os lábios e nunca senti mais medo na minha vida por estar tão entusiasmada.
— Que tenho de fazer? — pergunto-lhe.
— Nada — responde, baixando a voz. — Só tocar-me.
O meu coração bate palpita acelera corre pelo meu corpo todo e tento concentrar-me. Tento manter a calma. Isto não é nada, digo a mim mesma. Vai ficar tudo bem. É só uma experiência. Não precisas de ficar tão excitada por poderes voltar a tocar em alguém, repito para mim mesma, uma e outra vez.
Mas oh, estou tão, tão excitada.
Estende a sua mão nua.
Aceito-a.
Espero sentir alguma coisa, alguma fraqueza, algum esvaziamento da minha Energia, algum sinal de que a transferência ocorre do meu corpo para o dele, mas não sinto nada. Sinto-me exatamente igual. Mas olho para a cara do Warner enquanto fecha os olhos e faz um esforço para os focar. A seguir, sinto a mão dele apertar a minha e ouço-o gemer.
Abre os olhos de repente e a mão livre atravessa o chão.
Afasto-me, em pânico. Tombo para o lado, lançando as mãos para trás para me equilibrar. Deve ser uma alucinação. Devo estar a alucinar o buraco no chão a menos de 10 centímetros do sítio onde o Warner continua sentado no chão. Devo ter alucinado quando vi a palma da mão dele pressionar com força demais e atravessar o chão. Devo ter alucinado tudo. Tudo aquilo. Sonho e tenho a certeza de que vou acordar em breve.
Tem de ser isso.
— Não tenhas medo…
— C-como… — gaguejo — como f-fizeste isso…
— Não tenhas medo, querida. Está tudo bem, prometo… Também é novo para mim…
— O meu… O meu poder? Não… Não sentes dor nenhuma?
Abana a cabeça.
— Pelo contrário. É a descarga de adrenalina mais incrível… Nunca senti nada assim. Até fiquei um bocado zonzo — diz — da melhor forma possível. — Ri-se. Sorri para si mesmo. Apoia a cabeça nas mãos. Olha para cima. — Podemos repetir?
— Não — apresso-me a dizer.
Continua a sorrir.
— De certeza?
— Não posso… Eu… ainda não consigo acreditar que consegues tocar-me. Que consegues mesmo… Quer dizer… — Abano a cabeça. — Não há outro lado da questão? Não há condições? Tocas-me e ninguém se aleija? E, além de ninguém se aleijar, gostas? Gostas mesmo da sensação de me tocar?
Pestaneja enquanto olha para mim, fitando-me como se não soubesse responder à minha pergunta.
— Então?
— Sim — responde, mas é uma palavra forçada.
— Sim o quê?
Consigo ouvir a rapidez com que bate o coração dele. Consigo ouvi-lo no silêncio entre nós.
— Sim — confessa. — Gosto.
Impossível.
— Não precisas de ter medo de me tocar — diz. — Não me magoará. Só pode dar-me força.
Quero rir-me com uma daquelas gargalhadas estranhas, agudas e desvairadas que assinala o fim da sanidade mental de alguém. Porque aquele mundo, penso, tem um sentido de humor terrível. Parece sempre que se ri de mim. Às minhas custas. Tornando sempre a minha vida infinitamente mais complicada. Arruinando os meus planos mais cuidadosos por tornar cada escolha tão difícil. Tornando tudo tão confuso.
Não posso tocar no rapaz que amo.
Mas posso usar a minha força para fortalecer o rapaz que tentou matar aquele que amo.
Ninguém se ri, quero dizer ao mundo.
— Warner. — Olho para cima, percebendo subitamente. — Tens de dizer ao Castle.
— Porque faria isso?
— Porque tem de saber! Explicaria a situação do Kenji e pode ajudar-nos amanhã! Vais lutar a nosso lado e pode dar jeito…
O Warner ri-se.
Ri-se e ri-se e ri-se. Os seus olhos estão brilhantes, refletindo a luz ténue. Ri-se até ser apenas uma inspiração ruidosa, até se tornar um suspiro delicado, até se dissolver num sorriso divertido. A seguir, sorri-me até sorrir para si mesmo, até baixar o olhar para a minha mão, para a que está caída no meu colo e hesita por um momento antes de os seus dedos roçarem a pele macia e fina que cobre os meus nós dos dedos.
Não respiro.
Não falo.
Nem sequer me mexo.
Hesita, como se esperasse ver se me afasto e devia afastar-me, sei que devia, mas não o faço. Pega-me na mão. Estuda-a. Passa os dedos sobre as linhas na palma da minha mão, sobre os vincos das minhas articulações, o ponto sensível entre o meu polegar e o indicador, e o toque dele é tão terno, tão delicado e gentil e é tão bom que dói, dói mesmo. E é demasiado para o meu coração aguentar naquele momento.
Afasto a mão com um movimento incerto, corando e sentindo a minha pulsação palpitar.
O Warner não vacila. Não olha para cima. Nem sequer parece surpreendido. Limita-se a olhar fixamente para as suas mãos vazias enquanto fala.
— Sabes — diz, com voz simultaneamente estranha e delicada —, acho que o Castle é pouco mais do que um tolo otimista. Esforça-se muito para acolher demasiadas pessoas e o tiro vai sair pela culatra, apenas porque é impossível agradar a toda a gente. — Uma pausa. — É o exemplo perfeito do tipo de pessoa que não conhece as regras deste jogo. Alguém que pensa demasiado com o coração e que se apega com demasiado desespero a alguma noção fantasiosa de esperança e paz. Nunca o ajudará — suspira. — Na verdade, será o seu fim. Tenho a certeza disso.
» Mas há qualquer coisa em ti — acrescenta o Warner. — Qualquer coisa na forma como tu tens esperança. — Abana a cabeça. — É tão ingénuo que se torna enternecedor. Gostas de acreditar nas pessoas quando falam — diz. — Preferes a amabilidade. — Sorri um pouco. Ergue o olhar. — Diverte-me.
Sinto-me subitamente uma idiota.
— Não vais lutar do nosso lado amanhã.
O Warner passou a exibir um sorriso amplo com olhos muito calorosos.
— Vou-me embora.
— Vais-te embora. — Sinto-me dormente.
— Não pertenço aqui.
Abano a cabeça e digo:
— Não percebo… Como podes ir-te embora? Disseste ao Castle que lutarias connosco amanhã… Ele sabe que te vais? Alguém sabe? — pergunto enquanto lhe olho para a cara. — Que tens planeado? Que vais fazer?
Não responde.
— O que vais fazer, Warner?
— Juliette — sussurra com olhos urgentes, subitamente torturados. — Tenho de te perguntar uma coi…
Alguém corre pelos túneis.
Chamando o meu nome.
Adam.