VINTE E SETE

Juliette? Juliette!

— Acorda, por favor…

Sento-me na cama com um gemido, sentindo o coração a palpitar e pestanejando depressa demais enquanto os olhos tentam focar-se. Pestanejo pestanejo pestanejo.

— Que se passa? Que foi?

— O Kenji está lá fora — diz a Sonya.

— Diz que precisa de ti — acrescenta a Sara. — Diz que aconteceu alguma coisa…

Cambaleio para fora da cama tão depressa que puxo os cobertores comigo. Procuro o meu fato às escuras (durmo com um pijama que pedi emprestado à Sara) e faço um esforço para não entrar em pânico. — Sabem o que se passa? Disse-vos alguma coisa?

A Sonya passa-me o fato para os braços, dizendo:

— Não. Só disse que era urgente, que tinha acontecido alguma coisa e que devíamos acordar-te já.

— Está bem. De certeza que vai correr tudo bem — digo-lhes, mesmo sem saber porque o digo ou como aquilo as pode tranquilizar de alguma forma. Gostava de poder acender a luz, mas todas as luzes são controladas pelo mesmo interruptor. É uma das formas de conservarem energia… E uma das formas de conseguirem simular a diferença entre a noite e o dia aqui em baixo… Acendendo a luz apenas durante horas específicas.

Consigo finalmente enfiar o fato e puxo o fecho, dirigindo-me para a porta quando ouço a Sara chamar-me. Segura as minhas botas.

— Obrigada… às duas — digo.

Acenam várias vezes com a cabeça.

Enfio as botas e corro pela porta fora.

Choco de cara contra alguma coisa sólida.

Alguma coisa humana. Masculina.

Ouço a sua inspiração profunda, as suas mãos amparam-me, sinto o sangue no meu corpo gelar.

— Adam — exclamo.

Não me soltou. Ouço o coração dele batendo depressa e violentamente no silêncio entre nós e parece demasiado imóvel, tenso, como se tentasse manter o controlo sobre o seu corpo.

— Olá — sussurra, mas parece-me que não consegue respirar.

O meu coração falha.

— Adam, eu…

— Não consigo deixar-te — diz. E sinto as mãos dele tremerem só um pouco, como se o esforço de as manter no mesmo sítio fosse demasiado para ele. — Não consigo deixar-te. Tento, mas…

— Então ainda bem que aqui estou, não é? — O Kenji puxa-me dos braços do Adam e inspira de forma profunda e irregular. — Bolas. Já acabaram? Temos de ir.

— O quê… Que se passa? — gaguejo, tentando esconder o meu embaraço. Gostava mesmo que o Kenji não estivesse sempre a surpreender-me em momentos tão vulneráveis. Gostava que me visse a ser forte e confiante. Depois, questiono-me sobre quando é que comecei a preocupar-me com o que o Kenji pensa de mim. — Está tudo bem?

— Não faço ideia — responde o Kenji enquanto caminha pelo corredor escuro fora. Deve ter aqueles túneis decorados, penso, porque eu não vejo nada. Quase tenho de correr para não ficar para trás. — Mas suponho que tenha acontecido uma merda qualquer. O Castle mandou-me uma mensagem há uns quinze minutos… Disse-me que te levasse a ti e ao Kent ao gabinete dele com urgência. E — acrescenta — é isso o que faço.

— Mas… agora? A meio da noite?

— As merdas não têm horário para acontecer, princesa.

Decido calar-me.

Seguimos o Kenji até uma porta solitária ao fundo de um corredor estreito.

Bate duas vezes e espera. Bate 3 vezes, espera. Bate uma vez.

Penso se terei de me lembrar daquilo.

A porta abre-se sozinha e o Castle gesticula-nos que entremos.

— Fechem a porta, por favor — diz, atrás da sua secretária. Preciso de pestanejar várias vezes para me habituar à luz ali. Há um candeeiro de leitura tradicional na secretária do Castle com potência suficiente para iluminar aquele espaço pequeno. Aproveito o momento para olhar em redor.

