TRINTA E QUATRO

É refrescante, na verdade — diz ele. — Ver que a juventude ainda valoriza coisas como a pontualidade. É sempre tão frustrante quando as pessoas desperdiçam o meu tempo.

Tenho a cabeça cheia de botões em falta, de estilhaços de vidro e de bicos de lápis partidos. Aceno com a cabeça com demasiada lentidão, pestanejando como uma idiota, incapaz de encontrar as palavras na minha boca porque se perderam ou porque nunca existiram ou simplesmente porque não faço ideia do que dizer.

Não sei o que esperava.

Talvez pensasse que fosse velho e mirrado e ligeiramente cego. Talvez trouxesse uma pala sobre um olho e precisasse de andar com bengala. Talvez tivesse dentes podres, pele enrugada, cabelo em falta. E talvez fosse um centauro, um unicórnio, uma bruxa velha com um chapéu bicudo qualquer coisa qualquer coisa qualquer coisa menos aquilo. Porque aquilo não era possível. Aquilo era-me tão difícil de perceber e o que tivesse esperado estava errado, tão completa, incrível e horrivelmente errado.

Olho fixamente para um homem que é absoluta e avassaladoramente belo.

E é um homem.

Terá pelo menos 45 anos, alto e forte e recortado num fato que lhe assenta tão perfeitamente que é quase injusto. O seu cabelo é volumoso, macio como pasta de avelã. O seu maxilar é reto, as linhas da sua face são perfeitamente simétricas. As suas bochechas foram endurecidas pela vida e pela idade. Mas são os seus olhos que fazem a diferença. Os seus olhos são das coisas mais espetaculares que alguma vez vi.

São quase cor de água-marinha.

— Por favor — diz, esboçando-me um sorriso incrível. — Entre.

E atinge-me nesse momento, precisamente nesse momento, porque tudo passa subitamente a fazer sentido. A sua aparência, a sua estatura, o porte cheio de classe. A facilidade com que quase esqueci que era um vilão… aquele homem.

Aquele é o pai do Warner.

Entro no que parece ser uma pequena sala de estar. Há sofás velhos e amassados dispostos à volta de uma pequena mesinha. Os anos tornaram o papel de parede amarelo e solto. A casa está preenchida por um cheiro estranho a bolor que indica que as janelas de vidro rachado não eram abertas há anos, e a carpete sob os meus pés é verde. As paredes são embelezadas por painéis de madeira falsa que não me fazem sentido nenhum. Aquela casa é, numa palavra, feia. Parece ridículo que um homem tão vistoso esteja dentro de uma casa com aspeto tão horrivelmente inferior.

— Oh, espere — diz ele. — Só uma coisa.

— O q…

Encosta-me à parede pela garganta, com as mãos cuidadosamente enfiadas num par de luvas de couro, já preparado para tocar na minha pele para me bloquear o oxigénio, para me asfixiar até à morte e tenho a certeza de que morro. Estou tão segura de que é assim morrer, completamente imobilizada, sem forças do pescoço para baixo. Tento arranhá-lo, pontapear-lhe o corpo com o que resta da minha energia, até desistir, abdicando da minha própria estupidez, com os meus últimos pensamentos condenando-me por ser uma idiota tão grande, por pensar que podia vir ali e conseguir qualquer coisa, até perceber que me abriu os coldres, que me roubou as armas e as enfiou nos bolsos.

Solta-me.

Caio ao chão.

Diz-me que me sente.

Abano a cabeça, tossindo com os pulmões torturados, tossindo o ar sujo e bolorento e enchendo os pulmões enquanto arfo horrivelmente, com os espasmos de dor abalando o meu corpo inteiro. Passei menos de 2 minutos no interior e já me enfraqueceu. Tenho de perceber como fazer alguma coisa, como sobreviver àquilo. Não é momento para me conter.

Fecho os olhos com força por um momento. Tento desimpedir as vias respiratórias, tento recuperar a consciência. Quando olho finalmente para cima, vejo que já está sentado numa das cadeiras, olhando-me fixamente como se o divertisse muito.

Mal consigo falar.

— Onde estão os reféns?

— Estão ótimos. — Este homem cujo nome não sei acena com uma mão indiferente no ar. — Ficarão ótimos. De certeza que não se quer sentar?

— O que… — Tento pigarrear e arrependo-me imediatamente, forçando-me a conter as lágrimas traiçoeiras que me queimam os olhos. — Que quer de mim?

Inclina-se para a frente. Une as mãos.

— Sabe… acho que já não sei.

— O quê?

— Bom… certamente, já terá percebido que isto tudo… — indica com a cabeça a sala à minha volta — é só uma distração, não é? — Esboça o mesmo sorriso incrível. — Certamente, já terá percebido que o meu objetivo derradeiro era atrair a vossa gente para o meu território. Os meus homens esperam apenas a ordem. Uma ordem minha e procurarão e destruirão todos os vossos amiguinhos que esperam tão pacientemente neste perímetro de oitocentos metros.

O terror acena-me.

Ele ri-se um pouco.

— Se pensa que não sei exatamente o que se passa na minha própria terra, minha jovem, está muito enganada. — Abana a cabeça. — Deixar estas aberrações viverem com demasiada liberdade entre nós foi um erro que cometi. Dão-me demasiados problemas e chegou o momento de as eliminar.

