giff.jpg giff.jpg Noturno de Belo Horizonte 

(1924)

 

a Elísio de Carvalho 

 

Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos,

Calma do noturno de Belo Horizonte...

O silêncio fresco desfolha das árvores

E orvalha o jardim só.

Larguezas.

Enormes coágulos de sombra.

O polícia entre rosas...

Onde não é preciso, como sempre...

Há uma ausência de crimes

Na jovialidade infantil do friozinho.

Ninguém.

O monstro desapareceu.

Só as árvores do mato-virgem

Pendurando a tapeçaria das ramagens

Nos braços cabindas da noite.

 

Que luta pavorosa entre floresta e casas...

Todas as idades humanas

Macaqueadas por arquiteturas históricas

Torres torreões torrinhas e tolices

Brigaram em nome da?

Os mineiros secundam em coro:

– Em nome da civilização!

Minas progride.

Também quer ter também capital moderníssima também...

Pórticos gregos do Instituto de Rádio

Onde jamais Empédocles entrará...

O Conselho Deliberativo é manuelino,

Salão sapiente de Manuéis-da-hora...

Arcos românicos de São José

E a catedral que pretende ser gótica...

Pois tanto esquecimento da verdade!

A terra se insurgiu.

 

O mato invadiu o gradeado das ruas,

Bondes sopesados por troncos hercúleos,

Incêndio de Cafés,

Setas inflamadas,

Comboio de trânsfugas pro Rio de Janeiro,

A ramaria crequenta cegando as janelas

Com a poeira dura das folhagens...

Aquele homem fugiu.

A imitação fugiu.

Clareiras do Brasil, praças agrestes!...

Paz.

 

O mato vitorioso acampou nas ladeiras.

Suor de resinas opulentas.

Grupos de automóveis:

Baitacas e jandaias do rosal.

E o noturno apagando na sombra o artifício e o defeito

Adormece em Belo Horizonte

Como um sonho mineiro.

Tem festas do Tejuco pelo céu!

As estrelas baralham-se num estardalhaço de luzes.

O sr. barão das Catas-Altas

Reúne todas as constelações

Pra fundir uma baixela de mundos...

Bulício de multidões matizadas...

Emboabas, carijós, espanhóis de Felipe IV...

Tem baianos redondos...

Dom Rodrigo de Castel Branco partirá!...

Lumeiro festival... Gritos... Tocheiros...

O Triunfo Eucarístico abala chispeando...

Os planetas comparecem em pessoa!

Só as magnólias – que banzo dolorido! –

As carapinhas fofas polvilhadas

Com a prata da Via-Látea

Seguem pra igreja do Rosário

E pro jongo de Chico-Rei...

 

Estrelas árvores estrelas

E o silêncio fresco da noite deserta.

Belo Horizonte desapareceu

Transfigurada nas recordações.

 

... Minas Gerais, fruta paulista...

Ouvi que tem minas ocultas por cá...

Mas ninguém mais conhece Marcos de Azevedo,

Quedê os roteiros de Robério Dias?

Prata

Diamantes cascateantes

Esmeraldas esmeraldas esperanças!...

 

Não são esmeraldas, são turmalinas, bem se vê:

 

A casinha de taipa a beira-rio.

Canoa abicada na margem,

A bruma das monções,

Mais nada.

Os galhos lavam matinalmente os cabelos

Na água barrenta indiferente.

As ondas sozinhas do Paraíba

Morrem avermelhadas mornas cor-de-febre.

E a febre...

 

Não sejamos muito exigentes.

Todos os países do mundo

Tem os seus Guaicuis emboscados

No sossego das ribanceiras dolentes.

As carneiradas ficavam pra trás...

O trem passava apavorado.

Só parou muito longe na estação

Pra que os romeiros saudassem

Nosso Senhor da Boa-Viagem.

 

Ele ficava imóvel na beira dos trilhos

Amarrado à cegueira.

Trazia só os molambos necessários

Como convém aos santos e

Aos avarentos.

Porém o netinho corria junto das janelas dos vagões

Com o chapéu do cego na mão.

Quando a esmola caía – com que triunfo! – o menino gritava:

– Pronto! Mais uma!

Então lá do seu mundo

Nosso Senhor abençoava:

– Boa viagem.

