TRINTA E SEIS

Os olhos do Warner fixam-se nos meus.

Olha-me com olhos repletos de emoção crua e não percebo ao certo se continuo a conhecê-lo. Não sei ao certo se o compreendo, não tenho a certeza do que fará quando ergue a arma com uma mão forte e firme e a aponta diretamente à minha cara.

— Rápido — manda o Anderson. — Quanto mais depressa fizeres isto, mais depressa poderemos seguir em frente. Despacha isto

Mas o Warner inclina a cabeça. Vira-se.

Aponta a arma ao pai.

Abro a boca de espanto.

O Anderson parece entediado, irritado, aborrecido. Passa uma mão impaciente pela cara antes de puxar por outra arma, a minha outra arma, do seu bolso. É inacreditável.

Pai e filho, ambos ameaçando matar-se um ao outro.

— Aponta a arma na direção certa, Aaron. Isto é ridículo.

Aaron.

Quase me rio entre toda aquela insanidade.

O primeiro nome do Warner é Aaron.

— Não tenho interesse nenhum em matá-la — diz o Warner o Aaron ele ao seu pai.

— Ótimo. — O Anderson volta a apontar-me a arma à cabeça. — Faço-o eu.

— Dispara — diz o Warner —, e meto-te uma bala no crânio.

É um triângulo de morte. O Warner aponta uma arma ao pai, o pai aponta-me uma arma a mim. Eu sou a única sem uma arma e não sei o que fazer.

Se me mexer, morrerei. Se não me mexer, morrerei.

O Anderson sorri.

— Que encantador — diz. O seu sorriso é despreocupado e a mão segura a arma com uma facilidade enganadora. — Então? Ela faz-te sentir corajoso, rapaz? — Uma pausa. — Faz-te forte?

O Warner não diz nada.

— Faz-te sentir um homem melhor? — Uma pequena gargalhada. — Encheu-te a cabeça com sonhos sobre o teu futuro? — Uma gargalhada mais dura. — Perdeste a cabeça — diz — por uma criança estúpida e tão cobarde que nem sequer se defende quando tem uma arma apontada à cara. Esta — afirma, apontando-me a arma com maior firmeza ainda — é a rapariguinha tonta por quem te apaixonaste. — Uma expiração brusca. — Não percebo porque me surpreende.

Uma nova tensão na sua respiração. Uma nova tensão nos dedos que seguram a arma. São os únicos sinais de que o Warner se sentirá afetado pelas palavras do pai.

— Quantas vezes — pergunta o Anderson — ameaçaste matar-me? Quantas vezes acordei a meio da noite e te vi, mesmo quando eras pequeno, a tentares dar-me um tiro enquanto dormia? — Inclina a cabeça. — Dez vezes? Talvez quinze? Tenho de admitir que perdi a conta. — Olha fixamente para o Warner. Volta a sorrir. — E quantas vezes — pergunta, com voz subitamente mais alta — conseguiste levar essa intenção até ao fim? Quantas vezes conseguiste? Quantas vezes — insiste — começaste a chorar, pedindo desculpa e abraçando-me como um doido…

— Cala-te — diz o Warner com voz tão baixa e estável. O seu corpo está tão imóvel que é assustador.

— És fraco — exclama o Anderson, enojado. — Um sentimentalista patético. Não queres matar o teu próprio pai? Receias demasiado que parta o teu coração miserável?

O maxilar do Warner fica tenso.

— Dispara — diz o Anderson, com os olhos brilhando, divertidos. — Dispara, já disse! — grita, daquela vez estendendo a mão para o braço ferido do Warner, segurando-o até os dedos pressionarem o ferimento com firmeza, torcendo-lhe o braço para trás até o Warner gemer de dor, pestanejando depressa demais, tentado desesperadamente suprimir o grito que cresce dentro dele. A firmeza com que segura a arma com a mão sã vacila apenas um pouco.

O Anderson solta o filho. Empurra-o com tanta força que o Warner cambaleia enquanto tenta manter o equilíbrio. Tem a cara branca como giz. O pano com que suspende o braço ao peito ensopa-se com sangue.

— Tanta conversa — diz o Anderson, abanando a cabeça. — Tanta conversa e nunca ação suficiente. Envergonhas-me — diz ao Warner com uma expressão de repulsa. — Metes-me nojo.

