Os olhos do Warner fixam-se nos meus.
Olha-me com olhos repletos de emoção crua e não percebo ao certo se continuo a conhecê-lo. Não sei ao certo se o compreendo, não tenho a certeza do que fará quando ergue a arma com uma mão forte e firme e a aponta diretamente à minha cara.
— Rápido — manda o Anderson. — Quanto mais depressa fizeres isto, mais depressa poderemos seguir em frente. Despacha isto…
Mas o Warner inclina a cabeça. Vira-se.
Aponta a arma ao pai.
Abro a boca de espanto.
O Anderson parece entediado, irritado, aborrecido. Passa uma mão impaciente pela cara antes de puxar por outra arma, a minha outra arma, do seu bolso. É inacreditável.
Pai e filho, ambos ameaçando matar-se um ao outro.
— Aponta a arma na direção certa, Aaron. Isto é ridículo.
Aaron.
Quase me rio entre toda aquela insanidade.
O primeiro nome do Warner é Aaron.
— Não tenho interesse nenhum em matá-la — diz o Warner o Aaron ele ao seu pai.
— Ótimo. — O Anderson volta a apontar-me a arma à cabeça. — Faço-o eu.
— Dispara — diz o Warner —, e meto-te uma bala no crânio.
É um triângulo de morte. O Warner aponta uma arma ao pai, o pai aponta-me uma arma a mim. Eu sou a única sem uma arma e não sei o que fazer.
Se me mexer, morrerei. Se não me mexer, morrerei.
O Anderson sorri.
— Que encantador — diz. O seu sorriso é despreocupado e a mão segura a arma com uma facilidade enganadora. — Então? Ela faz-te sentir corajoso, rapaz? — Uma pausa. — Faz-te forte?
O Warner não diz nada.
— Faz-te sentir um homem melhor? — Uma pequena gargalhada. — Encheu-te a cabeça com sonhos sobre o teu futuro? — Uma gargalhada mais dura. — Perdeste a cabeça — diz — por uma criança estúpida e tão cobarde que nem sequer se defende quando tem uma arma apontada à cara. Esta — afirma, apontando-me a arma com maior firmeza ainda — é a rapariguinha tonta por quem te apaixonaste. — Uma expiração brusca. — Não percebo porque me surpreende.
Uma nova tensão na sua respiração. Uma nova tensão nos dedos que seguram a arma. São os únicos sinais de que o Warner se sentirá afetado pelas palavras do pai.
— Quantas vezes — pergunta o Anderson — ameaçaste matar-me? Quantas vezes acordei a meio da noite e te vi, mesmo quando eras pequeno, a tentares dar-me um tiro enquanto dormia? — Inclina a cabeça. — Dez vezes? Talvez quinze? Tenho de admitir que perdi a conta. — Olha fixamente para o Warner. Volta a sorrir. — E quantas vezes — pergunta, com voz subitamente mais alta — conseguiste levar essa intenção até ao fim? Quantas vezes conseguiste? Quantas vezes — insiste — começaste a chorar, pedindo desculpa e abraçando-me como um doido…
— Cala-te — diz o Warner com voz tão baixa e estável. O seu corpo está tão imóvel que é assustador.
— És fraco — exclama o Anderson, enojado. — Um sentimentalista patético. Não queres matar o teu próprio pai? Receias demasiado que parta o teu coração miserável?
O maxilar do Warner fica tenso.
— Dispara — diz o Anderson, com os olhos brilhando, divertidos. — Dispara, já disse! — grita, daquela vez estendendo a mão para o braço ferido do Warner, segurando-o até os dedos pressionarem o ferimento com firmeza, torcendo-lhe o braço para trás até o Warner gemer de dor, pestanejando depressa demais, tentado desesperadamente suprimir o grito que cresce dentro dele. A firmeza com que segura a arma com a mão sã vacila apenas um pouco.
O Anderson solta o filho. Empurra-o com tanta força que o Warner cambaleia enquanto tenta manter o equilíbrio. Tem a cara branca como giz. O pano com que suspende o braço ao peito ensopa-se com sangue.
— Tanta conversa — diz o Anderson, abanando a cabeça. — Tanta conversa e nunca ação suficiente. Envergonhas-me — diz ao Warner com uma expressão de repulsa. — Metes-me nojo.
Um ruído alto.
