Sumário: 5.1. Introdução – 5.2. Crimes de falso: requisitos: 5.2.1. Dolo; 5.2.2. Imitação da verdade; 5.2.3. Dano potencial – 5.3. Espécies de falsidade – 5.4. Divisão dos crimes contra a fé pública – 5.5. Da moeda falsa: 5.5.1. Art. 289 – Moeda falsa; 5.5.2. Art. 290 – Crimes assimilados ao de moeda falsa; 5.5.3. Art. 291 – Petrechos para falsificação de moeda; 5.5.4. Art. 292 – Emissão de título ao portador sem permissão legal – 5.6. Da falsidade de títulos e outros papéis públicos: 5.6.1. Art. 293 – Falsificação de papéis públicos; 5.6.2. Art. 294 – Petrechos de falsificação – 5.7. Da falsidade documental: 5.7.1. Art. 296 – Falsificação do selo ou sinal público; 5.7.2. Art. 297 – Falsificação de documento público; 5.7.3. Art. 298 – Falsificação de documento particular; 5.7.4. Art. 299 – Falsidade ideológica; 5.7.5. Art. 300 – Falso reconhecimento de firma ou letra; 5.7.6. Art. 301 – Certidão ou atestado ideologicamente falso; 5.7.7. Art. 302 – Falsidade de atestado médico; 5.7.8. Art. 303 – Reprodução ou adulteração de selo ou peça filatélica; 5.7.9. Art. 304 – Uso de documento falso; 5.7.10. Art. 305 – Supressão de documento – 5.8. De outras falsidades: 5.8.1. Art. 306 – Falsificação do sinal empregado no contraste de metal precioso ou na fiscalização alfandegária, ou para outros fins; 5.8.2. Art. 307 – Falsa identidade; 5.8.3. Art. 308 – Uso de documento de identidade alheia; 5.8.4. Art. 309 – Fraude de lei sobre estrangeiro; 5.8.5. Art. 310 – Falsidade em prejuízo da nacionalização de sociedade; 5.8.6. Art. 311 – Adulteração de sinal identificador de veículo automotor – 5.9. Das fraudes em certames de interesse público: 5.9.1 Art. 311-A – Fraudes em certames de interesse público – 5.10. Questões.
A fé pública constitui-se em realidade e interesse que a lei deve proteger, pois sem ela seria impossível a vida em sociedade. De fato, o homem necessita acreditar na veracidade ou na genuinidade de certos atos, documentos, sinais e símbolos empregados na multiplicidade das relações diárias, nas quais intervém.
Não se trata de bem particular ou privado. Ainda que, no caso, exista ofensa real ou perigo de lesão ao interesse de uma pessoa isoladamente considerada, é ofendida a fé pública, ou seja, a crença ou convicção geral na autenticidade e valor dos documentos e atos prescritos para as relações coletivas. Esta é a razão da tutela penal do Estado, porque sem a fé pública a ordem jurídica correria sérios riscos.
Para ilustrar esse raciocínio, convém imaginar a confusão generalizada que reinaria no âmbito social se, em toda e qualquer relação jurídica, uma pessoa tivesse que provar sua verdadeira identidade, é dizer, demonstrar ser ele quem realmente afirma ser. Entretanto, a partir do momento em que a identidade civil de alguém consta de um documento, formal e materialmente válido (exemplos: certidão de nascimento, carteira nacional de habilitação, carteira funcional etc.), seu titular está livre de provar sua qualificação, pois o documento se reveste de fé pública, ou seja, a sociedade acredita em sua legitimidade.
Quem atenta contra a certeza das relações jurídicas, substituindo o não verdadeiro ao verdadeiro, ataca em seu escopo fundamental a fé inerente à sociedade humana. A violação da fé pública caracteriza o crime de falso (delicta falsum). É ele que ofende o bem jurídico protegido pela lei penal, pois é o contrário da certeza ou verdade jurídica, exigida pela ordem social.1 Em síntese, o falso é a contraposição ao real, ao verdadeiro, ao legítimo.
De fato, ao punir os crimes contra a fé pública o legislador protege os sinais representativos de valor e os documentos não pela confiança que despertam, mas porque, com a lesão de sua integridade, são ameaçados os interesses ou bens jurídicos de várias naturezas:
(a) os interesses patrimoniais dos indivíduos;
(b) o interesse público na segurança das relações jurídicas;
(c) o privilégio monetário do Estado; e
(d) os meios de prova.
Os crimes de falso reclamam três requisitos, a saber: (a) dolo; (b) imitação da verdade; e (c) dano potencial. Vejamos cada um deles.
Os crimes contra a fé pública são dolosos. A lei não abriu espaço para figuras culposas, ou seja, não existe nenhum crime de falso punido a título de culpa.
O dolo do falsum é a consciência e a vontade da imitação da verdade inerente a determinados objetos, sinais ou formas, de modo a criar a possibilidade de vilipendiar relações jurídicas, com o consequente rompimento da confiança pública nesses objetos, sinais ou formas.
Se não bastasse, alguns crimes de falso exigem também um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), a exemplo do que se verifica na falsidade ideológica (CP, art. 299), na qual o sujeito omite, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele insere ou faz inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, “com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.
A imitação da verdade (ou imitação do verdadeiro) pode ser realizada por duas formas distintas:
a) alteração da verdade ou immutatio veri: é a mudança do verdadeiro, ou seja, altera-se o conteúdo do documento ou moeda verdadeiros; e
b) imitação da verdade propriamente dita ou imitatio veritatis: o sujeito cria documento ou moeda falsos, formando-os ou fabricando-os.2
A concretização da imitação da verdade (em sentido amplo) é suscetível de ser produzida pelos seguintes meios:
a) contrafação: também conhecida como fabricação, consiste em criar materialmente uma coisa semelhante à verdadeira;
b) alteração: é a transformação da coisa verdadeira, de forma a representar algo diverso da situação original;
c) supressão: equivale a destruir ou ocultar a coisa ou objeto, para que a verdade não apareça;
d) simulação: é a falsidade ideológica, relativa ao conteúdo do documento, pois seu aspecto exterior ou formal permanece autêntico; e
e) uso: é a utilização da coisa falsificada.
O prejuízo atinente ao crime de falso não precisa ser efetivo. Basta a potencialidade da sua ocorrência. Se não bastasse, o dano não há de ser necessariamente de índole patrimonial, pois do contrário o legislador teria inserido tais crimes no título correspondente aos delitos contra o patrimônio.
Para reconhecimento do dano potencial, a imitação da verdade deve revestir-se de idoneidade, ou seja, é fundamental sua capacidade para iludir ou enganar um número indeterminado de pessoas de inteligência e prudência medianas.
Somente há dano potencial quando o documento falsificado é capaz de iludir ou enganar as pessoas em geral. Destarte, a falsificação grosseira, passível de reconhecimento ictu oculi (a olho nu), não caracteriza o falso, pois não representa perigo à fé pública. Com efeito, o abalo da fé pública está condicionado aos malefícios da falsificação.
A imitação da verdade destituída de capacidade lesiva não afeta o sentimento coletivo de confiança tutelado pela lei penal. Mas, se, nada obstante sua natureza precária, a falsidade revelar-se capaz de enganar uma pessoa na situação concreta, subsistirá o crime de estelionato, nos moldes do art. 171, caput, do Código Penal.
De igual modo, não há falar em dano potencial, e, por corolário, em crime contra a fé pública, quando a imitação da verdade carece de eficácia jurídica, constituindo um documento manifestamente nulo, a exemplo do que se verifica quando se falsifica a assinatura de alguém que se obriga a ceder a outrem todos os terrenos situados na Lua e registrados em seu nome. Nos precisos ensinamentos de Nélson Hungria:
O falsum integra-se com a dolosa imitatio veri, mas, entenda-se: imitatio potencialmente capaz de enganar, para o efeito de conculcar uma relação jurídica e, portanto, de acarretar o praejudicium alterius. Se não se apresenta essa potencialidade, ou porque a imitação não convence ao homo medius ou porque cria coisa inócua ou nula (por motivo outro que não a própria falsidade), não se dá a conturbação da fé pública e não há falar-se em crimen falsi. (…) O falsum como um fim em si mesmo, abstraído da potencialidade do praejudicium alterius, é uma inanidade, que deixaria imperturbada ou intacta a fé pública (no sentido legal que aqui importa).3
Os crimes delineados nos arts. 289 a 311 do Código Penal comportam três espécies de falsidade: material (ou externa), ideológica e pessoal.
Falsidade material, também conhecida como falsidade externa, é a que incide materialmente sobre a coisa. A imitação da verdade se dá mediante contrafação (exemplo: criação de um documento falso, a exemplo de uma carteira de identidade falsa), alteração (exemplo: inserir palavras em um documento já existente, modificando seu conteúdo) ou supressão (exemplo: retirar uma determinada expressão de um contrato).
Falsidade ideológica, por sua vez, é aquela em que o documento é materialmente verdadeiro, ou seja, há autenticidade em seus requisitos extrínsecos, mas seu conteúdo é falso. Sua característica primordial é a genuinidade formal do escrito, mas não existe veracidade intelectual do conteúdo. Não há contrafação, alteração ou supressão de natureza material. A imitação da verdade é viabilizada unicamente pela simulação (exemplo: “A” declara perante o tabelião, durante a lavratura de escritura pública relativa à aquisição de um imóvel, o estado civil de solteiro, quando na verdade era casado).
Falsidade pessoal, finalmente, é a que se relaciona não à pessoa física, mas à sua qualificação (idade, filiação, nacionalidade, profissão etc.), como no exemplo do sujeito que atribui a si mesmo falsa identidade para obter vantagem em proveito próprio. E, como lembra Magalhães Noronha: “A fé pública não deixa de ser ofendida com essa falsidade, pois é iludida e enganada acerca da pessoa, em seus atributos ou qualidades”.4
Sintetizamos de modo esquematizado:
Os crimes contra a fé pública, previstos no Título X da Parte Especial do Código Penal, estão divididos em quatro capítulos, a saber:
Capítulo I – Da moeda falsa (arts. 289 a 292);
Capítulo II – Da falsidade de títulos e outros papéis públicos (arts. 293 a 295);
Capítulo III – Da falsidade documental (arts. 296 a 305);
Capítulo IV – De outras falsidades (arts. 306 a 311); e
Capítulo V – Das fraudes em certames de interesse público (art. 311-A).
O bem jurídico penalmente protegido é a fé pública, relativamente à confiabilidade do sistema de emissão e circulação da moeda. Nas ponderações de Teodolindo Castiglione: “Perante o art. 289, a defesa da fé pública está em preservar a legitimidade da emissão e da circulação da moeda e de tudo o que possa dificultar, em todos os seus aspectos, as transações regulares que, na sociedade, se realizam com a moeda”.5
É a moeda metálica ou o papel-moeda de curso legal no País ou no estrangeiro.
Moeda, em sentido amplo, é a medida comum dos valores (como o metro, o grama e o litro o são das quantidades) e o instrumento ou meio de escambo. É o valorímetro dos bens econômicos, o denominador comum a que se reduz o valor das coisas úteis.6
Somente podem ser objeto material do crime tipificado no art. 289 do Código Penal a moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no País ou no estrangeiro. Consideram-se de curso legal as moedas metálicas e cédulas que não podem ser recusados como forma de pagamento, tal como acontece no Brasil com o Real, nos termos do art. 1.º da Lei 9.069/1995.7
Portanto, a definição não abrange outros documentos ou objetos aceitos consuetudinariamente como medida de valor ou troca sem curso forçado, a exemplo dos cheques de viagem. Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
A possível falsificação que permeia a hipótese não é de outro documento senão cheques de viagem, os quais não se confundem com moeda, elemento objetivo do tipo de moeda falsa (art. 289 do CPB). Conforme extrai-se do próprio tipo, o crime de moeda falsa apenas terá vez se houver falsificação, por fabricação ou alteração, de moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país ou no estrangeiro.8
Pela mesma razão, também não podem ser objeto material do crime em apreço o padrão monetário já extinto (exemplo: Cruzeiro Real – Lei 9.069/1995, art. 2.º) ou inexistente, pois não se enquadram no conceito de moeda. Tais condutas, todavia, não são penalmente irrelevantes, pois é possível subsistir o crime de estelionato (CP, art. 171, caput).
Em consonância com o art. 48, inc. XIV, da Constituição Federal, é atribuição do Congresso Nacional dispor sobre moeda e seus limites de emissão:
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…)
XIV – moeda, seus limites de emissão, e montante da dívida mobiliária federal.
E, nos termos do art. 3.º, inc. II, da Lei 4.595/1964, compete ao Conselho Monetário Nacional, “regular o valor interno da moeda, para tanto prevenindo ou corrigindo os surtos inflacionários ou deflacionários de origem interna ou externa, as depressões econômicas e outros desequilíbrios oriundos de fenômenos conjunturais”.
Se não bastasse, o art. 4.º, inc. I, da Lei 4.595/1964 estatui ser da competência do Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República, “autorizar as emissões de papel-moeda”.
A competência para emissão da moeda é da União, a ser exercida exclusivamente pelo Banco Central do Brasil, a teor da regra contida no art. 164, caput, da Constituição Federal. Essa competência, aplicável à moeda metálica e ao papel-moeda, deve ser exercida nas condições e limites autorizados pelo Conselho Monetário Nacional (Lei 4.595/1964, art. 10, inc. I).
Finalmente, a fabricação do papel-moeda e da moeda metálica será realizada, em caráter exclusivo, pela Casa da Moeda, em obediência ao comando imposto pelo art. 2.º, caput, da Lei 5.895/1973: “A Casa da Moeda do Brasil terá por finalidade, em caráter de exclusividade, a fabricação de papel-moeda e moeda metálica e a impressão de selos postais e fiscais federais e títulos da dívida pública federal”.
O princípio da insignificância – causa supralegal de exclusão da tipicidade – não é admitido na seara dos crimes contra a fé pública, aí incluindo-se a moeda falsa, ainda que a contrafação ou alteração recaia sobre moedas metálicas ou papéis-moeda de ínfimo valor. Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
A Turma indeferiu habeas corpus em que condenado pela prática do delito previsto no art. 289, § 1.º, do CP – por guardar em sua residência duas notas falsas no valor de R$ 50,00 – pleiteava a aplicação do princípio da insignificância. (…) Enfatizou-se, ademais, que o bem violado seria a fé pública, a qual é um bem intangível e que corresponde à confiança que a população deposita em sua moeda, não se tratando, assim, da simples análise do valor material por ela representado.9
O núcleo do tipo é “falsificar”, no sentido de imitar, reproduzir ou modificar moeda de curso obrigatório no País ou no estrangeiro. A falsificação pode se dar mediante fabricação ou alteração.
A fabricação, também conhecida como contrafação, exige a criação material da moeda metálica ou papel-moeda, conferindo-lhes aparência de objetos verdadeiros. Exemplo: O sujeito, valendo-se de papel e tintas especiais, fabrica cédulas de dinheiro.
Na alteração, por sua vez, opera-se a modificação da moeda metálica ou do papel-moeda originariamente verdadeiro, para ostentar valor superior ao real. Exemplo: O agente faz com que cédulas de R$ 1,00 (um Real) se pareçam com notas de R$ 100,00 (cem Reais).
A alteração apresenta-se como uma fraude à fé pública. Consequentemente, é imprescindível sua potencialidade lesiva à crença coletiva na moeda. Destarte, não basta a mera supressão ou modificação de símbolos ou emblemas nas cédulas, ou então a substituição de letras e números, se da conduta não resultar o aumento do valor representado pela moeda. Exemplificativamente, não comete o crime definido no art. 289, caput, do Código Penal o sequestrador que, depois de receber vultosa quantia em dinheiro em troca da libertação da vítima, suprime alguns numerais das notas, visando evitar o rastreamento posterior do dinheiro pela Polícia.
Também não caracteriza o delito a raríssima e esdrúxula situação em que alguém falsifica moeda metálica ou papel-moeda, diminuindo seu valor. Como alerta Nélson Hungria:
(…) somente um rematado insensato poderia entregar-se à tarefa de alterar moeda em prejuízo próprio, substituindo, por exemplo, na moeda metálica, chumbo por ouro, ou, no papel-moeda, trocando dizeres ou algarismos para inculcar menor valor. Tal indivíduo não deveria ser submetido a processo penal, mas a processo de interdição, ou ser metido numa casa de orates, pois o seu ato equivaleria ao de jogar fora ou rasgar dinheiro, isto é, ao mais iniludível indício de loucura, segundo o jocoso mas acertado provérbio popular.10
A moeda falsa, assim como os demais crimes contra a fé pública, tem como requisitos a imitação da verdade e o dano potencial.
Para reconhecimento da potencialidade de dano, a imitação da verdade deve ser dotada de idoneidade, isto é, precisa despontar como apta a ludibriar as pessoas em geral. Em outras palavras, é fundamental a capacidade de circulação da moeda falsa na sociedade como se verdadeira fosse.11
Nesse contexto, a falsificação grosseira, perceptível ictu oculi (a olho nu), exclui o crime definido no art. 289, caput, do Código Penal. Trata-se, na verdade, de crime impossível (CP, art. 17), em face da ineficácia absoluta do meio de execução no tocante à fé pública.
No entanto, se na prática a moeda falsa, nada obstante a precariedade da sua fabricação ou alteração, funcionar como meio fraudulento para obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio, estará caracterizado o crime de estelionato, delineado no art. 171, caput, do Código Penal. Em sintonia com a Súmula 73 do Superior Tribunal de Justiça: “A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, de competência da Justiça Estadual”.