Um ruído alto.

O Anderson esbofeteia o Warner com tanta força na cara que o Warner cambaleia por um momento, zonzo com todo o sangue que perde. Mas não diz nada.

Não produz qualquer som.

Fica ali de pé, suportando a dor, pestanejando rapidamente, com o maxilar tão tenso, fitando o pai com uma cara onde não há qualquer emoção. Nada sugere que tenha acabado de ser esbofeteado além da marca vermelha na bochecha, na têmpora e em parte da testa. Mas o pano do braço passou a ser mais sangue que algodão e parece demasiado doente para continuar de pé.

Mesmo assim, não diz nada.

— Queres voltar a ameaçar-me? — O Anderson ofega enquanto fala. — Ainda acreditas que consegues defender a tua namoradinha? Pensas que vou permitir que a tua estúpida paixoneta atrapalhe tudo o que construí? Todo o meu trabalho? — A arma do Anderson já não me está apontada. Esquece-me durante tempo suficiente para encostar o cano da arma à testa do Warner, virando-o e pressionando-o contra a pele enquanto fala. — Não consegui ensinar-te nada? — grita. — Não aprendeste nada comigo…

Não sei como explicar o que acontece a seguir.

Tudo o que sei é que a minha mão envolve a garganta do Anderson e encostei-o à parede, tão dominada por uma raiva cega, ardente e devoradora que penso que o meu cérebro já irrompeu em chamas, dissolvendo-se em cinza.

Aperto um pouco mais.

Engasga-se. Tosse. Tenta puxar-me os braços, usando mãos sem forças para afastar o meu corpo e fica vermelho, azul e roxo e agrada-me. Agrada-me tanto.

Acho que sorrio.

Ponho a minha cara a menos de dois centímetros da orelha dele e sussurro:

— Largue a arma.

Obedece.

Largo-o e pego na arma ao mesmo tempo.

O Anderson tenta respirar, tossindo no chão, tentando encher os pulmões, tentando alcançar alguma coisa que possa usar para se defender e a sua dor diverte-me. Flutuo numa nuvem de ódio absoluto e indelével por aquele homem e por tudo o que fez e quero sentar-me e rir até as lágrimas de júbilo me empurrarem para uma espécie de silêncio satisfeito. Percebo tantas coisas naquele momento. Tantas.

— Juliette…

— Warner — digo, em voz tão baixa, continuando a olhar fixamente para o corpo do Anderson caído no chão à minha frente. — Preciso que me deixes em paz agora.

Sinto o peso da arma nas mãos. Testo o meu dedo no gatilho. Tento recordar o que o Kenji me ensinou sobre mirar. Sobre manter as mãos e os braços firmes. Sobre preparar-me para o coice do tiro.

Inclino a cabeça. Faço um inventário mental das partes do corpo dele.

— Sua — consegue dizer finalmente o Anderson — sua…

Atinjo-o na perna.

Grita. Penso que grita. Já não consigo ouvi-lo a sério. Sinto que tenho os ouvidos cheios de algodão, como se alguém tentasse falar comigo ou talvez alguém me gritasse, mas tudo está abafado e tenho demasiadas coisas em que pensar naquele momento para prestar atenção às coisas irritantes que acontecem em segundo plano. Tudo o que conheço é a vibração daquela arma na minha mão. Tudo o que ouço é o tiro ecoando-me pela cabeça. E decidi que gostaria de o fazer outra vez.

Atinjo-o na outra perna.

Há tantos gritos.

Diverte-me o horror nos olhos dele. O sangue estraga o tecido caro da sua roupa. Quero dizer-lhe que não parece muito atraente com a boca aberta daquela maneira, mas, a seguir, penso que é provável que não se importe com a minha opinião. Sou só uma rapariguinha tonta para ele. Só uma rapariguinha tonta, uma criança estúpida com cara bonita, mas que é demasiado cobarde, como disse, para se defender. E, oh, como gostaria de ficar comigo. Como gostaria de ficar comigo como animal de estimação. E percebo que não. Não devia dar-me ao trabalho de partilhar os meus pensamentos com ele. É inútil desperdiçar palavras com alguém que está prestes a morrer.

Aponto em direção ao seu peito. Tento recordar onde fica o coração.

Não exatamente à esquerda. Não exatamente ao centro.

Apenas… ali.

Perfeito.