Anexo 1 – Considerações sobre a patologia e higiene do Norte*
Na zona que percorremos, o efeito de um clima quente se combina com condições pouco higiênicas para produzir epidemias e moléstias endêmicas. Favorecida por esta combinação, a malária aparece em muitos lugares e em certas estações com bastante intensidade, mas o que se observa nos hospitais durante todo o ano são, de preferência, formas crônicas e resíduos de infecção, cujas manifestações se combinam e confundem com a opilação. Assim, o diagnóstico diferencial destas moléstias, ou a quota que cada uma representa na produção de um estado caquético, é um problema constante, e que indica a necessidade de laboratórios nos hospitais maiores.
Mais generalizadas que a malária são as moléstias devidas à falta de cuidado no dispor dos excrementos humanos e na escolha da água para beber e para uso doméstico. Uma separação radical do que sai do corpo e do que deve entrar ou vir em contato com ele constitui um dos problemas mais importantes da higiene geral, e só assim se pode combater grande número de infecções quase características das zonas quentes. Entre estas, convém mencionar os parasitos intestinais, quais o Necator americanus: na zona por nós percorrida, é o mais perigoso, causando muitos óbitos e inutilizando grande número de indivíduos. Posto que menos grave, a infecção por ascarídeos deve ser também considerada, por ser quase geral entre as classes inferiores. Assim também se explica a freqüência do esquistossomo, que quase sempre vem acompanhado de outros parasitos intestinais. Nas mesmas condições também se observa a infecção amebiana que devia ser procurada e tratada sistematicamente. Em certas estações aparecem, com alguma freqüência, disenterias, cuja natureza, provavelmente bacilar, devia ser estudada. Também as febres tifóides não parecem muito raras. Há grande necessidade de laboratórios com pessoal habilitado para investigar tais assuntos.1
A profilaxia destas moléstias é um assunto cheio de dificuldades. Certamente não custaria demais generalizar o uso de latrinas, que parece [ser] um dos primeiros quesitos da civilização, se a necessidade fosse geralmente compreendida. O exemplo e o ensino nas escolas de um lado, multas do outro e uma propaganda racional podiam conseguir esta medida, onde há mais necessidade, e assim a opilação, talvez a moléstia mais importante em todo o interior, ficaria logo muito reduzida. Mas não é muito fácil evitar que essa medida traga outros inconvenientes, como a contaminação das águas e das moscas, e a falta de qualquer canalização, também longe de ser ideal. Os processos mais práticos devem ser estudados em relação ao Necator americanus, cuja importância é muito maior. Conseguindo acabar com este, também se acabará com o esquistossomo, à condição de não se contaminarem as águas por meio de esgotos.
Quanto às exigências a respeito da água de gasto, é preciso lembrar-se que em muitos lugares não há possibilidade de escolhas, sendo o povo já satisfeito quando há água que não seja salobra. Que uma lagoa, coberta com Pistia stratiotes e outras plantas aquáticas, alimentando uma fauna bastante rica, tendo embaixo um fundo de lodo e sobre este uma coluna de água que varia de poucos centímetros a alguns palmos de altura, não seja um ideal para abastecimento, não entra na cabeça de muita gente que, sem hesitação, declara muito boa a água. O mais que nestas condições se poderia obter é que se fizessem poços ou galerias filtrantes para a água de beber, impedindo assim a contaminação grosseira e a cultura de caramujos. Esta contaminação se faz pelos animais domésticos que lá bebem ou que para lá são levados, pela gente descalça que entra na água por vários miste res, e, principalmente, pela roupa que lá se lava.
O hábito de andar descalço não só favorece a invasão do Necator mas também a dos esquistossomos, além de contribuir muito para a grande freqüência das úlceras.