 

Examina a carne do teu corpo.

Apesar da perfeição das estradas-de-ferro

E da inflexível providência dos horários,

Encontros descarrilamentos mortes...

Pode ser!...

As esmolas tombavam.

– Pronto! Mais uma!

– Boa viagem.

 

Minas Gerais de assombros e anedotas...

Os mineiros pintam diariamente o céu de azul

Com os pincéis das macaúbas folhudas.

Olhe a cascata lá!

Súbita bombarda.

Talvez folha de arbusto,

Ninho de teneném que cai pesado,

Talvez o trem, talvez ninguém...

As águas se assustaram

E o estouro dos rios começou.

 

Vão soltos pinchando rabanadas pelos ares,

Salta aqui salta corre viravolta pingo grito

Espumas brancas alvas

Fluem bolhas bolas,

Itoupavas altas...

Borbulham bulhando em murmúrios churriantes

Nas bolsas brandas largas das enseadas lânguidas...

De supetão fosso.

        Mergulho.

       Uivam tombando.

Desgarram serra abaixo.

Rio das Mortes

Paraopeba

Paraibuna,

Mamotes brancos...

E o Araçuí de Fernão Dias...

Barafustam vargens fora

Até acalmarem muito longe exânimes

Nas polidas lagoas de cabeça pra baixo.

 

Rio São Francisco o marrueiro dos matos

Partiu levando o rebanho pro norte

Ao aboio das águas lentamente.

A barcaça que ruma pra Juazeiro

Desce ritmada pelos golpes dos remeiros.

Na proa, o olhar distante a olhar,

Matraca o dançador:

 

“Meu pangaré arreado,

Minha garrucha laporte,

Encostado no meu bem

Não tenho medo da morte.

Ah!...”

 

Um grande Ah!... aberto e pesado de espanto

Varre Minas Gerais por toda a parte...

Um silêncio repleto de silêncio

Nas invernadas, nos araxás,

No marasmo das cidades paradas...

Passado a fuxicar as almas,

Fantasmas de altares, de naves douradas

E dos palácios de Mariana e Vila Rica...

Isto é: Ouro Preto.

E o nome lindo de São José d’El Rei mudado num odontológico Tiradentes...

Respeitemos os mártires.

 

Calma do noturno de Belo Horizonte...

As estrelas acordadas enchem de Ahs!... ecoantes o ar.

O silêncio fresco despenca das árvores.

Veio de longe, das planícies altas,

Dos cerrados onde o guaxe passa rápido...

Vvvvvvv... passou.

Passou tal qual o fausto das paragens de ouro velho...

Minas Gerais, fruta paulista...

Fruta que apodreceu.

 

Frutificou mineira! Taratá!

Há também colheitas sinceras!

Milharais canaviais cafezais insistentes

Trepadeirando morro acima.

Mas que chãos sovinas como o mineiro-zebu!

Dizem que os baetas são agarrados...

Não percebi, graças a Deus!

Na fazenda do Barreiro recebem opulentamente.

Os pratos nativos são índices de nacionalidade.

Mas no Grande Hotel de Belo Horizonte servem à francesa.

Et bien! Je vous demande un toutou!

Venha a batata-doce e o torresmo fondant!

Carne-de-porco não!

O médico russo afirma que na carne-de-porco andam micróbios de loucura...

Basta o meu desvairismo!

E os pileques

quase pileques

              salamaleques

        da caninha de manga!...

 

Taratá! Quero a couve mineira!

Minas progride!

Mãos esqueléticas de máquinas britando minérios,

As estradas-de-ferro estradas-de-rodagem

Serpenteiam teosoficamente fecundando o deserto...

 

Afinal Belo Horizonte é uma tolice como as outras.

São Paulo não é a única cidade arlequinal.

E há vida há gente, nosso povo tostado.

O secretário da Agricultura é novo!

Fábricas de calçados

Escola de Minas no palácio dos Governadores,

Na Casa dos Contos não tem mais poetas encarcerados,

Campo de futebol em Carmo da Mata,

Divinópolis possui o melhor chuveiro do mundo,

As cunhãs não usam mais pó de ouro nos cabelos,

Os choferes avançam no bolso dos viajantes,

Teatro grego em São João d’El Rei

Onde jamais Eurípedes será representado...

