Nas duas faces de Eva/
A bela e a fera/
Um certo sorriso de quem nada quer/
Sexo frágil, não foge à luta/
E nem só de cama vive a mulher//
Por isso não provoque/
É cor de Rosa-choque


“Cor de Rosa-choque”

(Roberto de Carvalho e Rita Lee)






















Capítulo 2

Mulheres e TDA



UM PREÇO MUITO ALTO A SER PAGO E A
VIA-CRÚCIS ANTES DO DIAGNÓSTICO ACERTADO: A RAINHA DO LAR EM XEQUE...

Todo dia era sempre a mesma coisa. Mal começava a dar sua aula, a professora se via às voltas com as reações em cadeia provocadas na classe por Flavinho. Aquele menino endiabrado e, ainda assim, adorável, apelidado pelos colegas de “O Pestinha”, nem tanto por ter o mesmo cabelo liso e acobreado do protagonista do filme homônimo, mas sim por apresentar o mesmo comportamento. Ou melhor, pela falta dele.

Seus movimentos eram mais rápidos do que o olhar da professorinha podia acompanhar, restando a ela sentir aquele “ventinho” que provocava por onde passava. Flavinho causava enorme ansiedade à pobre “tia”, que, além de todos os afazeres, ainda precisava localizar o menino em aula, já que sentado quieto em sua carteira certamente não estaria. Isso sem falar na bagunça generalizada, nos “crashs”, “tums” e “aaiiis” que faziam seu coração disparar.

Sim, ela já tinha ouvido falar em meninos assim na faculdade de pedagogia. Ele só podia ser hiperativo! Precisava falar com a psicopedagoga da escola, pois devia ter o chamado transtorno do deficit de atenção.

Totalmente preocupada em pôr fim à guerrinha de bolinhas de papel iniciada por Flavinho, a jovem professora estava alheia por completo à menina sentada na fila da parede, lá pelo meio da sala, olhando pensativa pela janela e que parecia não se dar conta da divertida bagunça que campeava entre seus coleguinhas. Todos os dias eram assim e aparentemente não havia por que se preocupar com aquela tranquila menininha, que mal se mexia na cadeira. Mas o que a professora não sabia era que, por debaixo da antiga carteira escolar de madeira escura, inteiriça, um par de pezinhos balançava irrequieto, na mesma velocidade dos pensamentos de sua dona:

...adoraria estar cavalgando sobre aquela nuvem. Ela parece um camelo do deserto. Ou seria um dro... um dromedário... Ah, não sei! Mas um tem duas corcundas, outro tem uma. O daquela nuvem só tem uma. E deve ser bem macia, tipo algodão... e eu veria tudo pequenino lá de cima...

Em seguida, os olhos da garotinha captaram algo dourado movendo-se por sobre o muro da escola, lá embaixo. “Nossa! Nunca vi um gato tão gordo! E amarelo! E lindo! Parece o Pikachu! Como naquele episódio em que ele pulava a cerca...”

A menininha sonhadora tinha os movimentos do corpo um tanto contidos, mas sua mente saltava rapidamente de um devaneio a outro, ainda mais veloz que as perninhas incansáveis de seu colega “pestinha”. Seu nome só era lembrado na hora da chamada. Absorta em sua fértil imaginação, ela estava alheia ao ditado que a jovem professora começava a passar. Por causa disso, seria mais tarde duramente repreendida em casa e aceitaria de pronto todos os adjetivos com que seus pais a definiam: preguiçosa, relaxada, “abilolada”.

Invisível para sua professora, que, preocupada demais com Flavinho, só a notava momentaneamente quando percebia sua desatenção aos deveres em sala de aula, ela atravessaria os anos sofrendo com sua distração crônica. Ainda que criativa, perderia autoestima à medida que ganharia altura e peso. E hormônios.

Seu colega Flavinho, diagnosticado precocemente, não precisou passar pela mesma carga de sofrimento.

“Passando batido”: o TDA feminino

Diferentemente dos homens, mulheres com TDA podem muitas vezes passar incógnitas aos olhos mais atentos. Entre elas, predomina o tipo sem hiperatividade, ao contrário de seus pares masculinos. Tal diferença, determinada por particularidades biológicas dos sexos e aliada ao componente cultural, pode contribuir para a aparente superioridade numérica da população masculina entre os que têm o diagnóstico de TDA.

