Estudos e observações sobre o quebrabunda ou peste de cadeiras*
Dou em seguida uma relação das observações e dos estudos que tive ocasião de fazer no Estado do Pará sobre a moléstia dos cavalos conhecida pelo nome vulgar de “Quebrabunda”.1 Tendo confirmado a identidade da moléstia com o que se chama em outros lugares mal-de-cadeiras ou “peste de cadeiras,” empreguei geralmente este último nome, por mais estético e universalmente conhecido. Principiarei o meu estudo com alguns dados históricos e geográficos, pedindo desculpa se nesta e em outras ocasiões tiver de repetir coisas já conhecidas pelo menos de uma parte dos meus leitores.2
Em Marajó, que é hoje considerada como foco principal da peste de cadeiras, essa epizootia não tem reinado sempre. Sabe-se que antes de 1828 os cavalos em toda a ilha existiam em número enorme, o que claramente indica não ter ainda existido a peste naquela ocasião, porque com um número tão grande de animais suscetíveis não teria deixado de assumir maiores proporções.
Atribui-se o aparecimento subseqüente da moléstia ao fato de se terem feito grandes matanças de cavalos com o único fim de aproveitar o couro, deixando os cadáveres abandonados ao ar livre, sendo assim a peste a conseqüência da putrefação destes. Esta idéia, derivada provavelmente de observações feitas nas guerras contra moléstias epidêmicas do gênero humano, não pode de forma alguma explicar-nos o aparecimento repentino da peste de cadeiras, visto ser essa epizootia causada por um protozoário encontrado no sangue do animal vivo, desaparecendo rapidamente o perigo de transmissão depois da sua morte e antes do estabelecimento de uma putrefação franca.
Devemos antes supor que mais ou menos nessa época a ilha perdeu a proteção natural que lhe dava a sua posição isolada, pela introdução de algum cavalo infeccionado vindo de outro ponto, onde a moléstia já existia. Achando-se esse no primeiro período da moléstia ou sofrendo de uma forma crônica e atenuada, facilmente escaparia à observação. Uma vez introduzida a peste, encontrou logo as condições mais favoráveis para o seu desenvolvimento epidêmico, revestindo uma forma tanto mais grave quanto não havia a menor imunidade preexistente.
Deu-se então o que costuma dar-se com a febre amarela, que, tanto pelo seu modo de transmissão como pela sua dependência de certas condições locais, não deixa de ter muitas analogias com o mal-de-cadeiras.
Quero dizer que houve primeiro uma epidemia geral muito intensa, estabele-cendo-se depois um foco endêmico onde a moléstia até hoje reina continuadamente de um modo mais ou menos esporádico, assumindo às vezes a forma de epidemias locais e limitadas, sem todavia chegar a produzir nova pandemia.
O Sr. V. Chermont de Miranda publicou em 1904 um interessante estudo3 do qual tiramos os dados seguintes:
O mal das cadeiras fez a sua aparição em Marajó pela primeira vez em 1828, tendo reinado até hoje, quer dizer, durante um período de quase oitenta anos.
De 1828 até 1836 reinou com tanta intensidade que quase extinguiu o gado cavalar, tão numeroso anteriormente que Ferreira Penna diz ter existido um milhão de cavalos no fim do século XVIII. Data desta época o uso do boi como animal de sela. Em 1839 a Assembléia Legislativa provincial votou um prêmio de quatro contos pela descoberta de um meio eficaz para extinguir a peste quebrabunda.
Em conseqüência disso foram feitas diversas tentativas para determinar a natureza da moléstia que depois foram repetidas em várias ocasiões, sem que se chegasse a um resultado aproveitável.
Em 1903, segundo o autor citado, a moléstia deu em toda a ilha um prejuízo de 1.100 cavalos aproximadamente, calculando em mais de 15 por cento da sua população cavalar. Desde então e até hoje parece ter havido outra vez uma diminuição bastante acusada, a julgar pelas informações que obtive e as observações que tive ocasião de fazer.
No seu livro As regiões amazônicas, o Barão de Marajó, falando dessa ilha, também dá alguns dados interessantes sobre o assunto. Diz que em 1806 o número de fazendas na ilha tinha subido até 226, havendo quinhentas mil cabeças de gado bovino. O cavalar calculava-se existir em número duplo do bovino, prejudicando este pela insuficiência dos pastos. Vieram depois os episódios já mencionados. Um recenseamento feito quando o autor era presidente do Pará, em 1880, acusou oito mil cabeças de gado cavalar na ilha, o que, em vista de dados insuficientes, pode ser aumentado de modo a chegar ao número total de dez mil.
Falando da ilha de Mexiana, que visitou em novembro de 1848, diz Wallace no seu livro Travels on the Amazon que nos últimos anos os cavalos quase foram exterminados por uma moléstia epidêmica que não deve ter sido outra senão a peste de cadeiras, a qual constituiu outro foco epidêmico nesta ilha.4
No Baixo Amazonas a moléstia também existe desde trinta anos para cá pelo menos, segundo as informações de pessoas dignas de fé. Tive ocasião de observar na fazenda Santa Cruz, perto de Óbidos, um caso típico procedente de outro lugar vizinho, não havendo casos na própria fazenda.
Sob uma forma mais ou menos esporádica parece existir em toda a bacia do Amazonas, e consta que ultimamente apareceu em forma epidêmica no território do Acre. Encontra-se também no Peru cisandino.
Quanto aos outros estados do Brasil, tive informações sobre a sua freqüência nos estados de Maranhão e Goiás, por conhecidos ali residentes. Diz-se existir nos estados de Mato Grosso e Ceará. No estado de São Paulo só se observa de um modo muito esporádico ou em lugares muito afastados da Capital.
Fora do Brasil o mal-de-cadeiras ocorre também na Bolívia, numa parte da República Argentina e principalmente no Paraguai.
Quanto à história da moléstia em outras regiões e principalmente à questão de saber onde ela foi observada em primeiro lugar, faltam-me quase por completo informações competentes, mas não duvido de que com o tempo ainda se poderá saber alguma coisa a respeito, e ficaria muito agradecido por qualquer informação sobre este assunto.
Pode-se dizer de um modo geral que a moléstia ocorre de preferência em zonas tropicais ou subtropicais, em regiões bastante alagadas ou mesmo periodicamente inundadas. Não se observa como epizootia em animais de estábulos que se acham há muito tempo nas cidades, o que indica claramente faltar ali o elemento transmissor, quando houver importação de animais infeccionados.