O gabinete do Castle não é mais do que uma divisão com algumas estantes de livros e uma mesa simples que também faz as vezes de uma mesa de trabalho. Tudo é feito de metal reciclado. A secretária parece ter sido uma carrinha no passado.

Havia pilhas de livros e papéis amontoados pelo chão. Diagramas, maquinaria e peças de computador enfiados nas estantes, milhares de fios e aparelhos elétricos irrompendo das suas armações metálicas. Estariam danificados ou partidos ou talvez apenas fizessem parte de algum projeto em que o Castle trabalhasse.

Por outras palavras: o gabinete dele era um caos.

Não era algo que tivesse esperado de alguém tão incrivelmente composto.

— Sentem-se — disse-nos. Olho em redor à procura de cadeiras, mas só encontro dois caixotes de lixo virados ao contrário e um banco. — Já falamos. Preciso só de um momento.

Acenamos que sim. Sentamo-nos. Esperamos. Olhamos em redor.

Só então percebo porque o Castle não se importa com a desorganização do seu gabinete.

Parece estar ocupado com alguma coisa, mas não percebo o que possa ser e não importa realmente. Estou demasiado concentrada a vê-lo trabalhar. As mãos dele mexem-se para cima e para baixo, de um lado para o outro e tudo aquilo de que precisa flutua até ele. Uma folha de papel específica? Um bloco de notas? O relógio sepultado sob a pilha de livros mais longe da sua secretária? Procura um lápis e ergue a mão para o apanhar. Procura os seus apontamentos e ergue os dedos para os encontrar.

Não precisa de ser organizado. Tem um sistema próprio.

Incrível.

Finalmente, olha para cima. Pousa o lápis. Acena duas vezes.

— Bom. Ótimo. Estão todos aqui.

— Sim, senhor — diz o Kenji. — Disse que precisava de falar connosco.

— É verdade. — O Castle une as mãos sobre a secretária. — Preciso mesmo. — Inspira com cautela. — O comandante supremo — anuncia — chegou ao quartel-general do Setor 45.

O Kenji pragueja.

O Adam fica paralisado.

Sinto-me confusa.

— Quem é o comandante supremo?

O olhar do Castle fixa-se em mim.

— O pai do Warner. — Os seus olhos semicerram-se, estudando-me. — Não sabia que o pai do Warner é o comandante supremo do Restabelecimento?

— Oh — exclamo, incapaz de imaginar o monstro que será o pai do Warner. — Eu… sim… sabia isso — digo-lhe. — Só não sabia qual era o título dele.

— Sim — diz o Castle. — Existem seis comandantes supremos pelo mundo, um por cada uma das seis divisões: América do Norte, América do Sul, Europa, Ásia, África e Oceânia. Cada secção está dividia em 555 setores, num total de 3330 setores em todo o planeta. O pai do Warner governa este continente e é também um dos fundadores do Restabelecimento e, presentemente, a nossa maior ameaça.

— Mas pensei que houvesse 3333 setores — digo ao Castle. — E não 3330. Estava enganada?

— Os outros três são capitais — esclarece o Kenji. — Temos quase a certeza de que uma delas fica algures na América do Norte, mas ninguém sabe ao certo a localização de qualquer uma delas. Portanto, não — acrescenta. — Não estavas enganada. O Restabelecimento tem um fascínio tresloucado por números redondos. 3333 setores no total e 555 setores em cada. Todos têm o mesmo número, independentemente do tamanho. Acham que mostram com isso que dividiram tudo com igualdade, mas é só um monte de trampa.

— Uau. — A cada dia que passava sentia-me arrasada pelo que ainda precisava de aprender. Olho para o Castle. — Então é esta a emergência? A presença do pai do Warner cá e não numa das capitais?

O Castle acena com a cabeça.

— Sim, ele… — Hesita. Pigarreia. — Bom. Deixem-me começar pelo início. É imperativo que conheçam todos os pormenores.

— Estamos a ouvir — responde o Kenji, com as costas direitas, os olhos alerta e os músculos tensos preparados para a ação. — Continua.