O grande número de afecções sifilíticas também chama a atenção e sugere a necessidade de observações para determinar o quociente de infecção. São especialmente freqüentes os processos gomosos. Vimos alguns casos de cancros fagedênicos, devidos sem dúvida ao bacilo de Ducrey-Unna, que, nestes casos, deve ter uma resistência especial ou encontrar um terreno mais difícil de imunizar-se. Sobre a freqüência da gonorréia não temos observação direta, mas chama muito a atenção a excessiva freqüência com que se encontram cegos em quase todas as estações da estrada de ferro, e destes casos de cegueira certamente uma parte corre por conta da conjuntivite gonorréica dos recém-nascidos. Outros podem ser atribuídos à sífilis ou ao tracoma, que parece bastante espalhado nas regiões do Norte.
Ao lado do grande número de cegos, observam-se, com bastante freqüência, aleijados de toda espécie, mas o que mais impressiona é o enorme número de feridas crônicas, principalmente dos pés e das pernas. Muitas são sifilíticas (como se reconhece por sua forma e aparência especial, ou pelas lesões ósseas que as acompanham), mas o maior número tem o caráter de úlceras simples. São aqui menos favorecidos pela existência de varizes do que pela irritação devida a mordeduras de insetos sugadores de sangue, como primeira causa de ectima e outras piodermites, ou pela anemia que acompanha a opilação.
Com alguma surpresa, constatamos a raridade de um processo fuso-espirilar atual, o que não exclui que em alguns casos tenha existido de modo passageiro. Geralmente encontramos poucas bactérias nestas úlceras tórpidas cuja etiologia, pelo resto, ainda está bem longe de ser completamente elucidada. A leishmaniose, bastante freqüente no estado da Bahia, parece faltar completamente em muitos lugares onde as feridas abundam.
No Norte há também bastante lepra, e existem alguns hospitais, ou antes asilos para os doentes. Mas não encontramos nenhum hospital que se dedique especialmente ao tratamento de doentes dos olhos, nem um asilo para cegos. Faltam também postos médicos para o tratamento de moléstias venéreas. Estes hospitais e postos médicos não deviam ser limitados às capitais, mas distribuídos pelo interior. Só por meio de tratamento gratuito e medicamentos baratos será possível melhorar as condições atuais que conduzem fatalmente ao curandeirismo.
Convém também notar que ainda há peste no Norte, e que a febre amarela ainda não está completamente extinta. Há sempre uma tendência a desprezar os casos leves e encobrir as graves com rótulos falsos como febre biliosa etc. Não se limita ao Norte e deve ser seriamente combatida, como também o novo abuso de se evitar a palavra febre tifóide, substituindo-a por febres paratíficas, sem a menor base cientifica. É preciso também distinguir entre alastrim e varicelas que, além de diferirem clinicamente, exigem outras medidas profiláticas.
Insetos sugadores de sangue
Sendo a nossa viagem geralmente feita em estação pouco favorável, não encontramos muitos dípteros sugadores de sangue, a maior parte dos quais desaparece rapidamente quando a seca se estabelece. Nas cidades abunda o comum mosquito noturno, transmissor da filariose e provavelmente da lepra. Incomoda muito mais nos quartos que não recebem vento. A Stegomyia é muito espalhada, mas geralmente não abundava. Nunca fomos incomodados por outras espécies de mosquitos, a menos que os procurássemos especialmente. O único achado interessante neste grupo foi o dos primeiros estados de Taeniarhynchus juxta-mansonia que se fixam nas raízes de Pistia stratiotes, como os da Mansonia titilans com a qual se parecem. Há todavia muitos açudes cobertos com essa planta, onde faltam completamente os mosquitos deste grupo.
Em borrachudos não verificamos nenhuma espécie que não me fosse já conhecida. No litoral existem os mesmos maruins onde há mangue. No interior não encontrei ceratopogonídeos sugadores de sangue, tampouco espécies de Flebotomus. Quanto às mutucas, faltavam geralmente. Apenas num mato em Palmares fizemos uma colheita regular.
Em alguns lugares encontramos barbeiros (Triatoma megista e rubrofasciata), mas geralmente não eram infectados; só no meio de um pequeno lote de megista de S. Félix achamos dois com flagelados.
Não tivemos ocasião de fazer observações sobre tripanossomíase humana, o que em vista da raridade dos transmissores não é para se admirar.