Se estas observações têm um valor geral, como tudo me leva a acreditar, não deixam de ter grande importância para a determinação do modo pelo qual a moléstia se propaga.
A história da peste de cadeiras, tanto como os sintomas que a acompanham, indicam que se trata de uma moléstia infecciosa, devida ao parasitismo de um micróbio, que, em circunstâncias favoráveis, pode ser transmitido a outros indivíduos da mesma espécie. Todavia, as investigações feitas com o fim de descobrir esse micróbio não deram resultados satisfatórios, até que em 1901 Elmassian conseguiu no Paraguai observar a presença de tripanossomos no sangue dos animais infectados.5
Como desde 1880 organismos muito semelhantes foram reconhecidos como causadores de três diferentes epizootias de caráter muito grave, já havia a priori muita probabilidade em favor desta etiologia, e de fato as observações de Elmassian foram logo confirmadas na República Argentina por Voges, Zabala & Ligniéres, e o vírus, levado para a Europa, foi usado por Laveran & Mesnil, em Paris, para um estudo do parasita e da moléstia produzida pela sua inoculação, servindo para comparação detalhada as outras espécies de tripanossomos patogênicos.
De lá o vírus foi levado para vários laboratórios, e também tive ocasião de estudá-lo no Instituto Bacteriológico de São Paulo, ao mesmo tempo que os tripanossomos da surra e da nagana. Não consegui observar casos da moléstia em São Paulo, mas Vital Brasil e Carini acharam no sangue de dois burros doentes tripanossomos, que tive ocasião de comparar e que não me parecem diferentes do Trypanosoma equinum, como foi chamado o parasita descoberto por Elmassian. O mesmo se dá com os tripanossomos que encontrei no estado do Pará, no sangue de treze cavalos doentes, dos quais muitos morreram com os sintomas do quebrabunda. Assim, pode-se considerar um fato verificado, o que aliás era de esperar, que o quebrabunda de Marajó seja idêntico ao mal-de-cadeiras do Paraguai e da República Argentina, sendo até hoje a única infecção por tripanossomos observada entre nós em animais domésticos.
Não podemos concordar com a opinião do falecido Dr. Vicente Chermont de Miranda, que atribui a peste de cadeiras a uma cisticercose eqüina.6
Sem entrar numa descrição minuciosa dos tripanossomos, direi simplesmente que se trata de flagelados, que no estado adulto são parasitas do sangue e da linfa de vários animais vertebrados. O corpo transparente e fusiforme, porém torcido no eixo longitudinal em forma de saca-rolha, mostra de um lado uma extremidade cónica e do outro uma ponta comprida, terminada por um flagelo ou fio bastante comprido que representa o prolongamento e o bordo reforçado de uma membrana lateral ondulatória; esta nasce perto da outra extremidade e acompanha um lado do corpo. Por meio desses aparelhos o parasita se move com bastante intensidade com o flagelo para diante, parecendo-se o movimento, ora com o de uma cobra, ora com o de um ferro de pua, o que lhe valeu o seu nome grego.
O parasita descoberto por Elmassian, que recebeu o nome científico de Trypanosoma equinum, tem um comprimento de cerca de 25 e uma largura de 1½ a 2 milésimos de milímetro, o que permitiu reconhecê-lo nas preparações microscópicas pela sua forma e pelos seus movimentos com um poder de duzentas a quatrocentas vezes.
Para estudar a estrutura do parasita, usam-se preparações microscópicas fixadas pelo calor ou pelo álcool e coloridas com materiais corantes pelo métodos geralmente conhecidos. O mais usado é o processo de Romanowsky ou as suas modificações por Laveran, Giemsa etc. Sendo estas soluções facilmente alteráveis nos climas quentes, experimentei com muitas outras cores e encontrei no “azul Victoria”,7 da fábrica de Ludwigshafen, uma tinta que permite perceber nitidamente todos os detalhes da organização, sem colorir os glóbulos sanguíneos quando a preparação é fixada só pelo calor. Usando alume para mordente, pode-se obter uma coloração tão intensa que se reconhece o organismo já com poderes muito fracos, o que permite percorrer as preparações com maior rapidez. Por meio de um outro processo consegue-se salientar os núcleos.
Obtive também preparações bastante distintas com cresylechtviolett.8 A tionina também se presta para preparações de sangue, por não colorir os glóbulos vermelhos, mas os parasitas ficam um tanto pálidos. Há muitas outras cores que tingem os parasitas sem, todavia, dar resultados melhores.
O azul Victoria colore a fibrina, por isso convém fazer as preparações antes que o sangue tenha tempo de coagular-se. A camada de sangue pode ser um pouco mais grossa que para o emprego do método de Romanowsky, mas não deve exceder certa espessura. A coloração obtém-se imediatamente aquecendo ligeiramente a solução em cima da lâmina, e um pouco mais lentamente a frio. Convém empregar para cada lâmina solução nova, da qual bastam algumas gotas ao título de 1 por cento ou menos.9
Nas preparações coloridas nota-se, além dos elementos já descritos, um núcleo bastante grande. Nos outros tripanossomos percebe-se um segundo núcleo um pouco menor, que serve como base ao flagelo; este, porém, falta ou é apenas indicado no Trypanosoma equinum, o que permite distingui-lo das outras espécies. Encontram-se, também, exemplares maiores com dois núcleos; estes se acham em via de divisão longitudinal.
As tripanossomíases, ou infecções por tripanossomos, denominam-se hoje freqüentemente pelo termo mais breve, embora menos correto, tripanoses.10 Além de uma forma humana que é a causa da moléstia do sono ou letargia africana, conhecem-se ainda várias espécies que acometem os grandes animais domésticos, sendo, porém, desconhecidas entre nós, com a única exceção da peste de cadeiras. Essas infecções apresentam muitas feições comuns. Os parasitas aparecem no sangue em número variável, ora muito grande, ora moderado ou mesmo muito diminuto. Observam-se algumas vezes de um modo contínuo, mas geralmente aparecem com interrupções mais ou menos compridas. A moléstia assim pode ser aguda, subaguda ou crônica, e muitas vezes interrompida por períodos de melhoras aparentes.
Nas experiências comparativas que fizemos em animais de laboratório, a infecção com o Trypanosoma evansii (surra) foi mais aguda que a moléstia produzida pelo parasita da nagana (Tr. brucei), e essa evoluiu mais rapidamente que a peste de cadeiras, mas parece que esta última tem uma virulência muito variável.