— Aparentemente — diz o Castle —, está aqui há algum tempo. Chegou muito discretamente, sem alarido, há um par de semanas. Parece que foi informado do que o filho tem feito ultimamente e não lhe agradou. Ele… — O Castle enche os pulmões. — Ele está… particularmente irritado com o que lhe aconteceu a si, menina Ferrars.

— A mim? — Coração a palpitar. Coração a palpitar. Coração a palpitar.

— Sim — anui o Castle. — As nossas fontes dizem que está furioso por o Warner ter permitido a sua fuga. E, claro, por ter perdido dois dos seus soldados. — Indica o Adam e o Kenji com a cabeça. — Pior ainda, começaram a circular rumores entre os cidadãos acerca de uma estranha rapariga desertora e do seu estranho dom e começam a encaixar as peças do puzzle. Começam a perceber que há outro movimento… o nosso movimento… que se prepara para contra-atacar. Isso desperta agitação e resistência entre os cidadãos, que estão muito desejosos de se envolverem. Portanto — o Castle une as mãos —, o pai do Warner chegou, sem qualquer dúvida, para comandar esta guerra e eliminar todas as dúvidas acerca do poder do Restabelecimento. — Faz uma pausa para olhar para cada um de nós. — Por outras palavras, veio castigar-nos e ao filho, ao mesmo tempo.

— Mas isso não muda os nossos planos, pois não? — pergunta o Kenji.

— Não exatamente. Sempre soubemos que o confronto seria inevitável, mas isto… muda as coisas. Agora que o pai do Warner chegou, esta guerra acontecerá muito mais cedo do que esperávamos — diz o Castle. — E será muito maior do que antecipámos. — O seu olhar fixa-se em mim e parece severo. — Menina Ferrars, receio que precisemos da sua ajuda.

Olho para ele, chocada.

— Da minha?

— Sim.

— Não… continua chateado comigo?

— Não é uma criança, menina Ferrars. Não a culparia por uma reação exagerada. O Kenji diz que acredita que o seu comportamento dos últimos tempos tem resultado de ignorância e não de más intenções. E confio na avaliação dele. Confio no que me diz. Mas quero que compreenda que somos uma equipa — afirma. — E precisamos da sua força. O que consegue fazer… O seu poder… não tem paralelo. Especialmente agora, depois de ter trabalhado com o Kenji e de ter algum conhecimento acerca do que é capaz de fazer, vamos precisar de si. Faremos o que conseguirmos para a apoiar… Vamos reforçar-lhe o fato, equipá-la com armas e armadura. E o Winston… — Para. Inspira. — O Winston — repete, baixando a voz — acabou de lhe fabricar um novo par de luvas. — Olha-me nos olhos. — Queremos que integre a nossa equipa — diz. — E, se colaborar comigo, prometo que verá resultados.

— Claro — sussurro. Retribuo-lhe o olhar firme e solene. — Claro que vou ajudar.

— Ótimo — diz o Castle. — Isso é muito bom. — Parece distraído enquanto se recosta na cadeira, passando uma mão cansada pela cara. — Obrigado.

— Senhor — diz o Kenji. — Odeio ser assim tão direto, mas pode contar-me que raio se passa?

O Castle acena afirmativamente.

— Sim — anui. — Sim, sim. Claro. Eu… Perdoem-me. Tem sido uma noite difícil.

A voz do Kenji está tensa.

— Que aconteceu?

— Ele… enviou uma mensagem.

— O pai do Warner? — pergunto. — O pai do Warner enviou uma mensagem? Para nós? — Olho para o Adam e para o Kenji. O Adam pestaneja rapidamente, entreabrindo os lábios com o choque. O Kenji parece prestes a vomitar.

Começo a entrar em pânico.

— Sim — diz-me o Castle. — O pai do Warner. Quer encontrar-se connosco. Quer… falar.

O Kenji levanta-se. A sua cara ficou totalmente pálida.

— Não… senhor… é uma cilada… Não quer falar… Tem de saber que mente…

— Capturou quatro dos nossos homens como reféns, Kenji. Receio que não tenhamos alternativa.