Sabe-se que para cada mulher com TDA, em média, há três homens, segundo estudos recentes (esta proporção já foi considerada de cinco para um, em média). No entanto, permanece a dúvida se o TDA é realmente mais frequente em homens ou se as mulheres estão sendo subdiagnosticadas. Antes de as pesquisas lançarem maior luz sobre o tipo não hiperativo, meninas talvez até pudessem ser diagnosticadas como portadoras do transtorno do deficit de atenção, se fossem do tipo hiperativo.

O tipo hiperativo é o menos frequente na população feminina, mas, assim como entre os meninos, as meninas mais travessas dificilmente passam despercebidas. Ironicamente, isso poderia ser chamado de sorte. Elas podem ser precocemente diagnosticadas e poupadas da tortuosa via-crúcis que suas semelhantes do tipo desatento irão atravessar, até descobrirem a causa de tanta confusão em suas vidas: a desorganização, os esquecimentos, a sensação de serem como ETs abandonadas à própria sorte, sem jamais conseguirem se adaptar a este planeta cheio de horários a cumprir, tarefas meticulosas, prazos, obrigações e filhos.

O preço a ser pago, quando o diagnóstico de TDA não é feito, é bastante alto para uma mulher. Diferentemente dos homens, das mulheres se espera que sejam atentas, calmas e dedicadas. Que sejam organizadas e seus gestos delicados, atributos indispensáveis ao papel de boa esposa e boa mãe. Se não forem assim tão caprichosas e prendadas, elas vergam sob o peso da crítica e do julgamento externo.

Aliás, antes mesmo de chegarem à vida adulta, já sofrem com as constantes reprimendas. Sua letra não é tão benfeita quanto à da colega impecavelmente engomadinha do lado. Seu caderno não é muito organizado. Sua mochila contém um amontoado de papeizinhos amassados, lascas de lápis apontados, canetas sem tampas, tampas sem canetas. Com ou sem canetas, todas as tampas mordidinhas. Sua dificuldade em se organizar e se concentrar gera intensa ansiedade e depressão, não só pela condenação implícita ou explícita no escrutínio de familiares, professores e colegas, mas também pelo próprio desconforto e prejuízo que estas características em si já carregam. Conforme a menina vai crescendo, tornando-se uma adolescente e mulher, aumenta a carga de responsabilidade e a exigência das tarefas que deva cumprir, seja no âmbito acadêmico, seja no profissional.

A dificuldade em manter-se atenta, concentrada e levar seus afazeres a cabo pode ser agravada pelo grau de complexidade e responsabilidade crescente, inerente às ocupações de um ser humano adulto. Mas, agora, sendo adulta, a mulher com TDA não pode mais contar com a complacência que costuma ser dispensada às crianças. Ao contrário, se ela já for mãe, deverá ser capaz de dispensar tal complacência, caso queira ser considerada uma boa mãe. De qualquer forma, independentemente de querer ou não fazer jus a esse rótulo, a sociedade a julgará por essa e outras habilidades. Assim, mulheres TDAs passam por dificuldades bem específicas, durante seu desenvolvimento, que são muito diferentes daquelas dos homens.

Aos trancos e barrancos

Durante a infância, a menina com TDA provavelmente será aquela sonhadora que não chama muita atenção sobre si na sala de aula, já que em meninas é mais frequente o tipo predominantemente desatento. Sofrem com suas constantes distrações e desorganização e tendem a apresentar depressão e ansiedade em nível muito maior e recorrente que em meninas da mesma idade sem TDA, ou mesmo em relação a seus pares masculinos com TDA.

Quase sempre se sentem atoladas e ansiosas com as demandas da vida escolar. Apresentam dificuldades em completar suas tarefas e, mesmo que estejam lutando bravamente para prestar atenção ao que o professor diz, suas mentes escorregadias acabam por deixá-las, silenciosamente, à deriva, em terras distantes, paragens de sonho, recordações de acontecimentos, antecipações do que está por vir. Enfim, em múltiplos mundos paralelos.

A mocinha sonhadora, citada no início do capítulo, pode ser identificada com facilidade nesse grupo. Por ser tão distraída e, muitas vezes, imperceptível socialmente, pode ser erroneamente considerada menos inteligente do que é na verdade. Afinal, a despeito dos prejuízos que possa trazer, sua mente flutuante é com frequência muito criativa, já que produz imagens, sons e diálogos quase sem parar.