Quando os tripanossomos invadem o sangue em grande número, produzem paroxismos febris, às vezes muito altos, principalmente no princípio da infecção. São seguidos de intervalos variáveis, caracterizados pelo abaixamento da temperatura e pelo desaparecimento mais ou menos completo dos parasitas do sangue. Com a continuação do parasitismo observa-se um emagrecimento, às vezes rápido, bem como anemia, que pode ser acompanhada de edemas, aparecendo também tumefações glandulares e erupções cutâneas. Os fenômenos nervosos, observados na moléstia do sono, na durina e na peste de cadeiras, pertencem a um período adiantado da moléstia e geralmente conduzem em pouco tempo a um desenlace fatal, se a terapia não consegue obstar o seu progresso. Não constituem a moléstia, mas apenas um acidente terminal, que se deve à intoxicação crônica de certas células nervosas resultante dos efeitos somados do parasitismo prolongado.
Assim, a peste de cadeiras pode aparecer sob formas pouco características, que conduzem à morte sem o quadro do quebrabunda ou prolongam-se por muito tempo sendo o resultado final geralmente, mas não necessariamente, fatal. Nestes casos os parasitas podem ser muito raros e difíceis de encontrar. Pertencem a esse número, como bem reconheceu o Sr. V. Chermont de Miranda, muitos casos chamados mormo seco. Às vezes aparecem em primeiro lugar sintomas cerebrais, constituindo a forma conhecida por mormo da cabeça.
O começo da tripanose de Elmassian é difícil de determinar, quando não se trata de moléstia experimental. As pessoas que lidam com os cavalos reconhecem geralmente que eles estão doentes, porque se cansam depressa e não podem mais prestar os mesmos serviços como antes, ou notam que o animal emagrece rapidamente.
Faltando qualquer outra explicação e na ausência de alguma moléstia epidêmica de outra natureza, esses sintomas são muito suspeitos, principalmente se o cavalo continua a alimentar-se como antes. Observa-se freqüentemente uma anemia muito intensa, mas esta corre em grande parte por conta dos morcegos, que perseguem muito os cavalos e principalmente os que já estão doentes. A tumefação das glândulas linfáticas debaixo do queixo, um corrimento seroso e, às vezes, purulento do nariz, o aumento da secreção conjuntival e o aparecimento de edemas são sintomas que, na falta de outra explicação, devem chamar a atenção, mas, além de não aparecerem muito cedo, não são constantes. O aumento de temperatura é bastante difícil de observar, nas condições atuais das fazendas da ilha de Marajó, onde os cavalos vivem soltos e são tão pouco mansos que geralmente não se pode fazer um bom exame sem tombá-los.
Erupções cutâneas são de observação difícil, tanto mais que muitos cavalos sofrem de sarna. O aparecimento dos sintomas de fraqueza do trem posterior11 é muito característico quando se dá gradualmente, o que não é a regra, mas é sempre um sintoma tardio, pelo qual não se pode esperar, para iniciar uma cura ou tratar da profilaxia.
Seria também inútil esperar-se o esclarecimento do diagnóstico do exame dos cadáveres de animais falecidos durante a moléstia ou em conseqüência desta. As lesões dos órgãos não têm nada de característico e apenas correspondem ao que já se observa durante a vida, como o emagrecimento, edemas e derramamentos serosos etc. O próprio sistema nervoso não oferece nada de característico a olho nu, e as alterações que devem existir na medula espinhal têm um caráter inteiramente microscópico. O líquido cérebro-espinhal parece às vezes mais abundante e mais turvo do que de costume, mas este caráter não é constante.
Visto que a pesquisa de um sinal clínico característico e facilmente perceptível não nos deu resultado, só resta a demonstração do elemento causador para firmar o diagnóstico. O parasita pode ser procurado diretamente ou por meio da inoculação de um animal sensível.
Na esperança de facilitar o diagnóstico, fiz uma série de experiências variadas procurando o parasita no líquido de punção das glândulas linfáticas, das vísceras e no líquido cérebro-espinhal.12
Cheguei à conclusão de que não há razões para substituir por outro líquido o sangue da circulação, facilmente acessível nas veias superficiais e nos capilares da pele.
O mesmo serve para a inoculação de animais, seja debaixo da pele, seja entre os músculos ou mesmo nas veias ou nas cavidades serosas, quando se pode contar com a esterilidade dos instrumentos e a ausência de contaminação. Para injeções intravasculares, é preferível empregar só o soro do sangue.
A pesquisa microscópica no sangue pode ser facilmente aprendida por pessoas inteligentes. Os proprietários de fazendas que quiserem praticá-la precisam de um microscópio e de alguns acessórios que se podem obter por duzentos mil-réis em qualidade suficiente para esse fim.
Algumas lições práticas são quase indispensáveis e poderão ser obtidas no posto zootécnico que se deve inaugurar em breve.
Um manual de microscopia também será de grande utilidade para quem tem de trabalhar só, e o ajudará a fazer da microscopia um divertimento útil e instrutivo.
No exame de sangue fresco convém usar uma lâmina bastante grande, de modo que uma pequena gota de sangue fique bem espalhada, e correr então as preparações com um poder bastante fraco, procurando os lugares onde se nota um movimento vibratório. Sendo o resultado negativo, convém repetir o exame da preparação alguns minutos depois, quando os glóbulos agrupados (aglutinados) deixam entre si espaços claros para onde os parasitas saem e onde podem facilmente ser reconhecidos por seus movimentos serpentinos.13
Quando os parasitas são muito abundantes, podem-se contar alguns no mesmo campo; outras vezes somente a custo encontra-se um numa preparação inteira. Em casos negativos é bom repetir o exame em alguns dias sucessivos, principalmente quando o animal parece mais doente.
No último período, quando aparecem os sintomas paralíticos, os parasitas às vezes faltam completamente, outras vezes são abundantes. Neste ponto as minhas observações confirmam os dados de Elmassian e de outros autores.
Na falta de microscópio bastam preparações secas, que se obtêm espalhando numa lâmina uma camada fina de sangue, que se fixa então, seja pelo calor, seja no álcool absoluto.
Essas preparações podem depois ser coloridas e examinadas por pessoas competentes, a quem também se podem remeter para exame os animais inoculados.
A inoculação dos animais de experiência obtém-se pela injeção debaixo da pele de um pouco de sangue que se pode tirar de uma veia com seringas apropriadas. Em casos duvidosos convém injetar alguns centímetros cúbicos.