O Anderson esbofeteia o Warner com tanta força na cara que o Warner cambaleia por um momento, zonzo com todo o sangue que perde. Mas não diz nada.
Não produz qualquer som.
Fica ali de pé, suportando a dor, pestanejando rapidamente, com o maxilar tão tenso, fitando o pai com uma cara onde não há qualquer emoção. Nada sugere que tenha acabado de ser esbofeteado além da marca vermelha na bochecha, na têmpora e em parte da testa. Mas o pano do braço passou a ser mais sangue que algodão e parece demasiado doente para continuar de pé.
Mesmo assim, não diz nada.
— Queres voltar a ameaçar-me? — O Anderson ofega enquanto fala. — Ainda acreditas que consegues defender a tua namoradinha? Pensas que vou permitir que a tua estúpida paixoneta atrapalhe tudo o que construí? Todo o meu trabalho? — A arma do Anderson já não me está apontada. Esquece-me durante tempo suficiente para encostar o cano da arma à testa do Warner, virando-o e pressionando-o contra a pele enquanto fala. — Não consegui ensinar-te nada? — grita. — Não aprendeste nada comigo…
Não sei como explicar o que acontece a seguir.
Tudo o que sei é que a minha mão envolve a garganta do Anderson e encostei-o à parede, tão dominada por uma raiva cega, ardente e devoradora que penso que o meu cérebro já irrompeu em chamas, dissolvendo-se em cinza.
Aperto um pouco mais.
Engasga-se. Tosse. Tenta puxar-me os braços, usando mãos sem forças para afastar o meu corpo e fica vermelho, azul e roxo e agrada-me. Agrada-me tanto.
Acho que sorrio.
Ponho a minha cara a menos de dois centímetros da orelha dele e sussurro:
— Largue a arma.
Obedece.
Largo-o e pego na arma ao mesmo tempo.
O Anderson tenta respirar, tossindo no chão, tentando encher os pulmões, tentando alcançar alguma coisa que possa usar para se defender e a sua dor diverte-me. Flutuo numa nuvem de ódio absoluto e indelével por aquele homem e por tudo o que fez e quero sentar-me e rir até as lágrimas de júbilo me empurrarem para uma espécie de silêncio satisfeito. Percebo tantas coisas naquele momento. Tantas.
— Juliette…
— Warner — digo, em voz tão baixa, continuando a olhar fixamente para o corpo do Anderson caído no chão à minha frente. — Preciso que me deixes em paz agora.
Sinto o peso da arma nas mãos. Testo o meu dedo no gatilho. Tento recordar o que o Kenji me ensinou sobre mirar. Sobre manter as mãos e os braços firmes. Sobre preparar-me para o coice do tiro.
Inclino a cabeça. Faço um inventário mental das partes do corpo dele.
— Sua — consegue dizer finalmente o Anderson — sua…
Atinjo-o na perna.
Grita. Penso que grita. Já não consigo ouvi-lo a sério. Sinto que tenho os ouvidos cheios de algodão, como se alguém tentasse falar comigo ou talvez alguém me gritasse, mas tudo está abafado e tenho demasiadas coisas em que pensar naquele momento para prestar atenção às coisas irritantes que acontecem em segundo plano. Tudo o que conheço é a vibração daquela arma na minha mão. Tudo o que ouço é o tiro ecoando-me pela cabeça. E decidi que gostaria de o fazer outra vez.
Atinjo-o na outra perna.
Há tantos gritos.
Diverte-me o horror nos olhos dele. O sangue estraga o tecido caro da sua roupa. Quero dizer-lhe que não parece muito atraente com a boca aberta daquela maneira, mas, a seguir, penso que é provável que não se importe com a minha opinião. Sou só uma rapariguinha tonta para ele. Só uma rapariguinha tonta, uma criança estúpida com cara bonita, mas que é demasiado cobarde, como disse, para se defender. E, oh, como gostaria de ficar comigo. Como gostaria de ficar comigo como animal de estimação. E percebo que não. Não devia dar-me ao trabalho de partilhar os meus pensamentos com ele. É inútil desperdiçar palavras com alguém que está prestes a morrer.
Aponto em direção ao seu peito. Tento recordar onde fica o coração.
Não exatamente à esquerda. Não exatamente ao centro.
Apenas… ali.
Perfeito.