É interessante acompanhar o depoimento de Sílvia, 40 anos, mãe de duas meninas, que veio buscar tratamento para uma delas, que apresentava sintomas de TDA. Por meio de conversas sobre sua infância, ela descobriu que também apresentava o transtorno, e do tipo mais desatento:

Não sei quantas vezes durante a minha infância ouvi frases do tipo “preste atenção, menina!”, “cuidado, não vá quebrar a louça”, “essa menina vive no mundo da lua, parece que viu o passarinho verde”. Até hoje ecoam no ar, vindas do passado, despertando-me de meus devaneios.

Desajeitada e sonhadora. Assim era vista na infância. Aos 40 anos, continuo desajeitada. Os sonhos, esses já não são tão intensos, mas recorro a eles nos momentos em que minha vida parece sem sentido. E penso assim quase o tempo todo.

Por ter dificuldade em me concentrar e em ser organizada, minhas tarefas escolares foram deveras prejudicadas. À medida que eu crescia e, consequentemente, também meus afazeres e responsabilidades, mais difícil se tornava conciliar tudo. Isso me causava grande vergonha. Sentia-me incapaz e não queria que os outros percebessem. A única saída que encontrei na época foi diminuir minhas ambições.

Sonhava em trabalhar na área de turismo para conhecer o mundo todo. Queria também ser dançarina moderna. Achava lindo quando via na televisão ou assistia a um espetáculo de dança. Meus planos incluíam ainda um grande amor, um homem bonito, inteligente e apaixonado, que me levaria ao altar... Pura ilusão...

Eu me perdia dentro de minha própria cidade. O que não aconteceria caso me lançasse mundo afora, Deus meu?! E dançar, então? Em um rodopio seria capaz de derrubar todos os bailarinos de uma só vez.

Restou-me o casamento. Tenho duas lindas meninas, uma delas TDA, e já me vejo bastante atrapalhada com os cuidados da casa. Mas, enfim, vou levando. Meu marido está longe de ser um príncipe, mas também não é nenhum sapo!

Agora, imagine essa mesma mente veloz e irrequieta acompanhada de uma boquinha nervosa ou então de todo um corpinho serelepe. Embora não tão numerosas quanto as sonhadoras, também se encontram as meninas com TDA tagarelas e as hiperativas.

As menininhas falantes seriam um tipo intermediário (o tipo combinado) entre as quietas meninas sonhadoras e as incansáveis molequinhas bagunceiras (o tipo predominantemente hiperativo/impulsivo). Conversadeiras, dotadas de uma matraca eficiente, também acabam sendo muito distraídas, uma vez que há tantas coisas ao redor mais interessantes e que atraem irresistivelmente sua atenção já bastante fluida.

Na sala de aula vivem passando bilhetinhos, fofocando com os coleguinhas, desenhando, falando, escrevendo ou fazendo qualquer coisa que não seja propriamente prestar atenção ao que o professor está explicando. Tudo isso ocorre em apenas alguns minutos. Elas bem que tentam, e também sofrem com isso. Mas seus olhos e ouvidos sensíveis não conseguem filtrar estímulos irrelevantes ao contexto e, simplesmente, não podem se furtar a descobrir de onde veio aquele ruído, aquele movimento, e se inteirar do bate-papo dos coleguinhas a seis carteiras de distância.

Simpáticas e contadoras de histórias, as tagarelas provavelmente serão as líderes de seus grupinhos, já que são tão gregárias e elaboram historinhas e brincadeiras criativas. No entanto, sofrem também com a dificuldade de concentração, de começar e levar até o final seus afazeres, e terminam por se sentirem permanentemente sobrecarregadas por tarefas inacabadas, prazos que se aproximam, além de exigências escolares e de comportamento que se fundem como uma bola de neve que tentam girar novamente rumo ao topo da montanha. O resultado é quase sempre uma contínua sensação de esgotamento...

Eis como Analice retratou sua infância. Hoje, aos 29 anos e trabalhando como publicitária, ela descreve alguns dias típicos de sua vida atual:

Não me convidem que eu vou! Esta frase parece definir bem minha conturbada vida. A festa vai ser legal, a viagem divertida, o jantar especial... Mas descubro tarde demais que todos esses convites irrecusáveis estão marcados para o mesmo dia. E o pior é que tenho um trabalho inadiável para entregar.