Ninguém mais para nas pontes, Critilo,

Novidadeirando sobre damas casadas.

Tenho pressa! Ganhemos o dia!

Progresso! Civilização!

As plantações pendem maduras.

O morfético ao lado da estrada esperando automóveis...

Cheiro fecundo de vacas,

Pedreiras feridas,

Eletricidade submissa...

Minas Gerais sáxea e atualista

Não resumida às estações-termais!

Gentes do Triângulo Mineiro, Juiz de Fora!

Força das xiriricas das florestas e cerrados!

Minas Gerais, fruta paulista!...

 

Alegria da noite de Belo Horizonte!

Há uma ausência de males

Na jovialidade infantil do friozinho.

Silêncio brincalhão salta das árvores,

Entra nas casas desce as ruas paradas

E se engrossa agressivo na praça do Mercado.

Vento florido roda pelos trilhos.

Vem de longe, das grotas pré-históricas...

Descendo as montanhas

Fugiu dos despenhadeiros assombrados do Rola-Moça...

 

Estremeção brusco de medo.

Pavor.

Folhas chorosas de eucaliptos.

Sino bate.

Ninguém.

A solidão angustiosa dos píncaros...

A paz chucra, ressabiada, das gargantas da montanha...

 

A serra do Rola-Moça

Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,

Vieram na vila casar.

E atravessaram a serra,

O noivo com a noiva dele

Cada qual no seu cavalo.

 

Antes que chegasse a noite

Se lembraram de voltar.

Disseram adeus pra todos

E se puseram de novo

Pelos atalhos da serra

Cada qual no seu cavalo.

 

Os dois estavam felizes,

Na altura tudo era paz.

Pelos caminhos estreitos

Ele na frente ela atrás.

E riam. Como eles riam!

Riam até sem razão.

 

A serra do Rola-Moça

Não tinha esse nome não.

 

As tribos rubras da tarde

Rapidamente fugiam

E apressadas se escondiam

Lá embaixo nos socavões

Temendo a noite que vinha.

 

Porém os dois continuavam

Cada qual no seu cavalo,

E riam. Como eles riam!

E os risos também casavam

Com as risadas dos cascalhos

Que pulando levianinhos

Da vereda se soltavam

Buscando o despenhadeiro.

 

Ah, Fortuna inviolável!

O casco pisara em falso.

Dão noiva e cavalo um salto

Precipitados no abismo.

Nem o baque se escutou.

Faz um silêncio de morte.

Na altura tudo era paz...

Chicoteando o seu cavalo,

No vão do despenhadeiro

O noivo se despenhou.

 

E a serra do Rola-Moça

Rola-Moça se chamou.

 

Eu queria contar as histórias de Minas

Aos brasileiros do Brasil...

 

Filhos do Luso e da melancolia,

Vem, gente de Alagoas e de Mato Grosso,

De norte e sul homens fluviais do Amazonas e do rio Paraná...

E os fluminenses salinos

E os guascas e os paraenses e os pernambucanos

E os vaqueiros de couro das caatingas

E os goianos governados por meu avô...

Teutos de Santa Catarina,

Retirantes de língua seca,

Maranhenses paraibanos e do Rio Grande do Norte e do Espírito Santo

E do Acre, irmão caçula,

Toda a minha raça morena!

Vem, gente! vem ver o noturno de Belo Horizonte!

Sejam comedores de pimenta

Ou de carne requentada no dorso dos pigarços petiços,

Vem, minha gente!

Bebedores de guaraná e de açaí,

Chupadores do chimarrão,

Pinguços cantantes, cafezistas ricaços,

Mamíferos amamentados pelos cocos de Pindorama,

Vem, minha gente, que tem festas do Tejuco pelo céu!

Bárbara Heliodora desgrenhada louca

Dizendo versos desce a rua do Pará...

Quem conhece as ingratidões de Marília?

Juro que foi Nosso Senhor Jesus Cristo Ele mesmo

Que plantou a sua cruz no adro das capelas da serra!

Foi Ele mesmo que em São João d’El Rei

Esculpiu as imagens dos seus santos...

E há histórias também pros que duvidam de Deus...

