SESSENTA E QUATRO

Chove.

O mundo chora sobre os nossos pés em antecipação do que estamos prestes a fazer.

Devemos distribuir-nos pelo terreno, lutando em grupos compactos para não conseguirem matar-nos todos ao mesmo tempo. Não temos gente suficiente para uma ofensiva e teremos de ser furtivos. E, mesmo que sinta uma pontada de culpa por admitir aquilo, estou tão feliz por o Kenji ter decidido vir connosco. Ficaríamos mais fracos sem ele.

Mas teremos de sair da chuva.

Já estamos ensopados e, enquanto o Kenji e eu vestimos fatos que permitem alguma proteção dos elementos, o Adam não tem nada além de roupa simples de algodão e receio que não aguentemos muito tempo assim. Todos os membros do Ponto Ómega já dispersaram. A área imediatamente por cima do Ponto continua a não ser nada além de terreno ermo que nos deixa vulneráveis quando saímos.

Felizmente para nós, temos o Kenji. Estamos já invisíveis os 3.

Os homens do Anderson não estão longe dali.

Tudo o que sabemos é que, desde que chegou, o Anderson se tem esforçado para demonstrar a sua força e o poder inabalável do Restabelecimento. Qualquer voz de oposição, por mais fraca ou débil que seja, por menos ameaçadora ou inócua, foi silenciada. Está furioso por termos inspirado uma revolta e tenta passar uma mensagem. O que quer realmente é destruir-nos a todos.

Os pobres civis foram apanhados no fogo cruzado.

Tiros.

Movemo-nos automaticamente na direção do som distante. Não dizemos nada. Sabemos o que precisamos de fazer e como teremos de agir. A nossa única missão é aproximarmo-nos tanto quanto possível da devastação e eliminarmos o máximo de homens do Anderson. Protegeremos os inocentes. Apoiaremos os nossos companheiros, os homens e mulheres do Ponto.

Faremos um esforço para não morrer.

Consigo ver os complexos aproximando-se à distância, mas a chuva dificulta a visão. Todas as cores se misturam, fundindo-se no horizonte, e preciso de me esforçar para perceber o que temos à nossa frente. Por instinto, toco nas armas enfiadas nos coldres nas minhas costas e recordo por um momento o meu último encontro com o Anderson… o meu único encontro com aquele homem horrível e desprezível… e penso no que lhe terá acontecido. Penso se o Adam teria razão quando disse que o Anderson poderia estar ferido com gravidade, que talvez tentasse recuperar. Penso se o Anderson aparecerá no campo de batalha. Penso se talvez seja demasiado cobarde para combater nas suas próprias guerras.

Os gritos dizem-nos que nos aproximamos.

O mundo à nossa volta é uma paisagem desfocada de azuis e cinzentos e tonalidades confusas e as poucas árvores que continuam de pé têm uma centena de ramos trémulos que brotam dos seus troncos, erguendo-se para o céu como se orassem, como se suplicassem por alívio da tragédia em que ficaram enraizadas. É suficiente para me fazer ter pena das plantas e dos animais forçados a testemunhar o que fizemos.

Nunca pediram aquilo.

O Kenji conduz-nos até às imediações dos complexos e avançamos até nos encostarmos à parede de uma das pequenas casas quadradas, encolhendo-nos sob o beirado que, pelo menos naquele momento, nos abriga da chuva violenta.

O vento rói as janelas e força as paredes. A chuva golpeia o telhado como pipocas saltando contra um vidro.

A mensagem do céu é clara: estamos furiosos.

Estamos furiosos e vamos castigar-vos e vamos fazer-vos pagar pelo sangue que derramam com tanta despreocupação. Não vamos ficar a assistir, já não, nunca mais. Vamos arruinar-vos, é o que o céu nos diz.

Como puderam fazer-me isto?, sussurra o vento.

Dei-vos tudo, diz-nos.

Nada voltará a ser como era.

