Conto tudo.
Números pares, números ímpares, múltiplos de 10. Conto os tiques do relógio conto os taques do relógio, conto os espaços entre as linhas de uma folha de papel. Conto as batidas irregulares do meu coração, conto a minha pulsação as vezes que pestanejo e o número de tentativas necessárias para levar oxigénio suficiente aos meus pulmões. Fico assim e conto assim até a sensação parar. Até as lágrimas pararem de cair, até os meus punhos pararem de tremer, até o meu coração parar de doer.
Nunca há números suficientes.
O Adam está na ala médica.
Está na ala médica e pediram-me que não o visitasse. Pediram-me que lhe desse espaço, que lhe desse tempo para recuperar, que o deixasse em paz. Ficará bem, é o que me dizem a Sonya e a Sara. Dizem-me que não me preocupe, que tudo ficará bem, mas os seus sorrisos são um pouco menos exuberantes do que costumam ser e começo a pensar se também elas começam finalmente a ver-me como o que sou realmente.
Um monstro horrível, egoísta e patético.
Apossei-me do que queria. Sabia que não devia fazê-lo e isso não me impediu. O Adam não podia ter sabido, não podia ter sabido como era realmente sofrer às minhas mãos. Desconhecia o âmago da questão, a sua cruel realidade. Sentira apenas descargas momentâneas do meu poder, de acordo com o Castle. Tinha sentido apenas pequenas pontadas e manteve-se sempre suficientemente capaz e consciente para se afastar sem sentir a totalidade dos efeitos.
Mas eu sabia.
Sabia do que era capaz. Conhecia os riscos que existiam e, mesmo assim, fi-lo. Permiti-me esquecer, ser irresponsável, ser gananciosa e estúpida porque queria o que não podia ter. Queria acreditar em contos de fadas e finais felizes e na pura possibilidade. Queria fingir que era uma pessoa melhor do que sou realmente, mas, em vez disso, consegui expor-me como o terror que sempre fui acusada de ser.
Os meus pais estavam certos quando se livraram de mim.
O Castle nem sequer fala comigo.
O Kenji, no entanto, continua a esperar que apareça às 6 da manhã para o que devemos fazer amanhã e descubro que me sinto agradecida pela distração. Só desejo que fosse mais cedo. A minha vida será solitária daquele momento em diante, tal como sempre foi e é melhor que descubra uma forma de ocupar o meu tempo.
Para esquecer.
Não para de me chocar, uma e outra vez, aquela total solidão. Esta sua ausência na minha vida, esta perceção de que nunca voltarei a conhecer o calor do seu corpo, a ternura do seu toque. Esta recordação de quem sou e do que fiz e do sítio a que pertenço.
Mas aceitei as condições da minha nova realidade.
Não posso estar com ele. Não estarei com ele. Não arriscarei voltar a magoá-lo, não arriscarei tornar-me a criatura de que sempre terá medo, que sempre receará tocar, beijar, abraçar. Não quero impedi-lo de ter uma vida normal com alguém que não possa matá-lo acidentalmente a qualquer momento.
Por isso, tenho de me arrancar ao mundo dele. Tenho de o arrancar ao meu.
É muito mais difícil agora. É muito mais difícil resignar-me a uma existência de gelo e vazio depois de ter conhecido calor, urgência, ternura e paixão. O extraordinário conforto de poder tocar outro ser humano.
É humilhante.
Ter pensado que podia desempenhar o papel de uma rapariga normal com um namorado normal. Ter pensado que podia viver nas histórias que li em tantos livros quando era pequena.
Eu.
A Juliette com um sonho.
Pensar isto chega para me atormentar. Que vergonha ter pensado que podia mudar as cartas que me tinham calhado. Ter-me visto ao espelho e ter gostado da cara pálida que me retribuía o olhar.
Que triste.
Sempre ousei identificar-me com a princesa, com a que foge e encontra uma fada-madrinha que a transforma numa rapariga bela com futuro promissor. Apeguei-me a algo como ter esperança, a um entrelaçar de talvezes e possivelmentes. Mas devia ter ouvido quando os meus pais me diziam que coisas como eu não podiam ter sonhos. Coisas como eu deviam ser destruídas. Era o que a minha mãe me tinha dito.
E começo a pensar que tinham razão. Começo a pensar se não devia enterrar-me no chão antes de recordar que, tecnicamente, já estou enterrada. Nem sequer precisei de uma pá.
É estranho.
Como me sinto oca.
Como se pudessem existir ecos dentro de mim. Como se fosse um daqueles coelhos de chocolate que costumavam vender perto da Páscoa, aqueles que eram apenas uma carapaça doce com interior vazio. Sou assim.
Sou vazia por dentro.