A conduta de inserir em papel-moeda verdadeiro números e letras retirados de outra cédula, igualmente verdadeira, para aumentar seu valor, acarreta a configuração do crime de moeda falsa (CP, art. 289, caput), pois o comportamento do sujeito não implica a formação de um exemplar da moeda com fragmentos verdadeiros, mas em sua alteração. Exemplo: “A” modifica uma nota de R$ 1,00 (um Real), colando sem corpo os dizeres retirados de uma cédula de R$ 100,00 (cem Reais).
De outro lado, se o agente forma uma cédula com fragmentos de notas verdadeiras, a ele será imputado o crime definido no art. 290, caput, 1.ª figura, do Código Penal. Exemplo: “A” guardava em sua carteira somente a metade de uma cédula, anteriormente rasgada pelo seu filho. Ao encontrar em via pública outra metade, de nota diversa mas também verdadeira, decide formar uma nova cédula.
Cuida-se de crime comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa.12
É o Estado, interessado na preservação da fé pública, e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se exige a intenção lucrativa (animus lucrandi), mediante a colocação da moeda falsa em circulação, e também não se admite a modalidade culposa.
A moeda falsa é crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a falsificação da moeda metálica ou papel-moeda, mediante fabricação ou alteração, desde que idônea a enganar as pessoas em geral. É irrelevante se o objeto vem a ser colocado em circulação, bem como se alguém suporta efetivo prejuízo.
É suficiente a falsificação de uma só moeda metálica ou papel-moeda. A contrafação ou alteração de várias moedas no mesmo contexto fático configura crime único. Por seu turno, a falsificação de diversas moedas em momentos distintos importa no reconhecimento da pluralidade de crimes, em concurso material ou crime continuado, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 71, caput, do Código Penal.
A moeda falsa insere-se no rol dos crimes não transeuntes, isto é, deixa vestígios de ordem material. Destarte, a prova da materialidade do fato reclama a elaboração de exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado (CPP, art. 158).
É cabível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis.
Vale destacar que a simples posse ou guarda de instrumento ou qualquer objeto especialmente destinado à fabricação de moeda enseja o reconhecimento do crime de petrechos para falsificação de moeda, tipificado no art. 291 do Código Penal.
A ação penal é pública incondicionada, em todas as modalidades do delito.
A moeda falsa, em sua modalidade fundamental, na forma equiparada e nas figuras qualificadas (CP, art. 289, caput e §§ 1.º, 3.º e 4.º), é crime de elevado potencial ofensivo. A pena mínima cominada inviabiliza a incidência dos institutos previstos na Lei 9.099/1995.
A moeda falsa é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de perigo concreto (basta a potencialidade de dano à fé pública, reclamando prova da idoneidade da falsificação); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; não transeunte (deixa vestígios materiais); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
O crime de moeda falsa, em qualquer das suas modalidades, é de competência da Justiça Federal, pois ofende interesses da União (CF, art. 109, inc. IV).13
De fato, compete à União a emissão de moeda, bem como legislar sobre sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais (CF, art. 21, inc. VII, e art. 22, inc. VI). Além disso, a competência da União para emitir moeda será exercida exclusivamente pelo Banco Central (CF, art. 164, caput).
Anote-se, porém, a exceção atinente à falsificação grosseira, com incidência da Súmula 73 do Superior Tribunal de Justiça: “A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, de competência da Justiça Estadual”. Na hipótese de dúvida quanto à qualidade da falsificação, subsiste a competência da Justiça Federal.
Como estabelece o art. 289, § 1.º, do Código Penal: “Nas mesmas penas incorre quem, por conta própria ou alheia, importa ou exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda ou introduz na circulação moeda falsa”.
O objetivo do legislador é punir a circulação da moeda falsa. Com efeito, o § 1.º do art. 289 do Código Penal incrimina conduta posteriores à falsificação da moeda, razão pela qual o autor do crime antecedente não pode figurar como sujeito ativo do delito. Para ele, as condutas representam fatos impuníveis (post factum impunível). De fato, se o falsário realizar qualquer das ações aqui descritas, responderá somente pelo crime tipificado no caput do art. 289 do Código Penal, solucionando-se o conflito aparente de leis penais com a utilização do princípio da consunção.
Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. A lei descreve vários núcleos, e a prática de mais de um deles, no tocante ao mesmo objeto material, configura um único crime.
Pouco importa o motivo que levou o agente a colocar em circulação a moeda falsa. A fé pública é violada ainda que a moeda metálica ou o papel-moeda falso seja utilizado para o pagamento de atos imorais (exemplo: dívida de jogo ou de prostituição) ou ilícitos (exemplo: preço cobrado para a morte de alguém).
A consumação ocorre na entrada da moeda falsa em território nacional (“importar”), na saída para o exterior (“exportar”), no momento da tradição (“adquirir”, “vender”, “trocar”, “ceder” e “emprestar”), com a permanência em determinado local (“guardar”) ou no instante em que o agente introduz, de qualquer modo, a moeda falsa em circulação.
Os crimes são formais, de consumação antecipada ou de resultado cortado, pois aperfeiçoam-se com a prática das condutas legalmente descritas, salvo no núcleo “vender”, no qual o delito é material ou causal, pois reclama a produção do resultado naturalístico, consistente no recebimento de determinado valor em troca da entrega da moeda falsa.
São também crimes instantâneos, pois se consumam em um momento determinado, sem continuidade no tempo, exceto no núcleo “guardar”, de natureza permanente, no qual a consumação se prolonga no tempo, por vontade do agente.
A tentativa é cabível, em todas as modalidades do delito, em face do seu caráter plurissubsistente, permitindo o fracionamento do iter criminis.
Nos termos do art. 289, § 2.º, do Código Penal: “Quem, tendo recebido de boa-fé, como verdadeira, moeda falsa ou alterada, a restitui à circulação, depois de conhecer a falsidade, é punido com detenção, de seis meses a dois anos, e multa”. Cuida-se de infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal e compatível com a transação penal e com o rito sumaríssimo, em conformidade com as disposições da Lei 9.099/1995.
Trata-se de autêntico privilégio, pois o legislador previu, no tocante à pena privativa de liberdade, limites mínimo e máximo sensivelmente inferiores. O fundamento do tratamento penal mais brando repousa no princípio da proporcionalidade14 e no móvel do agente: sua finalidade não é lesar a fé pública, mas simplesmente evitar prejuízo econômico, transferindo-o a outra pessoa.
O recebimento de boa-fé da moeda falsa é pressuposto do delito. Com efeito, se o agente recebeu a moeda falsa de má-fé, ou seja, com conhecimento da sua falsidade, incorrerá no crime definido no art. 289, § 1.º, do Código Penal.
Para o reconhecimento do delito, exige-se o dolo direto, evidenciado pela expressão “depois de conhecer a falsidade”. Em outras palavras, o fato será atípico, evitando-se a responsabilidade penal objetiva, se o sujeito restitui a moeda à circulação, desconhecendo a falsidade.
A consumação se dá no momento em que o agente, ciente da falsidade, restitui a moeda à circulação. A tentativa é admissível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis.
O legislador incidiu em grave equívoco nos §§ 3.º e 4.º do art. 289 do Código Penal, ao prever tais delitos como qualificadoras da moeda falsa. Nesses crimes, a moeda é verdadeira. A ilicitude recai na forma ou na quantidade de sua fabricação ou emissão (§ 3.º), ou então no destino a ela conferido ou no momento em que vem a ser colocada em circulação (§ 4.º).
De acordo com o art. 289, § 3.º, do Código Penal: “É punido com reclusão, de três a quinze anos, e multa, o funcionário público ou diretor, gerente, ou fiscal de banco de emissão que fabrica, emite ou autoriza a fabricação ou emissão: I – de moeda com título ou peso inferior ao determinado em lei; e II – de papel-moeda em quantidade superior à autorizada”.
Trata-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser cometido pelas pessoas expressamente indicadas no tipo penal: funcionário público,15 diretor, gerente ou fiscal de banco de emissão da moeda. O fundamento do tratamento penal mais severo repousa na traição dos deveres inerentes ao cargo do sujeito ativo.
O inciso I é aplicável à moeda metálica. Pune-se a conduta de fabricá-la, emiti-la ou autorizar sua fabricação ou emissão com título ou peso inferior ao determinado em lei.
Título é o texto veiculado na moeda (exemplo: 1 Real); peso, por sua vez, representa a quantidade de metal utilizado na confecção da moeda. Como a lei fala somente em “peso inferior ao determinado em lei” (lei penal em branco homogênea), o fato é atípico quando o peso da moeda é superior ao legalmente previsto.
O inciso II, por seu turno, diz respeito ao papel-moeda. A legislação, mediante o controle do Conselho Monetário Nacional e do Banco Central, limita a fabricação ou emissão de papel-moeda. Se o sujeito dolosamente ultrapassa esse limite, incide no crime definido no art. 289, § 3.º, inc. II, do Código Penal. Cuida-se de lei penal em branco homogênea, pois é preciso analisar o limite fixado em lei para emissão ou fabricação de papel-moeda. Exemplificativamente, o art. 1.º da Lei 8.891/1994, editada à época da criação do Real como padrão monetário, autorizou a impressão de um bilhão e quinhentos milhões de unidades do novo papel-moeda.
Pune-se somente a fabricação ou emissão de papel-moeda em quantidade superior à autorizada. Destarte, não há crime, mas ilícito administrativo, na hipótese de emissão ou fabricação de moeda metálica em montante superior ao autorizado, pois não se admite a analogia in malam partem no Direito Penal.
Os crimes são formais, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consumam-se com a realização das condutas legalmente descritas, independentemente da circulação da moeda ou de prejuízo a alguém. A tentativa é possível.
Como estatui o art. 289, § 4.º, do Código Penal: “Nas mesmas penas incorre quem desvia e faz circular moeda, cuja circulação não estava ainda autorizada”.
O crime é comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa. A moeda é verdadeira, mas o agente altera seu destino ou a coloca em circulação antes da autorização da autoridade competente. Consuma-se com o desvio ou com a efetiva circulação antecipada da moeda, pouco importando se sobrevém prejuízo a alguém (crime formal). A tentativa é cabível.
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, no tocante à confiabilidade do sistema de emissão e circulação de moeda.
É a cédula, nota ou bilhete representativo da moeda. São termos análogos, relacionados ao papel-moeda e compreendidos como aqueles emitidos por órgão autorizado do governo e dotados de curso forçado, ou seja, não podem ser recusados.16
O art. 290 do Código Penal, com a rubrica “crimes assimilados aos de moeda falsa”, incrimina três condutas distintas. Vejamos cada uma delas.
a) Formar cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmentos de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros
O núcleo é “formar”, no sentido de compor ou montar cédula, nota ou bilhete representativo da moeda, com base em partes de papel-moeda verdadeiro. Cria-se um novo e falso papel-moeda, partindo-se de fragmentos imprestáveis de outros.
b) Suprimir, em nota, cédula ou bilhete recolhidos, para o fim de restituí-los à circulação, sinal indicativo de sua inutilização
O núcleo é “suprimir”, ou seja, retirar ou eliminar de cédula, nota ou bilhete recolhido o sinal indicativo de sua inutilização. O sujeito elimina do papel-moeda a informação de que foi retirada de circulação.
c) Restituir à circulação cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já recolhidos para o fim de inutilização
Restituir à circulação é devolver, retornar ao manejo público a cédula, nota ou bilhete objeto das condutas anteriores (“formar” e “suprimir”), ou já recolhidos. De acordo com o art. 14 da Lei 4.511/1964, o recolhimento do papel-moeda é efetivado sempre que este apresentar marcas, símbolos, desenhos ou outros caracteres a ele estranhos, perdendo seu poder de circulação.
Nessa hipótese, o comportamento criminoso limita-se à colocação do papel-moeda em circulação. Não há emprego de fraude, ao contrário das condutas anteriores.
O delito somente pode ser praticado pelo sujeito que não participou da falsificação do papel-moeda ou da retirada de sinal indicativo da sua inutilização. De fato, aquele que praticar qualquer das condutas anteriores, e posteriormente restituir à circulação a cédula, bilhete ou papel-moeda, será responsabilizado unicamente pelo comportamento inicial, pois a conduta posterior será absorvida, em homenagem ao princípio da consunção (post factum impunível).
O art. 290 do Código Penal constitui-se em tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. Estará caracterizado um único delito quando o agente realizar mais de uma conduta no tocante ao mesmo objeto material (cédula, nota ou bilhete). Exemplo: “A” forma uma cédula com fragmentos de cédulas verdadeiras e, em seguida, a coloca em circulação.
Contudo, será forçoso o reconhecimento do concurso de crimes (tipo misto cumulativo) quando o agente praticar duas ou mais condutas em relação a objetos diversos. Exemplo: “A” forma uma cédula com fragmentos de cédulas verdadeiras, e também suprime sinal indicativo de inutilização de cédula já recolhida, para o fim de restituí-la à circulação.
Os crimes são comuns ou gerais, podendo ser cometidos por qualquer pessoa.
Aquele que recebe o papel-moeda fraudado, nas condições apontadas pelo art. 290 do Código Penal, deve ser responsabilizado por receptação (CP, art. 180) ou favorecimento real (CP, art. 349), dependendo do caso concreto, pois o legislador não previu figura equiparada, como fez em relação ao crime de moeda falsa no art. 289, § 1.º, do Código Penal.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo. No núcleo “suprimir” também se reclama uma especial finalidade (elemento subjetivo específico), representado pela expressão “para o fim de restituí-los à circulação”. Não são admitidas as modalidades culposas.
O art. 290 do Código Penal contempla crimes formais, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consumam-se com a formação de cédula, nota ou bilhete representativo de moeda com fragmentos de cédulas, notas ou bilhetes verdadeiros (1.ª conduta); com a supressão, em nota, cédula ou bilhete recolhidos, para o fim de restituí-los à circulação, de sinal indicativo de sua inutilização (2.ª conduta); ou com a restituição à circulação de cédula, nota ou bilhete em tais condições, ou já recolhidos para o fim de inutilização (3.ª conduta), independentemente de prejuízo econômico a alguém.
São também crimes de perigo concreto, pois é preciso demonstrar a idoneidade das condutas para colocar em risco a fé pública. A falsificação grosseira, incapaz de enganar a normalidade das pessoas, afasta o delito, abrindo espaço para a figura do crime impossível (CP, art. 17).
Os crimes assimilados aos de moeda falsa pertencem ao rol dos delitos não transeuntes, pois deixam vestígios de ordem material. Destarte, a prova da materialidade do fato exige a elaboração de exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado (CPP, art. 158).
É cabível, em face do caráter plurissubsistente dos delitos, permitindo o fracionamento do iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada.
Os crimes assimilados aos de moeda falsa são simples (ofendem um único bem jurídico); comuns (podem ser praticados por qualquer pessoa); formais, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consumam-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de perigo concreto (basta a potencialidade de dano à fé pública, reclamando prova da idoneidade da falsificação); de forma livre (admitem qualquer meio de execução); em regra comissivos; não transeuntes (deixam vestígios materiais); instantâneos (consumam-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivos, unilaterais ou de concurso eventual (podem ser cometidos por uma única pessoa, mas admitem o concurso); e normalmente plurissubsistentes (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
Os crimes tipificados no art. 290 do Código Penal ofendem interesses da União. Encaixam-se, portanto, na competência da Justiça Federal, nos moldes do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal.
Como preceitua o art. 290, parágrafo único, do Código Penal: “O máximo de reclusão é elevado para 12 (doze) anos e o da multa a Cr$ 40.000,00 (quarenta mil cruzeiros), se o crime é cometido por funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se achava recolhido, ou nela tem fácil ingresso, em razão do cargo”.
Cuida-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser praticado pelo funcionário que trabalha na repartição onde o dinheiro se acha recolhido, ou nela tem fácil ingresso, em razão do cargo. Aliás, o fundamento da majoração da pena reside justamente na violação dos deveres inerentes ao cargo do sujeito ativo, que dele se aproveita para a execução do delito.
A limitação da multa não tem mais eficácia diante da Reforma da Parte Geral do Código Penal, que instituiu o sistema de dias-multa. Persiste a sua cumulação com a pena privativa de liberdade, mas a multa passa a ser fixada em sintonia com as regras traçadas no art. 49 do Código Penal. É o que se extrai do art. 2.º da Lei 7.209/1984: “São canceladas, na Parte Especial do Código Penal e nas leis especiais alcançadas pelo art. 12 do Código Penal, quaisquer referências a valores de multas, substituindo-se a expressão multa de por multa”.
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, no tocante à confiabilidade do sistema de emissão da moeda. A preocupação do legislador com a moeda falsa é nítida, circunstância que o levou a incriminar atos que representariam mera fase de preparação do crime tipificado no art. 289, caput, do Código Penal. Cuida-se, portanto, de autêntico “crime obstáculo”.
É o maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer outro objeto especialmente destinado à falsificação de moeda.
O Código Penal utilizou mais uma vez a interpretação analógica (ou intra legem), pois apresenta uma fórmula casuística (“maquinismo, aparelho e instrumento”) seguida de uma fórmula genérica (“ou qualquer outro objeto especialmente destinado à falsificação de moeda”), com o propósito de alcançar as mais diversas situações surgidas na vida prática.
O termo “especialmente” diz respeito à finalidade precípua do maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto, consistente na falsificação de moeda. Em outras palavras, o bem pode até ser utilizado com outros fins, embora seja prioritariamente empregado na contrafação de moedas.