Fico além do expediente terminando o trabalho e consigo entregá-lo no último segundo. Sob pressão, meus trabalhos saem ainda mais estupendos!

Vou ao jantar e, horas depois, atravesso a cidade em tempo de aproveitar um pouco da festa. A viagem infelizmente fica para a próxima.

Fico tão cansada que meu fim de semana acaba na sexta-feira. E, ainda, meus amigos me ligam reclamando da minha falta de atenção. Que sufoco!

Aquela sensação de esgotamento experimentada pelas meninas e mulheres do tipo tagarela é desconhecida por suas colegas hiperativas. Estas meninas são quase sempre apelidadas com algum termo pejorativo, visando associá-las maldosamente a características masculinas: “Joãozinho”, “Maria Machadinha” e “Molequinho” são apenas alguns dos termos com que essas meninas “cinéticas” são rotuladas.

Assim como os meninos, elas são facilmente notadas em meio a um grupo de crianças, na vizinhança, na sala de aula. Bagunceiras, ousadas e frequentemente respondonas, dificilmente irão se divertir com as brincadeiras tipicamente talhadas para as meninas. Brincar de casinha? Só se a casinha estiver pegando fogo e elas forem as heroínas que salvarão as famílias da “flambagem” certa. Ser a mamãe e fazer comidinha certamente as faria bocejar, pois tal tipo de brincadeira não oferece a estimulação atrativa de que necessitam para se manterem concentradas e interessadas. Daí, não é preciso ter muita imaginação para concluir que, provavelmente, elas terão problemas de relacionamento com seus coleguinhas. Elas têm dificuldades em se adaptar à placidez da maioria dos brinquedos femininos e sentem-se, talvez, atraídas pela maior atividade proporcionada pelas traquinagens dos garotos. Mas enfrentam a possibilidade de rejeição ou de não poder acompanhá-los no nível de risco e agressividade de suas brincadeiras. Afinal, elas não deixam de ser meninas.

Valéria, professora de educação física e agora com 33 anos, descreve um pouco esta sua tendência à ação:

Quando tinha 15 anos, conheci o César e tive certeza de ter encontrado o companheiro ideal, alguém tão atirado na vida quanto eu. Costumávamos acampar com amigos até que resolvemos que seria melhor viajarmos sozinhos, pois ninguém acompanhava o nosso ritmo. Sentíamos tédio ao ver nossos companheiros enrolados no cobertor, assando churrasquinho, enquanto nós já havíamos percorrido todos os lugares charmosos, cachoeiras perigosas e trilhas íngremes da região.

Gostava de voar de asa-delta, mergulhar e praticar alpinismo. Meus pais viviam em estado de alerta, mas tiveram que se acostumar, na medida do possível, ao meu ritmo.

Formei-me em educação física, e César em engenharia. Casamos e depois de alguns anos ele foi ficando acomodado e eu continuava cada dia mais agitada. Comecei a me sentir sufocada e, apesar de amar meu marido, não aguentei a rotina e acabamos nos separando.

Hoje moro em São Paulo, onde tenho uma academia. Estou cursando a faculdade de veterinária, pois pretendo ter um haras. Continuo praticando todos os esportes radicais, que são a paixão da minha vida, e pretendo montar uma escola dedicada a esses esportes. Para quem me acha agitada, respondo: “Para mim, nada nunca é demais.” Eu quero viver a minha vida em toda a sua plenitude e, se puder, ainda mais um pouco.

Todo o processo de desenvolvimento das meninas TDAs, em qualquer um de seus três tipos (desatento, hiperativo/impulsivo e combinado), é marcado por questões muito próprias. Ao fato de ser mulher em culturas caracterizadas por papéis um tanto rígidos atribuídos aos sexos, se acrescenta ainda o detalhe de serem TDAs. Mulheres TDAs podem ser muitas coisas, menos convencionais. Tal característica já pode ser percebida na infância, mas é no florescer da adolescência que se reveste de contornos bem nítidos. Período sabidamente complicado, quando atravessado por uma jovem TDA torna-se complicado e meio. Nessa fase aumentam as exigências e tornam-se mais complexas as tarefas de qualquer pessoa. Agora, imagine como essa fase pode ser dolorida para alguém que se vê às voltas com sua atenção inconstante.