Quase todos os mamíferos experimentados podem contrair a infecção, mas a intensidade desta e a gravidade dos sintomas variam muito, além de haver diferenças na virulência dos próprios tripanossomos.
Dou em seguida o resumo das minhas observações sobre a receptividade de certos animais de experiência, que diferem, em alguns pontos, da lista estabelecida por Nocard. Foram obtidos com diferentes vírus de proveniência variada.
Para animais de experiência recomendo em primeiro lugar os nossos pequenos símios: macacos-de-cheiro, sagüis e macacos-prego, sendo os últimos um pouco menos sensíveis, talvez por causa do seu maior volume. Nos primeiros, temos às vezes encontrado tripanossomos nos primeiro dias depois da inoculação, sendo já bem numerosos depois de três ou quatro dias, quando em muitos outros animais a infecção só aparece muitos dias depois. A infecção nesses macacos é rápida, muito intensa e freqüentemente quase contínua. A moléstia progride rapidamente e mostra sintomas bem acusados, como edema, conjuntivite e ceratite, e finalmente, às vezes, fenômenos paralíticos evidentes. (Em dois casos observou-se também gangrena da parte terminal da cauda.)
Os mesmos animais, principalmente quando mansos, prestam-se também muito bem para experiências terapêuticas com vários remédios.
Uma preguiça comum (Bradipus tridactylus) mostrou também uma sensibilidade enorme. Os parasitas apareceram logo, alcançando a maior proporção observada em qualquer animal, e não desapareceram até a morte, causada por caquexia extrema, acompanhada de hipotermia. Num outro exemplar o decurso foi interrompido e a moléstia, por isso, um pouco mais demorada.
Entre os roedores, os camundongos brancos têm sido recomendados como animal de preferência, o que parece completamente justificado quando podem ser obtidos facilmente. Isto não se dá entre nós, e os importados morrem logo, quando não sucumbem já na viagem, devendo-se isso aparentemente a efeitos do clima. Os ratos brancos são mais resistentes e fáceis de obter, porém a sua sensibilidade já é muito menor e a infecção com material virulento pode dar um resultado demorado ou negativo. Os camundongos e ratos selvagens são pouco cômodos para experiência e morrem facilmente na catividade; acresce que os últimos contêm freqüentemente tripanossomos que pouco se distinguem dos da peste de cadeiras, necessitando assim um exame prévio muito minucioso.
As cobaias podem ser utilizadas para a conservação do vírus, mas não são bastante sensíveis para as primeiras experiências importantes. A infecção é tardia e pode falhar quando o vírus não é abundante e forte; a presença dos parasitas no sangue é muito irregular e a moléstia tem sintomas pouco característicos e, às vezes, um decurso muito longo. Com as passagens repetidas o parasita acostuma-se mais. As preás e cotias parecem bastante resistentes, porque nas duas tivemos resultados aparentemente negativos com uma dose geralmente suficiente de vírus bastante ativo. O coelho parece difícil de obter-se no Pará e certamente não é tão sensível como os pequenos macacos. O mesmo pode se dizer das capivaras, que, todavia, quando novas são de manipulação cômoda, embora um pouco delicada. As experiências com esses animais mostram uma sensibilidade média, e oferecem um interesse especial por causa da ocorrência dos casos espontâneos com sintomas de paralisia dos membros posteriores, como podem também ser observados nas experiências. Essa infecção espontânea, aliás raríssima em animais novos, deve ser excluída o mais possível nas experiências importantes. A presença dos parasitas é um tanto inconstante, alternando períodos de abundância com outros de escassez ou ausência completa, o que sempre produz uma moléstia mais demorada.
Cães, quatis e mucuras (gambás) podem ser usados com vantagem para a conservação do vírus, sendo de sensibilidade média e fáceis de obter. O aparecimento do parasita é demorado e, por isso, esses animais não se recomendam para fins diagnósticos.
O próprio cavalo, além de poder usar-se somente em circunstâncias extraordinárias, não se presta tão bem como os macacos. O decurso da moléstia, a julgar pelos casos espontâneos, é muito incerto, e a quantidade dos parasitas no sangue varia muito e raras vezes alcança proporções altas. De outro lado, a infecção artificial permite julgar a virulência e observar todo o decurso da moléstia em circunstâncias favoráveis, como foi feito por vários autores, e finalmente permite experiências terapêuticas em lugares onde a moléstia espontânea não existe.
Parece verificado que a mula e o asno são mais resistentes que o cavalo e às vezes saram da infecção.
A infecção espontânea de outros animais domésticos ainda não foi verificada, excetuando-se o cão, que, às vezes, contém os mesmos parasitas que os cavalos do lugar.
Há, porém, em Marajó, observadores que notaram raras vezes nos porcos os sintomas da peste de cadeiras, e outros querem ter observado casos em carneiros. O gado vacum certamente não mostra sintomas característicos, nem sofre de um modo evidente em lugares onde a moléstia é freqüente.
Segundo Nocard o boi, o carneiro e o porco, quando inoculados experimentalmente, não apresentam acidentes mórbidos, e o sangue não mostra parasitas quando examinado no microscópio, mas conserva-se virulento durante quatro a cinco meses, o que quer dizer que os parasitas existem, seja em número muito pequeno, seja numa outra forma não conhecida. Dizem, porém, Lignières, Zabaka e Voges que o carneiro e a cabra morrem de caquexia depois de três ou mais meses.
Temos agora de discutir o modo de transmissão da peste de cadeiras. De um modo geral sabemos que a propagação das tripanoses dos grandes mamíferos se faz por dois modos diferentes, sendo um a inoculação direta do sangue, como nas experiências já citadas, outro o contato da secreções contaminadas com uma mucosa ou uma superfície ferida. Esse modo de transmissão só se observa excepcionalmente e não tem importância nas epizootias do gado, as quais (com a única exceção da durina) resultam da transmissão por certas e determinadas espécies de insetos chupadores de sangue, todos pertencentes à classe dos dípteros. Assim se explica que certas tripanoses sejam limitadas a certas localidades, situadas em zonas bem determinadas, como foi primeiramente observado no caso da nagana, cujo tripanossomo é propagado pelas moscas tsé-tsé do gênero glossina, que é exclusivamente africano. Por isto, tanto essa moléstia como a moléstia do sono, cuja propagação depende igualmente de espécies de glossina, não se estenderam a outros continentes, embora a última fosse freqüentemente introduzida na América por meio de negros africanos.
Impõe-se assim o estudo dos dípteros chupadores de sangue para a resolução do problema da transmissão da peste de cadeiras e da maneira de ser evitada. Darei mais adiante o resultado das pesquisas que fiz neste sentido.