Embora os petrechos normalmente sejam falsos, a circunstância de serem verdadeiros, é dizer, efetivamente destinados à cunhagem e impressão de moedas, não exclui o delito, pois o bem jurídico protegido é a fé pública e a emissão de moeda é constitucionalmente reservada à União. Nesse contexto, há crime quando alguém é surpreendido na posse de máquinas subtraídas da Casa da Moeda, instituição dotada de exclusividade para fabricação de moeda (Lei 5.895/1973, art. 2.º, caput).
O tipo penal contém cinco núcleos: “fabricar” (criar, montar, construir ou produzir), “adquirir” (comprar ou obter), “fornecer”, a título oneroso ou gratuito (proporcionar, dar, vender ou entregar), “possuir” (exercer a posse) e “guardar” (conservar, manter ou proteger) maquinismo, aparelho, instrumento ou qualquer outro objeto especialmente destinado à falsificação de moeda.
Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. A lei descreve vários núcleos, e a realização de mais de um deles, em relação ao mesmo objeto material e no mesmo contexto fático, caracteriza um único delito.
O crime é comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa.
É o Estado.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a fabricação, aquisição, fornecimento, posse ou guarda dos objetos destinados à falsificação de moeda, independentemente da sua efetiva utilização pelo agente.
Nos núcleos “possuir” e “guardar” o crime é permanente, ensejando a prisão em flagrante a qualquer tempo, enquanto subsistir a conduta contrária ao Direito. Nos demais núcleos o crime é instantâneo.
O crime de petrechos para falsificação de moeda deixa vestígios de ordem material, ingressando na seara dos delitos não transeuntes. Assim sendo, a prova da materialidade do fato exige a elaboração de exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado (CPP, art. 158).
Não é cabível, pois a lei incriminou de forma autônoma atos representativos da preparação do delito tipificado no art. 289 do Código Penal (moeda falsa). E, como se sabe, os crimes de obstáculo são incompatíveis com o conatus.
A ação penal é pública incondicionada.
O crime de petrechos para falsificação de moeda é simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; não transeunte (deixa vestígios materiais); instantâneo (nos núcleos “fabricar”, “adquirir” e “fornecer”) ou permanente (nas modalidades “possuir” e “guardar”); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
O crime de petrecho para falsificação de moeda ofende interesses da União, ligados à emissão de moeda, exercida exclusivamente pelo Banco Central (CF, art. 164). Destarte, ingressa na competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal.
Qual o tratamento penal reservado ao sujeito que possui aparelhos especialmente destinados à fabricação de moeda e efetivamente os utiliza, criando moedas falsas? Há duas posições sobre o assunto:
a) O agente deve ser responsabilizado pelos crimes de petrechos de falsificação de moeda e de moeda falsa, em concurso material. Tais crimes consumam-se em momentos distintos, não havendo falar em absorção do crime previsto no art. 291 do Código Penal pelo crime definido em seu art. 289. É a posição que adotamos.17
b) Incide o princípio da consunção, resultando na absorção do crime-meio (petrechos para falsificação de moeda), que funciona como antefactum impunível, pelo crime-fim (moeda falsa). É o entendimento de Nélson Hungria:
Se à fabricação, aquisição ou detenção dos objetos em questão se segue o seu efetivo emprego na falsificação de moeda, e se há identidade de agente ou agentes, o crime será um só (crime progressivo), isto é, o de falsificação de moeda (absorvido por este o primeiro crime), pois, de outro modo, haveria bis in idem: punição do agente do crime na fase preparatória e nova punição dele na fase executiva. No caso de tentativa de falsificação, se há desistência voluntária do agente, ainda pressuposta a unidade deste, o crime do art. 291 persistirá residualmente (crime subsidiário).18
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, relativamente à confiança da população na moeda e em seu respectivo valor. Como esclarece José Henrique Pierangeli:
Nos primórdios da independência, as instituições bancárias passaram a emitir letras ao portador, fazendo-o com autorização governamental central ou com a permissão dos poderes municipais, fazendo-o, inclusive, até mesmo sem autorização, uma prática abusiva que passou a representar perigo para o Tesouro e para a jovem nação. Esses títulos ao portador, portanto, significavam uma moeda paralela que se mantinha indefinidamente na circulação, fazendo concorrência com o papel-moeda emitido pelo Tesouro. A partir de 1860 vários diplomas legislativos foram editados, todos no intuito de restringir a emissão de notas, bilhetes, vales, papéis ou títulos ao portador com o nome do destinatário em branco. (…) a conduta incriminada perturba efetivamente, ou pode perturbar a normalidade da vida econômica do país, concorrendo esses papéis com o dinheiro que o Estado põe em circulação, colocando em cheque a fé pública, no caso a garantia que o Estado apõe na moeda que faz circular.19
É a nota, bilhete, ficha, vale ou título que contenha promessa de pagamento em dinheiro ao portador ou a que falte indicação do nome da pessoa a quem deva ser pago.
Na verdade, tais objetos se amoldam ao conceito de título de crédito, indicado pelo art. 887 do Código Civil: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei”.
O tipo penal fala inicialmente em “título ao portador”, compreendido como aquele que circula pela mera tradição, pois não há identificação expressa do seu credor. Consequentemente, qualquer pessoa que esteja em sua posse é considerada titular do crédito e a transferência do documento acarreta igualmente a transferência do crédito nele consignado. O título ao portador se opõe ao título nominal, o qual identifica explicitamente seu credor. E como alerta Magalhães Noronha:
Nem todos os títulos ao portador oferecem tipicidade ao fato. A lei diz bem claramente que ele deve conter promessa de pagamento em dinheiro, porque há outros que, entretanto, representam mercadorias, serviços, utilidades etc. (warrants, conhecimentos a ordem, passagens de veículos e outros). Lembra Nélson Hungria, citando Pontes de Miranda, que também não se incluem os chamados “vales íntimos”, ou papel que se dá, como lembrete, a quem, num estabelecimento (agrícola, comercial ou industrial) ou escritório ou consultório, entrega quantia ou coisa, já que não podem prejudicar o dinheiro, por não possuírem função de papel de crédito. Igualmente os chamados “vales de caixa”, explicados para comprovarem suprimento urgente, retirada de dinheiro, adiantamento ou mesmo um empréstimo rápido ou momentâneo.
Tais papéis não se destinam à circulação, fazendo concorrência à moeda; sua posse não se transfere pela tradição, como nas coisas móveis em geral.20
Mas não para por aí. O tipo penal equipara ao título ao portador aqueles a que falte a indicação do nome da pessoa a quem deve ser pago, pois podem circular livremente para serem preenchidos, oportunamente, por quem ao final pretendesse receber o crédito. Portanto, assim como ocorre nos títulos ao portador, qualquer pessoa de posse do título pode ser considerada titular dos valores nele descritos.
O núcleo do tipo é “emitir”, ou seja, colocar em circulação a nota, bilhete, ficha, vale ou título que contenha promessa de pagamento em dinheiro ao portador ou a que falte indicação do nome da pessoa a quem deva ser pago. O objeto deve ser destinado a circular como dinheiro. E como destaca Heleno Cláudio Fragoso: “A forma do título ou a inscrição nele contida é perfeitamente irrelevante, desde que contenha inequívoca promessa de pagamento em dinheiro”.21
Trata-se de lei penal em branco homogênea, pois o tipo penal reclama a emissão de promessa de pagamento em dinheiro “sem permissão legal”. Destarte, é preciso analisar a legislação específica para saber quais títulos podem circular ao portador ou sem indicação da pessoa a quem deva ser pago, a exemplo do cheque.
O crime é comum ou geral, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Nada impede o concurso de pessoas com o responsável pela criação do título, desde que ciente de que seria colocado em circulação. Vale destacar, contudo, que normalmente as condições de criador e emissor do título recaem no mesmo indivíduo.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa, em razão do não pagamento, pelo emitente, do crédito indicado no título.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a emissão do título ao portador, isto é, com sua colocação em circulação, independentemente da causação de prejuízo efetivo a alguém. Anote-se que não basta a criação (ou subscrição do título). É imprescindível sua emissão, utilizando-o como substitutivo da moeda corrente ou de outros títulos legalmente permitidos.
Em que pese a semelhança desse delito com o crime de moeda falsa (CP, art. 289), a simples criação do título é ato preparatório, irrelevante para o Direito Penal.
É cabível, em face do caráter plurissubsistente do delito, comportando o fracionamento do iter criminis. Exemplo: O emitente do título ao portador sem permissão legal é preso em flagrante no momento em que iria entregá-lo a terceiro.22
A ação penal é pública incondicionada.
A emissão de título ao portador sem permissão legal constitui-se em infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal. A pena máxima cominada – detenção de seis meses – torna o delito compatível com a transação penal e com o rito sumaríssimo, nos moldes da Lei 9.099/1995.
A emissão de título ao portador sem permissão legal é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos), embora exista divergência doutrinária acerca do assunto.
O crime tipificado no art. 292 do Código Penal, capitulado entre os crimes de moeda falsa, é de competência da Justiça Federal. Com efeito, o delito coloca em risco a confiança da população na moeda, ao pretender substituí-la ilicitamente, ofendendo interesses da União, na forma delineada no art. 109, inc. IV, da Constituição Federal.
Em consonância com o art. 292, parágrafo único, do Código Penal: “Quem recebe ou utiliza como dinheiro qualquer dos documentos referidos neste artigo incorre na pena de detenção, de quinze dias a três meses, ou multa”.
Trata-se igualmente de infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal. Pune-se agora não o emissor do título, mas o seu tomador, isto é, aquele que o recebe ou o utiliza como dinheiro, contribuindo para sua indevida circulação e reiterando a ofensa à fé pública.
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, no tocante à confiabilidade e legitimidade dos papéis públicos.
São os papéis públicos indicados nos incisos do art. 293, caput, do Código Penal, quais sejam:
Inciso I – selo destinado a controle tributário, papel selado ou qualquer papel de emissão legal destinado à arrecadação de tributo
Esse inciso diz respeito aos documentos destinados à arrecadação de tributos, salvo os especificados no inciso V, a exemplo do antigo selo pedágio, o qual era colado no para-brisa do veículo para comprovar o extinto tributo.
Inciso II – papel de crédito público que não seja moeda de curso legal
São os denominados títulos da dívida pública, federais, estaduais ou municipais. Embora possam servir como meios de pagamento, não se confundem com a moeda de curso legal no País.
Inciso III – vale postal
Esse inciso foi revogado pelo art. 36 da Lei 6.538/1976:
Art. 36. Falsificar, fabricando ou adulterando, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale postal:
Pena – reclusão, até oito anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
O art. 47 do citado diploma legal assim define o vale postal: “título emitido por uma unidade postal à vista de um depósito de quantia para pagamento na mesma ou em outra unidade postal”.
Inciso IV – cautela de penhor, caderneta de depósito de caixa econômica ou de outro estabelecimento mantido por entidade de direito público
Cautela de penhor é o título de crédito representativo do direito real de garantia registrado no Cartório de Títulos e Documentos, a teor do art. 1.432 do Código Civil. Com seu pagamento a coisa empenhada pode ser retirada.
A caderneta de depósito de caixa econômica ou de outro estabelecimento mantido por entidade de direito público designa o documento em que está consignada a movimentação da conta corrente no estabelecimento bancário. Por sua vez, a falsificação de cadernetas de estabelecimentos privados configura o crime de falsificação de documento particular (CP, art. 298), e não o delito em análise.
Inciso V – talão, recibo, guia, alvará ou qualquer outro documento relativo a arrecadação de rendas públicas ou a depósito ou caução por que o poder público seja responsável
Talão é a parte destacável de livro ou caderno, no qual permanece um canhoto com idênticos dizeres. Recibo é a declaração de quitação ou recebimento de coisas ou valores. Guia é o documento emitido por repartição arrecadadora, ou adquirido em estabelecimentos privados, com a finalidade de recolhimento de valores, impostos, taxas, contribuições de melhoria etc. Alvará, no sentido do texto, é qualquer documento destinado a autorizar o recolhimento de rendas públicas ou depósito ou caução por que o Poder Público seja responsável.
Exemplo clássico de conduta passível de subsunção no art. 293, inc. V, do Código Penal consiste na falsificação de guias de arrecadação da Receita Federal (DARFs), mediante inserção de autenticação bancária, como forma de comprovação do recolhimento dos tributos devidos.23
Inciso VI – bilhete, passe ou conhecimento de empresa de transporte administrada pela União, por Estado ou por Município.
Bilhete é o papel impresso que confere ao seu portador o direito de usufruir de meio de transporte coletivo por determinado percurso. Passe é o bilhete de trânsito, oneroso ou gratuito, concedido por empresa de transporte coletivo. Conhecimento, finalmente, é o documento comprobatório de mercadoria depositada ou entregue para transporte.
O bilhete, o passe e o conhecimento devem emanar de empresa de transporte administrada pela União, por Estado ou por Município. Destarte, não se perfaz este delito quando qualquer dos objetos materiais provém de empresa privada, sem prejuízo do reconhecimento do crime de falsificação de documento particular, delineado no art. 298 do Código Penal.24
O núcleo do tipo é “falsificar”, isto é, imitar, reproduzir ou modificar os papéis públicos indicados nos diversos incisos do art. 293, caput, do Código Penal. A falsificação pode ocorrer mediante fabricação ou alteração.
Na fabricação, também denominada de contrafação, o agente procede à criação do papel público, o qual surge revestido pela falsidade. Por seu turno, na alteração opera-se a modificação de papel inicialmente verdadeiro, com a finalidade de ostentar valor superior ao real.
Convém destacar que a falsificação somente resultará no reconhecimento do crime em apreço quando incidir nos papéis públicos taxativamente mencionados pelo art. 293 do Código Penal. De fato, a falsificação de moeda importa no crime de moeda falsa (CP, art. 289), enquanto a falsificação de papel público diverso caracteriza o delito de falsificação de documento público (CP, art. 296).
O crime é comum ou geral, podendo ser praticado por qualquer pessoa.
Contudo, se o sujeito ativo for funcionário público,25 e cometer o crime prevalecendo-se do cargo, aumentar-se-á a pena de sexta parte, com fulcro no art. 295 do Código Penal. Para a incidência da causa de aumento da pena, não basta a condição funcional: é necessário seja o delito perpetrado em razão das facilidades proporcionadas pela posição de funcionário público.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
Trata-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a realização de qualquer das condutas legalmente descritas, prescindindo-se da efetiva circulação do papel público falsificado ou da causação de prejuízo a alguém.
Tratando-se de crime contra a fé pública, é fundamental que a atuação do agente empreste ao papel idoneidade suficiente para enganar as pessoas em geral, pois a falsificação grosseira exclui o delito, ensejando o reconhecimento do crime impossível (CP, art. 17).
É possível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada, em todas as modalidades do delito.
A falsificação de papéis públicos é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
A falsificação de papéis públicos, em regra, é crime de competência da Justiça Estadual. Se, entretanto, a emissão do papel incumbir à União, suas empresas públicas ou autarquias, e a falsificação acarretar prejuízo a tais entes, o delito será de competência da Justiça Federal, nos moldes do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal.26
A Lei 11.035/2004 conferiu nova redação ao art. 293, § 1.º, do Código Penal, para ampliar seu âmbito de incidência, que antes se limitava aos papéis falsificados, forçando muitas vezes a utilização dos crimes de receptação (CP, art. 180) e de favorecimento real (CP, art. 349) para evitar a impunidade de pessoas envolvidas com papéis públicos falsificados.
Destarte, incorre na mesma pena prevista no caput – reclusão, de dois a oito anos, e multa – quem:
Inciso I – usa, guarda, possui ou detém qualquer dos papéis falsificados a que se refere este artigo
Trata-se de conduta posterior à falsificação dos papéis públicos, realizada por pessoa diversa do falsário. De fato, se o autor da falsificação praticar qualquer dos comportamentos aqui descritos, será responsabilizado unicamente pela ação inicial, constituindo as ações subsequentes meros fatos impuníveis (princípio da consunção).
Inciso II – importa, exporta, adquire, vende, troca, cede, empresta, guarda, fornece ou restitui à circulação selo falsificado destinado a controle tributário
O raio de incidência deste inciso é inferior ao do inciso anterior, pois se limita ao selo falsificado destinado a controle tributário.
Inciso III – importa, exporta, adquire, vende, expõe à venda, mantém em depósito, guarda, troca, cede, empresta, fornece, porta ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, produto ou mercadoria:
a) em que tenha sido aplicado selo que se destine a controle tributário, falsificado;
b) sem selo oficial, nos casos em que a legislação tributária determina a obrigatoriedade de sua aplicação.
O crime é doloso. Contudo, além do dolo, afigura-se indispensável a presença do especial fim de agir (elemento subjetivo específico) representado pela expressão “em proveito próprio ou alheio”.
Trata-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser cometido pela pessoa que se encontre no exercício de atividade comercial ou industrial. E, nessa seara, o § 5.º do art. 293 do Código Penal veicula uma norma penal explicativa, assim redigida: “Equipara-se a atividade comercial, para os fins do inciso III do § 1.º, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em vias, praças ou outros logradouros públicos e em residências”.
A alínea b constitui-se em lei penal em branco homogênea, pois é preciso analisar a legislação tributária para identificação das hipóteses de obrigatoriedade do selo oficial. Fica nítida, ademais, a verdadeira preocupação do legislador: a fé pública foi colocada em plano secundário para se proteger a ordem tributária, mediante o combate à sonegação fiscal. De fato, não há pertinência lógica entre falsificar selo (crime contra a fé pública) e vender cigarro sem selo oficial (delito tributário).