No entanto, outras características tornam essa adolescente, não raras vezes, uma figura popular em seu grupo — principalmente aquelas que, quando crianças, faziam o tipo “falante”. Dinâmicas e inventivas, dotadas da criatividade peculiar aos TDAs, com seus pensamentos, gestos e dizeres às vezes fora do padrão, essas jovens, quando se tornarem mulheres, provavelmente se encaixarão com perfeição na descrição da música de Guilherme Arantes, “Cheia de Charme”, notadamente no trecho em que fala do desejo de se aventurar, de revolucionar.

Suas presenças são marcantes no mundo artístico, no show business, e, certamente, são uma boa parte das mulheres que desafiam regras e rompem com tabus, pioneiras no campo da política, do trabalho, das artes e das ciências. A cômoda posição exclusiva de mãe de família e dona de casa, anteriormente reservada às mulheres, certamente não teve o poder de anestesiar essas mentes inquietas e fervilhantes. Elas foram à luta pelo direito de exercer atividades que lhes proporcionassem a estimulação de que tanto necessitavam e, mais do que isso, de abrir as portas do mundo em movimento a todas as mulheres, que antes só podiam contemplá-lo por entre as cortinas da janela.

Não é preciso pensar muito para concluir que, justamente por tais características, essas adolescentes e mulheres, mais do que outras, podem sofrer sob o jugo desaprovador da sociedade patriarcal. Apesar de serem frequentemente verdadeiros dínamos, quase sempre desenvolverão baixa autoestima. Afinal, desde cedo, acostumaram-se a ouvir observações sobre sua falta de modos, sua desorganização, desleixo e falta de “capricho”. Críticas que meninos normalmente não costumam ouvir, pois meninos são meninos. Mas meninas têm um papel a cumprir, cujas exigências principais seriam não dar trabalho nem chamar atenção sobre si, ficando quietas e bonitinhas no seu canto. Suas qualidades mais evidentes, tais como criatividade, energia e iniciativa, não são estimuladas e reforçadas, na maioria das vezes. Para isso, a família precisaria ter conhecimento sobre o que é o TDA e como essas meninas podem ser especiais.

Se o problema fosse compreendido, quem sabe tivessem seus talentos inatos descobertos e desenvolvidos e não acabassem tão massacradas com exigências de comportamento impecável que, mesmo sendo úteis e desejáveis em determinados contextos, não fomentam a criatividade nem desenvolvem a capacidade de iniciativa. O fato é que elas chegam à adolescência e idade adulta quase sempre se autorrecriminando a cada passo, cada atitude, pensamento e declaração fora do padrão imposto. Para a maioria dessas mulheres, ninguém está lá para lhes dizer que é esta justamente a sua marca, que dessas características provavelmente emergirão seus talentos e que elas devem buscá-los e desenvolvê-los.

A tendência aos devaneios e os frequentes esquecimentos podem trazer alguns problemas para a mulher TDA, principalmente se ela exercer função burocrática em seu trabalho. No entanto, isso pode ser perfeitamente compensado se forem valorizadas sua inventividade e criatividade. É também importante a busca de ajuda especializada no sentido de maximizar sua capacidade de organização e atenção, tornando sua mente irrequieta mais apta a deixar florescer todas as vantagens que o funcionamento TDA pode proporcionar, principalmente para uma mulher.

A “rainha do lar” em apuros

Uma questão de extrema importância e que muito sofrimento pode causar a uma mulher TDA está relacionada aos seus afazeres de esposa e mãe. Ao mesmo tempo que essa ocupação pode não ser estimulante para uma mulher TDA, também exige uma meticulosidade e ordenação que podem deixá-la exasperada. Acrescente-se a isso tudo o já bastante discutido problema de que provavelmente ela será severamente criticada por causa da sua eficiência incompleta, ou sua aparente falta de interesse em manter o lar organizado. Para uma mulher não TDA, não são nada simples tarefas como contas a pagar, arrumação dos materiais escolares dos filhos, horários, escolha dos alimentos e tantas outras aparentemente prosaicas. Imagine, então, para uma mulher TDA. A questão aqui é: a mulher que exerce as tarefas de dona de casa tem como principal função a organização. Mas um TDA precisa de estrutura. Neste caso singular, a mulher TDA tem que ser a estrutura. Ela deve ordenar a casa em meio à sua desordenada aceleração mental.