Todos aqui me odeiam. Os ténues laços de amizade que comecei a estabelecer foram destruídos. O Kenji está farto de mim. O Castle está indignado, desiludido, furioso, até. Só provoquei problemas desde que cheguei e a única pessoa que tentou ver algo bom em mim paga por isso com a vida.
A única pessoa que se atreveu a tocar-me.
Bom. 1 de 2.
Dou comigo a pensar demasiado no Warner.
Lembro-me dos seus olhos e da sua estranha amabilidade e da sua atitude cruel e calculista. Recordo a forma como me olhou quando saltei pela janela para fugir, e recordo o horror na sua cara quando lhe apontei a sua própria arma ao coração e, a seguir, questiono a minha preocupação com aquela pessoa que não tem nada a ver comigo e que, mesmo assim, é tão parecida.
Penso se voltarei a tê-lo à minha frente outra vez, em breve, e penso como me saudará. Não sei se quer continuar a manter-me viva, especialmente depois de tentar matá-lo, e não sei o que poderia empurrar uma pessoa-homem-rapaz de 19 anos para uma vida tão miserável e homicida e apercebo-me de que minto a mim mesma. Porque sei. Porque posso ser a única pessoa que conseguiria compreendê-lo.
E foi isto o que aprendi.
Sei que é uma alma torturada que, como eu, nunca teve o calor da amizade, do amor ou da coexistência pacífica. Sei que o pai dele é o líder do Restabelecimento e aplaude os homicídios do seu filho em vez de os condenar e sei que o Warner não faz ideia de como é ser normal.
Nem eu.
Passou a sua vida a lutar para honrar as expectativas do seu pai sobre dominar o mundo, sem questionar porquê, sem considerar as repercussões, sem parar durante tempo suficiente para pesar o valor de uma vida humana. Tem um poder, uma força, uma posição na sociedade que lhe permite causar grandes danos e orgulha-se disso. Mata sem arrependimento e quer que me junte a ele. Vê-me como sou e espera que honre esse potencial.
A rapariga assustadora e monstruosa com o toque letal. A rapariga triste e patética que não tem mais nada que possa contribuir para este mundo. Que serve só como arma, como instrumento de tortura e para assumir o controlo. É isso que quer de mim.
E, por fim, nem sequer sei se está enganado. Ultimamente, não tenho a certeza de nada. Ultimamente, não sei nada sobre nada em que alguma vez tenha acreditado, já não, e o que menos conheço é quem sou. Os sussurros do Warner preenchem o espaço na minha cabeça, dizendo-me que posso ser mais, que posso ser mais forte, que posso ser tudo, que poderia ser muito mais do que uma rapariguinha assustada.
Diz que posso ser poderosa.
Mas, mesmo assim, hesito.
Mesmo assim, nada me agrada na vida que me tentou oferecer. Não vejo nela qualquer futuro. Nada nela me agrada. Mesmo assim, digo a mim mesma, apesar de tudo, sei que não quero magoar ninguém. Não é algo que queira. E, mesmo que o mundo me odeie, mesmo que nunca parem de me odiar, nunca me vingarei numa pessoa inocente. Se morrer, se me matarem, se for assassinada enquanto durmo, morrerei, pelo menos, com alguma dignidade. Um fragmento de humanidade que continua a ser só meu, que continua a estar totalmente sob meu controlo. E não permitirei que ninguém me tire isso.
Por isso, preciso de continuar a lembrar-me de que o Warner e eu somos 2 palavras diferentes.
Somos sinónimos, mas não somos iguais.
Os sinónimos conhecem-se como antigos colegas, como amigos que viram o mundo juntos. Partilham histórias, falam sobre as suas origens e esquecem que, apesar de serem parecidos, são completamente diferentes e, apesar de poderem partilhar um determinado conjunto de atributos, um nunca poderá ser o outro. Porque uma noite tranquila não equivale a uma noite silenciosa, um homem firme não equivale a um homem sólido e uma luz intensa não equivale a uma luz brilhante, porque a forma como se encaixam numa frase muda tudo.
Não são a mesma coisa.
Passei a minha vida inteira a lutar para ser melhor. A lutar para ser mais forte. Porque, ao contrário do Warner, não quero ser um terror neste mundo. Não quero magoar ninguém.
Não quero usar o meu poder para mutilar ninguém.
Mas, a seguir, olho para as minhas 2 mãos e recordo exatamente do que sou capaz. Recordo exatamente o que fiz e sei demasiado bem o que posso fazer. Porque é tão difícil lutar contra o que não conseguimos controlar e, naquele momento, nem sequer consigo controlar a minha própria imaginação, que me agarra o cabelo e me puxa para a escuridão.