A pena é de reclusão, de um a quatro anos, e multa, para quem “suprimir, em qualquer desses papéis, quando legítimos, com o fim de torná-los novamente utilizáveis, carimbo ou sinal indicativo de sua inutilização”. Trata-se de crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
Nessa hipótese, os papéis públicos são legítimos, ou seja, não foram falsificados mediante contrafação ou alteração, mas já foram inutilizados. A conduta criminosa consiste em suprimir (eliminar ou retirar) o carimbo ou sinal indicativo da inutilização. Não basta o dolo. Exige-se um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), contido na expressão “com o fim de torná-los novamente utilizáveis”.
Incorre na mesma pena cominada ao art. 293, § 2.º, do Código Penal aquele que usa, depois de alterado, qualquer dos papéis nele indicados. Se a lei comina igual pena, cuida-se novamente de crime de médio potencial ofensivo.
Os §§ 2.º e 3.º do art. 293 do Código Penal não são cumuláveis, ou seja, se o sujeito suprimir o carimbo ou sinal indicativo da inutilização do papel público, e depois utilizá-lo, responderá somente pela supressão, figurando o uso mero post factum impunível (princípio da consunção).
A pena é de detenção, de seis meses a dois anos, para quem usa ou restitui à circulação, embora recebido de boa-fé, qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se refere este artigo e o seu § 2.º, depois de conhecer a falsidade ou alteração. Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal, admitindo a transação penal e o rito sumaríssimo, em sintonia com as disposições da Lei 9.099/1995.
O tratamento penal mais suave se deve ao móvel do agente, que não se dirige à lesão da fé pública, e sim em repassar a terceiro seu prejuízo patrimonial. Com efeito, se o sujeito receber o papel de má-fé, ou seja, com conhecimento da falsidade, e ainda assim usá-lo ou restituí-lo à circulação, terá contra si imputado o crime definido no art. 293, § 1.º, do Código Penal.
Se as condutas descritas no art. 293, §§ 2.º a 4.º, do Código Penal recaírem sobre selo, outra forma de franqueamento ou vale postal, estará configurado o crime específico delineado no art. 37 da Lei 6.538/1976, inerente ao serviço postal e ao serviço de telegrama, cuja redação é a seguinte:
Art. 37. Suprimir, em selo, outra fórmula de franqueamento ou vale postal, quando legítimos, com o fim de torná-los novamente utilizáveis; carimbo ou sinal indicativo de sua utilização:
Pena: reclusão, até quatro anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
Forma assimilada
§ 1.º Incorre nas mesmas penas quem usa, vende, fornece ou guarda, depois de alterado, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale postal.
§ 2.º Quem usa ou restitui a circulação, embora recebido de boa-fé, selo, outra fórmula de franqueamento ou vale postal, depois de conhecer a falsidade ou alteração, incorre na pena de detenção, de três meses a um ano, ou pagamento de três a dez dias-multa.
O art. 1.º, inc. III, da Lei 8.137/1990 – Crimes contra a ordem tributária – prevê um delito de natureza específica, nos seguintes termos:
Art. 1.º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
(…)
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável.
Cabe destacar que o crime contra a ordem tributária é de natureza material ou causal, reclamando para sua consumação a supressão ou redução do tributo. Por sua vez, o delito definido no art. 293 do Código Penal é formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado, aperfeiçoando-se com a realização da conduta legalmente descrita, independentemente da produção de prejuízo a alguém.
O bem jurídico penalmente protegido é fé pública, no que diz respeito à confiabilidade e legitimidade dos papéis públicos. O legislador, preocupado com a falsificação de papéis públicos, não aguardou sua concretização para autorizar o Estado a exercer seu poder punitivo. Ele antecipou a tutela penal, incriminando condutas representativas de atos preparatórios do crime tipificado no art. 293 do Código Penal. Destarte, o art. 294 do Código Penal, com a rubrica “petrechos de falsificação”, veicula um autêntico crime obstáculo.
É o objeto especialmente destinado à falsificação dos papéis públicos especificados art. 293 do Código Penal.
A elementar “especialmente” relaciona-se à finalidade precípua do objeto destinado à falsificação de papéis públicos. Em síntese, nada impede seja o bem utilizado também para outros fins, embora seja prioritariamente empregado na contrafação de papéis públicos. Ademais, não é preciso sirva o petrecho unicamente à contrafação ou alteração, mesmo porque será difícil, quiçá impossível, identificar algum objeto que não tenha nenhuma outra serventia que não a falsificação de papéis públicos.
Tratando-se de objeto destinado à falsificação de selo, fórmula de franqueamento ou vale postal, estará configurado o crime definido no art. 38 da Lei 6.538/1978, cuja redação é a seguinte:
Art. 38. Fabricar, adquirir, fornecer, ainda que gratuitamente, possuir, guardar, ou colocar em circulação objeto especialmente destinado à falsificação de selo, outra fórmula de franqueamento ou vale postal:
Pena – reclusão, até três anos, e pagamento de cinco a quinze dias-multa.
O tipo penal possui cinco núcleos: “fabricar” (criar, montar, construir ou produzir), “adquirir” (comprar ou obter), “fornecer” (proporcionar, dar, vender ou entregar), “possuir” (ter a posse) e “guardar” (manter, conservar ou proteger). Todos os verbos se ligam ao objeto especialmente destinado à falsificação de papéis públicos.
Trata-se de tipo misto alternativo, crime de ação múltipla ou de conteúdo variado. A lei apresenta diversos núcleos, e a realização de mais de um deles, no tocante ao mesmo objeto material, caracteriza um único delito.
O crime é comum ou geral, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Entretanto, se o sujeito ativo for funcionário público,27 e cometer o crime prevalecendo-se do cargo, aumentar-se-á a pena da sexta parte, com fulcro no art. 295 do Código Penal. Para a incidência da causa de aumento da pena não basta a condição funcional: é imprescindível seja o delito executado em razão das facilidades proporcionadas pela posição de funcionário público.
É o Estado, interessado na preservação da fé pública no que diz respeito ao sistema de emissão de papéis públicos.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a fabricação, aquisição, fornecimento, posse ou guarda dos objetos destinados à falsificação, independentemente da sua efetiva utilização pelo agente ou por qualquer outra pessoa.
Nos núcleos “guardar” e “possuir” o crime é permanente, comportando a prisão em flagrante enquanto perdurar a situação de contrariedade ao Direito; nas demais variantes, o crime é instantâneo.
Não é cabível, pois o legislador incriminou de forma autônoma atos representativos da preparação do delito tipificado no art. 293 do Código Penal (falsificação de papéis públicos). Em outras palavras, o delito de petrechos de falsificação é classificado como crime obstáculo, logicamente incompatível com o conatus.
A ação penal é pública incondicionada.
Em razão da pena mínima cominada (um ano), o art. 294 do Código Penal contempla crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
O crime de petrechos de falsificação é simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; não transeunte (deixa vestígios materiais); instantâneo (nos núcleos “fabricar”, “adquirir” e “fornecer”) ou permanente (nas modalidades “possuir” e “guardar”); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
Qual ou quais crimes devem ser imputados ao sujeito que possui objeto especialmente destinado à falsificação de papéis públicos, e efetivamente os falsifica? Há duas posições sobre o assunto:
a) O agente deve ser responsabilizado pelos crimes de petrechos de falsificação e de falsificação de papéis públicos, em concurso material. Tais crimes consumam-se em momentos distintos, não havendo falar em absorção do crime previsto no art. 294 do Código Penal pelo crime definido em seu art. 293.
b) Incide o princípio da consunção, resultando na absorção do crime-meio (petrechos de falsificação), que funciona como ante factum impunível, pelo delito-fim (falsificação de papéis públicos). Como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça:
Falsificação de papéis públicos. Petrechos de falsificação. Concurso aparente de normas. Ante factum impunível. Não há concurso material de crimes na hipótese em que o agente fabrica, adquire, fornece, possui ou guarda objetos destinados à falsificação de papéis públicos, pois a segunda consubstancia mero ato preparatório ou ante factum impunível.28
O bem jurídico penalmente protegido é a fé pública, relativamente aos selos e sinais públicos de autenticação.
É o selo público destinado a autenticar atos oficiais da União, de Estado ou de Município, bem como o selo ou sinal atribuído por lei a entidade de direito público, ou a autoridade, ou sinal público de tabelião.
No inciso I do art. 296, o selo público não se confunde com o “selo destinado a controle tributário, papel selado ou qualquer papel de emissão legal destinado à arrecadação de tributo”, o qual importa no crime tipificado no art. 293, inc. I, do Código Penal.
É preciso destacar que, muito embora o legislador tenha inserido o crime no Capítulo III do Título X da Parte Especial do Código Penal, no âmbito “Da falsidade documental”, o selo e o sinal público não são propriamente documentos, mas objetos cuja utilidade é conferir autenticação, origem ou legitimidade a um documento, e somente após sua utilização é que passam a integrá-lo. Como leciona Heleno Cláudio Fragoso:
Os selos e sinais públicos a que a lei penal aqui se refere, não constituem documento. São, porém, comumente empregados como elementos de certificação ou autenticação documental, o que justifica a classificação. Uma vez apostos ao documento, tais selos passam a fazer parte integrante dele.29
O art. 296 do Código Penal não incrimina a falsificação de selo público destinado a autenticar atos oficiais do Distrito Federal, e a omissão legislativa não pode ser suprida pelo operador do Direito, pois não há espaço no Direito Penal para a analogia in malam partem, como corolário do princípio da reserva legal ou estrita legalidade (CF, art. 5.º, inc. XXXIX e CP, art. 1.º). De igual modo, também não se pune a falsificação do selo ou sinal público estrangeiro.
O núcleo do tipo é “falsificar”, no sentido de imitar, reproduzir ou modificar selo ou sinal público. A falsificação pode ser efetuada por fabricação ou alteração.
Na fabricação, também conhecida como contrafação, opera-se a formação ou reprodução integral do selo ou sinal público. Na alteração, por sua vez, há modificação do selo ou sinal público, para que passe a ostentar, mediante acréscimo ou supressão, informação diversa da original.
Pode ser qualquer pessoa (crime comum ou geral).
Contudo, se o delito for cometido por funcionário público, prevalecendo-se do cargo, a pena será aumentada da sexta parte, a teor da regra inserida no § 2.º do art. 296 do Código Penal. Trata-se de causa de aumento da pena, e sua incidência reclama não somente a condição funcional, mas também a utilização das facilidades proporcionadas pelo cargo para a prática do crime. Destarte, se o agente for funcionário público, mas executar o delito sem se prevalecer do cargo, será vedada a aplicação da majorante.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se no momento da falsificação, mediante fabricação ou alteração, do selo ou sinal público, independentemente da obtenção de vantagem indevida ou da provocação de prejuízo a alguém. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
O tipo restringe-se à mera conduta, sendo despiciendo o prejuízo a terceiro. A substituição de folha do processo por outra numerada por pessoa estranha ao Cartório, com imitação da rubrica do serventuário, alcança o objeto jurídico protegido pelo dispositivo legal – a fé pública, considerado o sinal de autenticidade. O dolo decorre da vontade livre e consciente de praticar o ato.30
A propósito, o uso do selo ou sinal falsificado é punido como crime autônomo, nos moldes do art. 296, § 1.º, inc. I, do Código Penal.
É possível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada.
Em face da pena cominada (reclusão, de dois a seis anos, e multa), a falsificação do selo ou sinal público é crime de elevado potencial ofensivo, incompatível com os benefícios contidos na Lei 9.099/1995.
A falsificação do selo ou sinal público é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser praticado por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; não transeunte (deixa vestígios materiais); instantâneo (consumam em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
Como estabelece o § 1.º do art. 296 do Código Penal, incorre nas mesmas penas:
Inciso I – quem faz uso do selo ou sinal falsificado
A lei se preocupa, nesse caso, com a efetiva utilização do selo ou sinal público falsificado na autenticação de documentos.
Se o próprio falsificador fizer uso do selo ou sinal falsificado, deverá ser responsabilizado unicamente pela falsificação. O uso constitui post factum impunível, e por essa razão resta absorvido, solucionando-se o conflito aparente de normas com o princípio da consunção.
Inciso II – quem utiliza indevidamente o selo ou sinal verdadeiro em prejuízo de outrem ou em proveito próprio ou alheio
Nessa hipótese, o selo ou sinal público são verdadeiros, mas o seu uso é indevido (elemento normativo do tipo), podendo causar prejuízo a terceiro ou benefício ao agente ou a outra pessoa. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu este delito na conduta do presidente de entidade de ensino não reconhecida ou autorizada, que se utilizava de certificados encimados com o selo da República Federativa do Brasil comumente usado em documentação oficial do Ministério da Educação, para que candidatos a cargos públicos se habilitassem.31
Em nossa opinião, não se exige o efetivo prejuízo de outrem ou o prejuízo próprio ou alheio, sendo suficiente a potencialidade para tanto (crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado). Existem, contudo, entendimentos em contrário, no sentido de se tratar de crime material ou causal, reclamando, portanto, a superveniência do resultado naturalístico.32
Inciso III – quem altera, falsifica ou faz uso indevido de marcas, logotipos, siglas ou quaisquer outros símbolos utilizados ou identificadores de órgãos ou entidades da Administração Pública
Este inciso foi acrescentado pela Lei 9.983/2000, voltado precipuamente aos crimes contra a Previdência Social. No entanto, aqui não é preciso seja a conduta relacionada precisamente a este órgão, podendo envolver qualquer órgão ou entidade da Administração Pública.
Por seu turno, a Lei 5.700/1971 dispõe sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais. O art. 35 desta lei estabelece que a violação de qualquer das suas disposições constitui contravenção penal, a exemplo da conduta de usar a bandeira nacional como roupagem.
O art. 297 do Código Penal claramente se preocupa com a forma do documento público, pois a falsificação recai sobre seu corpo, sua exterioridade. Esta é a razão de falar em falsidade material.
O legislador brasileiro acompanhou a tendência mundial, e criou dois crimes distintos, estabelecendo pena mais grave para a falsificação de documento público (reclusão, de dois a seis anos, e multa) do que para a falsificação de documento particular (reclusão, de um a cinco anos, e multa). Em conformidade com os ensinamentos de Sylvio do Amaral:
Tal ocorre porque a violação da verdade expressa nos documentos emitidos pelo Estado afeta diretamente o prestígio da organização política, além de atingir a fé pública inspirada pelo documento violado. Em torno do Estado existe a presunção da absoluta veracidade de todas as suas manifestações, documentais ou não, de modo tal que qualquer ato atentatório dessa presunção repercute desmesuradamente na confiança da coletividade, fazendo periclitar um dos fatores fundamentais da harmonia e da ordem nas relações do cidadão com o Estado. Assim pois, o crédito incondicionado que os documentos expedidos pelo Estado merecem do povo a ele sujeito faz com que seja incomparavelmente maior a possibilidade de dano decorrente da falsificação desses documentos.33
É a fé pública, relativamente à confiança depositada nos documentos públicos.
É o documento público falsificado, no todo ou em parte, ou o documento público verdadeiro alterado. Além de funcionar como objeto material, o documento público também atua como elemento normativo do tipo, pois a compreensão do seu significado reclama um juízo de valor de índole jurídica.
Documento, no âmbito penal, é o escrito elaborado por pessoa determinada e representativo de uma declaração de vontade ou da existência de fato, direito ou obrigação, dotado de relevância jurídica e com eficácia probatória.34 Vejamos suas características.
a) Forma escrita
Em primeiro lugar, documento é a palavra escrita, embora nem todo escrito ingresse no conceito de documento, pois é imprescindível seja dotado de relevância jurídica.
Como corolário desta exigência, excluem-se as fotografias isoladas,35 pinturas e desenhos, uma vez que não apresentam escrito algum, sem prejuízo da configuração de crime de outra natureza, a exemplo do dano (CP, art. 163), do furto (CP, art. 155) e da fraude processual (CP, art. 347) etc.
O escrito deve ser lançado em coisa móvel, suscetível de ser transportada e transmissível (exemplos: papel, pergaminho, tela etc.), razão pela qual não são considerados documentos as palavras inscritas em paredes, muros, estátuas, árvores, rochas, veículos e objetos análogos, pois não podem ser transmitidos para as mãos de outras pessoas.
Exige-se a permanência do escrito, que não precisa ser indelével, afigurando-se irrelevante o meio empregado, desde que idôneo para a documentação (tinta, lápis, sangue etc.).36
O escrito pode ser feito à mão ou mediante processo mecânico ou químico de reprodução de caracteres, independentemente do idioma,37 e inclusive códigos em geral, desde que representem a expressão do pensamento de alguém. No tocante à reprodução mecânica (exemplos: escritos impressos ou datilografados), é imprescindível a subscrição manuscrita ou digitalizada pelo seu autor.
Não constitui documento o escrito indecifrável ou aquele que somente seu autor pode entender.
A fotocópia sem autenticação não tem eficácia probatória, motivo pelo qual não pode ser classificada como documento. Contudo, se for autenticada pelo oficial público ou conferida em cartório, será considerada documento. Como determina o art. 232, parágrafo único, do Código Penal: “À fotografia do documento, devidamente autenticada, se dará o mesmo valor do original”.
b) Elaborado por pessoa determinada
O autor do escrito – que não é necessariamente a pessoa que o escreveu, e sim aquela a quem se deve a declaração de vontade ou expressão de pensamento que o escrito contém – há de ser identificado. De fato, a autoria certa exigida para que um escrito seja considerado documento é daquele de quem o documento deveria ter emanado, e não do autor da falsidade. A autoria da falsidade é fundamental para a condenação do falsário, mas em nada se relaciona com o conceito penal de documento.