Homens, normalmente, podem contar com um sistema de apoio. Na maioria das culturas, eles não precisam se preocupar com questões do tipo: organização do lar, educação e alimentação dos filhos, abastecimento da casa e outras demandas que grande parte considera até como afazeres menores. Mulheres dificilmente contam com um sistema de apoio, por uma simples razão: elas são este sistema de apoio, ou, pelo menos, se espera que sejam. Afinal, normalmente já são criadas para isso. Em suas brincadeiras típicas e nos brinquedos projetados para elas pela indústria de entretenimento, vão sendo familiarizadas aos poucos com a casinha, comidinha, bebês e mamadeiras.

Uma menina TDA muito provavelmente poderá passar bem por essa fase, já que se trata de brincadeiras. Elas podem dormir, estudar ou brincar de outras coisas, abandonando o brinquedo anterior, pois o bebê boneco não irá chorar nem a comidinha irá queimar. Mas também é bastante provável que, a esta altura, já demonstrem um interesse maior por diversões mais estimulantes como videogame, brincadeiras de pique e disputas em jogos competitivos. As bonecas de várias delas podem estar com os cabelos artificiais desgrenhados, e talvez a maior utilidade delas seja servir como alça para o brinquedo, tal como as orelhas do coelho de pelúcia da personagem Mônica dos desenhos em quadrinhos. Uma típica menina TDA.

Agora, imagine essa menina crescida, tendo todas aquelas atribuições e quase sempre sem poder falhar, uma vez que dependem dela a vida e o bem-estar de outras pessoas. Quase sempre com a mente voltada para devaneios mais agitados, ela está atada aos seus afazeres cotidianos e que se repetem ad nauseam. Não existem sábados, domingos, feriados ou férias para as funções de mãe e esposa devotada. É uma mente turbinada que precisa se adequar ao desempenho de um motor 1.0, que deve trafegar com segurança. Como a mulher TDA muitas vezes falhará em meio a tantas exigências de meticulosidade, certamente sobrevirão a culpa e o ressentimento. Não só isso, mas também o dedo em riste acusador da família e da sociedade — alguns dos ingredientes da receita da depressão e ansiedade.

Por outro lado, a mãe e esposa TDA pode ser extremamente lúdica, criativa, divertida, amiga e cheia de pique. Seus filhos sabem que ela é incrível, que sua mamãe é “demais”. Que não brinca com eles para entretê-los somente, ela está ali brincando mesmo, de corpo e alma nas disputas, e pode sair batendo o pé se perder uma partida de jogo da memória ou Banco Imobiliário.

O marido sabe que nem sempre pode contar com ela na hora e com perfeição, mas também sabe que nunca vai encontrar a mesma mulher todos os dias, que ela é uma companhia divertida para as saídas e aventuras, que seus amigos provavelmente irão gostar muito dela — desta mulher espirituosa. Quando ela não está por perto, o marido sente que o astral já não é o mesmo. Suas frequentes e súbitas mudanças de humor podem desencadear brigas homéricas, mas também podem resultar em momentos inesquecíveis de companheirismo, sexo, diversão e muitas, muitas risadas. É como estar em uma montanha-russa amorosa, com altos e baixos, mas onde jamais deixará de sentir aquele friozinho na barriga e o coração acelerado.

Se esse marido compreende e tenta auxiliar a mulher em suas dificuldades típicas, ao mesmo tempo que valoriza suas qualidades muito próprias, a mulher TDA encontrará nessa união a estabilidade da qual necessita e assim se sentirá feliz. Mas se ele exigir, de forma machista, que ela lhe sirva com perfeição e não se dispuser a ajudá-la e, pior ainda, não quiser entender suas dificuldades ou mesmo valorizar suas qualidades, então é o caos que estará ajudando a construir, não só para a esposa, mas também para si mesmo. A diferença é que ele, quase sempre, não será considerado culpado por isso.

À mulher TDA cabe compreender que não deve se obrigar a cumprir um papel que não é o seu, embora tenha sido estabelecido para ela, assim como para todas as mulheres. Caso ela consiga se libertar de todo o peso e ressentimento que desenvolveu ao longo de anos de recriminações, e também se tornar menos sensível a críticas, então poderá trilhar o seu caminho sem culpas e sem angústias. Um atalho que poderia ter seguido desde cedo, se tivesse a oportunidade de descobrir e desenvolver seus talentos naturais, em vez de se adequar a um limitado padrão, no qual dificilmente deixará de sentir algum, ou muito, desconforto.