Sendo as tripanoses produzidas por parasitas que se deixam experimentalmente transmitir a mamíferos de espécies diferentes, produzindo infecções de gravidade desigual, convém estudar quais as espécies que num lugar dado apresentam afecções espontâneas com parasitas no sangue. Essas espécies, quando mordidas pelos chupadores de sangue, garantem em certos lugares a persistência da moléstia, na falta de qualquer animal doméstico; mas estes, se forem introduzidos, posto que em perfeita saúde, contraem logo a infecção, sem que se possa determinar a sua origem. Assim, na África os ruminantes e eqüídeos selvagens conservam o vírus da nagana e contaminam as moscas tsé-tsé, de modo que estas, pelas suas picadas, podem infeccionar animais domésticos em lugares onde não há criação alguma.
Entre nós parece dar-se um fato análogo. Observações, feitas em muitos lugares por observadores perfeitamente independentes e livres de idéias pré-formadas, estabelecem o fato de que as epizootias de peste de cadeiras são acompanhadas ou precedidas por uma moléstia que acomete as capivaras, produzindo nelas sintomas muito semelhantes aos da tripanose eqüina. Ora, a distribuição natural da peste de cadeiras coincide de um modo geral com a das capivaras; e, como estas em muitos lugares representam o único mamífero maior, observado com bastante abundância nos próprios pastos dos cavalos ou na sua vizinhança imediata, parece já a priori provável que sejam procurados de preferência pelas espécies indígenas de chupadores de sangue que já existiam em grande número antes da introdução do cavalo, do boi e de outros animais domésticos trazidos pela raça branca.
A ocorrência da moléstia das capivaras ou, como se diz lá, “dos carpinchos” já se acha citada na primeira comunicação de Elmassian como observações correntes no Paraguai. Mas, conquanto verificasse a sensibilidade da capivara para o tripanossomo, não chegou a examinar carpinchos infeccionados. Neste ponto fui mais feliz e, depois de ter examinado umas vinte capivaras sadias e duas doentes de outras moléstias,14 finalmente tive ocasião de obter o cadáver completamente fresco de uma capivara que antes de ser morta mostrava os sintomas do quebrabunda. Encontrei no sangue o Trypanosoma equinum talvez na proporção de meia dúzia para cada preparação e conservei o vírus por inoculação em vários animais, obtendo resultados idênticos aos observados com o vírus de origem cavalar. Além disso, também inoculei com resultado positivo o vírus de cavalos doentes em capivaras sãs. Uma dessas, que era adulta, durou cinco meses e morreu com os sintomas de quebrabunda, tais como se observa nas capivaras de Marajó. Entretanto, essa capivara foi pega perto de São Paulo, onde não se conhece a moléstia das capivaras.
Além de ser a doença das capivaras um fato geralmente conhecido na Ilha de Marajó e no Baixo Amazonas, também nos foi confirmada em relação às margens do rio Pindaré, no estado do Maranhão. Pode-se agora considerar um fato estabelecido que as capivaras apanham espontaneamente a peste de cadeiras nos mesmos lugares onde os cavalos adoecem. Temos boas razões para considerar as capivaras que adoecem nessas condições como um perigo constante para os cavalos que vivem nos mesmos lugares e por isso a exterminação desses roedores, completamente inúteis, parece uma das primeiras medidas indicadas na campanha contra a peste de cadeiras. Já foi iniciada em alguns lugares, em conseqüência da observação citada.
Quanto aos transmissores habituais da peste de cadeiras, deve-se procurá-los entre os insetos dípteros (moscas e mosquitos) com exclusão dos outros sugadores de sangue, como sejam morcegos, sanguessugas, carrapatos e percevejos. Os dípteros sugadores de sangue que podem entrar em discussão são as mutucas, as moscas de cavalos, os carapanãs ou mosquitos e os maruins. A mosca de cavalo15 (Stomoxys calcitrans), ou mosca-brava de certos autores, pode ser excluída como faltando completamente em terrenos muito infeccionados de Marajó e do Baixo Amazonas, e comum em lugares onde não há peste de cadeiras. Os maruins e carapanãs, espécies de Ceratopogon e de Culicidae, são freqüentes nesses lugares e pelo menos os últimos também atacam as capivaras; assim, podiam talvez ocasionalmente produzir uma infecção, mas por várias razões não podem ser considerados os transmissores legítimos. Chegamos desta maneira a procurá-los entre as mutucas, já suspeitas, quase convictos de carregarem outras tripanoses.
Os tabanídeos ou mutucas, dos quais fiz um estudo especial, existem no estado do Pará em grande número de espécies, que não deve ser muito inferior a cinqüenta.
Destas, porém, a maior parte é de terra firme, e na Ilha de Marajó só achei umas dez. Entre estas encontrei só duas em todos os pontos infeccionados, e geralmente em número muito grande. Ambas já foram descritas e denominadas há cerca de oitenta anos, com o nome de Tabanus importunus Wiedemann e Tabanus trilimentus Latreille.
O Tabanus importunus é muito comum na Ilha de Marajó pelo menos nos municípios de Cachoeira, Soure16 e Chaves, mas provavelmente será também freqüente nos outros, onde as condições naturais o permitam. Acredito que a forma adulta será encontrada todo o ano, mas pessoalmente a observei apenas nos meses de agosto até novembro. Parece muito mais freqüente no fim e no princípio da estação das chuvas. A espécie tem uma distribuição vasta, porque recebi exemplares do Maranhão e de Goiás, onde é comum, e foi observada também no estado da Bahia. Deve ser encontrada ainda em muitas outras regiões, além de ser substituída por espécies bastante vizinhas fora dos limites do seu território. Atacam muito os cavalos, escolhendo de preferência a pele das pernas, principalmente pouco acima dos cascos e deixando uma pequena ferida da qual quase sempre exsuda uma gota de sangue depois que a mosca deixa o lugar. Vi-as, com os meus olhos, atacar no mato capivaras feridas e recentemente mortas, conquanto em catividade não conseguisse fazê-las chupar numa capivara, presa debaixo de um mosquiteiro. Uma outra vez procuravam chupar o sangue de um cavalo cujo cadáver ficara abandonado no campo por mais de quinze horas, mas não conseguiram encher-se de sangue.
Essa espécie de mutucas é uma das maiores, tendo perto de dois centímetros de comprimento. Os olhos têm uma coloração geral verde furta-cor, sem listas ou outros desenhos.