O escrito anônimo (exemplo: uma carta apócrifa) não é documento, pois na verdade se constitui na inafastável intenção de não documentar um pensamento.38
Em regra, a identificação do autor se dá pela assinatura contida no documento, nada obstante possa decorrer do próprio conteúdo, desde que a lei não imponha expressamente sua subscrição. A assinatura pode ser feita por extenso (exemplo: “João da Silva”), por abreviação, por indicação de parentesco ou relação de intimidade (exemplos: “seu pai”, “seu noivo” etc.), e até mesmo por pseudônimo, quando possível reconhecer seu autor.
c) Conteúdo revestido de relevância jurídica e eficácia probatória
Não existe documento sem conteúdo. A simples assinatura aposta a papel em branco não é documento, pois este deve conter uma manifestação do pensamento, realizada mediante a narração ou exposição de um fato, direito ou obrigação, ou então de uma declaração de vontade. Consequentemente, o escrito ininteligível ou sem sentido também não pode ser considerado documento.
Mas nem todo conteúdo é idôneo a ensejar a formação de um documento. O conteúdo há de apresentar relevância jurídica e eficácia probatória, pois pode ser utilizado como prova de determinado fato, implicando consequências no plano jurídico. Destarte, o ato nulo, juridicamente irrelevante, não constitui documento, pois ausente a capacidade para produzir efeitos válidos no mundo do Direito.
Documento público é aquele criado pelo funcionário público, nacional ou estrangeiro, no desempenho das suas atividades, em conformidade com as formalidades prescritas em lei.
Fácil visualizar, portanto, os requisitos essenciais à formação do documento público:
(a) qualidade de funcionário público em que o elabora;
(b) a criação do documento no exercício das funções públicas; e
(c) cumprimento das formalidades legais.
Os documentos públicos dividem-se em duas espécies:
1.ª espécie: Documentos formal e substancialmente públicos: São os documentos criados por funcionários públicos, no desempenho de suas atribuições legais, com conteúdo e relevância jurídica de direito público. Exemplos: atos do Poder Executivo, Legislativo, Judiciário e do Ministério Público, entre outros.
2.ª espécie: Documentos formalmente públicos e substancialmente privados: São os documentos elaborados por funcionários públicos, no desempenho de suas atribuições legais, mas com conteúdo de natureza privada. Exemplos: escritura pública de compra e venda de bem particular, reconhecimento de firma pelo tabelião em escritura particular etc.
A cópia autenticada de documento particular extraída pelo tabelião não se transforma em documento público. No entanto, se a falsidade incidir especificamente sobre o selo de autenticação, estará caracterizado o crime de falsificação do selo ou sinal público, definido no art. 296, inc. II, do Código Penal.
Na prática, a divisão dos documentos públicos é inócua, pois a lei confere igual tratamento (pena idêntica) à falsificação em ambas as situações. A força probante do documento público (exemplo: documento dotado de fé pública) também é irrelevante no plano da tipicidade, mas pode ser utilizada pelo magistrado na dosimetria da pena-base, como circunstância judicial, nos moldes do art. 59, caput, do Código Penal.
O telegrama emitido por ordem de particular não é documento público, malgrado exista interferência de agente público. Na verdade, o funcionário público pertencente aos quadros da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) limita-se a reproduzir de forma mecânica o conteúdo privado do documento, o que não lhe empresta caráter público.
Contudo, se o telegrama for expedido em obediência à ordem de funcionário público, no exercício das suas funções, será considerado documento público. E, se forem realizadas alterações no telegrama, no tocante às anotações lançadas pelo agente público, estará caracterizado o crime definido no art. 297 do Código Penal.39
Como preceitua o art. 297, § 2.º, do Código Penal: “Para os efeitos penais, equiparam-se a documento público o emanado de entidade paraestatal, o título ao portador ou transmissível por endosso, as ações de sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular”.
São documentos particulares que o legislador, para fins de aplicação da pena, decidiu colocar no mesmo patamar dos documentos públicos. Façamos a análise de cada um deles.
a) documento emanado de entidade paraestatal
Entidades paraestatais, integrantes do terceiro setor, são as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que atuam ao lado e em colaboração com o Estado. São seus exemplos o Sesc, o Senai e o Sesi, bem como as entidades de apoio e as organizações não governamentais (ONGs).40
b) título ao portador ou transmissível por endosso
Título ao portador é o que circula pela mera tradição, a teor da regra contida no art. 904 do Código Civil. São exemplos o cheque ao portador, com valor não superior a R$ 100,00 (cem reais), nos moldes do art. 69 da Lei 9.069/1995.
Nos títulos ao portador, a identificação do credor não é realizada expressamente, razão pela qual a pessoa que se encontre na posse do título é considerada titular do crédito nele indicado. Logo, a simples transferência do título (cártula) opera a transferência da titularidade do crédito.41
Título transmissível por endosso, também conhecido como título nominal à ordem, é o que identifica de forma expressa seu titular, ou seja, o credor. A transferência do crédito reclama, além da tradição, o endosso, a teor do art. 910 do Código Civil.42 São exemplos o cheque em geral, a duplicata, a nota promissória e a letra de câmbio.
c) ações de sociedade comercial
As sociedades dotadas de ações são as sociedades anônimas, disciplinadas pela Lei 6.404/1976, e as sociedades em comandita por ações, reguladas pelos arts. 1.090 a 1.092 do Código Civil.
d) livros mercantis
Livros mercantis são os destinados a registrar as atividades empresariais. Podem ser obrigatórios (exemplo: Livro Diário, com as ressalvas lançadas pelo art. 1.180 do Código Civil) ou facultativos (exemplo: Livro-Caixa, Livro Estoque etc.).
d) testamento particular
O testamento particular, também chamado de hológrafo, destinado à sucessão de bens de pessoa capaz, para depois da sua morte, encontra-se disciplinado pelos arts. 1.876 a 1.880 do Código Civil. É escrito pelo testador, de próprio punho ou mediante processo mecânico. Como não há espaço para a analogia in malam partem no Direito Penal, é vedada a inclusão do codicilo (Código Civil, arts. 1.881 a 1.885) no rol dos documentos públicos por equiparação.
O tipo penal contempla duas condutas distintas: (a) falsificar, no todo ou em parte, documento público; e (b) alterar documento público verdadeiro. Vejamos cada uma delas separadamente.
1.ª conduta: falsificar, no todo ou em parte, documento público
O núcleo do tipo é “falsificar”, no sentido de fabricar um documento público até então inexistente. A falsificação também é chamada de contrafação. A lei contém a expressão “no todo ou em parte”, indicando que a falsificação pode ser total ou parcial.
Na falsificação total, o documento é criado em sua integralidade (exemplo: o sujeito fabrica em sua residência uma carteira nacional de habilitação).
Por seu turno, na falsificação parcial o agente acrescenta palavras, letras ou números ao objeto, sem estar autorizado a fazê-lo, fazendo surgir um documento parcialmente inverídico. Exemplo: “A” subtrai do órgão público um espelho de documento em branco, e preenche seus espaços.43 Cabe aqui uma importante ressalva. Se o sujeito estava autorizado a preencher o documento, mas nele inseriu dados falsos, deverá ser responsabilizado pelo crime de falsidade ideológica, definido no art. 299 do Código Penal.
2.ª conduta: alterar documento público verdadeiro
O verbo “alterar” tem o sentido de modificar um documento público verdadeiro, já existente, mediante a substituição do seu conteúdo com frases, palavras ou números que acarretem mudança na sua essência. Exemplo: O sujeito modifica a data de validade da sua carteira nacional de habilitação. Em relação à substituição da fotografia dos documentos, assim já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:
Substituição de fotografia em documento público de identidade. Tipificação. Sendo a alteração de documento público verdadeiro uma das duas condutas típicas do crime de falsificação de documento público (artigo 297 do Código Penal), a substituição da fotografia em documento de identidade dessa natureza caracteriza a alteração dele, que não se cinge apenas ao seu teor escrito, mas que alcança essa modalidade de modificação que, indiscutivelmente, compromete a materialidade e a individualização desse documento verdadeiro, até porque a fotografia constitui parte juridicamente relevante dele.44
No campo da alteração, surge uma relevante indagação. Qual é a diferença entre alteração e falsificação parcial do documento?
Na alteração, existe um documento verdadeiro, cujo conteúdo é modificado pela conduta criminosa. É por essa razão que o tipo penal possui a elementar verdadeiro (“alterar documento público verdadeiro”).45 Por seu turno, na falsificação parcial o documento nasce como obra do falsário, isto é, o documento verdadeiro jamais existiu.
De modo esquematizado, temos:
Mas cuidado. Uma importante exceção deve ser observada. Com efeito, a falsificação parcial também pode restar caracterizada quando, em documento verdadeiro preexistente, vem a ser efetuado um acréscimo totalmente individualizável (exemplo: inserção de aval falso em cheque autêntico). Não há falar, nessa situação, em alteração, pois não foi atingida a parte já existente do documento, e sim incluída uma parte absolutamente autônoma. De outro lado, estaria configurada a alteração se o sujeito modificasse o texto lançado na cártula, aumentando seu valor, uma vez que sua conduta alcançaria parte já existente do documento verdadeiro. É também a opinião de Sylvio do Amaral:
O que caracteriza a falsificação parcial e permite discerni-la da alteração é o fato de recair aquela, necessariamente, em documento composto de duas ou mais partes perfeitamente individuáveis. Assim, na emissão do warrant e do conhecimento de depósito (títulos xifópagos, na expressão de Waldemar Ferreira) há possibilidade de falsificação parcial de documento, a reconhecer-se sempre que o agente haja falsificado uma das partes do título, sendo a outra inteiramente legítima. (…)
Nessas hipóteses há da parte do criminoso a fabricação de uma porção do documento que se caracteriza por sua autonomia em relação à outra ou às outras porções. Com tal sentido deve ser entendida a expressão falsificação parcial, do Código Penal, sob pena de não poder o intérprete estabelecer distinção aceitável entre falsificação parcial e alteração.46
Como nos demais crimes contra a fé pública, a falsificação – total ou parcial –, e também a alteração, precisam revestir-se de idoneidade para ludibriar as pessoas em geral. Em outras palavras, é imprescindível a potencialidade de dano. Logo, a falsificação não pode ser grosseira, sob pena de exclusão do delito de falso, em razão da atipicidade do fato pelo crime impossível (CP, art. 17), sem prejuízo do aperfeiçoamento de algum crime patrimonial, notadamente o estelionato. Nos ensinamentos de Nélson Hungria:
(…) não há falsidade sem a possibilidade objetiva de enganar (isto é, sem a capacidade de, por si mesma, iludir o homo medius). Não basta a immutatio veri: é também necessária a imitatio veri. Sem esta (ou seja, sem a potencialidade de engano), inexiste, praticamente, a ofensa à fé pública ou possibilidade de dano (elemento condicionante do crime).
Cabe aqui reiterar o que já dissemos a respeito ao falsum em geral: se a imitação é grosseira ou reconhecível prima facie, e, nada obstante, alcança êxito, dada a supina desatenção ou cega credulidade do lesado, o crime a identificar-se já não será o de falsidade, mas o estelionato ou outra fraude patrimonial.47
Se o agente, no mesmo contexto fático e visando alcançar uma determinada finalidade, falsifica diversos documentos públicos, deve responder por um único crime. Exemplo: Depois de furtar um veículo automotor, “A” falsifica todos os documentos relativos ao automóvel (certificado de propriedade, guia de IPVA, comprovante de licenciamento etc.).
Entretanto, se as diversas falsificações forem realizadas em momentos distintos, e com finalidades diversas (exemplo: falsificação dos documentos do veículo furtado e, após, falsificação de passaporte para fugir do Brasil), estarão configurados dois crimes, em continuidade delitiva, se presentes os requisitos exigidos pelo art. 71, caput, do Código Penal, ou então em concurso material, na situação contrária.
A propósito, a falsificação de documento público destinada a acobertar a prática de algum crime goza de autonomia, e jamais será absorvida pelo delito anterior. Com efeitos, os crimes têm momentos consumativos distintos e ofendem bens jurídicos diversos, afastando a incidência do princípio da consunção. Exemplo: “A” rouba um automóvel, e posteriormente falsifica os documentos inerentes ao veículo automotor, com o objetivo de assegurar a posse do bem. Nesse caso, serão a ele imputados dois crimes – roubo e falsificação de documento público, atentatórios ao patrimônio e à fé pública – em concurso material.
A conduta que se limita a cancelar ou rasurar palavras, frases ou números de um documento, sem implicar inserção de novos dados ou modificação do seu conteúdo, caracteriza o crime de supressão de documento, na forma prevista pelo art. 305 do Código Penal.
A adulteração ou remarcação de número de chassi ou de qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento (exemplos: números e letras das placas ou códigos inscritos no câmbio e no motor) configura o crime descrito no art. 311 do Código Penal.
Contudo, se a alteração recair no número do chassi ou das placas constantes do documento do veículo automotor, estará caracterizado o crime de falsificação de documento público, tipificado no art. 297, caput, do Código Penal.
A falsificação de documento público é crime comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa.
De fato, um particular pode ser responsabilizado pelo delito tipificado no art. 297 do Código Penal, desde que a falsificação recaia em documento que deveria ter sido elaborado por funcionário público, ou então altere documento verdadeiro efetivamente criado por este.
Entretanto, se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena de sexta parte, a teor da regra inserida no § 1.º do art. 297 do Código Penal. Para incidência da causa de aumento, na terceira fase da dosimetria da pena privativa de liberdade, não basta a posição de funcionário público. Exige-se também seja o delito praticado em razão das facilidades proporcionadas pelo cargo público.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.48
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
A falsificação de documento público para fins eleitorais configura o crime específico definido no art. 348 da Lei 4.737/1965 – Código Eleitoral, cuja redação é a seguinte:
Art. 348. Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro, para fins eleitorais:
Pena – reclusão de dois a seis anos e pagamento de 15 a 30 dias-multa.
§ 1.º Se o agente é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo, a pena é agravada.
§ 2.º Para os efeitos penais, equipara-se a documento público o emanado de entidade paraestatal inclusive Fundação do Estado.
Cuida-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado: consuma-se com a falsificação, no todo ou em parte, de documento público, ou com a alteração de documento público verdadeiro, prescindindo-se do seu uso posterior, bem como da obtenção de qualquer vantagem ou da causação de efetivo prejuízo a alguém. Na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Falsificação de documento público. Crime formal. Inexistência de prejuízo. Irrelevância. Consumação no momento da falsificação ou alteração. Recurso a que se nega provimento. O delito de falsificação de documento público é crime formal, cuja consumação se dá no momento da falsificação ou da alteração do documento.49
É também crime instantâneo, pois a consumação se esgota no momento da falsificação, total ou parcial, ou da alteração do documento público, não se prolongando no tempo.50
A falsificação de documento público é crime não transeunte, pois deixa vestígios materiais. Consequentemente, é indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal.
Em regra, a perícia inerente à falsificação de documento público destinada à prova da materialidade do fato consiste no exame documentoscópico. E, sempre que possível, deverá ser também realizado o exame grafotécnico, com o escopo de apurar, com base na comparação dos padrões gráficos, se determinada pessoa realmente foi a autora do documento, relativamente à assinatura nele lançada e ao seu conteúdo. Suas balizas encontram-se no art. 174 do Código de Processo Penal.51
Entretanto, como ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), o acusado (ou investigado) não pode ser compelido a fornecer material gráfico para realização do exame pericial. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a autoincriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade não só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde se encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou proceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento em questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o que intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o escrito, a escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto, ordenar que o faça, sob pena de desobediência, como deixa transparecer, a um apressado exame, o CPP, no inciso IV do art. 174.52
É possível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada, em todas as modalidades do delito.
Em face da pena cominada (reclusão, de dois a seis anos, e multa), a falsificação de documento público constitui-se em crime de elevado potencial ofensivo, incompatível com os benefícios disciplinados pela Lei 9.099/1995.
A falsificação de documento público é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); não transeunte (deixa vestígios materiais); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
Em regra, a falsificação de documento público é de competência da Justiça Estadual. Todavia, será competente a Justiça Federal quando o crime for praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, nos termos do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal. É o que dá, exemplificativamente, no tocante aos documentos emitidos pelos órgãos federais, tais como o passaporte e a autorização para porte de arma de fogo, reservados à Polícia Federal, bem como as certidões negativas de débito perante a União. Em sintonia com a orientação do Supremo Tribunal Federal:
A jurisprudência desta Corte, para fixar a competência em casos semelhantes, analisa a questão sob a perspectiva do sujeito passivo do delito. Sendo o sujeito passivo o particular, consequentemente a competência será da Justiça Estadual. Entretanto, o particular só é vítima do crime de uso, mas não do crime de falsificação. De fato, o crime de falsum atinge a presunção de veracidade dos atos da Administração, sua fé pública e sua credibilidade. Deste modo, a falsificação de documento público praticada no caso atinge interesse da União, o que conduz à aplicação do art. 109, IV, da Constituição da República.53
Destarte, no campo da competência é fundamental estabelecer a diferença entre a falsificação do documento público (CP, art. 297) e o uso do documento falso (CP, art. 304), pois este último crime normalmente tem como destinatário um particular.54
Não se olvide ser o crime de falsificação de Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de competência da Justiça Estadual, haja vista que, malgrado seja documento válido em todo o território nacional, sua emissão é incumbência da autoridade estadual de trânsito, nos termos do art. 22, inc. II, da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro.