Penso porque ainda não vi nenhum sinal do exército. Não vejo mais ninguém do Ponto Ómega. Não vejo ninguém. Na verdade, começo a sentir que aquele complexo está demasiado silencioso.

Estou prestes a sugerir que avancemos quando ouço uma porta abrir.

— Esta é a última — grita alguém. — Estava escondida aqui. — Um soldado arrasta uma mulher chorosa do interior do complexo contra o qual nos espalmamos e a mulher grita, implora por misericórdia e pergunta pelo marido e o soldado grita-lhe que se cale.

Tenho de impedir as emoções de me saírem pelos olhos, pela boca.

Não falo.

Não respiro.

Outro soldado aproxima-se a correr de um sítio que não vejo. Grita uma mensagem de aprovação qualquer e faz um movimento com as mãos que não percebo. Sinto o Kenji ficar hirto a meu lado.

Algo está mal.

— Põe-na com os outros — grita o segundo soldado. — E dizemos que esta área está limpa.

A mulher está histérica. Guincha, agarra o soldado, diz-lhe que não fez nada de mal, que não percebe, pergunta pelo marido, procurou a filha por todo o lado e pergunta o que acontece, chora, grita, atinge o homem que a segura com murros animalescos.

O soldado encosta-lhe o cano da arma ao pescoço.

— Se não te calas, disparo agora mesmo.

Choraminga uma, duas vezes e deixa-se cair. Desmaiou nos braços dele e o soldado parece enojado enquanto a arrasta para longe da vista até onde guardam todos os outros. Não faço ideia do que acontece. Não percebo o que acontece.

Seguimo-los.

O vento e a chuva aumentam de intensidade e há barulho suficiente no ar e distância entre nós e os soldados para me sentir segura para falar. Aperto a mão do Kenji. Continua a ser ele a cola entre mim e o Adam, projetando os seus poderes para que continuemos todos invisíveis.

— Que achas que se passa? — pergunto.

Não responde imediatamente.

— Estão a reuni-los — diz, após um momento. — Formam grupos de pessoas para matar ao mesmo tempo.

— A mulher…

— Sim. — Ouço-o pigarrear. — Sim. Ela e toda a gente que pensarem que tem uma ligação com os protestos. Não se limitam a matar os instigadores — diz-me. — Matam também os amigos e os familiares. É a melhor forma de manter as pessoas na ordem. Nunca deixa de assustar os poucos que ficam vivos.

Tenho de engolir o vómito que ameaça dominar-me.

— Tem de haver uma forma de os tirar de lá — diz o Adam. — Talvez possamos eliminar os soldados responsáveis.

— Sim, mas ouçam. Vocês sabem que vou ter de vos soltar, não sabem? Já estou a perder as forças. Sinto a minha Energia gastar-se mais depressa do que o habitual. Vão ficar visíveis — afirma o Kenji. — Serão um alvo fácil.

— Mas que outra escolha temos? — pergunto.

— Podemos tentar eliminá-los como atiradores furtivos — sugere o Kenji. — Não precisamos de começar um combate direto. Temos essa opção. — Faz uma pausa. — Juliette, nunca estiveste neste tipo de situação antes. Quero que saibas que respeitaria a tua decisão de ficar fora da linha de fogo. Nem toda a gente aguenta o que poderemos ver se seguirmos aqueles soldados. Não há nisso vergonha nem culpa.

Sinto um sabor metálico na boca enquanto minto.

— Vou ficar bem.

Fica em silêncio por um momento.

— É que… está bem… mas não tenhas medo de usar as tuas capacidades para te defenderes — diz-me. — Sei que não queres magoar ninguém, mas estes tipos não são para brincadeiras. Vão mesmo tentar matar-te a ti.

Aceno com a cabeça mesmo sabendo que não consegue ver-me.

— Certo — respondo. — Sim. — Mas o pânico dá cabo de mim.

— Vamos — sussurro.