 

O coronel Antônio de Oliveira Leitão era casado com dona Branca Ribeiro do Alvarenga, ambos de orgulhosa nobreza vicentina. Porém nas tardes de Vila Rica a filha deles abanava o lenço no quintal... – “Deve ser a algum plebeu, que não há moços nobres na cidade...” E o descendente de cavaleiros e capitães-mores não quer saber de mésalliances. O coronel Antônio de Oliveira Leitão esfaqueou a filha. Levaram-no preso à Baía onde foi decapitado. Pois dona Branca Ribeiro do Alvarenga reuniu todos os cabedais. Mandou construir com eles uma igreja para que Deus perdoasse as almas pecadoras do marido e da filha.

 

Meus brasileiros lindamente misturados,

Se vocês vierem nessa igreja dos Perdões

Rezem três ave-marias ajoelhadas

Pros dois desinfelizes.

Creio que a moça não carece muito delas

Mas ninguém sabe onde estará o coronel...

Credo!

 

Mas não há nada como histórias pra reunir na mesma casa...

Na Arábia por saber contar histórias

Ũa mulher se salvou...

A Espanha estilhaçou-se numa poeira de nações americanas

Mas sobre o tronco sonoro da língua do ão

Portugal reuniu 22 orquídeas desiguais.

Nós somos na Terra o grande milagre do amor!

 

Que vergonha se representássemos apenas contingência de defesa

Ou mesmo ligação circunscrita de amor...

Porém as raças são verdades essenciais

E um elemento de riqueza humana.

As pátrias têm de ser uma expressão de Humanidade.

 

Separadas na guerra ou na paz são bem pobres

Bem mesquinhos exemplos de alma

Mas compreendidas juntas num amor consciente e exato

Quanta história mineira pra contar!

 

Não prego a guerra nem a paz, eu peço amor!

Eu peço amor em todos os seus beijos,

Beijos de ódio, de cópula ou de fraternidade.

Não prego a paz universal e eterna, Deus me livre!

Eu sempre contei com a imbecilidade vaidosa dos homens

E não me agradam os idealistas.

E temo que uma paz obrigatória

Nos fizesse esquecer o amor

Porque mesmo falando de relações de povo e povo

o amor não é uma paz

E é por amor que Deus nos deu a vida...

O amor não é uma paz, bem mais bonito que ela,

Porque é um completamento!...

 

Nós somos na Terra o grande milagre do amor!

E embora tão diversa a nossa vida

Dançamos juntos no carnaval das gentes,

Bloco pachola do “Custa mas vai!”

 

E abre alas que Eu quero passar!

Nós somos os brasileiros auriverdes!

As esmeraldas das araras

Os rubis dos colibris

Os abacaxis as mangas os cajus

Atravessam amorosamente

A fremente celebração do Universal!

 

Que importa uns falem mole descansado

Que os cariocas arranhem os erres na garganta

Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais?

Que tem se o quinhentos réis meridional

Vira cinco tostões do Rio pro Norte?

Juntos formamos este assombro de misérias e grandezas,

Brasil, nome de vegetal!...

 

O bloco fantasiado de histórias mineiras

Move-se na avenida de seis renques de árvores...

O sol explode em fogaréus...

O dia é frio sem nuvens, de brilhos vidrilhos...

Não é dia! Não tem sol explodindo no céu!

É o delírio noturno de Belo Horizonte...

Não nos esqueçamos da cor local:

Itacolomi... Diário de Minas... Bondes do Calafate...

E o silêncio... sio... sio... quiriri...

 

Os seres e as coisas se aplainam no sono.

Três horas.

A cidade oblíqua

Depois de dançar os trabalhos do dia

Faz muito que dormiu.

 

Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras.

De longe em longe gritam solitários brilhos falsos

Perfurando o sombral das figueiras:

Berenguendens berloques ouropéis de Oropa consagrada

Que o goianá trocou pelas pepitas de ouro fino.

Dorme Belo Horizonte.

Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras...

Não se escuta sequer o ruído das estrelas caminhando...

Mas os poros abertos da cidade

Aspiram com sensualidade com delícia

O ar da terra elevada.

Ar arejado batido nas pedras dos morros,

Varado através da água trançada das cachoeiras,

Ar que brota nas fontes com as águas

Por toda a parte de Minas Gerais.

 

 

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