Finalmente, vale destacar o teor das Súmulas 62 e 104 do Superior Tribunal de Justiça, assim redigidas:
Súmula 62: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsa anotação na carteira de Trabalho e Previdência Social atribuído a empresa privada”.
Súmula 104: “Compete à Justiça Estadual o processo e julgamento dos crimes de falsificação e uso de documento falso relativo a estabelecimento particular de ensino”.
O § 3.º do art. 297 do Código Penal foi acrescentado pela Lei 9.983/2000, relativa aos crimes contra a Previdência Social, com a finalidade de substituir os delitos anteriormente previstos no art. 95, g, h e i, da Lei 8.212/1991.
O legislador ampliou o rol dos documentos públicos por equiparação, constante do § 2.º do art. 297 do Código Penal.55 De fato, o bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública dos documentos relacionados à Previdência Social.
O tipo penal contém dois núcleos: “inserir” (introduzir ou colocar) e “fazer inserir” (criar condições para que terceiro introduza ou coloque). No momento da sua formação, o documento é verdadeiro, mas seu conteúdo, a ideia nele contida é falsa. Percebe-se, portanto, uma falha grotesca efetuada pela Lei 9.983/2000, qual seja disciplinou uma modalidade de falsidade ideológica em dispositivo atinente à falsidade material.
Na verdade, os crimes definidos no art. 297, § 3.º, deveriam estar alocados no art. 299 do Código Penal. Como adverte Cezar Roberto Bitencourt:
Chega a ser constrangedora a equivocada inclusão no art. 297 (que trata de falsidade material) de condutas que identificam falsidade ideológica, quando deveriam ter sido introduzidas no art. 299, com a cominação de pena que lhes parecesse adequada. A falsidade material, com efeito, altera o aspecto formal do documento, construindo um novo ou alterando o verdadeiro; a falsidade ideológica, por sua vez, altera o conteúdo do documento, total ou parcialmente, mantendo inalterado seu aspecto formal.56
Em que pese o equívoco do legislador, vejamos cada uma das condutas elencadas no art. 297, § 3.º, do Código Penal: “Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir”:
Inciso I – na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer prova perante a Previdência Social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório
A relação dos segurados obrigatórios encontra-se no art. 11 da Lei 8.213/1991 – Plano de Benefícios da Previdência Social.
Inciso II – na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita
A Carteira de Trabalho e Previdência Social funciona como parâmetro para o cálculo de pagamento dos benefícios previdenciários, uma vez que nela são lançados os valores do salário de contribuição. Portanto, se o montante anotado for falso, a Previdência Social será lesada, pois irá custear valores indevidos ao segurado. Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
O agente que omite dados ou faz declarações falsas na Carteira de Trabalho e Previdência Social atenta contra interesse da Autarquia Previdenciária e estará incurso nas mesmas sanções do crime de falsificação de documento público, nos termos dos §§ 3.º, II, e 4.º do art. 297 do Código Penal. Competência da Justiça Federal.57
Inciso III – em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado
A falsificação recai sobre os documentos contábeis da empresa, pois é com base neles que a Previdência Social calcula os valores a serem recolhidos.
Os três incisos veiculam crimes formais, de consumação antecipada ou de resultado cortado, os quais alcançam a consumação com a inserção da declaração falsa ou diversa daquela que deveria ter constado. A tentativa é cabível, em razão da natureza plurissubsistente dos delitos.
Se a falsidade lançada na Carteira de Trabalho e Previdência Social relacionar-se com os direitos trabalhistas do empregado, incidirá o crime definido no art. 49 do Decreto-lei 5.452/1943, assim redigido:
Art. 49. Para os efeitos da emissão, substituição ou anotação de Carteiras de Trabalho e Previdência Social, considerar-se-á crime de falsidade, com as penalidades previstas no art. 299 do Código Penal:
I – fazer, no todo ou em parte, qualquer documento falso ou alterar o verdadeiro;
II – afirmar falsamente a sua própria identidade, filiação, lugar de nascimento, residência, profissão ou estado civil e beneficiários, ou atestar os de outra pessoa;
III – servir-se de documentos, por qualquer forma falsificados;
IV – falsificar, fabricando ou alterando, ou vender, usar ou possuir Carteira de Trabalho e Previdência Social assim alteradas;
V – anotar dolosamente em Carteira de Trabalho e Previdência Social ou registro de empregado, ou confessar ou declarar em juízo ou fora dele, data de admissão em emprego diversa da verdadeira.57
Por seu turno, se a falsidade atingir a Previdência Social, estará caracterizado o crime tipificado no art. 297, § 3.º, inc. II, do Código Penal.
Como estatui o art. 297, § 4.º, do Código Penal: “Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3.º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços”.
Trata-se novamente de falsidade ideológica, em face de grave erro efetuado pela Lei 9.983/2000. O crime é omissivo próprio ou puro, pois o tipo penal, cujo núcleo é “omitir”, descreve uma conduta negativa. Destarte, não se admite a figura da tentativa: ou o sujeito dolosamente omite as informações devidas no documento, e o crime estará consumado, ou então age regularmente, e seu comportamento será penalmente irrelevante.
Embora seja praticamente pacífico em jurisprudência o entendimento pela inaplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes contra a fé pública, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu de forma diversa em relação ao delito previsto no art. 297, § 4.º, do Código Penal:
No caso, gerente responsável por sociedade empresarial foi denunciado como incurso no art. 297, § 4.º, do CP, porque deixou de anotar a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) de empregado durante a vigência do contrato de trabalho. (…) Para o Min. Relator, é possível aplicar o princípio da insignificância pelo curto período do contrato (segundo o Juízo Trabalhista, pouco mais de 1 mês), pela mínima lesividade causada ao empregado, devido à condenação do paciente pelo juízo trabalhista, obrigando-o a registrar o empregado. Esses fatos, segundo o Min. Relator, também levam à convicção de que a denúncia narra fato atípico, porque o caso não se subsume ao § 4.º do art. 297 do CP, além de serem os fatos acima narrados vetores do princípio da insignificância.59
Discute-se o enquadramento típico da conduta do sujeito que falsifica um documento público e, posteriormente, dele se vale para enganar alguém, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio. Em tese, há dois crimes: estelionato (CP, art. 171, caput) e falsificação de documento público (CP, art. 297). Mas qual será, na prática, a responsabilidade penal do agente?
Há quatro posições sobre o assunto. Passemos à análise de cada uma delas.
1.ª posição: A falsidade documental absorve o estelionato
O falso é crime formal, pois se consuma com a falsificação do documento, independentemente de qualquer resultado posterior. Contudo, se sobrevier o resultado naturalístico, do qual é exemplo a obtenção da indevida vantagem econômica, não haverá falar em outro delito, e sim em exaurimento da falsidade documental. Para Nélson Hungria:
Quando a um crime formal se segue o dano efetivo, não surge novo crime: o que acontece é que ele se exaure, mas continuando a ser único e o mesmo (à parte a sua maior punibilidade, quando a lei expressamente o declare. A obtenção de lucro ilícito mediante falsum não é mais que um estelionato qualificado pelo meio (Impalomeni). É um estelionato que, envolvendo uma ofensa à fé pública, adquire o nomen iuris de “falsidade”.60
Esta posição ganha ainda mais força ao recordarmos que a falsificação de documento público tem pena mais elevada do que o estelionato. O crime mais grave (falsificação de documento público: reclusão, de dois a seis anos) absorveria o crime menos grave (estelionato: reclusão, de um a cinco anos).
2.ª posição: Há concurso material de crimes
Os crimes devem ser impostos cumulativamente, em concurso material (CP, art. 69). Em razão de ofenderem bens jurídicos diversos, afasta-se o fenômeno da absorção. De fato, a falsidade documental tem como objetividade jurídica a fé pública, ao passo que o estelionato é crime contra o patrimônio. Se não bastasse, o crime de falso estaria consumado em momento anterior ao da prática do estelionato. E, se já estava consumado, não poderia sofrer nenhuma alteração posterior no plano da tipicidade.
Além disso, raciocínio diverso tornaria inútil a regra contida no art. 297, § 2.º, do Código Penal, na parte em que equipara a documento público os títulos ao portador ou transmissíveis por endosso, como é o caso do cheque. Com efeito, não se pode imaginar a falsificação de um cheque esgotando-se em si mesma, ou seja, sem o propósito do agente em utilizá-lo para a obtenção de uma vantagem econômica indevida em prejuízo alheio.
3.ª posição: Há concurso formal de crimes
Acolhem-se os mesmos fundamentos da posição anterior, relativamente à autonomia dos crimes de estelionato e falsidade documental. Sustenta-se, todavia, que a conduta seria uma só, ainda que desdobrada em diversos atos. Na dosimetria da pena, portanto, o magistrado deve observar a regra contida no art. 70, caput, 1.ª parte, do Código Penal: aplicar qualquer delas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentando-a de um sexto até metade.
Historicamente, este sempre foi o entendimento consagrado no Supremo Tribunal Federal: “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que, em se tratando dos crimes de falsidade e de estelionato, este não absorve aquele, caracterizando-se, sim, concurso formal de delitos”.61
4.ª posição: O estelionato absorve a falsificação de documento público
Esta é a posição atualmente dominante, em razão de ter sido adotada pela Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
O conflito aparente de leis penais é solucionado pelo princípio da consunção. O crime-fim (estelionato) absorve o crime-meio (falsidade documental), desde que este se esgote naquele, isto é, desde que a fé pública, o patrimônio ou outro bem jurídico qualquer não possam mais ser atacados pelo documento falsificado e utilizado por alguém como meio fraudulento para obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio.
Em nossa opinião, o sujeito responsável pela falsificação de documento público, que dele se aproveita para cometer estelionato, deve responder por ambos os crimes, em concurso material.
Discordamos do teor da Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça, pois não reputamos adequado falar na falsidade documental como ato anterior (ante factum) impunível no tocante ao estelionato. Afastamos, nesse caso, a incidência do princípio da consunção, pois ausente o conflito aparente de leis penais.
Como se sabe, atos anteriores, prévios ou preliminares impuníveis são aqueles que, nada obstante definidos como crimes autônomos, revelam-se imprescindíveis para a realização do tipo principal, e, portanto, são absorvidos por este último. Nesse contexto, podemos com segurança afirmar que o crime de estelionato não depende, obrigatoriamente, da prévia falsificação de documento, pois pode ser praticado por outros variados e infinitos meios fraudulentos.
Em conformidade com a definição do princípio da consunção, o fato anterior componente dos atos preparatórios ou de execução apenas será absorvido se apresentar menor ou igual gravidade quando comparado ao principal, para que este goze de força suficiente para consumir os demais, englobando-os em seu raio de atuação.
Destarte, desponta como manifesto o equívoco técnico da citada súmula, cuja redação vale a pena ser repetida: “Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
O enunciado jurisprudencial destina-se, precipuamente, às hipóteses em que o sujeito, com o escopo de praticar estelionato, falsifica materialmente uma cártula de cheque, documento particular equiparado a documento público por expressa determinação legal, nos termos do art. 297, § 2.º, do Código Penal. Este foi o problema prático que justificou a criação do verbete sumular.
Ora, o crime de falsificação de documento público é punido com reclusão de dois a seis anos, e multa. Sendo o fato mais amplo e grave, não pode ser consumido pelo estelionato, sancionado de forma mais branda. Mas não para por aí. Os delitos apontados atingem bens jurídicos diversos. Enquanto o estelionato constitui-se em crime contra o patrimônio, o falso agride a fé pública.
Se não bastasse, a falsificação de uma folha de cheque normalmente não se exaure no estelionato. Como o cheque é título ao portador, posteriormente ao estelionato a vítima pode notar o crime contra ela praticado, e, não querendo suportar o prejuízo patrimonial, nada a impede de endossar a cártula e transmiti-la a outrem.
Assim sendo, fica nítido que tecnicamente não há falar em conflito aparente de leis, mas em autêntico concurso material de delitos. Portanto, se no rigor científico a súmula merece ser rejeitada, resta acreditar que a sua criação e manutenção se devem, exclusivamente, a motivos de política criminal, tornando a conduta cada vez mais próxima do âmbito civil, à medida que a pena pode ser, inclusive, reduzida pelo arrependimento posterior, benefício vedado ao crime de falso.
No entanto, devemos ser leais para advertir nosso leitor que em concursos públicos e exames de qualquer natureza é razoável utilizar a posição consagrada pela Súmula 17 do Superior Tribunal de Justiça, especialmente em provas objetivas. Nas provas dissertativas e orais, entretanto, é possível tecer críticas (moderadas e bem fundamentadas) ao entendimento dominante, caso sua posição acerca do assunto seja outra.
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, no tocante à confiança depositada nos documentos particulares, os quais se revestem de presunção relativa (iuris tantum) de veracidade.
A propósito, convém recordar que a natureza do documento levou o legislador a prever pena inferior ao crime de falsificação de documento particular, quando comparado à falsificação de documento público. Esta é a única diferença entre os delitos tipificados nos arts. 297 e 298 do Código Penal.62
É o documento particular falsificado, no todo ou em parte, bem como o documento particular verdadeiro alterado.
O conceito de documento particular deve ser obtido residualmente, ou seja, pelo critério da exclusão. Nesse contexto, documento particular é o não reconhecível, nem mesmo por exclusão, como público. Nas palavras de Nélson Hungria: “Documento particular é o formado sem intervenção de oficial ou funcionário público, ou de pessoa investida de fé pública”.63
Vale recordar que os documentos públicos nulos, em decorrência da não observância das formalidades legais, entram no rol dos documentos particulares.
A Lei 12.737/2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, incluiu o parágrafo único no art. 298 do Código Penal, para esclarecer que “equipara-se a documento particular o cartão de crédito ou débito”.64 Cuida-se de norma penal explicativa ou interpretativa, pois auxilia na compreensão do alcance e do conteúdo do art. 298, caput, do Código Penal.
Pouco importa se a instituição financeira responsável pela emissão do cartão constitui-se em pessoa jurídica de direito público ou de direito privado. Também é irrelevante a sua origem, nacional ou internacional.
Assim como no crime de falsificação de documento público, o art. 298 do Código Penal elenca duas condutas distintas: (a) falsificar, no todo ou em parte, documento particular; e (b) alterar documento particular verdadeiro. Passemos ao estudo de cada uma delas.
1.ª conduta: falsificar, no todo ou em parte, documento particular
O núcleo do tipo é “falsificar”, ou seja, fabricar um documento particular até então inexistente. A falsificação também é chamada de contrafação. A lei apresenta a expressão “no todo ou em parte”, indicando que a falsificação pode ser total ou parcial.
Na falsificação total, o documento é criado em sua integralidade (exemplo: o sujeito fabrica em seu escritório uma permissão para ingresso em determinada academia de ginástica).
Por sua vez, na falsificação parcial o agente acrescenta palavras, letras ou números ao objeto, sem estar autorizado a fazê-lo, fazendo surgir um documento parcialmente inverídico. Exemplo: “A” subtrai de uma empresa o formulário destinado à avaliação dos funcionários, e o preenche com diversos elogios para ajudar um amigo contratado temporariamente.
Lembre-se de que, se o sujeito tinha autorização para preencher o documento, mas nele inseriu dados falsos, deverá ser responsabilizado pelo crime de falsidade ideológica, tipificado no art. 299 do Código Penal.
2.ª conduta: alterar documento particular verdadeiro
O núcleo “alterar” equivale a modificar um documento particular verdadeiro, já existente, mediante a substituição do seu conteúdo com frases, palavras ou números que acarretem em mudança na sua essência. Exemplo: “A” muda os conceitos lançados em seu histórico universitário, visando sua aprovação no curso.
A falsificação – total ou parcial – e a alteração precisam se revestir de idoneidade para ludibriarem as pessoas em geral, assim como se verifica nos demais crimes contra a fé pública. Em síntese, a falsificação não pode ser grosseira, pois caso contrário estará excluído o falso, em face da ausência de potencialidade de dano, resultando na exclusão da tipicidade como decorrência do crime impossível (CP, art. 17), sem prejuízo da manutenção de algum delito patrimonial, especialmente o estelionato.
Cuida-se de crime comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. Não se admite a modalidade culposa.
A falsificação de documento particular para fins eleitorais caracteriza o crime específico definido no art. 349 da Lei 4.737/1965 – Código Eleitoral –, cuja redação é a seguinte:
Art. 349. Falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro, para fins eleitorais:
Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa.
Trata-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a falsificação, total ou parcial, do documento particular, ou com a alteração de documento particular verdadeiro, independentemente do efetivo uso do documento falso, da obtenção de vantagem ou da causação de prejuízo a alguém.
A falsificação de documento particular é crime não transeunte, pois deixa vestígios materiais. Portanto, é imprescindível o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal.
É cabível, em face do caráter plurissubsistente do delito, comportando o fracionamento do iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada.
Em face da pena mínima cominada (um ano), a falsificação de documento particular constitui-se em crime de médio potencial ofensivo, compatível com a suspensão condicional do processo, se presentes os demais requisitos exigidos pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
A falsificação de documento particular é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); não transeunte (deixa vestígios materiais); de forma livre (admite qualquer meio de execução); em regra comissivo; instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e normalmente plurissubsistente (a conduta pode ser fracionada em diversos atos).