— Sou uma dessas aberrações — digo-lhe, tentando controlar o tremor na minha voz. — Porque me trouxe para aqui se tudo o que quer é matar-nos? Porquê eu? Não precisava de me isolar.

— Tem razão. — Acena com a cabeça. Ergue-se. Enfia as mãos nos bolsos. — Vim aqui com um propósito: limpar a confusão que o meu filho criou e acabar finalmente com os esforços ingénuos de um grupo de aberrações idiotas. Para vos apagar a todos deste mundo miserável. Mas — diz, rindo um pouco —, enquanto começava a delinear os meus planos, o meu filho veio ter comigo e suplicou-me que não a matasse. Só a si. — Para. Olha para cima. — Suplicou-me mesmo que não a matasse. — Volta a rir. — Foi tão patético como foi surpreendente. Claro que, nesse momento, percebi que tinha de a conhecer — diz, sorrindo, fitando-me como se estivesse encantado. — Disse a mim mesmo que tinha de conhecer a rapariga que conseguiu enfeitiçar o meu rapaz! Esta rapariga que conseguiu fazê-lo perder o orgulho… a sua dignidade… durante tempo suficiente para me suplicar por este favor. — Uma pausa. — Sabe — continua — a última vez que o meu filho me pediu um favor? — Inclina a cabeça. Espera que responda.

Abano a cabeça.

— Nunca. — Inspira. — Nunca. Nem uma única vez em 19 anos me pediu alguma coisa. É difícil de acreditar, não é? — O seu sorriso amplia-se e ganha brilho. — Assumo todo o mérito, claro. Criei-o bem. Ensinei-o a ser inteiramente autossuficiente, contido, sem se deixar sobrecarregar pelas necessidades e desejos que vergam a maioria dos outros homens. Ouvir estas palavras vergonhosas de súplica a saírem-lhe da boca? — Abana a cabeça. — Bom. Naturalmente, senti-me intrigado. Tinha de a ver com os meus olhos. Precisava de compreender o que ele tinha visto, o que tinha de tão especial para ter provocado um erro de julgamento tão colossal. Mas, para ser perfeitamente franco — continua —, não acreditei mesmo que viesse. — Tira uma mão do bolso e gesticula com ela enquanto fala. — Esperei que sim. Mas pensei que, se viesse, trouxesse pelo menos algum apoio… reforços de algum tipo. Mas aqui está, vestindo esta monstruosidade de licra. — Ri-se. — E está sozinha. — Estuda-me. — Muito estúpido — diz. — Mas corajoso. Gosto disso. Admiro a coragem. Seja como for, trouxe-a aqui para ensinar uma lição ao meu filho. Tinha todas as intenções de a matar — diz, começando a caminhar de forma lenta e convicta pela sala. — E preferiria fazê-lo onde ele o visse, sem qualquer dúvida. A guerra é uma coisa suja — acrescenta, acenando com a mão. — É fácil perder o fio à meada de quem foi morto, como morreu, quem matou quem etecetera, etecetera. Queria que esta morte específica fosse tão limpa e simples como a mensagem que transmitiria. Não é bom para ele desenvolver este tipo de ligações, afinal. É meu dever como pai dele pôr fim a esse tipo de tolice.

Sentia-me agoniada, tão agoniada, tão tremendamente agoniada. Aquele homem era muito pior do que alguma vez poderia ter imaginado.

A minha voz reduz-se a uma inspiração brusca, a um sussurro alto quando falo.

— Então porque não me mata?

Hesita. Diz:

— Não sei. Não esperava que fosse assim tão encantadora. Receio que o meu filho nunca tenha referido como é bela. E é sempre tão difícil matar uma criatura bela. — Suspira. — Além disso, surpreendeu-me. Chegou a horas. Sozinha. Estava realmente disposta a sacrificar-se para salvar inúteis suficientemente estúpidos para se deixarem apanhar. — Ouço-o inspirar. — Talvez pudéssemos ficar consigo. Se não se revelar útil, talvez se revele pelo menos divertida. — Inclina a cabeça, pensativo. — Mesmo que ficássemos consigo, suponho que teria de voltar para a capital comigo porque já não confio que o meu filho faça alguma coisa bem. Dei-lhe demasiadas hipóteses.

— Obrigada pela oferta — digo-lhe. — Mas preferia atirar-me de um penhasco.

O seu riso é como uma centena de pequenas campainhas, feliz, sadio e contagioso.

— Vejam só. — O sorriso é luminoso e caloroso e devastadoramente sincero. Abana a cabeça. Chama por alguém inclinando a cabeça sobre o seu ombro, parecendo falar para outra divisão (talvez a cozinha, mas não tenho a certeza) e diz: — Filho, podes vir aqui, por favor?

E tudo o que me ocorre é que, às vezes, morremos, às vezes estamos prestes a explodir, às vezes estamos sob sete palmos de terra e procuramos uma janela quando alguém nos despeja combustível de isqueiro pelo cabelo abaixo e nos encosta um fósforo à cara.

Sinto os ossos incendiarem-se.

O Warner está ali.