Monja Coen – Quando falamos sobre cultura de paz, um dos meus lamentos é que a história da humanidade conte pouco de respostas não violentas da humanidade aos conflitos. Os livros de história pouco tratam das pessoas que tiveram uma maneira de viver menos violenta. Que foram menos agressivas e mais acolhedoras. Discriminações, preconceitos, guerras, escravização, tortura, raiva sempre existiram entre nós, humanos. Manifestações de ódio não são uma novidade da nossa época. Assim como sempre existiram, também, grupos que pensam de forma diferente. O que acontece é que se dá muita visibilidade às violências e ao medo através dos meios de comunicação, da informática, da tecnologia. Ficamos sabendo imediatamente de tudo o que possa estar acontecendo em qualquer lugar do mundo. E a mídia parece muito interessada em mostrar o que não é bom. Daí, eu pergunto: Qual é a necessidade de manter a população amedrontada? Quais as vantagens disso? A quem interessa uma população que pensa: “O outro é perigoso, é o inimigo; arme-se, prepare-se para a luta”. Percebo isso no mundo hoje. Temos a mídia, que é facilitadora para que as pessoas fiquem assustadas e considerem prioridade o que não é benéfico: o crime, as guerras, as bombas, os conflitos, as várias formas de discriminação e preconceito e a corrupção. Esses seres atrelados aos crimes são os nossos atores principais na capa das revistas, dos jornais e nos canais de televisão. Ao mesmo tempo, há pessoas boníssimas, fazendo coisas maravilhosas, que aparecem tão pouco – isso quando aparecem. Houve uma inversão de valores – o prejudicial priorizado. Acredito que seja muito importante haver uma reinversão de valores, dando maior ênfase às coisas boas, para que possamos desenvolver uma cultura de paz. Cultura de cultivar – como cultivamos plantas, flores, frutos e alimentos – afetos. Cultivar a não violência ativa, como insistiu Mahatma Gandhi em sua vida, cultivar o cuidado, o respeito, a compreensão, a amorosidade. Precisamos, sim, alertar contra os malfeitos e os erros de compreensão humana, alertar contra os preconceitos e as discriminações, alertar contra as várias formas de violência. Mas é preciso também dar visibilidade ao que é benéfico, aos bons exemplos a serem seguidos. Por outro lado, lembro-me do psiquiatra José Angelo Gaiarsa, que falava algo interessante. Ele dizia que o mal tem tanta visibilidade porque o bem ainda prevalece. Se fazer o bem fosse uma raridade, estaria na primeira página do jornal. O mal ainda é uma raridade, o crime é algo raro, por isso chama tanta atenção. Mas nem todos assim o compreendem e vivem amedrontados ou estimulados a cometer crimes semelhantes aos divulgados com tanta intensidade.