O art. 1.º, incs. III e IV, da Lei 8.137/1990 disciplina crime específico (princípio da especialidade), atinente à falsificação de documento particular voltado à sonegação fiscal:
Art. 1.° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
(…)
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Em seus arts. 297 e 298 – falsificação de documento público e falsificação de documento particular –, o Código Penal se preocupa com a falsidade material. Em tais crimes, a nota característica é a elaboração fraudulenta do documento, mediante falsificação total ou parcial, ou então pela alteração de documento verdadeiro. Em síntese, o documento é adulterado em sua forma, em seu aspecto material. Exemplo: “A” fabrica um passaporte em sua residência.
No art. 299, sob a rubrica “falsidade ideológica”, o panorama é diverso. De fato, o documento é formalmente verdadeiro, mas seu conteúdo, a ideia nele lançada, é divergente da realidade. Não há contrafação ou alteração de qualquer espécie. O sujeito tem autorização para criar o documento, mas falsifica seu conteúdo.
Daí a razão de o crime de falsidade ideológica ser também conhecido como falso ideal, falso moral ou falso intelectual. Exemplo: O sujeito, desgastado em seu casamento, afirma perante o tabelião o estado civil de solteiro, fazendo inserir esta declaração em escritura pública, com a finalidade de prejudicar os direitos de sua esposa em futuro e eventual divórcio.
O ponto marcante da falsidade ideológica repousa no conteúdo falso lançado pela pessoa legitimada para a elaboração do documento. Logo, se vem a ser adulterada a assinatura do responsável pela emissão do documento, ou então efetuada assinatura falsa, ou finalmente rasurado ou modificado de qualquer modo seu conteúdo, estará caracterizada a falsidade material. Com maestria, Nélson Hungria sintetiza a distinção entre os crimes de falsidade material e de falsidade ideológica:
Fala-se em falsidade ideológica (ou intelectual), que é modalidade do falsum documental, quando à genuinidade formal do documento não corresponde a sua veracidade intrínseca. O documento é genuíno ou materialmente verdadeiro (isto é, emana realmente da pessoa que nele figura como seu autor ou signatário), mas o seu conteúdo intelectual não exprime a verdade. Enquanto a falsidade material afeta a autenticidade ou inalterabilidade do documento na sua forma extrínseca e conteúdo intrínseco, a falsidade ideológica afeta-o somente na sua ideação, no pensamento que as suas letras encerram.
A genuinidade não é garantia da veracidade. Como dizia Binding, se há documentos verazes que não são genuínos (ex.: a quitação que o ex-devedor contrafaz por haver perdido a que lhe foi entregue pelo ex-credor), também pode haver documentos genuínos que não são verazes. Neste último caso, dá-se a falsidade ideológica. Na falsidade material, o que se falsifica é a materialidade gráfica, visível do documento (e, portanto, simultânea e necessariamente, o seu teor intelectual); na falsidade ideológica, é apenas o seu teor intelectual.65
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, em relação à veracidade do conteúdo dos documentos em geral. No escólio de Magalhães Noronha:
O objeto jurídico é a fé pública, agora tutelada não quanto à genuinidade ou autenticidade do documento, mas quanto a sua veracidade. Os interesses sociais exigem evidentemente que os documentos sejam cercados de garantia e proteção, para merecerem confiança e produzirem os efeitos que as leis lhes conferem. São, pois, tutelados, não só contra os ataques a sua materialidade, mas também quanto ao teor ou conteúdo, e, pois, contra a falsidade material e ideológica.66
É o documento público ou particular.67
Nos termos do art. 4.º, caput, da Lei 1.060/1950: “A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.
Em razão do dispositivo legal, questiona-se: Há crime de falsidade ideológica na hipótese em que a parte insere ou faz inserir declaração falsa no pedido de assistência judiciária gratuita, alegando ser pobre na acepção jurídica do termo, quando na verdade poderia pagar as despesas processuais, sem prejuízo do sustento próprio ou da família?
Para o Supremo Tribunal Federal, não se caracteriza o crime definido no art. 299 do Código Penal, pois a “declaração passível de averiguação ulterior não constitui documento para fins penais”.68
Fácil notar, portanto, a filiação do Excelso Pretório ao entendimento de que não há falar em documento, para fins penais, nas situações em que o funcionário público tem a obrigação de verificar se a declaração do particular é verdadeira ou falsa, pois sua eficácia se submete a uma condição suspensiva, representada pela análise e posterior aprovação do representante do Estado. De fato, é possível impugnar o pedido de assistência judiciária de quem alega a situação de pobreza, razão pela qual o juiz pode indeferir o pedido, independentemente da declaração apresentada (Lei 1.060/1950, art. 6.º).
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu na mesma direção:
A Turma reiterou o entendimento de que a apresentação de declaração de pobreza com informações falsas para obtenção da assistência judiciária gratuita não caracteriza os crimes de falsidade ideológica ou uso de documento falso. Isso porque tal declaração é passível de comprovação posterior, de ofício ou a requerimento, já que a presunção de sua veracidade é relativa. Além disso, constatada a falsidade das declarações constantes no documento, pode o juiz da causa fixar multa de até dez vezes o valor das custas judiciais como punição (Lei n. 1.060/1950, art. 4.º, § 1.º).69
As petições em geral, encartadas em autos de processos judiciais ou administrativos, não se amoldam ao conceito de documento para fins penais.
Com efeito, documento é o instrumento idôneo a provar um fato independentemente de qualquer verificação. Exemplificativamente, se uma pessoa, na condução de veículo automotor, apresenta ao policial rodoviário sua carteira nacional de habilitação, o funcionário público não precisará verificar o conteúdo do documento.
Nas petições, contudo, são inseridas meras alegações, as quais embasam um pedido. Seu teor deve ser analisado pelo destinatário, e o requerimento somente será acolhido se estiver devidamente amparado em provas. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal: “Petição de advogado, dirigida ao Juiz, contendo a retratação de testemunha registrada em cartório, não é considerada documento idôneo para os fins de reconhecimento do tipo penal previsto no art. 299 do Código Penal”.70
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça caminha em idêntica direção:
A petição em processo administrativo só faz prova do seu próprio teor; não, porém, da veracidade dos fatos alegados. Por isso, de regra – isto é, salvo nos casos excepcionais em que a lei imputa ao requerente o dever de veracidade – a inserção em petição de qualquer espécie da alegação de um fato inverídico não pode constituir falsidade ideológica. Precedentes do STJ e do STF.71
O art. 299, caput, do Código Penal contempla duas condutas distintas. Vejamos cada uma delas.
1.ª conduta – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante
O núcleo do tipo é “omitir”, no sentido de deixar de inserir ou não fornecer a declaração que devia constar em documento público ou privado. Trata-se, nessa hipótese, de crime omissivo próprio ou puro, pois a lei descreve uma conduta negativa, um deixar de fazer. Exemplo: “A”, ao celebrar compromisso de compra e venda de imóvel de sua propriedade e receber como sinal determinada quantia em dinheiro, deixa de mencionar a existência de hipoteca incidente sobre o bem.
2.ª conduta – Nele (documento público ou particular) inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante
Aqui é previsto um crime comissivo. E, nesse caso, a falsidade ideológica divide-se em imediata (ou direta) e mediata (ou indireta).
Falsidade ideológica imediata ou direta é aquela em que o sujeito, por conta própria, insere no documento público ou particular a declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita. A mesma pessoa que elabora o documento lança em seu conteúdo a declaração inverídica (falsa) ou, ainda que verdadeira, diferente da que deveria constar (diversa da que devia ser escrita). Há, nesse último caso, substituição de uma declaração verdadeira por outra também verdadeira, mas que não deveria ser inscrita no documento. Exemplo: “A”, com a finalidade de ser aprovado em processo seletivo para contratação de professor universitário, declara falsamente em seu currículo o título de doutor em Direito.
Falsidade ideológica mediata ou indireta, por sua vez, é aquela em que o agente se vale de um terceiro para fazer inserir no documento público ou particular a declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita. A conduta criminosa pode ser praticada verbalmente ou por escrito, razão pela qual nem sempre se exige a presença do declarante perante a pessoa que elabora o documento. Exemplo: “A” encaminha procuração ao seu advogado, solicitando a celebração de compromisso de compra e venda de bem de sua propriedade com informações falsas, no intuito de prejudicar o promitente comprador.
Em qualquer das condutas, omissiva ou comissiva, a falsidade deve relacionar-se a fato juridicamente relevante, compreendido como aquele que, isoladamente ou em conjunto com outros fatos, apresente significado direto ou indireto para constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, e por este motivo o autor da declaração está obrigado a declarar a verdade.72
Destarte, não há falar em falsidade ideológica quando alguém declara falsamente um fato irrelevante (exemplo: informações incorretas em fichas de pesquisas sobre os alimentos normalmente consumidos), ou ainda algum fato totalmente incompatível com a realidade (exemplo: o sujeito declara à funcionária do IBGE, responsável pelo censo, ser proprietário de diversas estrelas e de uma parcela da Lua). Nessas hipóteses, não há potencialidade de dano à fé pública, nem idoneidade para ludibriar as pessoas em geral. A falsificação grosseira acarreta a aplicação das regras atinentes ao crime impossível (CP, art. 17).
Na hipótese em que um papel assinado em branco73 é preenchido por outra pessoa, contra a vontade do signatário, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, três situações podem ocorrer. Analisemos cada uma delas.
a) Se o papel assinado em branco chegou às mãos do sujeito de forma legítima, e este, possuindo autorização para fazê-lo, o preencheu de maneira diversa da convencionada com o signatário, estará configurado o crime de falsidade ideológica. Com efeito, o agente praticou a conduta de “inserir declaração diversa da que devia ser escrita”;
b) O papel assinado em branco foi obtido de forma ilícita (exemplos: furto, roubo, apropriação indébita etc.), e o agente o preencheu sem autorização para tanto. Cuida-se de falsificação de documento (público ou particular), em decorrência da contrafação, que pode ser total ou parcial, conforme seja preenchido todo o documento ou apenas parte dele; e
c) O papel assinado em branco entrou licitamente na posse do agente, mas posteriormente o signatário revogou a autorização para seu preenchimento, ou então cessou por qualquer motivo a obrigação ou faculdade de preenchê-lo. Trata-se novamente de falsificação de documento, público ou particular.
E se o agente recebeu o documento do signatário para preenchê-lo falsamente, mas vem a completá-lo em consonância com a verdade? Nesse caso, evidentemente, não há crime de falsidade, material ou ideológica. O sujeito não cometeu abuso. Ao contrário, evitou que um abuso fosse praticado.74
Vale lembrar que o papel assinado em branco não é documento para fins penais, em face da ausência de conteúdo. Torna-se documento, contudo, a partir do seu preenchimento, assumindo relevância perante o Direito Penal.
As hipóteses de simulação encontram-se previstas no art. 167, § 1.º, do Código Civil:
(…)
§ 1.º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
Simular é esconder a realidade. No âmbito jurídico, é a prática de ato ou negócio que esconde a real intenção. Como destaca Sílvio de Salvo Venosa:
A característica fundamental do negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a declaração. Há, na verdade, oposição entre o pretendido e o declarado. As partes desejam mera aparência do negócio e criam ilusão de existência. Os contraentes pretendem criar aparência de um ato, para assim surgir aos olhos de terceiros.75
É fácil notar que a simulação implica a inserção de declaração falsa ou diversa da que devia constar em documento público ou particular. Surge então uma indagação: A simulação, além de constituir-se em causa de nulidade dos negócios jurídicos, também configura o crime de falsidade ideológica?
A resposta é positiva, salvo se o fato simulado não apresentar relevância jurídica, expressamente exigida pelo art. 299, caput, do Código Penal (“fato juridicamente relevante”). Entretanto, também há hipóteses em que a simulação fraudulenta, da qual resulte indevida vantagem econômica, acarreta crimes contra o patrimônio, a exemplo da duplicada simulada (CP, art. 172) e da fraude à execução (CP, art. 179), entre outros.
No entanto, se o agente que se vale da simulação para alcançar diretamente pretensão legítima, sem socorrer-se do Poder Judiciário, estará caracterizado o crime de exercício arbitrário das próprias razões, definido no art. 345 do Código Penal. Assim já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:
A simulação de dívida objetivando alcançar de imediato a meação de certo bem configura não o crime de falsidade ideológica, mas o do exercício arbitrário das próprias razões. A simulação, a fraude, ou outro qualquer artifício utilizado corresponde a meio de execução, ficando absorvido pelo tipo do artigo 345 do Código Penal no que tem como elemento subjetivo o dolo específico, ou seja, o objetivo de satisfazer pretensão, legítima ou ilegítima.76
A falsidade ideológica é crime comum ou geral, podendo ser cometido por qualquer pessoa.
Entretanto, se o agente é funcionário público e pratica o crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena de sexta parte, nos termos do parágrafo único do art. 299 do Código Penal. Veja-se que apenas a posição de funcionário público não é suficiente para incidência da causa de aumento da pena, pois a lei também reclama seja o delito cometido em razão das facilidades proporcionadas pelo cargo público.
A propósito, é perfeitamente possível a realização, pelo particular, da falsidade ideológica de documento público. Exemplificativamente, é o que se verifica quando alguém obtém um segundo Cadastro das Pessoas Físicas no Ministério da Fazenda (CPF/MF), mediante a declaração de nome diverso do verdadeiro.77
Na falsidade ideológica de documento público, nada impede o concurso de pessoas entre o particular e o funcionário público, nas situações em que este tem conhecimento da conduta criminosa daquele, e ainda assim formaliza o documento. Exemplo: “A” comparece ao Cartório de Notas para lavrar escritura de aquisição de bem imóvel, declarando-se solteiro. O tabelião, ciente da falsidade da declaração, realizada com o propósito de prejudicar o cônjuge virago em futura ação de divórcio, insere na escritura o estado civil ilicitamente afirmado por “A”.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo, acrescido de um especial fim de agir (elemento subjetivo específico), representado pela expressão “com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”.78
Como o dolo abrange a ciência da falsidade da declaração, não há crime quando o particular presta declaração perante o funcionário público desconhecendo sua falsidade. Todavia, se o funcionário público perceber a falsidade e elaborar o documento, somente ele será responsabilizado pelo delito, em face do seu dever legal de impedir a inserção de declaração falsa em documento público, com fundamento no art. 13, § 2.º, a, do Código Penal.
Não se admite a modalidade culposa.
Se a falsidade ideológica for cometida para fins eleitorais, incidirá o crime específico definido no art. 350 da Lei 4.737/1965 – Código Eleitoral:
Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:
Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.
Parágrafo único. Se o agente da falsidade documental é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo ou se a falsificação ou alteração é de assentamentos de registro civil, a pena é agravada.
Há crimes contra a ordem tributária que têm como meio de execução a falsidade ideológica. É o que se verifica no art. 1.º, incisos I e II, da Lei 8.137/1990:
Art. 1.º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
(…)
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Nesses casos, o delito contra a fé pública é absorvido, sob pena de bis in idem, pois o falso ideal seria duplamente punido, como meio de execução e como crime autônomo. O conflito aparente de leis penais é superado pelo princípio da consunção. Na linha de raciocínio do Supremo Tribunal Federal:
Na espécie, o paciente, domiciliado no Estado de São Paulo, teria obtido o licenciamento de seu veículo no Estado do Paraná de modo supostamente fraudulento – indicação de endereço falso –, com o fim de pagar menos tributo, haja vista que a alíquota do IPVA seria menor. (…) Reputou-se claro que o delito alegadamente praticado seria aquele definido no art. 1.º da Lei 8.137/90, tendo em conta que o crimen falsi teria constituído meio para o cometimento do delito-fim, resolvendo-se o conflito aparente de normas pela aplicação do postulado da consunção, de tal modo que a vinculação entre a falsidade ideológica e a sonegação fiscal permitiria reconhecer, em referido contexto, a preponderância do delito contra a ordem tributária.79
Mas não há falar em absorção quando a falsidade ideológica é cometida após a consumação do crime tributário, com o propósito de ocultar sua prática.80 Exemplo: “A” dolosamente lança despesas médicas inexistentes em sua declaração de imposto de renda. Depois de constatada a fraude em processo administrativo e instaurado inquérito policial para apuração do crime contra a ordem tributária, “A” pede a um médico a emissão de recibo falso, no que vem a ser atendido.
Trata-se de crime formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado. Consuma-se com a omissão, em documento público ou particular, da declaração que dele devia constar, ou então com a inserção em tais objetos, direta ou determinada por outrem, da declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.
Não se exige o efetivo uso do documento falso, nem a obtenção de qualquer vantagem ou a causação de prejuízo a alguém.
Na falsidade ideológica, o documento é materialmente verdadeiro, mas seu conteúdo é forjado, pois a ideia nele veiculada não corresponde à realidade. Não há modificação na estrutura do documento (público ou particular), pois ele é elaborado, preenchido e assinado por quem estava autorizado a fazê-lo.
Consequentemente, não há espaço para a prova pericial, pois a falsidade ideológica não deixa vestígios materiais, como exigido pelo art. 158 do Código Penal. A comprovação do crime somente pode ser efetuada pela verificação dos fatos a que se refere o teor do documento. É o que se dá, exemplificativamente, na situação em que a autoridade de trânsito insere na CNH de alguém a habilitação na categoria “D” – condutor de veículo motorizado utilizado no transporte de passageiros, cuja lotação exceda a oito lugares, excluído o do motorista –, quando na verdade a pessoa estava habilitada unicamente na categoria “B” – condutor de veículo motorizado, com no mínimo quatro rodas, cujo peso bruto total não exceda a três mil e quinhentos quilogramas e cuja lotação não exceda a oito lugares, excluído o do motorista.81
Nesse caso, a perícia, além de desnecessária, seria manifestamente inútil, pois o espelho do documento é verdadeiro, e seu preenchimento, embora abusivo, foi efetuado pela pessoa legalmente autorizada.