O tórax em cima é de cor cinzenta muito clara com matiz lilás, tendo quatro estrias longitudinais mais escuras; o escutelo é distintamente avermelhado; o abdome é de cor ocrácea, com uma estria longitudinal média e duas laterais de cor enegrecida que são apagadas na base e tornam-se mais distintas na parte terminal. Entre elas, o fundo está coberto com pêlos finos, esbranquiçados, com brilho de seda. Embaixo, apresenta o abdome a mesma cor ocrácea alaranjada que permite reconhecer a mutuca de longe, quando está voando. Em repouso está coberta pel as asas, bastante enegrecidas, principalmente na raiz e na parte média, onde algumas veias apresentam um bordo enfuscado, contrastando muito com a cor clara do escudo dorsal. A tromba é preta e muito comprida; os palpos são largos e comparativamente curtos, de cor clara e cobertos de pêlos finos; as antenas ferruginosas com ponta preta e as pernas ocráceas ou ferruginosas, com as extremidades e a base do primeiro par enfuscadas. O macho, como em todas as mutucas, não chupa sangue e distingue-se pelo escudo dorsal mais escuro e os olhos confluentes em cima da cabeça.
O Tabanus trilineatus é menor, não alcançando completamente um centímetro e meio; também é de forma mais esbelta. Ocupa um território ainda mais vasto, que se estende desde a América Central até o sul do Trópico do Capricórnio, na costa oriental do continente sul-americano, e chega até a costa ocidental na zona equatorial, sendo em muitos lugares a espécie mais comum.
É muito bem caracterizado pelo desenho dos olhos, que só se encontra em poucas espécies. Consiste em três listas verdes sobre fundo escuro, das quais duas são transversais e paralelas, enquanto a terceira acompanha a margem posterior do olho, reunindo-se do lado de fora à segunda em ângulo agudo. O escudo torácico é coberto de penugem cinzenta muito amarelada e as asas são transparentes, embora não completamente hialinas.
O abdome em cima é de cor parda, e enegrecido no seu terço posterior.
Tem uma lista longitudinal mediana e duas laterais que acompanham as margens laterais do abdome, de cor amarelada, cobertas de pêlos curtos esbranquiçados, de modo a aparecerem às vezes quase brancas. A estria mediana é muito conspícua, mesmo em posição sentada, não ficando completamente coberta pel as asas. As pernas são pela maior parte ocráceas, com os pés mais escuros e uma parte das duas pernas anteriores mais clara, quase branca, o que também contribui para caracterizar a mutuca andando ou sentada. A tromba é curta e preta, os palpos são amarelos, e as antenas são ferruginosas com ponta preta. O macho tem os olhos unidos, com uma estria verde apenas, apresentando a parte média e posterior uma cor metálica lembrando o alumínio.
Essa mutuca faz parte de um grande grupo exclusivamente americano e que tem ainda alguns representantes bastante semelhantes no estado do Pará. Como o Tabanus importunus ela ataca as capivaras. Entretanto, o homem é raras vezes picado por essa espécie.
Experimentei principalmente com o Tabanus importunus, o qual, por causa de seu maior tamanho, parece mais apto ao papel de disseminador. No seu estômago os tripanossomos podem ser encontrados vivos até três dias depois de ter chupado sangue virulento. Dissequei muitos exemplares, apanhados em estado vazio, sem nunca encontrar neles organismos que se parecessem com tripanossomos ou alguma forma de evolução destes.
O modo exato da transmissão dos tripanossomos não está ainda elucidado, e neste ponto não fui mais feliz que os meus predecessores. Conhecem-se até hoje três modos pelos quais os sugadores de sangue transmitem o vírus causador de diferentes infecções do homem e dos animais domésticos. O mais complicado é aquele que se observa na febre do Texas (chamada também tristeza ou mal-triste), e nem por isso deixou de ser o primeiro descoberto e provado de modo evidente por experiências numerosas.
A febre de Texas, como já se sabia pela observação do povo, é limitada às regiões onde os bois são infestados de carrapatos do gênero Boophilus, do qual nas zonas quentes há várias espécies, muito semelhantes, que vivem quase exclusivamente nos bois. Esses carrapatos atacam os bois no estado larval, ficando as fêmeas agarradas até atingir o tamanho completo, quando se deixam cair, para depois depositar os ovos no chão. Por isso não são capazes de transmitir diretamente o parasita da febre do Texas, mas este passa nos ovos e nas larvas que nascem deles, e são estas que depois infeccionam o gado que vem pastar no mesmo lugar. Assim, uma boiada passando num lugar pode disseminar o contágio, sem se pôr em contato imediato com o gado da região.
No impaludismo e na febre amarela, transmitidos por mosquitos (carapanãs e muriçocas) é preciso que o mesmo mosquito chupe por duas vezes com um intervalo que regula entre uma ou duas semanas e que é absolutamente indispensável para a evolução do micróbio e a sua passagem na saliva do mosquito. O mesmo se dá no caso de certos vermes do sangue.
Pode se dar finalmente o caso em que o mesmo sugador de sangue pique dois animais, em seguida, por ser perturbado antes de ter completado a sua provisão de sangue, ou depois de um intervalo tão curto que permita ao vírus conservar-se vivo na forma em que foi absorvido. A primeira hipótese facilmente se dará com as mutucas; quanto à segunda, seria preciso que as mutucas se aprovisionassem de sangue por mais de uma vez, o que não foi ainda observado e me parece duvidoso, conquanto infelizmente não me fosse possível elucidar esse ponto.
Na hora atual, a transmissão imediata – passando a mutuca de um animal infeccionado para outro são, a fim de completar a sua provisão de sangue – parece a mais provável, e neste caso os animais infeccionados serão tanto mais perigosos quanto mais abundem os parasitas no seu sangue. Depois da morte do animal os tripanossomos conservam-se vivos por uma série de horas, mas pela falta da circulação e pela coagulação do sangue a absorção torna-se sempre mais difícil para as mutucas, como tive ocasião de observar: muitas vezes o inseto vai procurar uma outra vítima. Se a infecção pudesse se produzir assim, não somente várias espécies de mutucas, mas, talvez, até outros sugadores de sangue podiam fazer o papel de transmissores: se, porém, a transmissão se faz como na febre de Texas ou na febre amarela, serão necessários certos hábitos do transmissor ou pelo menos uma adaptação recíproca muito especial entre o parasita e o transmissor.
Infelizmente, as mutucas dificilmente se encontram nos primeiros estados da evolução, e por isso só se conhecem estes num pequeno número de espécies da Europa e dos Estados unidos, sendo a evolução das nossas completamente desconhecida. As larvas têm um tipo um tanto semelhante ao das larvas de varejeiras que se criam na carne; são, porém, mais consistentes, mais compridas e de cor mais escura. Devem ser procuradas no fundo da água ou em terra muito úmida, onde vivem à custa de outros animais pequenos.
Os insetos adultos são mais raros nos campos abertos que nos cobertos, onde há muitas árvores; abundam principalmente nas ilhas de mato, pelo menos em tempo de seca. Segundo as informações que colhi, são mais abundantes no princípio e no fim do tempo das águas.
No Sul, o maior número de espécies só aparece na estação quente e chuvosa; há, porém, algumas que se mostram no inverno e outras muito comuns, entre estas o Tabanus trilincatus, que se encontram quase todo o ano, sendo porém muito mais abundantes na estação quente.
Falta-nos dizer alguma coisa sobre a possibilidade de curar a peste de cadeiras. Nas experiências de laboratório chegou-se a descobrir várias substâncias dotadas de certa ação contra os tripanossomos, obtendo-se mesmo com elas alguns casos de cura em pequenos animais de laboratório. Não consta, porém, até hoje, terem sido empregadas com sucesso no tratamento das epizootias devidas a tripanossomos.
As primeiras substâncias empregadas com algum sucesso pertencem a um grupo de materiais corantes derivados do alcatrão de carvão de pedra, e entre estas há uma introduzida por Ehrlich com o nome de Trypanrot, que é considerada particularmente ativa.
Tendo recebido do próprio Ehrlich 150 gramas de trypanrot puro, fiz experiências em quatro cavalos com muitos tripanossomos. Doses de 2 até 4 gramas, dadas internamente em solução aquosa, por dois ou três dias consecutivos, eram bem suportadas e engolidas sem maior dificuldade, por não ser o gosto muito pronunciado ou desagradável. Uma ação inibitiva sobre os parasitas era evidente, notou-se mesmo várias vezes o seu desaparecimento completo, mas o efeito era desigual e principalmente incerto nos casos piores, mesmo com doses maiores. Também os parasitas reapareceriam poucos dias depois. Era evidente que seria preciso empregar doses ainda maiores e durante mais tempo para melhorar os resultados (e neste caso teríamos de recear efeitos tóxicos, como já foram observados) ou então combinar o uso do trypanrot com o de outros remédios.
Há muitas cores de anilina que matam os tripanossomos quando postas em contato com estes em soluções, mesmo pouco fortes, mas usando-as internamente sofrem tal diluição e quiçá alteração que se tornam inativas. Acontece isso com o Victoriablau, que também experimentei.
Fiz também várias experiências com o iodureto de potássio em dose diária de dez a vinte gramas, dadas de uma vez internamente em solução aquosa. Também observei várias vezes o desaparecimento dos parasitas do sangue, mas o efeito era ainda mais passageiro que com o trypanrot e finalmente os flagelados reapareciam no sangue até durante o uso do remédio, de modo que este pode ser considerado ineficaz nas doses empregadas. Todavia, estas podiam sem grande inconveniente ser aumentadas e continuadas durante mais tempo com a condição de poder-se administrar o remédio com a água de beber, o que com os cavalos do campo não deixa de ter dificuldades. Podia talvez servir também para ajudar a ação de outros remédios.
O remédio que mais despertou a atenção pública foi o atoxyl, uma combinação orgânica de arsênico e anilina, considerada quarenta vezes menos tóxica que o arsênico puro. Usa-se geralmente em injeções subcutâneas em soluções aquosas de 1 a 2 por cento, mas não vejo contra-indicação para o uso interno. Com o atoxyl obteve-se muitas vezes o desaparecimento dos flagelos do sangue de animais em experiência, sendo algumas vezes definitivo, mas geralmente apenas temporário. Passada a dose conveniente esse remédio pode produzir sintomas de envenenamento, ora agudos ora crônicos, de modo que não se pode usar em qualquer dose, nem durante qualquer tempo, e as soluções aquosas têm de ser feitas sempre de novo, porque, com o tempo, decompõem-se, tornando-se mais venenosas. De outro lado, é preciso empregar as doses mais altas, que ainda são bem toleradas, e a determinação destas é a primeira tarefa do experimentador.
Na África, o atoxyl é hoje usado em grande escala para debelar a tripanose humana que produz acessos febris e termina na moléstia do sono, sendo de resto uma infecção muito crônica e com os parasitas bastante raros no sangue, o que facilita o tratamento. Costumam-se dar duas doses de meio grama dentro de 24 horas, e repetir depois de uma semana.
Tomei esse modo de usar no emprego do atoxyl que fiz em dois macacos-de-cheiro bastante infeccionados. No primeiro deles empreguei uma dose subcutânea calculada em um grama por sessenta quilos de peso e dividida em duas injeções com intervalos de doze horas. Estas fizeram desaparecer os parasitas dentro de 24 horas, mas reapareceram alguns dias depois e persistiram até a morte do animal, que não demorou muito.
Em seguida, um segundo macaco e uma preguiça, embora muito infeccionados, foram tratados do mesmo modo. Na preguiça o efeito foi nulo, no macaco os parasitas desapareceram para voltar poucos dias depois.
Empreguei então uma segunda dose um pouco mais elevada, dada por injeção em uma vez só, e tive a surpresa de obter, ao que parece, um desaparecimento completo dos tripanossomos, porque dura já mais de seis meses. O animal estava muito infeccionado e não poderia ter resistido muitos dias. Apresentava fenômenos de paralisia incompleta (paresia) que só lentamente desapareceram.
Hoje está completamente restabelecido e muito esperto.
Este resultado é muito animador, mas, infelizmente, parece muito excepcional.
Infelizmente, só muito tarde me foi possível principiar o tratamento dos cavalos com atoxyl, do qual só tinha poucos gramas. Uma quantidade maior, que foi encomendada em tempo, tardou alguns meses a chegar, e só a recebi no fim dos meus estudos.
Escolhi então três cavalos infeccionados e dei ao primeiro, por duas vezes, dois gramas internamente em solução de 2 por cento. Nesse animal, que já com o trypanrot tinha mostrado melhoras sensíveis, os poucos parasitas presentes desapareceram depois do atoxyl, mas, durante o uso consecutivo de biclorureto de mercúrio sobreveio uma pneumonia fatal. Desconfio tratar-se de uma pneumonia de engasgo, porque o animal apresentava dificuldade em tomar o remédio, sendo preciso dar-lhe à força.
Se este caso, por algum tempo, prometeu um bom resultado, obtive um insucesso completo nos dois outros, onde os parasitas já numerosos pareciam aumentar ainda depois do remédio, e ambos morreram poucos dias depois com os sintomas típicos de quebrabunda. Entretanto, tinham recebido maior quantidade de atoxyl, sem serem maiores ou mais pesados: o primeiro num dia recebeu três gramas e no segundo duas; o segundo, a mesma dose e mais dois gramas no terceiro dia.
Para obstar o reaparecimento dos parasitas, o que depois do atoxyl tornou-se regra, a escola de Liverpool recomendou o uso de sublimado ou perclorureto de mercúrio. Empreguei-o depois do trupanrot e do atoxyl, em doses de oito centigramas, administradas diariamente ou de dois em dois dias. Parece que essa dose, que fora calculada pelo que o homem pode tolerar e em relação ao peso, é bem suportada pelos cavalos, porém o seu efeito não é rápido, e, com poucas doses não se pode prevenir o reaparecimento dos parasitas, contra os quais ele sozinho não tem ação.
Deixamos a questão de terapia neste ponto, ou seja, não reconhecemos ainda um modo de tratar que prometa um resultado pronto e seguro, mas já conhecemos algumas substâncias cujo uso se deve continuar a estudar, o que poderá ser feito com vantagem no posto zootécnico projetado, onde haverá mais facilidades. É preciso também dizer que nas condições em que permanecem no verão as fazendas da Ilha de Marajó, o tratamento é muito dificultado pela insuficiência do pasto e pelos morcegos que muito perseguem esses animais já debilitados, e pode correr em parte por conta deles a anemia que se nota tão freqüentemente nos cavalos dessa região. Uma outra circunstância desfavorável é o estado meio selvagem em que se acham esses animais; em alguns, nem uma gota de sangue se pode obter sem tombá-los primeiro, e, para a aplicação de remédios, isso é quase sempre necessário. Dei-os geralmente pela boca, porque o emprego subcutâneo tem muitos inconvenientes, principalmente para quem não é profissional, mas pode ser ensinado sem maior dificuldade a pessoas inteligentes. As soluções e seringas devem ser esterilizadas,17 e não convém o uso de agulhas muito finas; também não devem ser feitas de platina e irídio, porque estas mal penetram o couro do cavalo.
Pode-se dizer que, a menos que se trate de um cavalo de grande valor, nas circunstâncias atuais não vale a pena procurar curá-lo. É possível que em breve se chegue a melhores resultados em conseqüência dos estudos que se estão fazendo em muitas partes do mundo, mas atualmente parece mais indicado, no interesse da profilaxia, matar os animais, no sangue dos quais se encontrem os parasitas. No município de Cachoeira essa medida já era obrigatória a respeito dos cavalos que mostraram sintomas evidentes.
Convém ainda salientar que, com todos os remédios empregados, notou-se diferença de ação nos diversos indivíduos, indicando que o efeito do remédio depende em grande parte da coadjuvação do organismo doente. Por isso, um tratamento tardio dará menos esperança. Os fenómenos paralíticos não são diretamente influenciados pelos remédios antiparasitários e, se não forem incuráveis, só retrocederão com muita demora e talvez de modo incompleto, deixando o cavalo inutilizado. Assim, parece de pouco valor tratar um animal que já tem sintomas manifestos de quebrabunda, mesmo quando não há parasitas no sangue. Neste último caso talvez o melhor remédio seja o iodureto de potássio.
Falta-nos fazer ainda algumas considerações sobre a profilaxia. Como já explicamos, a peste de cadeiras, a nosso ver, é contraída pelas picadas de mutucas previamente infeccionadas pelo sangue, seja de cavalos, seja de capivaras doentes. Essa infecção deve dar-se de dia e geralmente nos pastos comuns. A profilaxia, por isso, deve evitar a introdução de animais infeccionados, eliminar os cavalos com parasitas no sangue e exterminar as capivaras. Convém também estudar os meios de proteger os animais contra as mordeduras das mutucas.
Cavalos de maior valor poderão ser protegidos até certo ponto, conservando-os perto das fazendas e separados dos outros em currais especiais, feitos em lugares onde haja poucas mutucas, ou, melhor ainda, em estábulos completamente fechados. Nos tempos próprios convém a aplicação de substâncias que afugentem as mutucas, principalmente nas pernas dos cavalos.
Dou ainda um resumo rápido dos resultados das minhas observações. Confirmei de um modo geral os trabalhos de Elmassian e outros, a saber: que a peste de cadeiras é causada pelo parasitismo de uma espécie de tripanossomo bem diferenciada e que se deixa inocular em mamíferos de várias espécies, incluindo a capivara.
Confirmei a sensibilidade dos macacos, que achei principalmente pronunciada nas pequenas espécies do norte, colocando-as em primeiro lugar como animais de experiência, e verifiquei também a grande sensibilidade das preguiças para essa infecção.
Além disso, verifiquei que o quebrabunda do norte é idêntico ao mal-de-cadeiras do sul, e constatei que a moléstia espontânea das capivaras observada freqüentemente e apresentando sintomas parecidos aos do quebrabunda é devida ao mesmo parasita, de que resulta a necessidade de livrar os territórios de criação desses roedores. Cheguei por exclusão a considerar as mutucas como os transmissores da moléstia, e salientei entre estas como as mais abundantes o Tabanus importunus Wied. e o trilineatus Latr. Verifiquei pessoalmente que estas espécies perseguem também as capivaras, e apanhei exemplares que estavam cheios de sangue destas.
Confirmei que o trypanroth e o atoxyl têm uma ação inibitiva sobre os parasitos, embora não seja igual em todos os casos. Experimentei também com iodureto de potássio e Victoriablau, e com o sublimado recomendado pela escola de Liverpool. Dessa experiência resulta que não se pode pensar ainda em debelar a moléstia por meio do tratamento dos animais doentes, e que temos de dirigir a nossa ação mais para o lado da profilaxia, sem desesperar completamente da possibilidade de se acharem ainda melhores recursos terapêuticos.
Sinto que certas circunstâncias imprevistas, principalmente a escassez do material no princípio, me tivessem impedido de colher mais resultados, mas creio que estes que obtive, com trabalho bastante penoso e longo, poderão já servir de boa base para qualquer observador que queira continuar estes estudos.