Leandro Karnal – Devo dizer que é uma honra estar nesta manhã de domingo conversando com a senhora sobre esse assunto. E começo concordando com a primeira parte da sua fala, de que nós temos ódio e enfrentamento ao longo de toda a história. Eu diria até que, hoje, nós nos chocamos um pouco mais com massacres e genocídios, apesar de termos números maiores do que no passado – não só porque temos mais gente no mundo, mas porque nós temos métodos mais eficazes de morte. Os massacres e assassinatos sempre foram muito frequentes, em todas as épocas da história. A diferença, hoje, talvez esteja em duas novidades. A primeira é que temos mais informação sobre eles. Por exemplo, um choque entre tútsis e hutus em Ruanda,[2] na África, no século XII não seria do conhecimento nem de europeus, nem de americanos, nem de asiáticos. Hoje, nós somos não apenas informados imediatamente de um massacre, mas somos também ilustrados por filmes, debates e obras sobre essa violência. Os massacres, antes, eram locais; agora, se tornaram universais. A visibilidade da internet colocou em choque pessoas que antes não tinham contato. É o caso recente de um grande músico brasileiro, Chico Buarque, que até mesmo as redes sociais imaginavam que todos amassem. Tido como alguém que fazia músicas lindas, era um símbolo da cultura brasileira, mas, de repente, por posicionamentos políticos que iam contra a opinião de outras pessoas, ele se descobriu atacado na rua e nas redes. Descobriu-se, então, que o amor não era uma unanimidade em relação a ele. E a segunda novidade é que existe hoje também, por uma série de fatores, no Ocidente em particular, uma exacerbação do eu, da sua autoestima e da ideia de que “se eu penso assim, isso é o correto”. Entendo que sempre fomos orgulhosos, cheios de vaidade. Sempre fomos egoístas. Mas, agora, esse eu não tem mais limites. E ele entra em contato com outro eu a tal ponto que pode, por exemplo, alguém de dezesseis anos deixar um recado nas redes sociais da senhora, que estuda zen-budismo há boa parte da vida, dizendo: “Está tudo errado, eu penso diferente”. Não existe mais aquela ideia de que “bem, se ela estudou a vida toda, existe uma chance de que, talvez, conheça algo. E eu, que estudo há cinco minutos, talvez conheça menos”. Isso desapareceu. Desapareceu a autoridade, os discursos totalizadores, os discursos gerais – inclusive os religiosos e os políticos. E surge a imersão do eu, que sempre foi violento e que, agora, entra em contato um com o outro. E também acho muito boa a observação de que o mal, em si, é excepcional – ainda que seja banal, como diz Hannah Arendt. Estamos aqui, neste momento, trabalhando em um domingo, discutindo cultura de paz, e isso não será manchete de nenhum jornal amanhã. Mas se alguém for assaltado na rua, aqui em frente, essa será a manchete. De fato, o mal é menos discreto, é mais chamativo. E é muito boa a observação com base na obra do falecido Gaiarsa de que o bem é majoritário. Para existir um corrupto, para que um possa roubar, tem que haver muita gente depositando dinheiro no cofre. Se todos roubassem, o cofre estaria vazio. É preciso, portanto, que muita gente encha o cofre. Para cada assalto terrível e tão frequente que ocorre em uma cidade grande como São Paulo, há milhões de pessoas que foram trabalhar e voltaram para casa sem terem sido assaltadas. Mas o que estampa o jornal é o assalto. Não sou conspiracionista, mas acho que, talvez, exista um plano geral em que interessa muito o medo porque ele é a melhor forma de controlar as pessoas. Atrai-se mais gente para um grupo inspirando os horrores do inferno do que apresentando as delícias do paraíso. O medo é o primeiro dos quatro gigantes da alma, como diria Emilio Mira y López,[3] é uma das coisas enormes da nossa capacidade de agir como os outros querem que a gente aja. Entregamos a liberdade se sentirmos que a nossa vida está em risco.
Em um texto recente que li do médico Drauzio Varella sobre o sistema prisional, Prisioneiras,[4] o último volume de uma trilogia, ele diz que, na prisão, não é a liberdade que as pessoas debatem, mas a sobrevivência. Portanto, até mesmo o valor “liberdade” diminui quando o imperativo categórico chamado “sobrevivência” se sobrepõe. Preferimos sobreviver a ser livres. E preferimos sobreviver e ser livres a uma terceira coisa. Essas categorias, portanto, estão ligadas ao medo. Nós somos pessoas assustadas. E pessoas assustadas obedecem com facilidade. Desde a infância, aqui no Ocidente, os pais incutem o medo nos filhos, por exemplo, quando dizem: “Se você não se comportar, eu vou dá-lo para o velho do saco na rua”. Ou: “Se não se comportar, vou deixá-lo aí e você vai ficar sozinho”.
Monja Coen – Ou: “A Cuca vem pegar”...
Karnal – Exatamente. Nós assustamos o outro porque, assim, conseguimos a submissão. Sem o risco da nota em sala de aula, sem o risco da polícia, sem o medo da punição, o bem tende a não se sustentar – o que é uma visão pessimista do ser humano. Mas o medo é uma grande força da espécie humana. Com o medo, obtemos a união e conseguimos vencer resistências individuais. O medo é fundamental e está na base de quase todos os grandes preconceitos e ódios que cultivamos. Alguém com medo é alguém que aceita a autoridade.
Monja Coen – Talvez, por isso, se diga no zen-budismo que o maior presente que se pode dar a alguém é o não medo. E como se faz isso? Não tendo medo. É algo difícil. O símbolo de Kanon Bodisatva, que é o bodisatva[5] da compaixão, é esse, o não medo. E tirar o medo é complicado. Como você lembrou, desde que nascemos, já começam a nos alertar: “Cuidado com isto, cuidado com aquilo”. No budismo, trabalhamos muito com a ideia de libertação – libertar-se das ideias e dos conceitos que foram colocados em nós desde o útero materno, desde antes do nascimento, pela maneira como a mãe se portou durante a gravidez; libertar-se não só da parte genética que vem conosco, mas da parte que vai sendo adquirida dos relacionamentos na infância, na adolescência, de escolhas e não escolhas. Certa vez, assisti à palestra de um neurocientista, um estudioso da mente humana, dos neurônios, das ligações do cérebro, e ele comentou que nós temos somente 5% de livre-arbítrio. Achei isso bem interessante. Ele disse: “Professores e pais, não se assustem. Mas a sua capacidade de influenciar um ser humano é de 5%”. Esses 5% são muito importantes, porque fazem a diferença. Por mais que nós estejamos nessa cadeia de medo instituída desde antes do nascimento, durante toda a infância, a juventude, a maturidade e a velhice, podemos sair da trama do medo. Podemos despertar. Podemos nos libertar e viver sem medo, sem ansiedades sobre o que será e como será, mas apreciando a fugacidade do momento.
Se a infância foi difícil por nos depararmos com autoridades fisicamente maiores do que nós, se a juventude dependeu tanto e tanto da aprovação dos nossos pares, se a maturidade nos fez mais independentes, entretanto ainda dependentes da aprovação social, familiar, a velhice também é muito assustadora. Estou com 70 anos e já começo a ver as perspectivas de deficiências que podem acontecer com qualquer um de nós. O corpo fica mais frágil... A possibilidade de depender de alguém, por exemplo, para se locomover ou ir ao banheiro, parece meio assustadora. O medo faz parte de um processo de não estar presente no que está acontecendo e não vivenciar aquilo assim como é. Ainda posso me movimentar bem e não dependo de outras pessoas para sobreviver. A perspectiva de um futuro, que poderá nunca acontecer, é uma probabilidade apenas, e não a realidade. Refletindo assim, o medo da velhice evapora. É preciso estar presente no que acontece e manter a capacidade de percepção clara da realidade para saber quando o medo é necessário. Pois o medo é precioso também, ele nos impede de sermos feridos ou mortos, tanto pelas feras, quando vivíamos na floresta, quanto pelos perigos urbanos. Ele nos impede de sucumbir, talvez. As pessoas comentam comigo: “Querem puxar meu tapete. Estou muito aflito no meu trabalho, porque querem tomar o meu lugar”. E eu respondo: “Mas você está percebendo isso. No momento em que percebe, há alternativas: ou pula de lado e o tapete sai e você fica em pé, ou você cai e se levanta”. Hoje, muitas empresas em fusão despedem alguns, contratam outros. Profissionais com as mesmas capacitações ficam muito assustados, “porque vão pegar o meu lugar” ou “vão me despedir”. Mas ninguém pode pegar o seu lugar, porque o seu lugar é seu. E se ele não é aqui, será em outra empresa. Em um momento de transição como esse, quem conseguir manter a calma e fazer o seu melhor garantirá a sua vaga. Quem, através do medo, fica assustado, deixa de produzir de acordo com a sua capacidade e acaba sendo descartado. O que você escolhe? Essa é a pergunta que faço nas empresas. E é preciso apreciar o local em que se trabalha, se vive e se convive.
Karnal – Há dez anos, quando a convidei para uma palestra em uma instituição, a senhora anunciava ter 60 anos e se alegrava porque, em culturas tribais, seria o momento de tocar tambor. Hoje, a senhora tem 70. Há dez anos, eu tinha 44. Portanto, é muito bom e muito intenso ouvir sobre os medos. Pois a maioria das pessoas que mora em uma cidade grande não está presa em uma cadeia, mas, sim, em muitas cadeias. E é possível que o tempo de um prisioneiro seja um pouco mais dele do que o tempo de um empresário, por exemplo. Não estou idealizando a prisão, mas, talvez, um prisioneiro, apesar de ter horário de refeição, seja mais dono do tempo, tenha mais tempo para estar com ele mesmo. O meu grande herói, Hamlet, diz: “Eu poderia ser livre em uma casca de noz”.[6] É a ideia de que a consciência não depende do ambiente. Claro que existe certo idealismo na separação entre local e consciência de liberdade. Porém, demanda certa sabedoria perceber que o príncipe de Shakespeare está correto. Eu posso ser livre na casca de noz e, obviamente, estar atacado de total claustrofobia em um palácio.
Monja Coen – A liberdade que pode acontecer em um presídio – ou em qualquer local – só começa quando não há mais nada a perder, nada a defender e a proteger, nem mesmo a própria vida; quando o apenas sobreviver a cada momento é o objetivo fundamental. Esquecemos, no dia a dia, que somos mortais. Estamos sempre defendendo e protegendo posições, papéis, personagens e objetos materiais. Quando tudo isso deixa de ser o essencial, o que sobra? A ideia comum de liberdade é não haver um presídio, é não haver grades, barreiras, paredes imensas e alguém controlando a porta com trancas e chaves. Mas quantas pessoas nos controlam com chaves invisíveis, vão abrindo e fechando portas a seu gosto, e nós nos permitimos aprisionar? Nós nos deixamos aprisionar, por medo, por conveniência. Se em um determinado momento consideramos essa prisão confortável, com o tempo ela se torna incômoda e procuramos a liberdade, queremos ter as chaves dessas portas. Ou nem chaves – portas sem chaves. Paredes flexíveis, janelas abertas onde dentro e fora se confundem e se harmonizam. Aliás, eu quero muito agradecer, porque cheguei aqui e a porta da rua estava aberta. Quando cheguei aqui em seu escritório, professor, a porta também estava aberta. E essa é uma maneira muito terna de receber alguém. Quando chegamos em algum lugar e nos deparamos com uma porta fechada que o outro demora para abrir, temos a sensação de que não somos muito bem-vindos. Encontrar a porta aberta aqui foi muito terno para mim. E isso me fez lembrar de outra ternura que recebi, quando visitei a lama[7] que hoje é uma das professoras responsáveis pelo templo budista de Três Coroas, no Rio Grande do Sul. Ela tinha sido esposa do Chagdud Rinpoche, que havia morrido. Fui visitá-la e ela me disse: “Estou esperando você há dois dias. Que alegria esperá-la!”. Não é gostoso? Deu-me o lugar de honra da sala, onde sentaria seu falecido marido, e me serviu com alegria e respeito.
Eu também me senti assim sobre me encontrar com você. Eu fiquei esperando por este encontro com alegria e com certo temor também. Apesar de tê-lo ouvido muitas vezes, em vários programas, acho que sempre ficamos um pouco apreensivos antes de um encontro. Mas, afinal, somos apenas dois seres humanos conversando. Cada um com seu ponto de vista, suas expectativas, seu conhecimento, suas experiências. Você tem uma larga experiência acadêmica e também de vida, práticas vivenciais. Vim com a alegria de poder refletir com base em suas colocações.