Na modalidade omissiva – “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar” – não se admite o conatus. Cuida-se, nessa hipótese, de crime omissivo próprio ou puro, e unissubsistente. Como o tipo penal descreve uma omissão, ou o sujeito omite a declaração, e o delito estará consumado, ou corretamente efetua a declaração, e seu comportamento será indiferente ao Direito Penal.
Todavia, nas modalidades comissivas – “inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita” – a tentativa é cabível, em face do caráter plurissubsistente do delito, permitindo o fracionamento do iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada.
A falsidade ideológica é crime de médio potencial ofensivo. Pouco importa se o documento falsificado é público ou privado, pois em ambos os casos a pena mínima é de um ano, ensejando o cabimento da suspensão condicional do processo, desde que presentes os demais requisitos elencados pelo art. 89 da Lei 9.099/1995.
A falsidade ideológica é crime simples (ofende um único bem jurídico); comum (pode ser cometido por qualquer pessoa); formal, de consumação antecipada ou de resultado cortado (consuma-se com a prática da conduta legalmente descrita, independentemente da superveniência do resultado naturalístico); transeunte (não deixa vestígios materiais); de forma livre (admite qualquer meio de execução); omissivo próprio ou puro (na modalidade “omitir”) ou em regra comissivo (nos núcleos “inserir” e “fazer inserir”); instantâneo (consuma-se em um momento determinado, sem continuidade no tempo); unissubjetivo, unilateral ou de concurso eventual (pode ser cometido por uma única pessoa, mas admite o concurso); e unissubsistente (no núcleo “omitir”) ou plurissubsistente (nas variantes “inserir” e “fazer inserir”).
Como preceitua o parágrafo único do art. 299 do Código Penal: “Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte”.
São causas de aumento da pena, suscetíveis de aplicação na terceira e derradeira etapa da dosimetria da pena privativa de liberdade, em compasso com o critério trifásico acolhido pelo art. 68, caput, do Código Penal.
Como já foi estudado no item 5.7.4.6., a falsidade ideológica é crime comum ou geral. Todavia, se o sujeito ativo for funcionário público, e cometer o crime prevalecendo-se do cargo (requisitos cumulativos), a pena será aumentada de sexta parte.
A pena será igualmente aumentada de sexta parte quando a falsificação ou alteração recair sobre assentamento de registro civil. Nesse caso, o objeto material evidentemente constitui-se em documento público. No tocante ao registro de pessoas naturais, assim reza o art. 29, caput e § 1.º da Lei 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos:
Art. 29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais:
I – os nascimentos;
II – os casamentos;
III – os óbitos;
IV – as emancipações;
V – as interdições;
VI – as sentenças declaratórias de ausência;
VII – as opções de nacionalidade;
VIII – as sentenças que deferirem a legitimação adotiva.
§ 1.º Serão averbados:
a) as sentenças que decidirem a nulidade ou anulação do casamento, o desquite e o restabelecimento da sociedade conjugal;
b) as sentenças que julgarem ilegítimos os filhos concebidos na constância do casamento e as que declararem a filiação legítima;
c) os casamentos de que resultar a legitimação de filhos havidos ou concebidos anteriormente;
d) os atos judiciais ou extrajudiciais de reconhecimento de filhos ilegítimos;
e) as escrituras de adoção e os atos que a dissolverem;
f) as alterações ou abreviaturas de nomes.
O legislador não se satisfaz com a pena maior cominada à falsidade ideológica de documento público, e impõe uma causa de aumento para a falsificação ou alteração de assentamento de registro civil.
O fundamento do tratamento penal mais severo repousa na relevância dos valores atacados pela conduta criminosa. De fato, o interesse público exige sejam tais documentos cercados de máxima tutela penal, em face da segurança jurídica por eles proporcionada.
Em relação ao termo inicial da prescrição da pretensão punitiva, o Código Penal acolheu, como regra, a teoria do resultado. Como se sabe, normalmente a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr do dia em que o crime se consumou (CP, art. 111, inc. I). Essa sistemática, sem dúvida alguma, é a mais favorável ao réu.
Contudo, existem algumas exceções, expressamente previstas em lei. E uma delas diz respeito aos crimes de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, nos quais o termo inicial da prescrição da pretensão punitiva é a data em que o fato se tornou conhecido (CP, art. 111, inc. V), pouco importando a data da sua realização. Como destaca Magalhães Noronha:
Explica-se o cuidado da lei, pois trata-se de crime dissimulado ou oculto que, em regra, tardiamente se torna conhecido, de modo que se o lapso prescricional fosse contado da consumação, geralmente se teria esgotado quando se tornasse sabido o delito.82
O conhecimento do fato, exigido pela lei, refere-se à autoridade pública que tenha poderes para apurar, processar ou punir o responsável pelo delito, aí se incluindo o Delegado de Polícia, o membro do Ministério Público e o órgão do Poder Judiciário.83 Prevalece o entendimento de que não é necessária a ciência formal do crime (notícia do delito perante o Poder Público), bastando a de cunho presumido, relativa à notoriedade do fato.
Se a falsificação do registro civil voltar-se à inscrição de nascimento inexistente, estará caracterizado o crime tipificado no art. 241 do Código Penal:
Art. 241. Promover no registro civil a inscrição de nascimento inexistente:
Pena – reclusão, de dois a seis anos.
O registro de nascimento inexistente, inserido no Título VII da Parte Especial do Código Penal – Dos crimes contra a família, mais precisamente em seu Capítulo II – Dos crimes contra o estado de filiação, representa uma forma específica de falsidade ideológica incidente sobre o assentamento de registro civil, pois o sujeito faz inserir em documento público declaração falsa, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante. O legislador, entretanto, preferiu conferir maior valor à proteção da família. O conflito aparente de leis penais é solucionado pelo princípio da especialidade.
No crime de registro de filho alheio como próprio, conhecido como adoção à brasileira, a conduta consiste em registrar em nome próprio o filho de outrem. Nesse caso, a criança realmente existe, ao contrário do que se verifica no delito previsto no art. 241 do Código Penal, e o agente busca fraudar o procedimento legal inerente à adoção.
Trata-se, novamente, de falsidade ideológica relativamente ao assentamento de registro civil, mas o legislador optou por criar um delito autônomo, no âmbito dos crimes contra a família, tutelando o estado de filiação. E, mais uma vez, o conflito aparente de leis se resolve com a utilização do princípio da especialidade.
A falsidade ideológica, via de regra, é de competência da Justiça Estadual. Contudo, será competente a Justiça Federal quando o crime for praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, nos termos do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal, a exemplo da conduta cometida no âmbito da Justiça do Trabalho. Na linha da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
A falsidade ideológica em processo trabalhista configura afronta à Justiça do Trabalho, cuja competência para julgamento é da Justiça Federal, nos temos do que preceitua o enunciado 165 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça.84
Na identificação da competência é fundamental estabelecer a diferença entre a falsificação ideológica (CP, art. 299) e o uso do documento falso (CP, art. 304), pois este último crime normalmente tem como destinatário um particular.85
A falsificação de Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é crime de competência da Justiça Estadual. Embora seja documento válido em todo o território nacional, sua emissão é de incumbência da autoridade estadual de trânsito, a teor da regra contida no art. 22, inc. II, da Lei 9.503/1997 – Código de Trânsito Brasileiro.
Por último, vale recordar o teor das Súmulas 62 e 104 do Superior Tribunal de Justiça, assim redigidas:
Súmula 62: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsa anotação na carteira de Trabalho e Previdência Social atribuído a empresa privada”.
Súmula 104: “Compete à Justiça Estadual o processo e julgamento dos crimes de falsificação e uso de documento falso relativo a estabelecimento particular de ensino”.
O requerimento de habilitação para o casamento depende de vários requisitos, entre eles a declaração de estado civil dos nubentes (CC, art. 1.525, inc. IV), com a finalidade de avaliar a presença de algum impedimento matrimonial.
Se, nesse momento, uma pessoa já casada falsear a verdade, declarando o estado civil de solteiro, quais crimes deverão ser a ela imputados?
A resposta precisa levar em conta duas situações distintas que podem ocorrer na prática:
a) se o casamento não se concretizou, a habilitação de casamento funciona como ato preparatório do crime de bigamia. Logo, estará caracterizado unicamente o crime de falsidade ideológica; e
b) se o casamento se aperfeiçoou, o sujeito será responsabilizado por bigamia (CP, art. 235) e falsidade ideológica, em concurso material, pois tais delitos ofendem bens jurídicos diversos e consumam-se em momentos diferentes.
O ato de declarar ou atestar falsamente prestação de serviço para fim de instruir pedido de remição, com a finalidade de abater parte da pena em benefício do condenado sujeito ao regime fechado ou semiaberto, configura o crime de falsidade ideológica, como se extrai do art. 130 da Lei 7.210/1984 – Lei de Execução Penal: “Constitui o crime do artigo 299 do Código Penal declarar ou atestar falsamente prestação de serviço para fim de instruir pedido de remição”.
Não há regra explícita na Lei de Execução Penal no tocante à remição pelo estudo, instituída pela Lei 12.433/2011. É evidente, contudo, a tipificação da falsidade ideológica na conduta de atestar falsamente qualquer atividade estudantil, visando o desconto da pena privativa de liberdade em regime fechado, semiaberto ou aberto, ou mesmo do livramento condicional (LEP, art. 126, § 6.º).
Os arts. 9.º e 10 da Lei 7.492/1986 – Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional contêm modalidades específicas de falsidade ideológica, nos seguintes termos:
Art. 9.º Fraudar a fiscalização ou o investidor, inserindo ou fazendo inserir, em documento comprobatório de investimento em títulos ou valores mobiliários, declaração falsa ou diversa da que dele deveria constar:
Pena – Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.
Art. 10. Fazer inserir elemento falso ou omitir elemento exigido pela legislação, em demonstrativos contábeis de instituição financeira, seguradora ou instituição integrante do sistema de distribuição de títulos de valores mobiliários:
Pena – Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.
O art. 171 da Lei 11.101/2005 – Lei de Falências – prevê uma modalidade específica de falsidade ideológica no processo de falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, com a rubrica “indução a erro”, cuja redação é a seguinte:
Art. 171. Sonegar ou omitir informações ou prestar informações falsas no processo de falência, de recuperação judicial ou de recuperação extrajudicial, com o fim de induzir a erro o juiz, o Ministério Público, os credores, a assembleia-geral de credores, o Comitê ou o administrador judicial:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
O art. 49, incisos II e V, do Decreto 5.452/1943 – Consolidação das Leis do Trabalho – contempla formas específicas de falsidade ideológica, aplicando-se inclusive as penas cominadas no art. 299 do Código Penal:
Art. 49. Para os efeitos da emissão, substituição ou anotação de Carteiras de Trabalho e Previdência Social, considerar-se-á crime de falsidade, com as penalidades previstas no art. 299 do Código Penal:
(…)
II – Afirmar falsamente a sua própria identidade, filiação, lugar de nascimento, residência, profissão ou estado civil e beneficiários, ou atestar os de outra pessoa;
(…)
V – Anotar dolosamente em Carteira de Trabalho e Previdência Social ou registro de empregado, ou confessar ou declarar em juízo ou fora dele, data de admissão em emprego diversa da verdadeira.
O bem jurídico penalmente tutelado é a fé pública, relativamente à autenticação de firma ou letra.
Na verdade, o art. 300 do Código Penal, com a rubrica “falso reconhecimento de firma ou letra”, veicula uma modalidade especial de falsidade ideológica, cometida no exercício da função pública de autenticação de documentos públicos e privados.
Com efeito, o art. 300 do Código Penal não incrimina a falsidade material inerente ao carimbo ou chancela de reconhecimento da firma ou letra, pois esta conduta implicaria a falsificação de documento público. Pune-se o falso intelectual realizado pelo funcionário público no desempenho da função pública de atestar a veracidade de documentos submetidos à sua apreciação.
É a firma ou letra falsa.
Firma é a assinatura de alguém, por extenso ou abreviada; letra é o sinal gráfico representativo de vocábulos da linguagem escrita.
Não há crime na hipótese de firma ou letra verdadeiras, ainda que o funcionário público tenha deixado de assistir à sua aposição, ou não tenha efetuado a comparação com o padrão arquivado em cartório.
O núcleo do tipo é “reconhecer”, no sentido de declarar, afirmar, proclamar, autenticar como verdadeira firma ou letra que não o sejam. No reconhecimento, o funcionário atesta com fé pública que a assinatura ou letra provém do punho de determinada pessoa. A falsidade diz respeito à autenticidade da assinatura ou letra, e não ao teor do documento. Nas palavras de Fernando Capez:
Geralmente, para poder certificar-se que a letra (manuscrito) ou firma (assinatura) do documento realmente proveio do punho daquele que consta como seu redator ou subscritor, os contratantes, por exemplo, submetem o contrato assinado ao tabelião para que este compare a letra ou assinatura constante do contrato com as assinaturas constantes de uma ficha de registro de firmas arquivada em cartório, firma esta justamente destinada a proporcionar tal comparação gráfica. Uma vez realizada a comparação, o tabelião apõe um carimbo sobre o documento em que declara reconhecer a assinatura, isto é, atesta sua autenticidade, colocando em seguida sua assinatura. Caso o tabelião ou outro funcionário público incumbido dessa tarefa ateste falsamente a autenticidade da letra ou firma, tal conduta configurará o crime em exame.86
O reconhecimento é denominado autêntico ou por certeza quando a aposição da letra ou firma é realizada na presença do tabelião ou serventuário. Por sua vez, é semiautêntico nas situações em que o signatário ou redator comparece à presença do tabelião e afirma que a assinatura ou letra de certo documento é de sua autoria.
Entretanto, o reconhecimento mais frequente é o que se dá por semelhança, ou seja, a autenticação é efetuada pelo tabelião ou serventuário utilizando-se do modelo contido no “cartão de firma” que a pessoa possui arquivado em cartório.
Fala-se, finalmente, em reconhecimento indireto na hipótese em que duas ou mais testemunhas afirmam se tratar da assinatura ou letra de pessoa diversa.
Cuida-se de crime próprio ou especial, pois somente pode ser cometido pelo funcionário público dotado de fé pública, ou seja, com atribuição para o reconhecimento de firma ou letra como verdadeiras (exemplos: tabeliães e agentes consulares). É irrelevante o local da prática do delito, que estará configurado mesmo que a autenticação da firma ou documento seja efetuada fora da repartição pública ou do cartório.
Como o tipo penal contém a expressão “no exercício da função pública”, se o sujeito, embora funcionário público, encontrar-se afastado das suas funções por qualquer motivo (exemplos: licenças, férias, etc.), ou não possuir competência para a prática do ato, seu comportamento não poderá ensejar o reconhecimento do crime em análise, e sim o delito de falsidade ideológica (CP, art. 299).
De outro lado, se o reconhecimento da firma ou letra for executado por um particular, mediante a falsificação da assinatura do funcionário público com atribuição para tal mister, a ele será imputado o crime de falsificação de documento público (CP, art. 297) ou de documento particular (CP, art. 298).
O falso reconhecimento de firma ou letra é crime próprio (ou especial), e, portanto, compatível com o concurso de pessoas, tanto na modalidade coautoria como na participação. Entretanto, na prática, duas situações devem ser diferenciadas.
1.ª situação: O falsário submete o documento à autenticação
Se o falsificador do documento apresentá-lo ao funcionário público para autenticação, e este último, ciente da falsidade da firma ou letra, reconhecê-lo como verdadeiro, dois crimes distintos serão visualizados: (a) falsificação de documento, público ou particular (CP, arts. 297 ou 298), para o falsário;87 e (b) falso reconhecimento de firma ou letra (CP, art. 300), para o funcionário público.
2.ª situação: Terceira pessoa submete o documento à falsificação
Se uma pessoa qualquer, diversa do falsário, apresentar ao funcionário público o documento falsificado para autenticação, e este último, ciente da sua origem ilícita, reconhecer a firma ou letra como verdadeira, ambos responderão, em concurso, pelo crime tipificado no art. 300 do Código Penal.
Se o agente se revestir da condição de perito, com atribuição para realizar exames grafológicos ou grafotécnicos em documentos, estará caracterizado o delito de falsa perícia (CP, art. 342). O conflito aparente de normas penais é solucionado pelo princípio da especialidade.
É o Estado e, mediatamente, a pessoa física ou jurídica prejudicada pela conduta criminosa.
É o dolo, independentemente de qualquer finalidade específica. O crime é compatível com o dolo eventual, na hipótese em que o funcionário público, na dúvida acerca da veracidade da firma ou letra, ainda assim as reconhece como autênticas.
Não se admite a modalidade culposa. Destarte, o fato é atípico no tocante ao tabelião que se omite em seu dever funcional de fiscalizar os atos praticados pelos seus funcionários, ensejando o falso reconhecimento de firma falsa, sem prejuízo da responsabilidade civil e administrativa.88
Se a conduta for praticada com fins eleitorais, estará caracterizado o crime específico (princípio da especialidade) definido no art. 352 da Lei 4.737/1965 – Código Eleitoral:
Art. 352. Reconhecer, como verdadeira, no exercício da função pública, firma ou letra que o não seja, para fins eleitorais:
Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular.